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Literatura Japonesa – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 23 Feb 2022 21:42:26 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Literatura Japonesa – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “People From My Neighbourhood”: imaginação em estado bruto https://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/ https://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/#respond Wed, 23 Feb 2022 21:41:43 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23113 Era, como diria Vinícius, um prédio muito engraçado. Famílias com exatamente seis pessoas ocupavam todos os apartamentos.

Aqui e ali, coisas estranhas começam a acontecer. Um homem cuja barba cresce mais rápido do que é capaz de cortá-la. Uma pessoa cujas bolha no pé viraram mini lagoas – com girinos e tudo.

“É coisa do Demônio” explica uma vizinha de outro prédio. Seis, afinal de contas, é o número da besta.

As pessoas da cidade começam a evitar o prédio. Isolados do mundo, seus moradores criam sua própria rotina, depois seu próprio banco central e moeda. Com o tempo, decretam independência e criam suas próprias forças armadas. Na Baía de Tóquio, é possível vê-los em exercícios conjuntos com a Marinha Japonesa.

Se a história acima a fez perguntar o que diabos acabou de ler, não está sozinha. A historinha vem de um dos contos de People From My Neighbourhood da escritora Hiromi Kawakami.

No papel, o livro é um compilado de microficção sobre os habitantes de um subúrbio de Tóquio. Na prática, é um álbum de retratos tão repleto de realismo fantástico, absurdo, metáforas e humor que parece feito sob medida para fritar nossas sinapses.

Esse não é um livro escrito com palavras, mas com imaginação em estado bruto.

As pessoas do meu bairro

Não olhe muito a fundo. Apenas curta o momento.

Esse é o sentimento que a protagonista sem nome de People From my Neighbourhood parece evocar.

Em sua voz, leitores veteranos de Kawakami reconhecerão de pronto o bom-humor de Quinquilharias Nakano, seu romance sobre funcionários de uma descontraída loja de antiguidades. Em certas histórias, o paralelo mais forte é com Parada, conto sobre crianças que se descobrem acompanhadas por seres da mitologia japonesa.

Porém, se Nakano mantém dos dois pés no campo do realismo e o segundo se insere na tradição do folclore, People From My Neighbourhood é uma obra orgulhosamente mais caótica.

Seus capítulos não são exatamente “contos” mais do que descrições de vizinhos de um bairro fictício – e dos eventos, muitas vezes absurdos, que protagonizam. Um adolescente que só é capaz de pronunciar três frases – “Devo assinar aqui?”, “A conta final, por favor” e “Está chovendo forte hoje” – e ocupa um banco no parque como se fosse seu escritório. Vovô Sombras, assim chamado por possuir duas sombras: uma em constante pé de guerra com a outra. Hachiro, garoto-problema abandonado pela família cuja custódia, entre os moradores, é determinada por uma loteria. A dona de uma decrépita casa noturna chamada Love, que passa noite após noite cantando a mesma música no karaokê. Nenhum cliente jamais agracia seu estabelecimento. Ninguém sabe como paga suas contas.

Personagens já apresentadas reaparecem em contos futuros, não necessariamente, do mesmo jeito ou no mesmo momento de suas vidas. A narradora sem nome migra sem cerimônia do passado ao presente e futuro. Muitas vezes, com tão pouco apreço à ordem que suspeitamos se tudo não passa de uma “trollagem”. Apenas Kawakami é capaz de escrever sobre uma doença que transforma todos em pombos – com sequelas irreversíveis –  e retornar ao status quo para o início de outro capítulo.

Nesse sentido, seu livro se aproxima do espírito de Shinya Shokudou (Midnight Diner), mangá de Yarou Abe sobre as histórias – às vezes maravilhosas ou sobrenaturais – de clientes de um boteco da madrugada. No caso de People From My Neighbourhood, bem mais do que “às vezes”.

Cena da adaptação às telas de Shynia Shokudou

Ao contrário de Shokudou, a obra de Kawakami tem os dois pés e alguns tentáculos no campo do realismo fantástico. Há um taxista que leva fantasmas para passear depois do expediente. “Mulheres são mulheres” ele protesta “Sempre é divertido tê-las por perto, mesmo se elas forem meio translúcidas e não tiverem pernas”.

Há uma garota que encontra uma criatura fedida em uma excursão escolar, cria-a até assumir a forma de um homem e a usa para sessões intermináveis de sexo. Quando seu companheiro insaciável começa a traí-la com outras mulheres, ela não consegue encontrar energias para se importar: “afinal de contas, ele não era uma pessoa real, apenas uma coisa estranha.”

Em certas histórias, é difícil escapar à impressão de que o livro de Kawakami é uma coleção de retratos de uma humanidade reduzida ao absurdo. Seus contos começam esquisitos, às vezes absurdos, então progridem a um nível de nonsense que viola qualquer suspensão de descrença.

Em um dos contos, por exemplo, duas crianças olham para uma estátua de bronze e decidem que também gostariam de ser homenageadas desta maneira. Tempos depois, elas declaram guerra ao Estado pelo direito de terem seu próprio monumento. A revolução é derrotada meses depois, e as crianças voltam para casa dramaticamente transformadas: uma tingira o cabelo de vermelho; outra aprendera a tocar trompete.

É o tipo de humor que esperamos do Flying Circus de Monty Python mais do que da autora de A Valise do Professor.

Mas Kawakami é menos consistentemente engraçada que a trupe britânica, e se permite, vez ou outra, nos derrubar com a rasteira de um arroubo de emoção. A linha que separa o fantástico do esquisito é fina – fina demais, muitas vezes, para que enxerguemos a diferença. Se alguma pessoa consegue sobreviver às 120 e poucas páginas de seu livro sem se lembrar de algum ex-morador ou indigente de seu próprio bairro, ela provavelmente não tem coração.

No Japão contemporâneo, realismo fantástico esteve por muito tempo atrelado ao sucesso sem paralelos de Haruki Murakami. People From My Neighbourhood se distancia da atmosfera onírica e urbana de seus romances, mas tampouco se confunde à prosa sóbria, melancólica de Yoko Ogawa; à sátira perturbadora de Sayaka Murata, muito menos à tradição latino-americana do realismo mágico. É um livro difícil de descrever, mais ainda de compreende, se é que “compreensível” é sequer um verbo compatível com sua irreverência. É, porém, uma obra que não deixa de nos surpreender da primeira à última frase.

O que mais um leitor poderia querer?

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“Entregas Expressas da Kiki”: cedo ou tarde, todos devemos aposentar nossas vassouras https://www.finisgeekis.com/2021/11/24/entregas-expressas-da-kiki-cedo-ou-tarde-todos-devemos-aposentar-nossas-vassouras/ https://www.finisgeekis.com/2021/11/24/entregas-expressas-da-kiki-cedo-ou-tarde-todos-devemos-aposentar-nossas-vassouras/#respond Wed, 24 Nov 2021 21:47:50 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23049 É mérito do Studio Ghibli que seus filmes pareçam capítulos de uma mesma história, reflexões de uma mesma (e coletiva) mente criativa. Mesmo quando se tratam de adaptações de livros variados, escritos por autores de diferentes cantos do mundo.

Conhecer como eram essas histórias antes de serem transformadas por Miyazaki e companhia  é uma experiência tão gratificante quanto rara. Boa parte desses títulos, como As Memórias de Marnie e Kiri no Mukō no Fushigi-na Machi (inspiração para “A Viagem de Chihiro”) nunca foram lançados no mercado nacional.

Leitores brasileiros podem respiram um pouco mais aliviados. No começo do mês, Entregas Expressas da Kiki, inspiração do clássico O Serviço de Entregas de Kiki (1989), finalmente ganhou uma tradução para o português.

Lançado pela Estação Liberdade com belíssimas ilustrações de Daniel Kondo, o livro é nossa chance de conhecer uma referência importantíssima para o gênero de garotas mágicas – e para o romance infanto-juvenil japonês como um todo.

Àqueles que assistiram à clássica adaptação de Hayao Miyazaki, a premissa de Entregas Expressas de Kiki soará imediatamente familiar. Isto não significa, obviamente, que o romance não ofereça algumas surpresas pelo caminho.

Sua protagonista é Kiki, filha única de uma bruxa e um antropólogo especializado em magia, próxima de completar seus treze anos. Como reza a tradição das feiticeiras, ela precisa deixar a casa dos pais e morar em outra cidade por um ano, usando sua magia para ajudar as pessoas. Munida da vassoura de sua mãe e na companhia de Jiji, seu gato preto, ela alça vôo na esperança de encontrar uma nova casa.

Kiki não é a mais tradicional das bruxas, se é que podemos esperar tal coisa de uma menina de sua idade. Cansada do acolhedor, porém claustrofóbico vilarejo de sua família, ela decide se instalar na maior cidade que encontra.

O que poderia dar errado?

A cidade de Koriko na adaptação cinematográfica do livro de Kadono

Como aqueles que também trocaram o interior pela metrópole bem sabem, muita coisa. A cidade em questão, Koriko, opera num ritmo próprio, seus habitantes tão apressados e indiferentes quanto as engrenagens de um relógio. Mimados pelas benesses da modernidade, eles não vêem necessidade de magia. A presença de uma bruxa de vassoura e vestido preto desperta toda sorte de desconfianças.

Felizmente, Kiki é criativa na mesma medida que rebelde e rapidamente aprende a se encaixar nesse mundo estranho.  Fazendo uso de sua vassoura, a garota funda um serviço de entregas expressas, antecessor bruxesco dos drones de entrega da Amazon. Capítulo a capítulo, o romance acompanha o desenrolar de suas encomendas, tal como as verdades – algumas agradáveis, outras nem tanto – que aprende sobre os outros e si mesma.

Nas mãos certas, é o tipo de premissa que permite ser espandida indefinidamente, cada episódio uma nova encomenda. Potencial que sua autora, Eiko Kadono, levou a cabo. No Japão, o romance inspirou uma série de sete livros, o último dos quais publicado em 2017.

Fico curioso em conhecer os volumes seguintes da série (oportunidade que, com sorte, a Estação Liberdade nos proporcionará num futuro próximo). Não apenas pelo prazer de revisitar a prosa singela de Kadono, mas por conferir como sua protagonista mudou ao longo desses quase trinta anos.

Mais do que uma simples história sobre bruxas, afinal de contas, Kiki foi uma referência importantíssima para a consagração de um dos gêneros mais queridos por amantes da cultura pop japonesa: o mahou shoujo ou garota mágica. Gênero esse que passou por tantas transformações desde o longínguo ano de 1985, quando o primeiro livro foi publicado, quanto sua bruxinha titular durante seu ano de aprendizagem.

De majokko a mahou shoujo

Antes de se tornarem um ícone pop do Japão contemporâneo – Sailor Moon chegou a ser escolhida como uma das “embaixadoras” das Olimpíadas de 2020) – as garotas mágicas não eram necessariamente tão diferentes das bruxas de vassoura e chapéus pontudos do folclore ocidental. Em boa parte, isto se deve à influência da sitcom americana A Feiticeira. Tal como a série dos 1960, o mote do gênero era mostrar as desventuras de uma usuária de magia em um mundo contemporâneo. E, com isso, brincar – e também refletir – sobre o quão desencantada nossa sociedade se tornou.

Majokko Megu-chan, clássico do gênero garota mágica. Como outras de sua geração, a série foi fortemente inspirada pela sitcom “A Feiticeira”

Kiki é uma obra de outra mídia, mas compartilha o ponto de vista dos animes e mangás dessa geração. Nesse sentido, é um registro importante do que significava ser uma “garota mágica” antes dos báculos e cenas de transformação se tornarem parte inseparável de seu apelo. Não é uma coincidência, por sinal, que nos anos 1970 estas heróinas eram conhecidas como majokko (“pequenas bruxas”). Kiki se sentiria em casa na sua companhia.

Curiosamente, esse paralelo fica mais evidente no romance de Kadono que em sua adaptação cinematográfica. Nele, Kiki não é “mágica” apenas em razão de seus poderes, mas porque traz magia à vida das pessoas, convidando-as a encarar o mundo de uma forma mais encantada.

É o caso de capítulo em que a bruxinha é contratada para salvar o ano-novo. Ao descobrir que o relógio da cidade está quebrado a poucas horas antes do réveillon, o prefeito pede para que roube o aparelho de uma aldeia vizinha.

Ou então o episódio em que Kiki precisa agir para que o inverno não dure para sempre. Acontece que sua cidade anuncia o começo da primavera com um festival musical, uma cerimônia à la Dia da Marmota que os locais acreditam ser capaz de espantar o frio. Infelizmente, os músicos escalados esqueceram os instrumentos no trem. Se não conseguir reavê-los à tempo, a cidade estará fadada a um ano gélido.

Kadono nunca esconde o que realmente está em jogo: o grito de socorro de uma sociedade desencantada, redescobrindo valor em seus rituais e superstições.

O declínio da magia

Kiki, no final das contas, é uma carta de amor aos encantos sutis que experimentamos ao longo do dia. Trens, aviões, correios e drones da Amazon podem tornar nosso cotidiano mais fácil, mas não é só disse que se faz uma vida. Que não sejamos capazes de conjurar feitiços não significa que não tenhamos nossa própria espécie de magia: pequenos rituais, curiosidade, a capacidade de nos maravilhar com as surpresas do dia-a-dia. Nem que sejam tão mundanas como um prado coberto por capim-cidreiras que nos deixa cheirosos após uma soneca.

Não se trata de uma magia tão deslumbrante quanto uma bola de fogo ou a capacidade de parar o tempo. Para o nosso bem, contudo, é bom que seja o suficiente.

A despeito de seu frequente bom-humor, o livro de Kadono não esconde um lado trágico. No início do romance, a mãe de Kiki conta à filha que, de todos os sortilégios de bruxa, ela conhece apenas a alquimia e o vôo com vassoura. À Kiki, ensinou apenas o segundo, de onde tiramos que a arte de fazer poções morrerá com ela.

Quantas outras habilidades não tiveram destino semelhante? Por quanto tempo a própria Kiki conseguirá manter a tocha acesa diante das conveniências da vida moderna e pressões da vida adulta?

Por quanto tempo qualquer um de nós consegue manter vivas as fantasias de nossas infâncias?

Como outras histórias de garotas mágicas, Kiki é também uma metáfora sobre nosso próprio crescimento; sobre o desafio de abrir mão das poções mágicas e gatos falantes que herdamos de nossos pais e encarar o mundo com nossos próprios recursos.

A cidade de Koriko. Ilustração de Daniel Kondo.

Há uma cena no final do romance em que Kiki sobrevoa sua nova cidade. O pôr do sol bate na torre do relógio e cria uma sombra que lembra um ponteiro.

É uma imagem bonita, que nos mostra como a própria Koriko, antes uma selva de concreto, se tornou mágica aos olhos da bruxinha. Mas ela também traz uma mensagem mais sóbria/séria/melancólica.

Os ponteiros do relógio estão sempre se mexendo, sejamos ou não capazes de enxergá-los. O tempo não para. Cedo ou tarde, preparados ou não, todos nós estamos fadados a aposentar nossas vassouras.

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“Temple Alley Summer”: o passado nunca morre de verdade https://www.finisgeekis.com/2021/11/03/temple-alley-summer-o-passado-nunca-morre-de-verdade/ https://www.finisgeekis.com/2021/11/03/temple-alley-summer-o-passado-nunca-morre-de-verdade/#respond Wed, 03 Nov 2021 21:57:52 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23040 O mês das bruxas acaba de terminar (ou de começar, se você for purista e levar em conta que o festival que inspirou o Halloween era celebrado dia 01/11 e seu nome – Samhain – significa “novembro” ).

Ainda que você não seja tão fã da pantomina carnavalesca em que os americanos transformaram a data, o Dia das Bruxas é uma desculpa perfeita para conferir obras sobre assombrações e o além. Mesmo aquelas que pouco têm a ver com abóboras esculpidas ou chapéus pontudos.

Kimyouji Yokochou no Natsu, ainda inédito no Brasil, mas publicado em inglês como Temple Alley Summer, é uma leitura do tipo. O romance infanto-juvenil é uma fábula sobre inocência, fantasia e nossa relação com morte, contada de uma maneira tão transparente, em sua simplicidade, quanto os fantasmas que a povoam.

Não é de surpreender, considerando que foi escrito por ninguém menos que Sachiko Kashiwaba, autora do livro que inspirou A Viagem de Chihiro.

O Templo do Retorno à Vida

Há uma vibe de antiguidade em Temple Alley Summer que encaixa perfeitamente em seu enredo sobre assombrações, templos amaldiçoados e casarões misteriosos. Embora tenha sido originalmente escrito em 2011, sua história parece pertencer a uma época mais simples, em que nossa percepção do sobrenatural era mais guiada pelas coisas que enxergávamos – e as que não víamos – que pela mídia de massa.

É uma ironia que não escapa à Kashiwaba, que começa seu livro justamente com um programa de TV. Kazu, aluno da quinta série na pequena cidade de Masuda, interior do Japão, está assiste a um enlatado sobre fantasmas antes de dormir. Ao ir ao banheiro no meio da noite, é surpreendido por uma visão mais assustadora que qualquer vídeo de poltergeist.

Uma garota aparece em um dos cômodos da sua casa vestida em um kimono fúnebre.

A menina desaparece tão cedo surgiu. Seus pais, como é típico de pais fazerem, não acreditam em sua história.

As coisas ficam mais estranhas quando Kazu reencontra a estranha na escola, vestindo o uniforme de seu ano. Nenhum de seus colegas nota nada de errado em sua presença. Pelo contrário, agem como se ela sempre tivesse estudado com eles.

Teria uma assombração realmente voltado à vida e ocupado um espaço em sua rotina? Ou estaria Kazu apenas ficando louco?

Pouco a pouco, o garoto começa a acreditar na primeira opção. Durante um trabalho da escola, Kazu desenterra por acaso um antigo mapa de sua cidade. Segundo ele, cerca de cem anos atrás sua rua costumava se chamar Kimyōji Yokochō, algo como “beco do templo Kimyou”. Em japonês, o nome do santuário se escreve com os ideogramas para “retorno” e “vida”, como se estivesse de alguma forma relacionado com a missão de trazer os mortos de volta do além.

Basta que Kazu comece a fazer perguntas para que entenda que não está lidando apenas com mortos, mas também com os esqueletos, metafóricos, que os vivos escondem no armário. Os velhos de sua rua prontamente negam ter ouvido falar do templo. Dois membros do conselho do bairro visitam sua casa para lhe convencer de que pesquisar a respeito é uma perda de tempo. De uma mera história de fantasmas, Temple Alley Summer começa a se assemelhar a uma versão infanto-juvenil de O Bebê de Rosemary.

Kazu eventualmente descobre que o templo Kimyou realmente existiu, mas foi destruído por um grupo de pessoas que considerava errado trazer os mortos de volta à vida. Seus adeptos, todavia, continuaram os ritos em segredo, dando uma nova chance a almas perdidas.

É óbvio que Akari, sua recém-aparecida “amiga”, é uma dessas pessoas.

Ressentimentos e segundas-chances

Minha sinopse talvez faça o livro parecer mais sombrio do que de fato é. Kashiwaba escreve sobre templos, mortos-vivos e seitas misteriosas, mas Temple Alley Summer deixa claro que estes elementos são apenas um pano de fundo para uma questão maior: Se existisse um poder capaz de trazer mortos de volta à vida, seria correto utilizá-lo?

Você, leitora, o utilizaria?

Kazu acha que tem uma resposta, mas sua certeza desmancha quanto mais se aproxima de Akari. Sim, mortos-vivos são uma violação das leis da natureza. Mas, até aí, não é injusta uma natureza que permite que meninas morram aos dez anos, antes de aproveitarem o melhor que a vida tem a oferecer? Até que ponto certas pessoas não merecem uma segunda chance? Até que ponto desejar uma segunda chance em vez de curtir o pouco tempo que nos resta não invalida a própria razão de se viver?

Não tive a oportunidade de ler Kiri no Mukou no Fushigi na Machi, o livro de Kashiwaba que inspirou A Viagem de Chihiro. Não sei dizer, portanto, se a exuberância do filme se deve à imaginação de Miyazaki ou à história que o inspirou.

Tenho a impressão de que é o primeiro caso, pois Temple Alley Summer não poderia ser mais diferente da obra-prima dodiretor.

Não que não existam pontos em comum entre romance e filme. Alguns detalhes, como uma mãe invisível e um varal que se materializa na medida em que surgem roupas a secar, parecem tirados diretamente da mente dos animadores do Studio Ghibli. Kazu, como Chihiro, aprende a enxergar o maravilhoso nas coisas mais mundanas.  

Mas se no longa de Miyazaki essa lição é colorida por um mundo paralelo que desafia os limites da imaginação, o romance de Kashibawa é uma jornada para dentro. Como em As Aventuras de Marnie, o aprendizado de Kazu vem não de fugir da realidade, mas de redescobrir o valor dos lugares e pessoas com que sempre conviveu.

É curioso que, quando Temple Alley Summer finalmente abraça a fantasia, o faça por meio da literatura. Em dado momento, na sanha de realizar os sonhos inacabados de Akari, Kazu sai em busca de um conto de fadas que costumava ler, serializado em uma revista há muito descontinuada.

Essa história-dentro-da-história chega a lembrar A Cidade sem Ninguém de Chobits, não apenas por conta de seu tom, mas pela maneira como força as personagens do romance – e também a nós, que a lemos através de seus olhos – a enxergar seu conflito de outra maneira. Se a escrita de Kashiwaba possui uma vibe de antiguidade, ela vale em dobro para o conto de fada. Até mesmo as ilustrações são diferentes, em um estilo que parece pagar tributo às xilogravuras dos séculos XVII e XVIII.

É coincidência que um romance que se inicia com um enlatado de TV termine com uma homenagem literária a Charles Perrault aos Irmãos Grimm? Eu duvido muito.

Mortos não retornam ao nosso mundo, e provavelmente isto é para o bem. Mas o passado nunca morre de verdade, e há diversos sortilégios que podem trazê-lo de volta à vida, escondidos em mapas antigos, histórias contadas e memórias daqueles que estão por aqui há mais tempo que nós.

Tudo o que precisamos é de uma pitada de curiosidade.

 

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“Tatami Galaxy”, ou por que devo desculpas a Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/#comments Wed, 22 Sep 2021 23:54:33 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23027 Aconteceu no meu primeiro ano da faculdade.

Foi a melhor época da minha vida até o momento, mas também a mais estressante. Farto até a medula de simulados e aulas de decoreba, decidi que tinha chegado a hora de aproveitar minha vida ao máximo. Tudo o que sentia vontade de fazer fiz questão de levar a cabo. Ao mesmo tempo.

Toquei violino em uma orquestra de câmara amadora. Comecei minha iniciação científica. Entrei em turmas de latim e japonês. Nas horas vagas, saía com minha namorada ou meus dois círculos de amigos: os novos, da faculdade, e os antigos da escola.

Minha rotina era uma montanha-russa entre o sentimento de realização e a iminência de um burnout. Nunca me sentira tão completo e, ao mesmo tempo, tão cansado.

Foi então que escutei de um colega da aula de japonês:

“Quer dizer que você não vai em festas? Você não tem medo de deixar essa oportunidade passar e viver com remorso pelo resto da vida?”

Eu travei. Menos, imagino, por ter visto sabedoria em suas palavras que por ter escutado uma frase tão absurda de alguém que, para todos os fins, era até então um desconhecido. Tirando os “bons dias” e os exercícios de diálogo que fazíamos na aula, aquela era a conversa mais longa que já tínhamos tido.

Senti vontade de responder que estudava na FFLCH-USP, que pouco tinha a ver com o campus cor-de-rosa das comédias românticas americanas. E que meus colegas eram menos conhecidos por festas que por ocuparem a reitoria durante greves e se vestirem de mendigo em tempo integral. (Era um clichê, obviamente, mas todo clichê tem uma ponta de verdade).

Mas apenas desconversei com uma desculpa qualquer, chocado pela minha própria fraqueza diante de um comentário tão estúpido. Eu já estava dando tudo de mim. Não havia mais horas no dia para fazer qualquer outra coisa. Será que mesmo assim estava desperdiçando meus anos de juventude?

Se você curte animes deve reconhecer meu drama no protagonista de The Tatami Galaxy, anime de Masaaki Yuasa baseado no romance de Tomihiko Morimi. Assistindo a série pela primeira vez no esquenta para uma sequência já anunciada, me dei conta de uma coisa.

Quando resenhei Night is Short, Walk on Girl, livro anterior de Morimi que serve de prequel a Tatami Galaxy, teci comentários um tanto duros. Decepção que atribuí ao próprio Morimi, cujo infanto-juvenil Penguin Highway me deixou com um gosto ainda mais amargo na boca.

Assistindo a Tatami Galaxy, percebo que cometi um erro de julgamento. E está na hora de retificá-lo.

Por uma vida cor-de-rosa

Antes de mais nada, uma introdução. Tatami Galaxy – para o caso, não improvável, de você nunca ter ouvido falar desse nome – é a história de um rapaz em um alojamento estudantil de uma universidade de Kyoto. Seu sonho, como o de tantos outros de sua idade, é curtir a “vida cor-de-rosa” dos anos de faculdade o mais intensamente que pode. O destino, porém, tem outros planos. Cada tentativa de dar sentido a sua graduação termina da mesma forma: largando-o sozinho em seu quarto, frustrado, perguntando-se como conseguiu deixar o melhor da juventude escapar pelos dedos.

“Tentativas”, no plural. Cada episódio termina com a tomada de um relógio girando em reverso. O episódio seguinte nos devolve a um momento anterior, mostrando um contrafatual do que aconteceria se tivesse aproveitado uma oportunidade diferente. A “galáxia de tatami” de seu título não é uma referência apenas ao seu alojamento (tatami, além daquele tipo de piso japonês, é uma medida de tamanho usado em residências). É também o leque das suas próprias experiências universitárias, que ele é forçado a reviver como em um Dia da Marmota.

Em temas, não só em estilo visual, o anime é uma versão expandida de Night is Short, Walk On Girl, história sobre a falta de sorte de um universitário tentando se aproximar de sua garota dos sonhos em uma noite fantástica quando tudo acontece.

O fato de que nenhum de seus protagonistas tenha nome diz mais que todas as elucubrações que eles de fato fazem, metralhadas em um ritmo tão alucinante que obriga espectadores a pausar o vídeo para entendê-las. O narrador de ambas as histórias é um everyman representando todos os jovens homens com hormônios nas alturas que já experimentaram em desespero por não encontrarem o prazer que mereciam. Prazer esse que envolve, invariavelmente, uma bela moça de cabelos negros.

Como Virgens Suicidas, em uma versão ainda mais pop e millennial, são histórias sobre o olhar masculino: sobre a necessidade de homens de ter seus prazeres atendidos e a indignação com que reagem quando esse privilégio lhes é negado.

Mas se Virgens Suicidas se tornou um clássico contemporâneo por questionar, criticamente, o que significa ser um “objeto” do olhar de outrem. Night is Short, Walk on Girl é frenético demais para colocar seu protagonista debaixo de uma lupa. Saímos do livro incertos se devemos tirar sarro do protagonista ou simpatizar com sua cruzada fracassada, por mais repreensível que ela seja. Problema este que incomoda ainda mais em Penguin Highway, outro livro de Morimi com um enredo duas vezes menos interessante e um protagonista triplamente mais chauvinista.

Quando seu “herói” se orgulha de desenhar os peitos de mulheres que conhece, você sabe que tem um problema).

Tatami Galaxy, porém, vira a falta de simpatia de sua personagem central de ponta cabeça. E de uma maneira que me fez entender que essas obras tem mais sabedoria do que aparentam à primeira vista.

Parte desse mérito vem da maneira como equilibra os impulsos sexuais de seu narrador com um enredo mais vago sobre a dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Parte, também, vem do fato de que esse narrador não é o verdadeiro protagonista de sua história.

Ao longo dos onze episódios, sua história é entrecruzada com a de outras pessoas com suas próprias agendas: Jougasakai, galã da turma que esconde um romance com uma boneca sexual; Ozu, colega que insiste em levá-lo para o mau caminho; Akashi, a “garota de seus olhos” – mas também uma mulher que não hesita em lhe pregar peças quando lhe convém; Higuchi, mistura de youkai e Grande Lebowski que parece puxar as cordas de seu destino, mas também viver um dia por vez, sem dar satisfações a qualquer um.

Na medida em que vemos as relações entre essas personagens evoluírem, fica difícil saber se estamos de fato assistindo à história do narrador ou as suas histórias, pelos olhos dele. Ironia que não escapa ao próprio narrador, que sofre para entender como pessoas tão imperfeitas, tão distantes de seu ideal de masculinidade, conseguem ter a vida cor-de-rosa que tanto persegue.

É impossível não lembrar de um trecho de Norwegian Wood, o belíssimo e melancólico romance de Haruki Murakami:

“Da direção do prédio do centro estudantil vinha o som de uma voz grossa praticando escalas. Aqui e ali estavam grupos de quatro ou cinco estudantes expressando quaisquer opiniões eles vinham a ter, rindo e gritando um ao outro. No estacionamento, um punhado de rapazes andavam de skate. Um professor com uma maleta de couro cruzou o estacionamento, evitando os skatistas. No pátio, uma estudante de capacete se ajoelhava, pintando grandes caracteres em um cartaz com algo sobre o imperialismo americano invadindo a Ásia. Era uma típica cena da universidade na hora do almoço, mas na medida em que me sentei assistindo-a com atenção redobrada, eu me dei conta de um certo fato. Cada pessoa que eu enxergava diante de mim estava feliz na sua própria maneira. Se eles estavam realmente felizes ou simplesmente pareciam estar eu não podia dizer. Mas eles pareciam alegres nesse agradável começo de tarde no final de setembro, e por conta disso eu senti um tipo de solidão que me era novo, como se eu fosse o único ali que não pertencesse de fato à cena.

Em minha resenha de Night is Short, Walk on Girl, critiquei seu “compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada”.

“Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.”

Tatami Galaxy nos ensina que “curtir o momento”, muitas vezes, é a melhor forma de questionar a realidade. Ensinamento valioso em qualquer instante da vida, mas que adquire uma importância fundamental em tempos de crise como estes em que vivemos.

Ao contrário do narrador do anime de Yuasa, o relógio de nossas próprias vidas jamais voltará para nos dar uma segunda chance.

Meu antigo colega de japonês – de cujo nome, confesso, nem mais me lembro – talvez tenha custado a entender essa verdade. Gosto de pensar que a alfinetada que me deu naquele dia foi, em alguma medida, um recado a si próprio. Quem é esse sujeito que joga fora das minhas regras, mas esbanja a mesma alegria que suo tanto para obter?

Não posso dizer que nunca mais pensei no que ele me disse, sobretudo nessa fase da vida, em que estou mais próximo a voltar à faculdade como professor do que como aluno. Mas de uma coisa não tenho a menor dúvida: meus anos de campus não poderiam ter sido mais rosados.

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“A Mulher da Saia Roxa”: humor, intrigas e pessoas invisíveis https://www.finisgeekis.com/2021/08/04/a-mulher-da-saia-roxa-humor-intrigas-e-pessoas-invisiveis/ https://www.finisgeekis.com/2021/08/04/a-mulher-da-saia-roxa-humor-intrigas-e-pessoas-invisiveis/#respond Wed, 04 Aug 2021 21:10:05 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22992 Certas histórias nos transportam para outros mundos. Outras arrancam nossas vendas, mostrando-nos universos paralelos escondidos debaixo dos nossos olhos.

A Mulher da Saia Roxa, de Natsuko Imamura, pertence ao segundo grupo. É, à primeira vista, um romance sobre uma obsessão mundana entre pessoas inconsequentes, escrito em uma prosa tão simples que nos desafia a procurar sentidos escondidos.

É, também, um romance sobre complôs e silenciamentos, sobre o preço de ver demais e os riscos de enxergar de menos. Um romance sobre temas tão sérios, escritos com tanta irreverência que parecem nos zombar ao mesmo tempo em que nos intrigam.

A julgar pelo título – e primeiros capítulos – é fácil ter a impressão de que estamos diante de uma história sobre uma personagem sui generis, uma Manic Pixie Dream Girl recém-chegada à meia-idade.

A Mulher da Saia Roxa, como a narradora nos conta, é uma figura da vizinhança. Faça sol ou faça chuva, usa sempre o mesmo figurino. Sempre almoça sozinha na mesma praça, em um banco que os locais já aprenderam a reservar para ela. Nem sempre é fácil encontrá-la, pois sua rotina irregular. Quando passa na rua, todos imediatamente reagem a sua presença. Reza a lenda que vê-la duas vezes ao dia traz boa sorte; três vezes, azar. Se é feita de carne e osso, ninguém sabe: é impossível tocá-la. Ela evita a multidão como se tivesse  “um terceiro olho habilmente escondido debaixo de sua franja, girando em 360 graus, dando a ela uma boa visão de o que quer que se aproximasse dela”.

Isso, ao menos, é o que diz a narradora. Leitores atentos, contudo, entenderão logo de cara que há algo mais sinistro em seu interesse. A Mulher da Saia Roxa, no final das contas,não é uma história sobre sua personagem epônima. É uma história sobre aquela que a observa.

É, enfim, uma história sobre uma stalker.

Capa da edição japonesa de “A Mulher da Saia Roxa”

Quem exatamente é essa narradora é algo que Imamura, nos apresenta apenas a conta-gotas. Ela chama a si mesma de “Mulher do Casaco Amarelo”. Ela trabalha como camareira, embora não ganhe o bastante para pagar o aluguel. Esconde suas economias no guarda-volumes de uma estação, à espera do dia em que será despejada. É de se perguntar se o “Casaco Amarelo” que veste com tanto orgulho é uma tentativa de se equiparar a sua heroína, ou apenas a única peça de roupas que lhe resta.

Por que ela é tão obcecada pela Mulher de Saia Roxa é um mistério que nos acompanha até as últimas páginas. Longe das reviravoltas e emoções à flor da pele que esperamos de um suspense, o enredo de A Mulher da Saia Roxa é corriqueiro a ponto de ser opressivo. Algo que a prosa frugal de Imamura vende com uma força diabólica.

Com exceção de uma cena, um tour de force de realismo mágico que poderia ensinar um truque ou dois a Haruki Murakami, não há no livro grandes tiradas ou floreios – ou, se eles existem, não foram incluídos na tradução que li, escrita por Lucy North. Como um excelente thriller, é um livro para se ler em uma única sentada.

Mas elogiá-lo nesses méritos não dá conta de explicar quão fundo o romance mergulha no poço dos sentimentos humanos. Tal como a vida da Mulher em Saia Roxa, há mais aqui do que aflora na superfície.

Não é preciso muito para entendermos que a Mulher da Saia Roxa não é “folclórica” mais do que excluída. Se os outros a evitam ou inventam histórias às suas custas é porque é assim que fazemos com as pessoas que chamamos de “estranhas”. Ela é magra porque come pouco, tem hábitos irregulares porque faz bicos de madrugada, usa amostras de xampu porque não tem dinheiro para produtos de higiene. Se possuísse mais do que uma saia, talvez seu nome seria outro.

Em dado momento, após muitas entrevistas fracassadas, A Mulher de Saia Roxa arranja emprego como camareira no mesmo hotel em que trabalha a narradora.

Coincidência ou armação? Para Imamura, a resposta não é importante. Suas personagens são misteriosas não porque guardam algum grande segredo, mas porque existem à margem da sociedade.

“Às vezes, nossas funcionárias simplesmente desistem, sem nenhum aviso” conta o diretor do hotel, como se fosse a coisa mais normal do mundo. “Eu não entendo você. Geralmente, você é quieta como um rato” ele diz em outra cena, enquanto escuta uma ameaça que o sacode nas bases. A Mulher de Saia Roxa é um livro sobre pessoas invisíveis.

Há uma cena marcante no início do romance em que A Mulher da Saia Roxa sofre provocações das crianças do bairro. Elas se aproximam escondidas e encostam em seu ombro para logo depois fugirem em gargalhada.Sua relação muda radicalmente quando a moça é empregada pelo hotel e passa a trazer chocolates para distribuir entre os jovens.

Como tantos adultos, aquelas crianças só enxergam outra pessoa como humana quando tem algo que podem lhe tirar.

A narradora é um caso ainda mais trágico: uma mulher tão solitária que precisa inventar uma obsessão com uma completa estranha para sentir que sua vida terá o que menor impacto sobre o mundo.

Como a dona de motel de Após o Anoitecer e as hostesses de Breasts and Eggs, as camareiras de A Mulher da Saia Roxa são mulheres economicamente vulneráveis, substituíveis, batalhando por espaço num mundo pronto para cuspi-las quando cumprem sua função. Mas nem por isso são privadas de garras com que se defender – ou dar o bote quando suas vítimas quando elas menos esperam.

A Mulher da Saia Roxa rapidamente acaba seu treinamento, distingue-se entre suas pares, sobe na hierarquia do hotel. Rumores começam a surgir: alguns lisonjeiros, outros perigosos. Ela ganha o apreço de suas supervisoras, então o desdém, finalmente o medo.

Quando uma das personagens finalmente sai das sombras e suas ações ameaçam trazer abaixo o hotel e seu dono, começamos a nos perguntar se não foi tudo proposital. Até os twists de seu enredo mudam de sentido, como se não fossem reviravoltas de verdade, mas apenas verdades ululantes que aprendemos a ignorar.

O quarto estava em silêncio mais uma vez. A porta automática lentamente se fechou, e o diretor respirou um longo suspiro de alívio.

“Diretor” eu subitamente ergui a voz.

Ele levou um susto. “Ah! Você me assustou. Há quanto tempo você está aí, Gondo-san?

“Eu estive aqui o tempo todo”.

Com quantas Mulheres da Saia Roxa cruzamos todos os dias nas ruas? Camareiras, garis, entregadores de comida, subempregados de toda sorte? Pessoas que sequer olhamos nos olhos para apanhar o troco que nos oferecem ou o negar o panfleto que nos empurram?

Imamura trabalhou como camareira antes de se dedicar apenas à literatura. Lendo seu romance, não é nenhuma surpresa. Nem tanto pelas descrições dos bastidores do hotel, mas pela sensibilidade cruel, mas ao mesmo tempo bem-humorada com que nos força a enxergar aqueles que a sociedade perde entre suas frestas.

Diz uma nota ao fim da edição anglófona que Imamura é fã de Yoko Ogawa e conhecida no Japão como “a segunda Sayaka Murata. Entre elas e Hiromi e Mieko Kawakami, só temos a agradecer o privilégio de compartilhar uma geração com escritoras desse calibre. O mundo em que vivemos parece uma montanha-russa com os freios quebrados. Graças a elas, e aos seus comentários, pelo menos encaramos a descida com os olhos abertos.

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“Heaven”: a violência e seus sentidos https://www.finisgeekis.com/2021/06/09/heaven-a-violencia-e-seus-sentidos/ https://www.finisgeekis.com/2021/06/09/heaven-a-violencia-e-seus-sentidos/#respond Wed, 09 Jun 2021 21:26:28 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22898 Quando resenhei Kagami no Kojou semanas atrás, não imaginei que trombaria com outro romance japonês sobre bullying tão cedo.

Mais surpreendente foi vê-lo escrito por ninguém menos que Mieko Kawakami, que conquistou o Japão e mundo com o incendiário Breasts and Eggs. Dotada de um estilo provocativo, às vezes furioso, sua prosa não poderia ser mais diferente da fantasia meiga de Kagami no Kojou.

Heaven, seu último romance, deixa isso claro. Trata-se de um livro desagradável ,feito para desagradar, e digo isto sem a menor malícia.

É uma fábula sobre o bullying tão imodesta em sua violência – e preto-e-branca em sua moralidade – que parece desafiar leitores a abandoná-la. A julgar pelo ódio e impotência que desperta em nós, é provável que realize este objetivo bem demais.

O céu e o inferno

Seu protagonista é um garoto de 14 anos que conhecemos apenas como “Olhos”. Estrábico, sofre constantes agressões de colegas por conta de sua aparência. Ou, ao menos, é o que ele imagina.

A história abre com um bilhetinho em seu estojo convidando-o a um encontro. Sua autora é Kojima, colega de classe tão atormentada pelas outras garotas como ele é pelos rapazes da turma.

O bullying os aproxima, e logo os dois forjam uma amizade. Longe de prover um porto-seguro contra as agressões, contudo, seu vínculo os transforma em alvos de um abuso ainda maior, que porá à prova sua resiliência – e a de nós, leitores.

Esqueça a lição de vida de Kagami no Kojou ou o humanismo de A Voz do Silêncio, que estendeu sua empatia até mesmo aos bullies. Em Heaven, os valentões são villões irremediáveis capazes de quebrar ossos e fazer as vítimas engolirem fezes. Capítulo após capítulo, Olhos irá do desconforto em ir à escola à insônia, para então contemplar o suicídio.

O próprio nome pelo qual o conhecemos  – Olhos – dá uma ideia da desumanidade a que é subjugado. Na visão dos colegas, como na nossa, ele é apenas uma vítima.

Esse não é um livro para os fracos.

O frágil e o antifrágil

O ensaísta Nassim Nicholas Taleb cunhou o termo “antifrágil” para descrever coisas que se tornam mais fortes quando sofrem dificuldades. É o princípio que rege nosso sistema imune, embora possa ser aplicado para muitas outras coisas: um time que jogue melhor a cada partida, uma sociedade que aprenda a resolver problemas quanto mais frequentemente os tiver.

Trago isso à tona porque é uma ideia frequentemente evocada em discussões sobre o bullying. Para alguns, sofrer provocações de colegas é um teste de caráter que jovens devem enfrentar sozinhos.  Apanhar se torna “bom” porque nos ensina a bater de volta. Ou, pelo menos, a entender que não somos feitos de vidro e não precisamos chorar com “frescuras”.

O que vale para socos literais vale também para os “pontapés” metafóricos que a vida nos dá. De marcas de vergonha, passar dificuldades, viver na pobreza, ter de trabalhar para o próprio sustentam se tornam virtudes: um Chapéu Seletor divino que separa os bons dos folgados. Não se sobe na vida sem antes sofrer.

Não é uma ideia necessariamente defendida na má-fé, muito embora apareça com frequência no discurso de conservadores e reacionários. Quando gastamos anos da vida comendo o pão que o diabo amassou, é tentador imaginar que nossas dores tenham um propósito.

Mas esse é um raciocínio míope, que ignora os milhares – quando não milhões – que beijam a lona antes de encontrem seu lugar no mundo.

Sim, um ou outro indivíduo conseguem escalar a pirâmide social da base até o topo. Mas e todos os outros que não o fizeram e desperdiçaram suas vidas com empregos sub-ótimos, delinquência, morte precoce? O que seria do nosso país, da nossa sociedade, se estas pessoas tivessem sido emancipadas em vez de varridas para baixo do tapete?

Essa é uma pergunta que Kawakami lança em seus livros, escrevendo com uma fúria que escapa de cada sentença. “Se você quer saber quão pobre uma pessoa era quando estava crescendo” sua narradora diz no início de Breasts and Eggs “pergunte a ela quantas janelas ela tinha.”

“Para os pobres, o tamanho da janela não é sequer um conceito. Ninguém tem vista para lugar nenhum. Uma janela é apenas um painel embaçado de vidro escondido atrás de estandes abarrotadas de compensado”.

Seu tom não é ácido por acaso. A pobreza e a necessidade corrompem – e não é uma corrupção que se limita aos bens materiais. Breasts and Eggs é recheado de personagens cansadas, desiludidas, traumatizadas. Tão maltratadas pela vida, na verdade, que não hesitam em propagar tristeza e sofrimento aonde quer que vão, como se, para terem justiça, todos precisassem sofrer como elas sofreram.

Suas personagens nada têm de “antifrágil”. Elas são apenas frágeis, às vezes quebradas, movidas por esta mesma fragilidade a machucar outras pessoas.

A escritora Mieko Kawakami

Heaven demonstra a falência moral desse discurso com ainda mais ênfase. Nenhuma personagem encarna essa crítica melhor que Kojima, convencida de que sofrer bullying nos torna pessoas melhores.

“Nós não estamos apenas obedecendo […] Nós estamos deixando acontecer.” ela explica a Olhos “Eu não acho de forma alguma que isso é fraqueza. É mais como uma força”.

Força pode até ser. Mas de que adianta tê-la se acabamos igualmente dobrados sobre o punho de um bully? Qual é o propósito de “ser forte” se, com isso, contribuiremos para uma sociedade regida por covardes?

É uma pergunta que Heaven tenta responder, mas infelizmente falha, tropeçando na sua própria violência. Seu retrato do bullying é tão caricato que é difícil relacioná-lo ao mundo real – ou saber que sabedorias realmente têm a oferecer.

Olhos nos conta que pedir ajuda aos pais ou aos professores não é uma opção. Kawakami, porém, nunca explica por que nenhum adulto está disposto a acreditar em sua palavra – mesmo quando, após uma cena chocante, ele retorna a casa ensanguentado da cabeça aos pés.

As próprias cenas de agressões são tão gráficas que flertam com a pornografia. No início do romance, assistimos a Olhos sendo forçado a comer giz, o que prontamente faz com que vomite. É uma peça “leve” para o padrão de seus atormentadores. Outra “brincadeira” o levará ao hospital. Uma terceira, a um estupro.

É de se perguntar até que ponto Kawakami realmente tem algo a dizer sobre bullying ou não usa essas cenas de tortura apenas por valor de choque.

De fato, tomado literalmente, o romance parece fetichizar os próprios abusos que supostamente condena. Ao contrário de Olhos, a esmagadora maioria das vítimas de bullying sofrem abusos significamente mais brandos: apelidos maldosos, exclusão pelos colegas, humilhações na frente da sala.

Até que ponto igualar a experiência desses jovens com os tormentos de Olhos não diminui a percepção de trauma que de fato sofrem na vida real?

Até que ponto a caricatura não contribui para a desculpa – que escutam tantas vezes em vida – de que o que sofrem não passa de uma “frescura?”

Metáforas e alegorias

“Caricatura”, na verdade, parece uma palavra errada, pois supõe uma imagem distorcida da própria realidade. Heaven, pelo contrário, é tão preto-no-branco, que parece querer ser lido como uma alegoria.

Como uma versão adolescente de , Olhos aceita seu tormento passivamente, confiando na misericórdia daqueles que o machucam. Seu bullying é menos um problema social que um caminho – ou um obstáculo – para que encontre um sentido na vida: o “Paraíso” a que seu título se refere.

Como lhe explica Kojima:

Nós entenderemos algumas coisas enquanto estivermos vivos e outras depois que morrermos. Mas não importa quando isto acontecer. O que importa é que toda a dor e toda a tristeza tenham um sentido.”

Kojima faz mais do que aceitar a violência dos colegas. Seu masoquismo chega a tal ponto que ela recusa a tomar banho ou se arrumar, de maneira a provocar ainda mais aqueles que a abusam. Quando Olhos comenta que gostaria de não ser estrábico, ela tem um surto. Como pode ele, que o destino abençoou com um alvo para bullies tão perfeito, tem coragem de negar tamanha bênção?

Mas a amiga não é a única personagem que parece saída de uma parábola bíblica. Momose, um de seus bullies, ocupa um papel similar: um Lúcifer que o tenta ao inferno para se contrapor a Kojima e seu paraíso.

Momose lhe conta que não existe razão por trás de seu bullying. Eles o torturam porque podem e sentem vontade, e esta é a única razão de que precisam, pois a vida não tem propósito:

“Mas pensa só nisso” disse Momose “Coincidência. É só o que existe. É assim que o mundo funciona. Eu não estou falando só de você sofrendo bullying. Por acaso alguma coisa no mundo acontece por uma razão? Tenho certeza de que a resposta é ‘não’. Sim, uma vez que ela tenha acontecido, você pode inventar todo tipo de explicação que parece que faz o maior sentido. Mas tudo começa do nada. Sempre. Você nasceu por motivo nenhum e o mesmo vale pra mim. Não há razão para nós estarmos aqui.

[…]

“Nada disso tem qualquer sentido. Todo mundo só faz o que eles querem. Eles têm estas ânsias, então eles tentam satisfazê-las. Nada é bom ou ruim. Havia uma coisa que eles queriam fazer, e eles tiveram a chance de fazer. O mesmo vale pra você.”

Criticar a passagem acima apontando que um adolescente jamais diria isso é perder de vida o mais importante. No romance de Kawakami, o bullying se torna uma metáfora para as agruras da própria vida, e Momose e Kojima, duas formas diferentes de encará-la: um hedonismo niilista, nietzcheano, e um conformismo messiânico.

Nesse sentido, Heaven tem menos a ver com Lonely Castle in the Mirror que com os mangás de Inio Asano e Shuzou Oshimi: histórias traumáticas, quase sádicas de adolescentes que descem ao abismo da depravidade humana – e lá encontram uma portilhola a um mundo diferente, se não necessariamente melhor.

Mas há duas virtudes fundamentais nas obras desses mangakás que os elevam acima de uma mera pornografia do sofrimento.

Primeiro, elas flertam com o místico, o surreal ou o fantástico. Nijigahara Holograph é uma narrativa mágica que entrelaça passado, presente e futuro.  A Cidade da Luz sela seu clímax com um ônibus voador. Em As Flores do Mal, cada passo de seu protagonista rumo ao abismo é seguido por uma flor gigantesca que brota sobre sua cidade:

Segundo, elas pingam de sarcasmo dirigidos as suas personagens, mesmo quando nos convidam a simpatizar com elas. Em As Flores do Mal, o protagonista Kasuga é psicologicamente torturado pela colega Nakamura, mas Oshimi deixa claro que foi a sua prepotência, sua esnobice adolescente, que o tornou vulnerável a seus encantos em primeiro lugar.

Asano leva isso ainda mais longe em Bom Noite Punpun, com uma personagem principal zombada por Deus, e que o próprio autor menospreza, nas introduções aos capítulos, como um furita inútil.

Graças a esses dois “temperos” – misticismo e humor – seus trabalhos ganham um tom surreal que mantém seus elementos repugnantes sob controle. Como um livro de Franz Kafka, somos capazes de entender as situações que suas personagens enfrentam como uma redução ao absurdo de males do dia a dia.

Kawakami domina bem essas técnicas, pois as usou para grande efeito em Breasts and Eggs. Makiko, irmã da protagonista, é uma quarentona esquelética de tão pobre que insiste em torrar uma fortuna que não tem para colocar implantes de silicone. Sua filha, Midoriko, encerra uma briga em família quebrando uma caixa de ovos sobre a cabeça. Uma visita da protagonista Natsuko à casa de banhos termina com uma visão de sonho surrealista digna de um conto de Haruki Murakami.

Heaven, pelo contrário,não possui nenhuma coisa nem outra, o que faz sua alegoria sobre bullying parecer excessiva e manipulativa. No final da leitura, é o gosto amargo de suas cenas de tortura que permanece, concentrado demais para remediar qualquer lição de sabedoria.

Se você, leitora ou leitor, tiver uma cópia de Kageki no Kajou, faça questão de mantê-la ao lado de Heaven. É provável que sinta vontade de relê-la após esse exercício de sadismo.

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“First Person Singular”: retrato de um Murakami sob ataque https://www.finisgeekis.com/2021/04/28/first-person-singular-retrato-de-um-murakami-sob-ataque/ https://www.finisgeekis.com/2021/04/28/first-person-singular-retrato-de-um-murakami-sob-ataque/#respond Wed, 28 Apr 2021 20:42:00 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22817 Haruki Murakami é conhecido por um estilo inimitável de realismo fantástico. E por retratos tão comoventes sobre a solidão que fazem qualquer um procurar um copo de whisky ao som de um jazz melancólico.

Suas histórias reproduzem  a esquisitice típica dos sonhos. Nos seus melhores momentos, sua prosa empresta a vida e imaginação de um de seus maiores ídolos, Raymond Chandler.

O Assassinato do Comendador, seu último romance publicado no Japão em 2017 e aqui no Brasil em 2019, não foi um desses trabalhos.

O New York Times o chamou de “uma decepção vinda de um autor que já escreveu trabalhos muito melhores.” O Irish Times comparou suas personagens a móveis baratos que o autor esqueceu de montar. Uma de suas cenas de amor foi nomeada ao Bad Sex award, premiação que “prestigia” as piores descrições de sexo da literatura.

Na minha própria resenha, comentei que “boa parte de suas 700 páginas são perdidas em divagações pseudo-profundas” e ideias recauchutadas de seus livros mais inspirados.

O próprio Murakami não ajudou a si próprio. Em entrevista para o site The Guardian, ele argumentou que dar sentido a histórias é tarefa de “pessoas inteligentes” – coisa que escritores não precisam ser.

First Person Singular, sua primeira obra depois de Comendador, pode não ser o livro que seus fãs merecem. Mas ele é, sem dúvida aquele de que o próprio Murakami precisava.

Coletânea de contos com um forte tom autobiográfico, é um retrato tragicômico de um escritor cuja prosa já viu dias melhores – e que veste seus defeitos como uma confortável e puída camiseta de estimação.

Primeira pessoa do singular

Algumas das edições do livro ao redor do mundo

First Person Singular é o título de uma das histórias que livro traz, mas também uma assinatura que fã nenhum do autor falhará em identificar. Por mais que tenha experimentado com outras vozes em obras como 1Q84 e Após o Anoitecer, a língua natal de Murakami é a primeira pessoa.

É difícil saber onde os homens solitários, auto-depreciativos e intelectualmente sofisticados de suas histórias terminam e o  autor que os escreve começa. Em sua nova coletânea, Murakami joga a distinção pela janela, com contos que se passariam pela autoficção não fosse a presença de macacos falantes e LPs sobrenaturais.

Um de seus contos  (The Yakult Swallows Poetry Collection) é explicitamente narrado por um “Haruki Murakami”. Mesmo nos outros, porém, não é preciso muito para saber que estamos enxergando o mundo através de seus olhos – e de mais de 40 anos de carreira literária.

De fato, First Person Singular é praticamente uma retrospectiva dos tiques mais marcantes de sua ficção, convenientemente agrupados em uma espécie de bingo mental.

Há aqui o prazer vazio – e solitário – do sexo casual (On Stone Pillow), que tanto atormentou Toru, protagonista de Norwegian Wood. O paralelo com os Beetles aparece no título de outra história (With the Beetles), que bem poderia ser um capítulo cortado de seu celebrado romance.

Há o surrealismo-assinatura de Caçando Carneiros e boa parte de sua obra (Confessions of a Shinagawa Monkey), desta vez encarnado por um macaco sapiente que trabalha em uma estação de termas.

Há sua paixão característica por jazz (Charlie Parker Plays Bossa Nova), em um conto sobre uma resenha musical que subitamente traz um álbum à vida (quem dera os textos do Finisgeekis tivessem o mesmo poder!).

Por fim, há os “homens sem mulheres” que batizaram uma de suas coletâneas anteriores: narradores masculinos irremediavelmente fascinados, ameaçados e frustrado pelo sexo oposto (praticamente todos os contos, mas em especial Carnaval e First Person Singular).

A morte de um sonho

Ilustração para o conto “With the Beetles”, publicado na revista New Yorker

A bem da verdade, nem todas essas histórias funcionam como contos. Mas talvez encará-las como histórias separadas seja perder de vista o que realmente tentam dizer. Mais do que em qualquer outro livro de sua carreira, o tema de First Person Singular é o próprio Murakami.

Não é sempre que a idade de um escritor pesa sobre sua escrita – ainda mais no caso de um autor reconhecido por sua incrível saúde. Cada uma dessas histórias, contudo, parecem carregar a melancolia própria de quem percebe que o melhor da vida já passou.

“Pessoas envelhecem em um piscar de olhos” ele escreve em um dos contos. “Em todo e cada momento, nossos corpos estão em uma jornada só de ida em direção ao colapso e a deterioração”.

“O que eu acho estranho sobre envelhecer não é o fato de que eu fiquei mais velho” ele diz amargamente em outro “é que me força a admitir, de novo e de novo, que meus sonhos de juventude acabaram para sempre.”

“A morte de um sonho pode ser, de uma certa maneira, mais triste que aquela de um ser vivo”.

Por mais que doa admitir, essa é uma deterioração que se reflete na escrita.

Nenhum conto da coletânea chega aos pés de Sono, história publicada na revista New Yorker em 1992 que o tornou um queridinho do mercado americano. Sua prosa repete a mesma banalidade de O Assassinato do Comendador e partes de 1Q84.

Ao topar com frases insípidas como “esse artigo [… ] reemergiu na minha vida como um bumerangue que você jogou e rodopia de volta quando você menos espera”, é difícil acreditar que esse é o mesmo escritor que produziu Kafka à Beira Mar e um dia foi cotado para o Nobel.

Nesse sentido, é chocante, mas também explicativo as recentes revelações de que as primeiras edições de seus livros para o inglês foram significativamente maquiadas por seus tradutores.

Segundo David Karashima em seu livro Quem Nós Estamos Lendo quando Lemos Murakami, os tradutores do autor para a língua inglesa tomarem liberdades brutais com seu conteúdo. E não falo apenas de honoríficos traduzidos ou referênciais culturais, mas de páginas cortadas às centenas.

O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo teve mais de cem páginas omitidas. As Crônicas do Pássaro de Corda, cerca de 25 mil palavras. Caçando Carneiros foi “atualizado” dos anos 1970 aos 1980 para surfar na onda da nostalgia que cercava a época no mundo americano.

Livro de Karashima, publicado em 2020

Karashima explica que essas mudanças foram feitas para eliminar passagens mais caóticas e tornar seus livros mais ágeis, “ocidentalizados” e diferentes da literatura japonesa então popular no mercado ocidental.

Esse não é, até onde eu sei, o caso das traduções ao português. Porém, para leitores como eu, que leram boa parte de sua obra antes de estarem disponíveis no mercado nacional, gera uma dúvida aterradora.

Até que ponto o Murakami modernoso, americanizado e criativo de seus primeiros livros não foi um fenômeno literário inflado por uma jogada de marketing?

Escrevendo na defensiva

Diga o que for dos defeitos de First Person Singular, há nele uma diferença crucial em relação a Comendador. Murakami mostra estar completamente a par de seus defeitos – e os assume com uma ousadia que beira o atrevimento.

“Eu não faço ideia se isso pode ser chamado de poema” ele escreve ao nos presentear com alguns versos “Se você o fizesse, é capaz de deixar poetas de verdades irritados, de fazê-los querer me amarrar no poste mais próximo.”

Ainda mais evidente é o caso de sua inexplicável necessidade de descrever o corpo feminino, hábito que levou a escritora Mieko Kawakami a criticá-lo como misógino.

Carnaval inicia com seu narrator contando que “[D]e todas as mulheres que conheci até agora, ele foi a mais feia”. Ao que procede, com um sarcasmo pouco disfarçado: “Eu poderia usar um eufemismo, obviamente, e dizer menos bonita no lugar de feia, o que poderia ser mais fácil aos leitores, especialmente às leitoras, aceitar”.

Menos sarcástico é o conto que dá nome ao volume, possivelmente a melhor história da coletânea.  Sua trama acompanha um narrador acostado por uma mulher vingativa, que o acusa de ter feito um grande mal a uma amiga. “Você deveria ter vergonha de si mesmo”, ela rosna.

Nunca sabemos o que aconteceu entre eles – um quê de subjetividade que eleva esse conto acima dos outros. Ao lê-lo, fico me perguntando se o próprio Murakami não se sente igualmente confuso com a recepção morna de seus últimos trabalhos.

“Mas naquele dia […] eu fui acometido por um sentimento desconfortável.” Ele escreve “Eu estou apenas imaginando isto, mas pode ser parecido ao sentimento de homens que secretamente se vestem de mulher”. Se isto não é uma indireta às críticas que tem recebido por conta de suas personagens femininas, devo um álbum do Charlie Parker em desculpas ao ilustre escritor.

Entrevista de Murakami com Mieko Kawakami, em 2017. Fonte

First Person Singular é um livro escrito na defensiva, admitindo erros mais do que tentando corrigi-los, respondendo com bom-humor em vez de orgulho ferido.

Mais do que um livro narrado por Murakami, é um livro, parece, escrito para Murakami. E, interpretado dessa maneira, é difícil não sentir um certo carinho pela sua honestidade desajeitada.

Como ele escreve em The Yakult Swallows Poetry Collection, essencialmente uma comparação entre o sucesso literário e a vitória no beisebol,

Claro, vencer é muito melhor do que perder. Não há o que discutir. Mas vencer ou perder não afeta o peso e o valor do tempo. É o mesmo tempo, de uma forma ou de outra. Um minuto é um minuto, uma hora é uma hora. Nós temos de curti-lo. Nós temos de nos reconciliar com o tempo e deixar para o futuro o maior número de memórias que pudermos.”

É uma “filosofagem” que disputa, em profundidade, com o mais medíocre dos animes slice of life. Ainda assim, ela é escrita de forma tão humilde, tão sincera em sua auto-piedade que desarma o mais rábido dos críticos.

Se Murakami agora mesmo batesse na minha porta, não teria o que lhe dizer além de oferecer um abraço.

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“The Night is Short, Walk on Girl”: O gênio eufórico (e aéreo) de Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2019/08/26/the-night-is-short-walk-on-girl-o-genio-euforico-e-aereo-de-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2019/08/26/the-night-is-short-walk-on-girl-o-genio-euforico-e-aereo-de-tomihiko-morimi/#respond Mon, 26 Aug 2019 19:35:31 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21956 Primeiras impressões, diz o ditado, são as que ficam. E meu primeiro contato com Tomihiko Morimi, um dos “mais populares escritores contemporâneos do Japão” segundo quem entende do mercado, não foi positivo.

Penguin Highway, sobre o qual escrevi aqui, passou longe de me impressionar. Sua prosa era insossa; sua história, soterrada sob a voz de um protagonista antipático. Para o autor de não um, mas dois romances adaptados pelo celebrado Masaaki Yuasa, ver sua estreia em águas ocidentais na forma de um romance tão insípido não foi o melhor cartão de visita.

Aparentemente, o Deus dos Livros deve ter ouvido minhas preces. Yoru wa Mijikashi Aruke Yo Otome (The Night is Short, Walk on Girl) uma de suas parceirias com Yuasa, acaba de ser publicada em inglês. Ansioso pela oportunidade de dar ao escritor uma segunda chance, só pude interpretar o lançamento como um sinal do destino.

Quão irônico, portanto, que o romance verse justamente sobre Deuses dos Livros e preces e sinais do destino.  E quão feliz que sua prosa, ágil, criativa e cheia de coração, tenha subvertido completamente meus preconceitos.

A trama

“O Senhor Todou é um homem de meia-idade, o astuto gerente do Centro de Carpas Todou em Rokujiro e um filósofo sobre o sentido da vida. Quando, no final de maio, eu saí em busca de um drinque, o Sr. Todou foi a primeira pessoa que encontrei. Se eu não tivesse trombado com ele, eu não teria terminado em um certo bar em Kiyamachi, eu não teria sido bolinada, eu não teria sido resgatada pela Srta. Hanuki, eu não teria conhecido o admirável Sr. Higuchi, eu não teria conhecido o Sr. Rihaku, ou o presidente, ou qualquer um dos outros, e meu mundo continuaria tão pequeno quanto a testa de um gato.”

Sabemos que estamos diante de um livro singular quando não conseguimos sequer resumir seu enredo. Eufórica e hilária, a trama de The Night is Short parece fugir de uma definição simples com o mesmo empenho que suas personagens fogem da normalidade para viver a melhor noite de suas vidas.

Isso não significa que o romance não tenha foco. Pelo contrário, sua história é estruturada com um esmero quase acadêmico, dividida em quatro partes que representam quatro episódios memoráveis na vida de duas pessoas: uma estudante universitária e seu veterano.

A garota tem uma personalidade inconfundível, um otimismo contagiante e uma resistência sobrenatural à bebida.   “Num mundo cheio de atores tentando […] se manejar até o papel principal”, o veterano escreve, “ela era estrela da noite sem ao menos tentar”.  O rapaz, como seu tom não deixa mentir, está apaixonado por ela. Ao longo de um ano, em aventuras cada vez mais absurdas, ele fará de tudo para ganhar seu coração.

Em um romance menos inspirado, poderia ser apenas o pretexto da cruzada de um homem em busca de sua musa. Morimi, porém, dá a voz a ambos, transformando-os em narradores – e protagonistas – de suas vidas.

Os cortes não seguem uma periodicidade clara, e Morimi dá pouca indicação de quem estamos ouvindo. São as próprias personagens, disputando nossa atenção como numa roda de conversa, que se revezam para nos contar as proezas de uma noite inesquecível.

E que noite! De uma festa de casamento que degringola em um pub crawl em Ponto-Cho, tradicional bar boêmio de Kyoto, os encontros e desencontros dessas duas personagens eventualmente tomam proporções épicas. Suas confusões nos levam a feiras de livros, tornados repentinos, pimentas alucinógenas; à companhia de um “agiota tão inumano que não derramava nem sangue nem lágrimas”, mas confiscava livros de valor sentimental;  de um clone endiabrado do Conte do Monte Cristo e até mesmo de um Deus dos Resfriados que ameaça adoecer toda a humanidade.

Bairro de Ponto-Cho, em Quioto. Fonte

“Como um tofu de amêndoas”

Dizer que sua prosa é visual é quase um desserviço para a imaginação e bom-humor que saltam de cada página. Morimi pinta não apenas com cores, mas também com gostos, cheiros, texturas e ruídos. Encontrar um lugar comum em seu texto é tão difícil quanto achar as chaves de casa após uma noite de bebedeira. E, tal como em uma madrugada bem curtida, nem sempre temos certeza do que estamos experimentando.

“Sábios leitores” diz o veterano no capítulo de abertura “saboreiem a fofura [da garota] e a minha estupidez; desfrutem  o sabor sutil e requintado da vida, não muito diferente daquele de um tofu de amêndoas.”

Annin tofu ou tofu de amêndoas. Espécie de manjar típico da culinária chinesa

Todou, um quarentão pervertido, sorria como “um pedaço de papel amassado”. Seu rosto “tinha uma notável semelhança com a ponta de um pepino coberta de limalhas de ferro.”

A garota acha sua mão feia como “uma massa no formato de uma folha de maple”. O “amuleto” que recebe de um colecionador de arte erótica “não era nem um canhão nem uma carpa, mas inconfundivelmente o monstro do desenho – isto é, por mais que eu hesitasse em dizer, um espécime da assim chamada masculinidade”.

Um gênio eufórico… e aéreo

Como categorizar um escritor desses? Sua prosa é mais rebuscada que uma light novel, mais despretensiosa que o politizado realismo mágico, mais deliberadamente “japonesa” que a fantasia urbana, despatriada de seu conterrâneo Haruki Murakami.

Uma de suas personagens cria carpas ornamentais, que em vários momentos chovem sobre as personagens em cenas dignas de Kafka à Beira Mar. Outra, uma jovem cujo passatempo é invadir festas e lamber desesperadamente quem encontra pela frente, é descrita como uma “mulher-peixe”.

O boêmio Higuchi, amigo de Hanuki,  tinha “a pose de um grande Buda reclinado” e sorria com a “expressão enrugada de uma máscara de teatro Noh”. Ele diz que sua profissão é ser um tengu. Vendo suas façanhas ao longo do livro, — que incluem conjurar carpas da boca e maneki nekos de seus ouvidos – começamos a nos perguntar se não pode ser verdade.

Várias sub-tramas dizem respeito a um grupo de colecionadores de Shunga – nas palavras da heroína, “homens e mulheres entrelaçados como anéis de quebra-cabeça e algum tipo de monstro enrolado em volta das suas partes pudentas.” Boa sorte para ler esse livro em público sem cair em gargalhada.

Podemos apenas imaginar quantas outras referências e jogos de palavra não se perderam na tradução. A versão para o inglês de Emily Balistrieri é leve e fluida, mas peca pelo excesso de didatismo, acompanhando termos japoneses por seus equivalentes ocidentais:  “Eu sou um goblin tengu”; “[ele] relaxava em uma yukata, uma roupa tradicional”; “eu olhei de volta para a cara feia de um boneco Daruma – um boneco japonês redondo e vermelho de um homem ranzinza e barbado”.

Por um lado, é realmente impossível acompanhar o romance sem dominar essas referências. Por outro, é questionável até que ponto um leitor que não saiba o que é um boneco Daruma conseguirá sobreviver no Bairro da Liberdade animado que é a prosa de Morimi.

Produtos japoneses em loja do Bairro da Liberdade. Fonte

 

 

Se The Night is Short entrega menos do que promete é no seu compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada.

Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.

Sua escrita não pesa com nenhuma angústia profunda, nenhuma grande questão que precise de resposta.

Inferior como é em qualidade literária, Penguin Highway pelo menos continha uma fábula consistente sobre o fim da infância e o despertar sexual. Em comparação, The Night is Short parece levar à risca as lições de uma de suas personagens:

Eu estava voando sem preocupações sobre Ponto-Cho.

Higuchi, o tengu estudante, me ensinou de um jeito que não poderia ter sido mais vago. Ele invadiu a casa de um dono de sebo que ele conhecia, saiu pelo varal e então apontou para o céu:A questão é viver sem deixar seus pés tocarem o chão. Aí sim você consegue voar.”

Eu achei que ele estava tirando sarro de mim até que eu imaginei um futuro completamente impraticável para mim: um dia, eu vou escavar aquela montanha lá na casa dos meus pais, encontrar petróleo, nadar na grana, me tornar um trilhardário, largar a universidade e viver uma vida feliz até eu morrer. Meu corpo rapidamente se tornou mais leve, e subitamente eu estava flutuando acima da varanda.

Morimi, como Higuchi, nos ensina apenas a flutuar. Não é o romance mais profundo que você lerá na vida. Mas quão surreal é Ponto-cho visto de cima!

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“O Assassinato do Comendador”: até a imaginação precisa de ordem https://www.finisgeekis.com/2019/01/21/o-assassinato-do-comendador-ate-a-imaginacao-precisa-de-ordem/ https://www.finisgeekis.com/2019/01/21/o-assassinato-do-comendador-ate-a-imaginacao-precisa-de-ordem/#respond Mon, 21 Jan 2019 22:23:48 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20800 Nenhum escritor está à prova de críticas. Mesmo assim, há aqueles que cimentaram tão bem sua voz no mercado literário que conseguem perseverar ao sabor das opiniões.

Haruki Murakami, de volta à ativa em 2017 com O Assassinato do Comendador, é um desses autores. Nem o desprezo de alguns críticos japoneses nem o desdém do comitê do Nobel foram suficientes para reduzir sua popularidade – no Japão e no estrangeiro.

O escritor Haruki Murakami

Lançado no Brasil em duas partes (a segunda das quais ainda não chegou às prateleiras), O Assassinato do Comendador é uma verdadeira enciclopédia de tudo o que faz de sua ficção única – para o bem e para o mal.

O Assassinato do Comendador

Capa da edição brasileira

O romance é narrado pelo típico homem sem mulher que Murakami transformou, história após história, em sua marca registrada: melancólico, amargando a meia-idade em uma rotina doméstica, abandonado ou menosprezado pelo sexo oposto.

O protagonista (cujo nome nunca conhecemos) é um pintor de retratos em crise com a vida. Após se separar de sua mulher, ele aceita a oferta de um amigo para ocupar a antiga casa de seu pai, Tomohiko Amada, nas montanhas de Kanagawa.

Amada é um conhecido pintor de arte japonesa, cuja vida é cercada de mais mistério que suas telas de visitantes. Ao descobrir uma obra inédita escondida em seu sótão, o protagonista engatilha um dominó de coincidências, surpresas e absurdos que o levarão aos limites da própria realidade.

Parte desses mistérios chegam até ele por meio de Menshiki, um vizinho milionário obcecado pelos seus retratos – e por uma jovem adolescente que vive em uma casa ao lado.  Não é preciso muito para saber que ele não é o que parece.

“Eu não pude deixar de sentir” o narrador nos diz “lá fundo em seu sorriso, uma solidão que vem de um certo tipo de segredo”.

Na medida em que o enredo avança, esses segredos envolverão monges budistas mumificados, um perigoso mundo subterrâneo, um sino sobrenatural e uma assombração que se apresenta como O Comendador: personagem da ópera Don Giovanni de Mozart, cujo assassinato inspirou Amada a compor sua última e misteriosa tela.

Capa sueca de “O Assassinato do Comendador”

Esses elementos talvez seriam incompatíveis se não tivessem sido escritos pelo autor de 1Q84 e Crônica do Pássaro de Cordas.

Todo escritor possui um rol de imagens favoritas. Murakami parece ter um universo inteiro, e seu novo romance soa quase um trabalho antológico, trazendo todas à linha de frente.

Temos a obsessão com subterrâneos (o poço de Pássaro de Corda, o submundo de Impiedoso País das Maravilhas), as mulheres inseminadas em sonhos (a irmã de Kafka de Kafka, a Aomame de 1Q84), as entidades extramundanas (a ovelha de Caçando Carneiros, o Povo Pequeno de 1Q84),  o fascínio por música clássica (Murakami já escreveu um livro com o mastro Seiji Ozawa), as inúmeras descrições de vida doméstica.

É difícil, porém, afastar a impressão de que já vimos essas mesmas ideias – melhor articuladas – em outros lugares. Amada, pintor em cuja casa o protagonista vem a morar, participou de um atentado contra um oficial nazista nos anos 1930. Os esqueletos em seu armário vêm à tona ao longo do romance, mas parecem uma cópia tímida da história de Tenente Mamiya, o misterioso veterano de guerra de Crônica do Pássaro de Corda.

Exemplo de seu realismo fantástico, o Comendador é o ponto alto do livro, mas não tão alto quanto Johnny Walker ou Coronel Sanders de Kafta à Beira Mar. Entre as entidades extramundanas, o motorista de um Subaru Forrester e uma versão sinistra de Menshiki repetem o papel do cobrador da NHK, pai do protagonista Tengo em 1Q84.

Isso não significa que o romance não agregue ao cânone murakamiano. Uma troca específica, entre o protagonista e uma aparição que se apresenta como uma “metáfora”, é um dos diálogos mais deliciosos que já pude encontrar em sua obra:

“- Então o que raios você é? Outro tipo de Ideia?

– Deus me livre! Eu sou uma Metáfora, nada mais.

– Uma Metáfora?

– Sim. Uma simples Metáfora. Usada para ligar duas coisas juntas. Então por favor, desfaça minhas amarras, por favor, eu imploro.

Eu estava ficando confuso.

– Se você é quem você diz que é, me dê uma metáfora agora, de cabeça.

– Eu sou a forma mais baixa e humilde de Metáfora, senhor. Eu não consigo conceber nada de qualidade.

– Uma metáfora de qualquer tipo está bem. Ela não precisa ser brilhante.

– Ele era alguém que chamava a atenção – ele disse após uma pausa momentânea – como um homem vestindo um chapéu de cone laranja em um vagão de trem.

Não era uma metáfora impressionante, de fato. Na verdade, não era sequer uma metáfora.

– Isso é uma comparação, não uma metáfora.”

 

Murakami escreve com uma prosa simples que nunca falha em nos morder quando necessário.

Nos seus melhores trabalhos, ela resulta em agulhadas memoráveis (“Quem na Terra deseja a coisa certa afinal de contas? Mas que sentido poderia existir se nada fosse certo?”), pérolas de imaginação (“Existem sonhos simbólicos – sonhos que simbolizam alguma realidade. E também existem realidades simbólicas – realidades que simbolizam um sonho”) e descrições de uma melancolia visceral (“Seu choro foi o mais triste som de orgasmo que eu já tinha escutado”).

O Assassinato do Comendador também possui seus momentos inspirados.  O portão de Menshiki, o narrador nos conta, era digno de um filme do Kurosawa, “do tipo que cairia bem com algumas flechas crivadas”. “Não que alguém se importe” diz o Comendador sobre a origem de sua forma física. “[O] Comendador não é uma marca registrada. Se eu tivesse aparecido como o Mickey Mouse ou a Pocahontas a Walt Disney Company teria o maior prazer em me processar”.

Não obstante, boa parte de suas 700 páginas são perdidas em divagações pseudo-profundas. “Se isso foi um sonho, então o mundo em que eu estou vivendo deve ele próprio ser um sonho”; “Esse era o momento que eu mais gostava. O momento quando existência e não-existência coalesciam”; “Nenhum de nós está acabado. Cada um de nós é uma obra em andamento”; “Nesse nosso mundo real, afinal de contas, nada permanece o mesmo para sempre”.

Não há nada de muito errado nessas reflexões. Mas, também, nada de muito certo, sobretudo porque são meros slogans de ideias já desenvolvidas em seus outros livros.

A indicação de seu livro para o Bad Sex Award – premiação literária que celebra a pior descrição de coito do ano – foi um exagero dos críticos. Ainda assim, Murakami deveria ter se lembrado da lição de Oshima, sua própria personagem em Kafka à Beira Mar: “Os artistas são aqueles que conseguem escapar da verborragia.”:

“Minha ejaculação foi violenta e repetida. De novo e de novo o sêmen escapava de mim, transbordando sua vagina, tornando os lençóis grudentos. Não havia nada que eu pudesse fazer para fazê-lo parar. Se eu continuasse, eu pensava, eu me secaria por completo. Yuzu dormiu profundamente durante todo o ato sem produzir um único ruido, sua respiração regular. Seu sexo, porém, havia contraído ao redor do meu e não me deixava sair. Como se tivesse ele próprio uma vontade inabalável e estivesse determinado a arrancar cada última gota do meu corpo. “

É difícil culpar o autor quando o livro – defeitos e tudo – é tão autenticamente seu.

Murakami, afinal, é o autor que diz que livros são metáforas, e que metáforas são coisas que não podemos explicar, apenas aceitar. Que seu trabalho como escritor é “registrar o que aparece”, não o analisar, pois isso é trabalho para pessoas inteligentes, e escritores não precisam ser inteligentes.

Há uma poesia única nessa insanidade criativa. E é provável que, sem ela, Murakami não seria Murakami.

Livros de Murakami em sua edição brasileira, pelo selo Alfaguara

O autor ganhou espaço na literatura mundial por sua capacidade de traduzir sonhos em palavras. Poucos escritores, antigos ou modernos, chegam perto da sensação de que as experiências que lemos em suas páginas poderiam ter vindo de nossa própria mente – e não saberíamos apontar a diferença.

Sonhos, de fato, são confusos, inacabados e pessoais. Em forma, não só em conteúdo, O Assassino do Comendador nos faz sentir que estamos em sono REM – acessando, como Murakami diz, nosso próprio subconsciente.

Mesmo assim, seus outros trabalhos conseguiram conciliar esse estilo freestyle com um sentimento de conclusão que falta a sua nova obra. Quando Hoshino e Nakata desviram a Pedra da Entrada em Kafka à Beira Mar– ou Aomame e Tengo voltam a 1984 em 1Q84 – temos algo maior que a conclusão de uma trama.

É lema conhecido na literatura que a realidade não corresponde à melhor ficção. De onde as obras decepcionantes de escritores iniciantes que sabem apenas falar de si próprios.

Talvez, no fundo, isso também valha para os sonhos. Mesmo a mais selvagem imaginação precisa de uma pitada de ordem.

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