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Literatura – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 16 Mar 2022 21:50:27 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Literatura – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Drive My Car”: para que serve uma adaptação? https://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/ https://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/#respond Wed, 16 Mar 2022 21:41:48 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23121 Adaptações têm uma fama ambígua no mundo do cinema. Se é verdade que livros e filmes flertam um com o outro desde os primórdios da sétima arte, poucas opiniões são mais repetidas que a máxima “o livro é melhor”.

Quando soube que o conto Drive My Car de Haruki Murakami havia sido adaptado ao cinema, contive meu entusiasmo. Embora Murakami seja o escritor japonês mais popular da atualidade, adaptações de suas obras foram, até hoje… menos que ótimas, para dizer o mínimo. Saber que o novo filme possuía quase três horas pouco fez para aliviar minha desconfiança. Roteiristas frequentemente patinam para adaptar romances a uma história deste tamanho. O que seria de um conto de menos de 40 páginas?

Como quem assistiu Drive My Car sabe, a resposta é um primor do cinema japonês contemporâneo.

Mas comentar por que o filme de Ryusuke Hamaguchi conseguiu acertar em cheio é apenas pretexto para uma discussão mais importante: talvez esteja na hora de repensarmos na nossa relação com as adaptações.

Qual é, afinal de contas, o sentido de contar de novo uma história que já foi escrita?

E o que, exatamente, torna uma adaptação ‘bem’ ou ‘mal’ sucedida?

Drive My Car em palavras…

Capa original do livro “Homens sem Mulheres”

Se o filme de Hamaguchi é qualquer indicativo, a primeira escolha começa antes mesmo que as filmagens. Drive My Car, o conto, é um excelente material para adaptações.

Haruki Murakami é conhecido por seu realismo fantástico e por um estilo intuitivo, quase anárquico de escrita. O escritor já afirmou diversas vezes que não é um “contador”, e sim “observador de histórias”: simplesmente registrando as ideias que saem de sua cabeça. Boa sorte para adaptar um livro destes a um roteiro – mais ainda para fazê-lo funcionar em movimento.

Para complicar as coisas, Homens sem Mulheres, coletânea a que Drive My Car pertence, está longe de seu melhor trabalho. Suas histórias, em grande parte, giram em tornos de homens desprezíveis que insistem em atribuir às mulheres a culpa de suas mágoas. Há mais autocomiseração e misoginia em suas páginas que frases bem construídas. Pelo contrário, alguns períodos, como “todas as mulheres nascem com um órgão especial, independente que lhes permite mentir”, nos fazem perguntar o que passou pela cabeça do editor ao publicá-las.

Drive My Car é uma exceção às duas regras. O conto não apenas demonstra um controle da linguagem de que suas obras posteriores parecem ter perdido, como esbanja uma empatia que falta a seus colegas de coletânea. Seu protagonista é, de fato, um “homem sem mulher” – mas quem é essa mulher e o real significado de sua ausência são questões nada óbvias que nos acompanham pelo conto inteiro – e que o final, em aberto, pouco se esforça para elucidar.

O homem em questão é Kafuku, ator veterano de teatro. Sua esposa (Oto no filme, sem nome no conto) é uma companheira perfeita e colega de trabalho, que grava os diálogos de sua peça para que estude no carro enquanto dirige. Ela também o trai. Serialmente. Com múltiplos homens.

Dividido entre a estabilidade conjugal e um acerto de contas que sem dúvida a destruiria, Kafuku opta pela inação. Em tempo, nenhuma outra escolha lhe será possível. Sua esposa morre (de câncer fulminante no conto, de uma doença súbita não declarada no filme). A dúvida, o choque, e os assuntos inacabados corroem o que resta do homem que um dia foi.

Não é difícil simpatizar com Kafuku. Embora seja a personagem ponto de vista, o ator parece viver pelo mote de outra personagem de Murakami, que certa vez disse que “apenas escrotos sentem pena de si mesmos”.  O conto é quase que inteiramente contado do banco de trás de seu Saab 900, em conversas com Misaki, motorista contratada pelo teatro depois que um diagnóstico de glaucoma o impossibilita de dirigir.

É Misaki que, em dado momento, lhe dispara uma Pergunta-Gretchen – “Por que você não tem amigos?” – depois da qual Kafuku se abre como uma rede esgarçada por toneladas de pensamentos vergonhosos.

… e em imagens

E é aqui que as semelhanças do filme com seu material de origem acabam.

Em seu longa, Hamaguchi força Kafuku para fora de seu Saab com a mesma violência da pergunta de Misaki. Sua esposa, antes uma recordação mal digerida, ganha um nome. Flashbacks da traição nos mostram os detalhes que o protagonista do conto reluta até em imaginar.

Enquanto que Murakami apenas nos informa que Kafuku estava ensaiando a peça Tio Vânia de Tchekov, Hamaguchi transforma sua montagem em uma história dentro da história, praticamente nos forçando a enxergar os paralelos entre uma obra e outra.

Em mãos menos habilidosas, a inclusão de toda essa bagagem extra afundaria a história mais rapidamente do que levaríamos para dizer que “o livro era melhor!”.  Mas há duas características do filme de Hamaguchi que o põe em um caminho diferente.

Em primeiro lugar, a despeito de todos os desvios, ambas as obras chegam ao mesmo lugar.

Kafuku, descobrimos no conto, é um homem sem mulheres, no plural. Muito antes de descobrir a traição, seu casamento foi abalado com a morte precoce de sua filha. Murakami nunca soletra o paralelo, mas é possível deduzir que, como Molly e Leopold Bloom de Ulisses, foi a morte da criança que colocou Kafuku e sua esposa em uma crise que apenas os braços de terceiros podia aliviar.

E Misaki, sua motorista, é uma mulher sem homem. Especificamente, uma mulher da idade de sua filha, consternada pela ausência de uma figura paterna. É da aproximação entre os dois, mais do que a traição que sofreu, que o conto verdadeiramente trata.

O filme de Hamaguchi subverte essa prioridade, afogando o relacionamento de Misaki e Kafuku sob o peso de quase três horas de tramas paralelas. Até mesmo o amante de sua esposa (no conto, apenas um de muitos) ganha um holofote para chamar de seu – junto com um arco pessoal que envolve suas ambições como ator e até mesmo um passado criminoso.

Mas Misaki e Kafuku ainda assim se encontram e abrem-se um para outro e percebem que são peças de um mesmo quebra-cabeças, ainda que tão maltratado pelos anos que dificilmente pode ser montado.

“Isso é tudo o que fazemos” disse, certa vez, outra personagem de Murakami, “tomamos infinitamente o caminho mais comprido”. Drive My Car, o filme, vive por esta máxima.

Em segundo lugar, mesmo o conteúdo original de Hamaguchi parece misteriosamente Murakamiano.

A traição de sua esposa, no conto apenas mencionada, ganha no longa uma cena de sexo ao som do Rondó K.485 de Mozart– tocado de um disco de vinil, ainda por cima. Leitores veteranos do autor reconhecerão de pronto o apreço de Murakami por música clássica – e por cenas eróticas (segundo seus críticos) mais tristes que prazerosas de se ler.

Se originalmente uma tomboy nas linhas de Kaoru, a durosa dona de um motel e Após o Anoitecer, a Misaki do filme mais se aproxima de uma contraparte jovem de Reiko, ex-pianista de Norwegian Wood que aconselha o protagonista Toru à luz dos sofrimentos de seu próprio passado.

O longa, de fato, parece quase uma releitura de Norwegian Wood, com jovens universitários com as emoções à flor da pele trocados por adultos de meia-idade. Mesmo as digressões mais originais de Hamaguchi – as cenas e mais cenas sobre o processo de criação de Kafuku, a subtrama sobre uma atriz surda-muda – lembram o enredo livre de seu romance de 1987, que acompanhar suas personagens sem a mordaça de um Kishotenketsu ou uma estrutura em três atos.

É possível imaginar um mundo paralelo em que Muramaki em pessoa tivesse concebido cada um desses detalhes. Provavelmente, enquanto escutava o Rondó K.485. Ou corria pela manhã.

Um ponto de partida… para a própria obra

Nada disso desmerece o trabalho de Hamaguchi e Takamasa Oe, que coassina o roteiro. Pelo contrário, suas escolhas mostram que seu filme possui algo cada vez mais raro no campo do entretenimento. Um propósito.

Hoje em dia, gastamos tanta energia debatendo se uma adaptação é ou não boa que raramente nos perguntamos para que serve uma adaptação.

Qual é o propósito de reescrever uma história que já existe? Para que revisitar conflitos, plot twists e retratos conhecidos de antemão?

Hamaguchi e Oe têm uma resposta: ela é apenas um ponto de partida – não, necessariamente, para novas ideias, ao menos não como um fim em sim, mas para fisgar aquelas escondidas no próprio texto; não para negar ou substituir a obra, mas para torná-la mais a obra que é.

Leiam comigo as últimas linhas do conto:

— Eu vou dormir um pouco – disse Kafuku.

Misaki não respondeu. Ela estudou quietamente a estrada. Kafuku estava grato pelo seu silêncio.

Quando Misaki aparece na última cena do filme de Hamaguchi, ela também estuda quietamente a estrada. Ela não está na companhia de Kafuku, dirigindo-o a mais uma peça. Não está mais sequer no Japão. Hamaguchi não nos explica o que faz na Coreia ou porque dirige o carro que pertencera ao ator.

Mas nós, como ele, somos gratos pelo seu silêncio.

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“People From My Neighbourhood”: imaginação em estado bruto https://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/ https://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/#respond Wed, 23 Feb 2022 21:41:43 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23113 Era, como diria Vinícius, um prédio muito engraçado. Famílias com exatamente seis pessoas ocupavam todos os apartamentos.

Aqui e ali, coisas estranhas começam a acontecer. Um homem cuja barba cresce mais rápido do que é capaz de cortá-la. Uma pessoa cujas bolha no pé viraram mini lagoas – com girinos e tudo.

“É coisa do Demônio” explica uma vizinha de outro prédio. Seis, afinal de contas, é o número da besta.

As pessoas da cidade começam a evitar o prédio. Isolados do mundo, seus moradores criam sua própria rotina, depois seu próprio banco central e moeda. Com o tempo, decretam independência e criam suas próprias forças armadas. Na Baía de Tóquio, é possível vê-los em exercícios conjuntos com a Marinha Japonesa.

Se a história acima a fez perguntar o que diabos acabou de ler, não está sozinha. A historinha vem de um dos contos de People From My Neighbourhood da escritora Hiromi Kawakami.

No papel, o livro é um compilado de microficção sobre os habitantes de um subúrbio de Tóquio. Na prática, é um álbum de retratos tão repleto de realismo fantástico, absurdo, metáforas e humor que parece feito sob medida para fritar nossas sinapses.

Esse não é um livro escrito com palavras, mas com imaginação em estado bruto.

As pessoas do meu bairro

Não olhe muito a fundo. Apenas curta o momento.

Esse é o sentimento que a protagonista sem nome de People From my Neighbourhood parece evocar.

Em sua voz, leitores veteranos de Kawakami reconhecerão de pronto o bom-humor de Quinquilharias Nakano, seu romance sobre funcionários de uma descontraída loja de antiguidades. Em certas histórias, o paralelo mais forte é com Parada, conto sobre crianças que se descobrem acompanhadas por seres da mitologia japonesa.

Porém, se Nakano mantém dos dois pés no campo do realismo e o segundo se insere na tradição do folclore, People From My Neighbourhood é uma obra orgulhosamente mais caótica.

Seus capítulos não são exatamente “contos” mais do que descrições de vizinhos de um bairro fictício – e dos eventos, muitas vezes absurdos, que protagonizam. Um adolescente que só é capaz de pronunciar três frases – “Devo assinar aqui?”, “A conta final, por favor” e “Está chovendo forte hoje” – e ocupa um banco no parque como se fosse seu escritório. Vovô Sombras, assim chamado por possuir duas sombras: uma em constante pé de guerra com a outra. Hachiro, garoto-problema abandonado pela família cuja custódia, entre os moradores, é determinada por uma loteria. A dona de uma decrépita casa noturna chamada Love, que passa noite após noite cantando a mesma música no karaokê. Nenhum cliente jamais agracia seu estabelecimento. Ninguém sabe como paga suas contas.

Personagens já apresentadas reaparecem em contos futuros, não necessariamente, do mesmo jeito ou no mesmo momento de suas vidas. A narradora sem nome migra sem cerimônia do passado ao presente e futuro. Muitas vezes, com tão pouco apreço à ordem que suspeitamos se tudo não passa de uma “trollagem”. Apenas Kawakami é capaz de escrever sobre uma doença que transforma todos em pombos – com sequelas irreversíveis –  e retornar ao status quo para o início de outro capítulo.

Nesse sentido, seu livro se aproxima do espírito de Shinya Shokudou (Midnight Diner), mangá de Yarou Abe sobre as histórias – às vezes maravilhosas ou sobrenaturais – de clientes de um boteco da madrugada. No caso de People From My Neighbourhood, bem mais do que “às vezes”.

Cena da adaptação às telas de Shynia Shokudou

Ao contrário de Shokudou, a obra de Kawakami tem os dois pés e alguns tentáculos no campo do realismo fantástico. Há um taxista que leva fantasmas para passear depois do expediente. “Mulheres são mulheres” ele protesta “Sempre é divertido tê-las por perto, mesmo se elas forem meio translúcidas e não tiverem pernas”.

Há uma garota que encontra uma criatura fedida em uma excursão escolar, cria-a até assumir a forma de um homem e a usa para sessões intermináveis de sexo. Quando seu companheiro insaciável começa a traí-la com outras mulheres, ela não consegue encontrar energias para se importar: “afinal de contas, ele não era uma pessoa real, apenas uma coisa estranha.”

Em certas histórias, é difícil escapar à impressão de que o livro de Kawakami é uma coleção de retratos de uma humanidade reduzida ao absurdo. Seus contos começam esquisitos, às vezes absurdos, então progridem a um nível de nonsense que viola qualquer suspensão de descrença.

Em um dos contos, por exemplo, duas crianças olham para uma estátua de bronze e decidem que também gostariam de ser homenageadas desta maneira. Tempos depois, elas declaram guerra ao Estado pelo direito de terem seu próprio monumento. A revolução é derrotada meses depois, e as crianças voltam para casa dramaticamente transformadas: uma tingira o cabelo de vermelho; outra aprendera a tocar trompete.

É o tipo de humor que esperamos do Flying Circus de Monty Python mais do que da autora de A Valise do Professor.

Mas Kawakami é menos consistentemente engraçada que a trupe britânica, e se permite, vez ou outra, nos derrubar com a rasteira de um arroubo de emoção. A linha que separa o fantástico do esquisito é fina – fina demais, muitas vezes, para que enxerguemos a diferença. Se alguma pessoa consegue sobreviver às 120 e poucas páginas de seu livro sem se lembrar de algum ex-morador ou indigente de seu próprio bairro, ela provavelmente não tem coração.

No Japão contemporâneo, realismo fantástico esteve por muito tempo atrelado ao sucesso sem paralelos de Haruki Murakami. People From My Neighbourhood se distancia da atmosfera onírica e urbana de seus romances, mas tampouco se confunde à prosa sóbria, melancólica de Yoko Ogawa; à sátira perturbadora de Sayaka Murata, muito menos à tradição latino-americana do realismo mágico. É um livro difícil de descrever, mais ainda de compreende, se é que “compreensível” é sequer um verbo compatível com sua irreverência. É, porém, uma obra que não deixa de nos surpreender da primeira à última frase.

O que mais um leitor poderia querer?

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“Heike Monogatari” e a devassidão https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/ https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/#respond Wed, 08 Dec 2021 22:38:46 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23062 É normal que cidadãos falem mal de seus políticos.

Viver em sociedade é uma coisa naturalmente estressante. Não escolhemos em que país, ou sob que tipo de governo, temos o infortúnio de nascer. Ninguém nos pergunta se queremos ou não obedecer às leis. E aqueles que estão no poder têm uma capacidade sem igual de tornar nossa vida um inferno, sem que, na maioria das vezes, possamos fazer qualquer coisa para evitar.

A onda de populismos de extrema-direita que sacudiu o mundo na última década deu um novo sentido a essa insatisfação. Os líderes que subiram ao poder não são apenas corruptos ou incompetentes. São seres humanos repugnantes em praticamente todos os sentidos imagináveis, que parecem se esforçar para violar cada limite da decência e bom gosto.

Para aqueles que acompanham os noticiários, a impressão é de que não somos mais apenas passageiros em uma viagem que embarcamos a contragosto (o que já seria, por si só, ruim). Estamos acorrentados a um veículo que segue desgovernado à beira de um precipício.  

Se existe algum alento, é o de que não somos os primeiros a vivenciar tempos turbulentos – nem a transformar estas turbulências em arte. Heike Monogatari, épico da literatura japonesa recentemente adaptado às telas, é uma verdadeira lição do que torna um governo legítimo – e das águas profundas que nos esperam se nossos líderes flertarem com o abismo.

Tirania e devassidão

Se você não conhece a obra, aqui vai um primer.

Heike Monogatari é um épico sobre a derrocada dos Heike (também conhecidos como Taira), clã que dominou a política japonesa no final do século XII. Poderosos e bem conectados, os Heike deixam o sucesso subir à cabeça e se rendem a atrocidades de toda espécie. Seus desmandos motivam um clã rival, os Genji, a usurpá-los do poder.

O conflito, baseado em eventos reais, é conhecido como a Guerra Genpei e terminou com a vitória dos Genji.

Sua adaptação em anime, produzida pelo estúdio Science Saru e dirigida por Naoko Yamada, condensa em apenas 11 episódios as mais de 700 páginas do texto original (a depender da edição). Mesmo assim, ela preserva a lição central da obra sobre a natureza e consequências do poder.

Lendo (ou assistindo) Heike Monogatari à luz dos populismos contemporâneos, poucas personagens nos despertam mais familiaridade que Kiso no Yoshinaka, o terrível comandante dos Genji que toma Kyoto das mãos dos Heike. Bruto criado no anterior, a pompa e a etiqueta da capital imperial são tão incompreensíveis quanto uma língua estrangeira. Pior, Kiso parece tirar prazer em escandalizar seus pares – e mesmo seus superiores – quebrando o maior número de regras possível.

Como os populistas de hoje, ele se gaba de ser um outsider, vestindo a intransigência com o establishment e o desprezo às regras do jogo como um manto de que se orgulhar.

Infelizmente para as personagens do épico, se os outsiders de hoje fingem serem “gestores”, “capitães” ou coisas que o valham, Kiso não esconde ser um sádico. Ele destrói plantações e rouba comida dos camponeses para dar aos seus soldados. Para sanar o tédio, permite que os homens invadam as casas das pessoas e estuprem seus habitantes.

Kiso é um tirano, mas criticá-lo por ser “autoritário” é perder de vista o mais importante. Ele não desrespeita o imperador porque está em uma cruzada popular contra a monarquia. Ele é simplesmente imaturo e não gosta de se impor limites.

Ele não destrói plantações porque pratica uma ação calculada de terra queimada. Ele o faz porque tem um cavalo e, segundo ele, cavalos precisam comer.

Ele não aterroriza a população como parte de um regime de medo – como tantos ditadores na era contemporânea. Como um adolescente manhoso, ele acredita que o mundo gira em torno do seu umbigo, e as vontades dos outros não importam.

O filósofo Harry Frankfurt tem um nome para a postura de Kiso: devassidão. Segundo ele, o devasso é um indivíduo que age sempre de acordo com suas vontades imediatas. Ele não tem capacidade de se segurar e pensar no longo prazo; de considerar se aquele curso de ação, no fundo, é o mais apropriado. Quando o desejo bate, é com a força de uma abstinência de droga.

Quando o devasso é contrariado, ele não consegue resistir à vontade de mostrar o dedo do meio. Mesmo que ele seja um ministro, e as “ofensas” que recebeu sejam críticas a sua atuação em um episódio de calamidade pública.

Quando o devasso sente vontade de fazer uma piada racista, ele não tem como se segurar. Mesmo que os alvos da troça seja parceiros comerciais e seu gesto desencadeie uma crise diplomática.

Quando o devasso perde, não tem esportiva para aceitar a derrota. Como uma criança que ainda não aprendeu limites, ele esperneia, grita que “não valeu” e ameaça levar sua bola embora. Mesmo que a “derrota” em questão seja uma eleição e a “bola”, o futuro do país.

Pra Frankfurt, o devasso não é só uma pessoa irresponsável. Ele não é sequer uma pessoa. Como um animal selvagem, ele é regido completamente pelas vísceras. Debater com um representante da laia é uma perda de tempo. Ser governado por um, uma tragédia.

O texto de Heike Monogatari  dá voz a esse sentimento:

“A capital inteira fervia com os Genji,
Que entravam em todos os lugares e cometiam incontáveis roubos.
Mesmo em terras que pertenciam a Kamo ou Hachiman [i.e. sagradas],
Eles ceifavam plantas de arroz ainda verdes para alimentar seus cavalos.
Eles invadiam depósitos e tomavam o que havia dentro deles;
Eles roubavam de viajantes e os privava de suas roupas.
“Quando os Heike controlavam a cidade”, as pessoas diziam,
“O lorde Kiyomori era apenas uma vaga ameaça.
Ninguém roubava todas as suas roupas.
Melhor os Heike que os Genji.”

Mais do que cruel, o devasso é perigoso porque suas ações são arbitrárias. Ao contrário de um tirano “consistente”, que sempre retribui os aliados ou tortura seus inimigos, o devasso faz o que lhe der na telha.

Ele é o sujeito que cobre aliados de privilégios em um momento, para mais tarde “fritá-los” e salvar a própria pele. É o covarde que beija os pés de seus superiores quando recebe uma intimação, mas volta atrás nas palavras na primeira oportunidade.

Apoiar um devasso é como se pendurar na roda da fortuna. Parece bom enquanto estamos por cima, mas não sabemos qual momento de glória será nosso último.

Em Heike Monogatari, os aliados de Kiso aprendem isso da forma mais difícil. Cansados dos seus desmandos, os próprios Genji enviam tropas contra ele. Num exemplo ainda mais chocante de devassidão (infelizmente cortado da versão anime) Kiso cogita brevemente virar casaca e se unir aos Heike para salvar a própria pele.

É fácil tirar dessa parte da história a mensagem de que “devassos são ruins, e devemos expulsá-los da política”. Embora não deixe de ser verdade, é uma lição fácil – e pequena – demais para as ambições do épico.

Algo que salta aos olhos quando apreciamos a obra nos dias de hoje é a ausência de protagonistas e antagonistas claros. Não porque a história tenha uma moralidade cinza, mas porque fala de vícios e virtudes que vão além de meras dinastias.

Heróis ou vilões, devassos ou comedidos, todos têm momentos de fraqueza, instantes de redenção, pecados a pagar.

Apreciando a obra sob o ponto de vista da devassidão, não é difícil entender o porquê. Afinal,

Um governo não precisa de ‘devassos’ para ser ele próprio devasso

A afirmação acima é de Arthur Applbaum, um dos pensadores que mais tem se dedicado a entender os efeitos da devassidão na política. Como ele explica, esse é um problema que vai muito além dos populistas do momento.

Tal como é esperado de uma pessoa bolar planos e agir consistentemente, ele diz, um governo deve ser capaz de fazer o mesmo. Na verdade, é ainda mais importante que um governo não seja governado pelos seus impulsos, pois a vida seu povo está, literalmente, em suas mãos.

Um indivíduo devasso pode matar alguém em um surto de ódio. Um governo devasso pode exterminar toda uma população, destruir relações diplomáticas ou causar danos irreversíveis ao meio ambiente.

Por incrível que pareça, diz Applbaum, esse governo não precisa ser formado por pessoas devassas. Uma cúpula que não consiga tomar decisões ou parar de brigar internamente pode, para todos os fins, agir de maneira indistinguível a um devasso. Mesmo que seus membros sejam os sujeitos mais íntegros, comedidos e racionais da face da Terra.

Emprestando uma metáfora da filósofa Christine Korsgaard, Applbaum compara esse governo a um saco cheio de ratos. Presos com seus colegas, os animais vão se mexer desesperadamente. Com o tempo, é até capaz que o próprio saco “caminhe” alguns centímetros para um lado ou para o outro. Diante de um estímulo externo – por exemplo, um tapa – é provável que os ratos, por coincidência, fujam para a mesma direção. Porém, não é possível dizer que o saco aja, como se tivesse uma capacidade de cálculo.

Governos devassos são tão perigosos quanto líderes devassos, pois reproduzem seu maior vício: a arbitrariedade. Tal como um devasso pode decidir salvar uma pessoa em uma ocasião e mandá-la matar amanhã por mero capricho, o governo devasso é completamente imprevisível.

O Clã Taira de Heike Monogatari é um exemplo perfeito de governo devasso. Fiel aos comentários de Applbaum, nem todos os seus membros são ruins. No início do épico, Shigemori, filho do patriarca Kiyomori, é uma bússola moral para a família. O nobre faz de tudo para preservar a reputação da família, chegando ao cúmulo de peitar o próprio pai – algo inimaginável segundo as normas sociais da época.

Mesmo Kiyomori, a despeito de ser um tirano, nem sempre foi um devasso. Para tomar o poder durante a Rebelião Heiji – uma guerra que precede os eventos do épico – ele balanceou a truculência com doses copiosas de misericórdia.

Seu principal rival, o líder Genji Minamoto no Yoritomo, por exemplo, passou anos se recusando a erguer um dedo contra os Heike. O motivo? Kiyomori havia poupado sua vida durante o conflito, ação pela qual ele ainda era grato. O patriarca dos Heike podia ser cruel, mas sabia que sua linhagem só se manteria no poder se planejasse para o futuro.

Infelizmente, Shigemori e o jovem Kiyomori eram apenas dois ratos no saco escuro que era o clã Taira. Com a idade, Kiyomori se torna cruel e arbitrário. A toda e qualquer ameaça ele responde com violência, mesmo que isto só piore as coisas no longo prazo. Na verdade, ele sequer consegue pensar no longo prazo. No leito de morte, ele literalmente diz que seu único desejo é ver seu rival, Yoritomo, morto a qualquer custo.

Os outros membros dos Taira são ainda piores. Munemori, outro filho de Kiyomori, cria um incidente político por conta de um cavalo. Ele cobiçava a montaria de Minamoto no Nakatsuna, do clã Genji. Quando Nakatsuna lhe disse que não lhe entregaria o cavalo, Munemori usou o poder da sua família para tomá-lo à força. Não satisfeito, batizou o animal de “Nakatsuna” para ridicularizar publicamente o nobre Genji.

Mas o exemplo que melhor ilustra o ponto de Applbaum é talvez o de Shigehira, um dos generais dos Taira. Enviado para refrear uma rebelião entre os monges de Nara – onde estão alguns dos templos mais importantes do Japão – ele acaba acidentalmente ponto fogo em todo o complexo.

A tragédia gera um mal-estar de que os Taira nunca mais conseguiriam se descolar. Tempos depois, quando os ventos começam a soprar em outra direção e os inimigos da família avançam contra a capital, Kiyomori e seus descendentes até chegam a implorar pela ajuda de outros templos. Os monges, porém, haviam aprendido sua lição:

“Sannou [, deus do Monte Hiei,] tenha piedade de nós!
Três mil monges, acrescentem sua força à nossa!”
Esse foi o espírito do apelo dos Heike,
Mas sua conduta ao longo dos anos
Ofendera demais os deuses
E traíra toda a esperança dos homens.
Suas preces não obtiveram resposta;
Suas súplicas não convenceram a ninguém.

Ao contrário de Kiso e Munemori, Shigehira não é um devasso. A destruição de Nara foi um erro tático que ele nunca tentou negar e pelo qual sempre se arrependeu. Como ele mesmo afirma antes de sua execução, seu único crime foi ter obedecido ordens de seus superiores. Coisa que só fez porque a alternativa – a execução por desobediência – era pior.

Infelizmente para Shigehira, seus “superiores” eram um saco de ratos que tratava a política como um jogo de acerte-a-marmota. A mão que botou fogo em Nara pertencia a uma pessoa capaz de pesar ações e consequências, mas o governo que lhe deu a ordem reagiu à rebelião dos monges como um animal selvagem a um cheiro desconhecido.

Shigemori, o Heike “do bem”, até tenta, mas não consegue desviar o clã do precipício a que se dirige. Embora sua versão literária não tenha o mesmo dom da profecia de sua encarnação no anime, ela é sábia o suficiente para entender uma verdade dolorosa. Verdade que, às vésperas de uma eleição presidencial que promete ser tão desastrosa quanto a de 2018, faríamos bem em aprender:

Um governo, uma nação, é maior que a boa vontade de um único indivíduo. É uma entidade grande demais – perigosa demais – para ser largada à deriva.

Colocá-la de volta ao rumo não é tarefa para devassos que prometeram “se comportar”, salvadores da pátria ou autointitulados “técnicos” subordinados a ministérios desgovernados.

Precisamos, urgentemente, nos livrar desse saco de ratos. Ou então estaremos, como os Heike, fadados a afundar no nosso próprio Estreito de Shimonoseki.

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“Entregas Expressas da Kiki”: cedo ou tarde, todos devemos aposentar nossas vassouras https://www.finisgeekis.com/2021/11/24/entregas-expressas-da-kiki-cedo-ou-tarde-todos-devemos-aposentar-nossas-vassouras/ https://www.finisgeekis.com/2021/11/24/entregas-expressas-da-kiki-cedo-ou-tarde-todos-devemos-aposentar-nossas-vassouras/#respond Wed, 24 Nov 2021 21:47:50 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23049 É mérito do Studio Ghibli que seus filmes pareçam capítulos de uma mesma história, reflexões de uma mesma (e coletiva) mente criativa. Mesmo quando se tratam de adaptações de livros variados, escritos por autores de diferentes cantos do mundo.

Conhecer como eram essas histórias antes de serem transformadas por Miyazaki e companhia  é uma experiência tão gratificante quanto rara. Boa parte desses títulos, como As Memórias de Marnie e Kiri no Mukō no Fushigi-na Machi (inspiração para “A Viagem de Chihiro”) nunca foram lançados no mercado nacional.

Leitores brasileiros podem respiram um pouco mais aliviados. No começo do mês, Entregas Expressas da Kiki, inspiração do clássico O Serviço de Entregas de Kiki (1989), finalmente ganhou uma tradução para o português.

Lançado pela Estação Liberdade com belíssimas ilustrações de Daniel Kondo, o livro é nossa chance de conhecer uma referência importantíssima para o gênero de garotas mágicas – e para o romance infanto-juvenil japonês como um todo.

Àqueles que assistiram à clássica adaptação de Hayao Miyazaki, a premissa de Entregas Expressas de Kiki soará imediatamente familiar. Isto não significa, obviamente, que o romance não ofereça algumas surpresas pelo caminho.

Sua protagonista é Kiki, filha única de uma bruxa e um antropólogo especializado em magia, próxima de completar seus treze anos. Como reza a tradição das feiticeiras, ela precisa deixar a casa dos pais e morar em outra cidade por um ano, usando sua magia para ajudar as pessoas. Munida da vassoura de sua mãe e na companhia de Jiji, seu gato preto, ela alça vôo na esperança de encontrar uma nova casa.

Kiki não é a mais tradicional das bruxas, se é que podemos esperar tal coisa de uma menina de sua idade. Cansada do acolhedor, porém claustrofóbico vilarejo de sua família, ela decide se instalar na maior cidade que encontra.

O que poderia dar errado?

A cidade de Koriko na adaptação cinematográfica do livro de Kadono

Como aqueles que também trocaram o interior pela metrópole bem sabem, muita coisa. A cidade em questão, Koriko, opera num ritmo próprio, seus habitantes tão apressados e indiferentes quanto as engrenagens de um relógio. Mimados pelas benesses da modernidade, eles não vêem necessidade de magia. A presença de uma bruxa de vassoura e vestido preto desperta toda sorte de desconfianças.

Felizmente, Kiki é criativa na mesma medida que rebelde e rapidamente aprende a se encaixar nesse mundo estranho.  Fazendo uso de sua vassoura, a garota funda um serviço de entregas expressas, antecessor bruxesco dos drones de entrega da Amazon. Capítulo a capítulo, o romance acompanha o desenrolar de suas encomendas, tal como as verdades – algumas agradáveis, outras nem tanto – que aprende sobre os outros e si mesma.

Nas mãos certas, é o tipo de premissa que permite ser espandida indefinidamente, cada episódio uma nova encomenda. Potencial que sua autora, Eiko Kadono, levou a cabo. No Japão, o romance inspirou uma série de sete livros, o último dos quais publicado em 2017.

Fico curioso em conhecer os volumes seguintes da série (oportunidade que, com sorte, a Estação Liberdade nos proporcionará num futuro próximo). Não apenas pelo prazer de revisitar a prosa singela de Kadono, mas por conferir como sua protagonista mudou ao longo desses quase trinta anos.

Mais do que uma simples história sobre bruxas, afinal de contas, Kiki foi uma referência importantíssima para a consagração de um dos gêneros mais queridos por amantes da cultura pop japonesa: o mahou shoujo ou garota mágica. Gênero esse que passou por tantas transformações desde o longínguo ano de 1985, quando o primeiro livro foi publicado, quanto sua bruxinha titular durante seu ano de aprendizagem.

De majokko a mahou shoujo

Antes de se tornarem um ícone pop do Japão contemporâneo – Sailor Moon chegou a ser escolhida como uma das “embaixadoras” das Olimpíadas de 2020) – as garotas mágicas não eram necessariamente tão diferentes das bruxas de vassoura e chapéus pontudos do folclore ocidental. Em boa parte, isto se deve à influência da sitcom americana A Feiticeira. Tal como a série dos 1960, o mote do gênero era mostrar as desventuras de uma usuária de magia em um mundo contemporâneo. E, com isso, brincar – e também refletir – sobre o quão desencantada nossa sociedade se tornou.

Majokko Megu-chan, clássico do gênero garota mágica. Como outras de sua geração, a série foi fortemente inspirada pela sitcom “A Feiticeira”

Kiki é uma obra de outra mídia, mas compartilha o ponto de vista dos animes e mangás dessa geração. Nesse sentido, é um registro importante do que significava ser uma “garota mágica” antes dos báculos e cenas de transformação se tornarem parte inseparável de seu apelo. Não é uma coincidência, por sinal, que nos anos 1970 estas heróinas eram conhecidas como majokko (“pequenas bruxas”). Kiki se sentiria em casa na sua companhia.

Curiosamente, esse paralelo fica mais evidente no romance de Kadono que em sua adaptação cinematográfica. Nele, Kiki não é “mágica” apenas em razão de seus poderes, mas porque traz magia à vida das pessoas, convidando-as a encarar o mundo de uma forma mais encantada.

É o caso de capítulo em que a bruxinha é contratada para salvar o ano-novo. Ao descobrir que o relógio da cidade está quebrado a poucas horas antes do réveillon, o prefeito pede para que roube o aparelho de uma aldeia vizinha.

Ou então o episódio em que Kiki precisa agir para que o inverno não dure para sempre. Acontece que sua cidade anuncia o começo da primavera com um festival musical, uma cerimônia à la Dia da Marmota que os locais acreditam ser capaz de espantar o frio. Infelizmente, os músicos escalados esqueceram os instrumentos no trem. Se não conseguir reavê-los à tempo, a cidade estará fadada a um ano gélido.

Kadono nunca esconde o que realmente está em jogo: o grito de socorro de uma sociedade desencantada, redescobrindo valor em seus rituais e superstições.

O declínio da magia

Kiki, no final das contas, é uma carta de amor aos encantos sutis que experimentamos ao longo do dia. Trens, aviões, correios e drones da Amazon podem tornar nosso cotidiano mais fácil, mas não é só disse que se faz uma vida. Que não sejamos capazes de conjurar feitiços não significa que não tenhamos nossa própria espécie de magia: pequenos rituais, curiosidade, a capacidade de nos maravilhar com as surpresas do dia-a-dia. Nem que sejam tão mundanas como um prado coberto por capim-cidreiras que nos deixa cheirosos após uma soneca.

Não se trata de uma magia tão deslumbrante quanto uma bola de fogo ou a capacidade de parar o tempo. Para o nosso bem, contudo, é bom que seja o suficiente.

A despeito de seu frequente bom-humor, o livro de Kadono não esconde um lado trágico. No início do romance, a mãe de Kiki conta à filha que, de todos os sortilégios de bruxa, ela conhece apenas a alquimia e o vôo com vassoura. À Kiki, ensinou apenas o segundo, de onde tiramos que a arte de fazer poções morrerá com ela.

Quantas outras habilidades não tiveram destino semelhante? Por quanto tempo a própria Kiki conseguirá manter a tocha acesa diante das conveniências da vida moderna e pressões da vida adulta?

Por quanto tempo qualquer um de nós consegue manter vivas as fantasias de nossas infâncias?

Como outras histórias de garotas mágicas, Kiki é também uma metáfora sobre nosso próprio crescimento; sobre o desafio de abrir mão das poções mágicas e gatos falantes que herdamos de nossos pais e encarar o mundo com nossos próprios recursos.

A cidade de Koriko. Ilustração de Daniel Kondo.

Há uma cena no final do romance em que Kiki sobrevoa sua nova cidade. O pôr do sol bate na torre do relógio e cria uma sombra que lembra um ponteiro.

É uma imagem bonita, que nos mostra como a própria Koriko, antes uma selva de concreto, se tornou mágica aos olhos da bruxinha. Mas ela também traz uma mensagem mais sóbria/séria/melancólica.

Os ponteiros do relógio estão sempre se mexendo, sejamos ou não capazes de enxergá-los. O tempo não para. Cedo ou tarde, preparados ou não, todos nós estamos fadados a aposentar nossas vassouras.

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“Temple Alley Summer”: o passado nunca morre de verdade https://www.finisgeekis.com/2021/11/03/temple-alley-summer-o-passado-nunca-morre-de-verdade/ https://www.finisgeekis.com/2021/11/03/temple-alley-summer-o-passado-nunca-morre-de-verdade/#respond Wed, 03 Nov 2021 21:57:52 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23040 O mês das bruxas acaba de terminar (ou de começar, se você for purista e levar em conta que o festival que inspirou o Halloween era celebrado dia 01/11 e seu nome – Samhain – significa “novembro” ).

Ainda que você não seja tão fã da pantomina carnavalesca em que os americanos transformaram a data, o Dia das Bruxas é uma desculpa perfeita para conferir obras sobre assombrações e o além. Mesmo aquelas que pouco têm a ver com abóboras esculpidas ou chapéus pontudos.

Kimyouji Yokochou no Natsu, ainda inédito no Brasil, mas publicado em inglês como Temple Alley Summer, é uma leitura do tipo. O romance infanto-juvenil é uma fábula sobre inocência, fantasia e nossa relação com morte, contada de uma maneira tão transparente, em sua simplicidade, quanto os fantasmas que a povoam.

Não é de surpreender, considerando que foi escrito por ninguém menos que Sachiko Kashiwaba, autora do livro que inspirou A Viagem de Chihiro.

O Templo do Retorno à Vida

Há uma vibe de antiguidade em Temple Alley Summer que encaixa perfeitamente em seu enredo sobre assombrações, templos amaldiçoados e casarões misteriosos. Embora tenha sido originalmente escrito em 2011, sua história parece pertencer a uma época mais simples, em que nossa percepção do sobrenatural era mais guiada pelas coisas que enxergávamos – e as que não víamos – que pela mídia de massa.

É uma ironia que não escapa à Kashiwaba, que começa seu livro justamente com um programa de TV. Kazu, aluno da quinta série na pequena cidade de Masuda, interior do Japão, está assiste a um enlatado sobre fantasmas antes de dormir. Ao ir ao banheiro no meio da noite, é surpreendido por uma visão mais assustadora que qualquer vídeo de poltergeist.

Uma garota aparece em um dos cômodos da sua casa vestida em um kimono fúnebre.

A menina desaparece tão cedo surgiu. Seus pais, como é típico de pais fazerem, não acreditam em sua história.

As coisas ficam mais estranhas quando Kazu reencontra a estranha na escola, vestindo o uniforme de seu ano. Nenhum de seus colegas nota nada de errado em sua presença. Pelo contrário, agem como se ela sempre tivesse estudado com eles.

Teria uma assombração realmente voltado à vida e ocupado um espaço em sua rotina? Ou estaria Kazu apenas ficando louco?

Pouco a pouco, o garoto começa a acreditar na primeira opção. Durante um trabalho da escola, Kazu desenterra por acaso um antigo mapa de sua cidade. Segundo ele, cerca de cem anos atrás sua rua costumava se chamar Kimyōji Yokochō, algo como “beco do templo Kimyou”. Em japonês, o nome do santuário se escreve com os ideogramas para “retorno” e “vida”, como se estivesse de alguma forma relacionado com a missão de trazer os mortos de volta do além.

Basta que Kazu comece a fazer perguntas para que entenda que não está lidando apenas com mortos, mas também com os esqueletos, metafóricos, que os vivos escondem no armário. Os velhos de sua rua prontamente negam ter ouvido falar do templo. Dois membros do conselho do bairro visitam sua casa para lhe convencer de que pesquisar a respeito é uma perda de tempo. De uma mera história de fantasmas, Temple Alley Summer começa a se assemelhar a uma versão infanto-juvenil de O Bebê de Rosemary.

Kazu eventualmente descobre que o templo Kimyou realmente existiu, mas foi destruído por um grupo de pessoas que considerava errado trazer os mortos de volta à vida. Seus adeptos, todavia, continuaram os ritos em segredo, dando uma nova chance a almas perdidas.

É óbvio que Akari, sua recém-aparecida “amiga”, é uma dessas pessoas.

Ressentimentos e segundas-chances

Minha sinopse talvez faça o livro parecer mais sombrio do que de fato é. Kashiwaba escreve sobre templos, mortos-vivos e seitas misteriosas, mas Temple Alley Summer deixa claro que estes elementos são apenas um pano de fundo para uma questão maior: Se existisse um poder capaz de trazer mortos de volta à vida, seria correto utilizá-lo?

Você, leitora, o utilizaria?

Kazu acha que tem uma resposta, mas sua certeza desmancha quanto mais se aproxima de Akari. Sim, mortos-vivos são uma violação das leis da natureza. Mas, até aí, não é injusta uma natureza que permite que meninas morram aos dez anos, antes de aproveitarem o melhor que a vida tem a oferecer? Até que ponto certas pessoas não merecem uma segunda chance? Até que ponto desejar uma segunda chance em vez de curtir o pouco tempo que nos resta não invalida a própria razão de se viver?

Não tive a oportunidade de ler Kiri no Mukou no Fushigi na Machi, o livro de Kashiwaba que inspirou A Viagem de Chihiro. Não sei dizer, portanto, se a exuberância do filme se deve à imaginação de Miyazaki ou à história que o inspirou.

Tenho a impressão de que é o primeiro caso, pois Temple Alley Summer não poderia ser mais diferente da obra-prima dodiretor.

Não que não existam pontos em comum entre romance e filme. Alguns detalhes, como uma mãe invisível e um varal que se materializa na medida em que surgem roupas a secar, parecem tirados diretamente da mente dos animadores do Studio Ghibli. Kazu, como Chihiro, aprende a enxergar o maravilhoso nas coisas mais mundanas.  

Mas se no longa de Miyazaki essa lição é colorida por um mundo paralelo que desafia os limites da imaginação, o romance de Kashibawa é uma jornada para dentro. Como em As Aventuras de Marnie, o aprendizado de Kazu vem não de fugir da realidade, mas de redescobrir o valor dos lugares e pessoas com que sempre conviveu.

É curioso que, quando Temple Alley Summer finalmente abraça a fantasia, o faça por meio da literatura. Em dado momento, na sanha de realizar os sonhos inacabados de Akari, Kazu sai em busca de um conto de fadas que costumava ler, serializado em uma revista há muito descontinuada.

Essa história-dentro-da-história chega a lembrar A Cidade sem Ninguém de Chobits, não apenas por conta de seu tom, mas pela maneira como força as personagens do romance – e também a nós, que a lemos através de seus olhos – a enxergar seu conflito de outra maneira. Se a escrita de Kashiwaba possui uma vibe de antiguidade, ela vale em dobro para o conto de fada. Até mesmo as ilustrações são diferentes, em um estilo que parece pagar tributo às xilogravuras dos séculos XVII e XVIII.

É coincidência que um romance que se inicia com um enlatado de TV termine com uma homenagem literária a Charles Perrault aos Irmãos Grimm? Eu duvido muito.

Mortos não retornam ao nosso mundo, e provavelmente isto é para o bem. Mas o passado nunca morre de verdade, e há diversos sortilégios que podem trazê-lo de volta à vida, escondidos em mapas antigos, histórias contadas e memórias daqueles que estão por aqui há mais tempo que nós.

Tudo o que precisamos é de uma pitada de curiosidade.

 

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“Tatami Galaxy”, ou por que devo desculpas a Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/#comments Wed, 22 Sep 2021 23:54:33 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23027 Aconteceu no meu primeiro ano da faculdade.

Foi a melhor época da minha vida até o momento, mas também a mais estressante. Farto até a medula de simulados e aulas de decoreba, decidi que tinha chegado a hora de aproveitar minha vida ao máximo. Tudo o que sentia vontade de fazer fiz questão de levar a cabo. Ao mesmo tempo.

Toquei violino em uma orquestra de câmara amadora. Comecei minha iniciação científica. Entrei em turmas de latim e japonês. Nas horas vagas, saía com minha namorada ou meus dois círculos de amigos: os novos, da faculdade, e os antigos da escola.

Minha rotina era uma montanha-russa entre o sentimento de realização e a iminência de um burnout. Nunca me sentira tão completo e, ao mesmo tempo, tão cansado.

Foi então que escutei de um colega da aula de japonês:

“Quer dizer que você não vai em festas? Você não tem medo de deixar essa oportunidade passar e viver com remorso pelo resto da vida?”

Eu travei. Menos, imagino, por ter visto sabedoria em suas palavras que por ter escutado uma frase tão absurda de alguém que, para todos os fins, era até então um desconhecido. Tirando os “bons dias” e os exercícios de diálogo que fazíamos na aula, aquela era a conversa mais longa que já tínhamos tido.

Senti vontade de responder que estudava na FFLCH-USP, que pouco tinha a ver com o campus cor-de-rosa das comédias românticas americanas. E que meus colegas eram menos conhecidos por festas que por ocuparem a reitoria durante greves e se vestirem de mendigo em tempo integral. (Era um clichê, obviamente, mas todo clichê tem uma ponta de verdade).

Mas apenas desconversei com uma desculpa qualquer, chocado pela minha própria fraqueza diante de um comentário tão estúpido. Eu já estava dando tudo de mim. Não havia mais horas no dia para fazer qualquer outra coisa. Será que mesmo assim estava desperdiçando meus anos de juventude?

Se você curte animes deve reconhecer meu drama no protagonista de The Tatami Galaxy, anime de Masaaki Yuasa baseado no romance de Tomihiko Morimi. Assistindo a série pela primeira vez no esquenta para uma sequência já anunciada, me dei conta de uma coisa.

Quando resenhei Night is Short, Walk on Girl, livro anterior de Morimi que serve de prequel a Tatami Galaxy, teci comentários um tanto duros. Decepção que atribuí ao próprio Morimi, cujo infanto-juvenil Penguin Highway me deixou com um gosto ainda mais amargo na boca.

Assistindo a Tatami Galaxy, percebo que cometi um erro de julgamento. E está na hora de retificá-lo.

Por uma vida cor-de-rosa

Antes de mais nada, uma introdução. Tatami Galaxy – para o caso, não improvável, de você nunca ter ouvido falar desse nome – é a história de um rapaz em um alojamento estudantil de uma universidade de Kyoto. Seu sonho, como o de tantos outros de sua idade, é curtir a “vida cor-de-rosa” dos anos de faculdade o mais intensamente que pode. O destino, porém, tem outros planos. Cada tentativa de dar sentido a sua graduação termina da mesma forma: largando-o sozinho em seu quarto, frustrado, perguntando-se como conseguiu deixar o melhor da juventude escapar pelos dedos.

“Tentativas”, no plural. Cada episódio termina com a tomada de um relógio girando em reverso. O episódio seguinte nos devolve a um momento anterior, mostrando um contrafatual do que aconteceria se tivesse aproveitado uma oportunidade diferente. A “galáxia de tatami” de seu título não é uma referência apenas ao seu alojamento (tatami, além daquele tipo de piso japonês, é uma medida de tamanho usado em residências). É também o leque das suas próprias experiências universitárias, que ele é forçado a reviver como em um Dia da Marmota.

Em temas, não só em estilo visual, o anime é uma versão expandida de Night is Short, Walk On Girl, história sobre a falta de sorte de um universitário tentando se aproximar de sua garota dos sonhos em uma noite fantástica quando tudo acontece.

O fato de que nenhum de seus protagonistas tenha nome diz mais que todas as elucubrações que eles de fato fazem, metralhadas em um ritmo tão alucinante que obriga espectadores a pausar o vídeo para entendê-las. O narrador de ambas as histórias é um everyman representando todos os jovens homens com hormônios nas alturas que já experimentaram em desespero por não encontrarem o prazer que mereciam. Prazer esse que envolve, invariavelmente, uma bela moça de cabelos negros.

Como Virgens Suicidas, em uma versão ainda mais pop e millennial, são histórias sobre o olhar masculino: sobre a necessidade de homens de ter seus prazeres atendidos e a indignação com que reagem quando esse privilégio lhes é negado.

Mas se Virgens Suicidas se tornou um clássico contemporâneo por questionar, criticamente, o que significa ser um “objeto” do olhar de outrem. Night is Short, Walk on Girl é frenético demais para colocar seu protagonista debaixo de uma lupa. Saímos do livro incertos se devemos tirar sarro do protagonista ou simpatizar com sua cruzada fracassada, por mais repreensível que ela seja. Problema este que incomoda ainda mais em Penguin Highway, outro livro de Morimi com um enredo duas vezes menos interessante e um protagonista triplamente mais chauvinista.

Quando seu “herói” se orgulha de desenhar os peitos de mulheres que conhece, você sabe que tem um problema).

Tatami Galaxy, porém, vira a falta de simpatia de sua personagem central de ponta cabeça. E de uma maneira que me fez entender que essas obras tem mais sabedoria do que aparentam à primeira vista.

Parte desse mérito vem da maneira como equilibra os impulsos sexuais de seu narrador com um enredo mais vago sobre a dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Parte, também, vem do fato de que esse narrador não é o verdadeiro protagonista de sua história.

Ao longo dos onze episódios, sua história é entrecruzada com a de outras pessoas com suas próprias agendas: Jougasakai, galã da turma que esconde um romance com uma boneca sexual; Ozu, colega que insiste em levá-lo para o mau caminho; Akashi, a “garota de seus olhos” – mas também uma mulher que não hesita em lhe pregar peças quando lhe convém; Higuchi, mistura de youkai e Grande Lebowski que parece puxar as cordas de seu destino, mas também viver um dia por vez, sem dar satisfações a qualquer um.

Na medida em que vemos as relações entre essas personagens evoluírem, fica difícil saber se estamos de fato assistindo à história do narrador ou as suas histórias, pelos olhos dele. Ironia que não escapa ao próprio narrador, que sofre para entender como pessoas tão imperfeitas, tão distantes de seu ideal de masculinidade, conseguem ter a vida cor-de-rosa que tanto persegue.

É impossível não lembrar de um trecho de Norwegian Wood, o belíssimo e melancólico romance de Haruki Murakami:

“Da direção do prédio do centro estudantil vinha o som de uma voz grossa praticando escalas. Aqui e ali estavam grupos de quatro ou cinco estudantes expressando quaisquer opiniões eles vinham a ter, rindo e gritando um ao outro. No estacionamento, um punhado de rapazes andavam de skate. Um professor com uma maleta de couro cruzou o estacionamento, evitando os skatistas. No pátio, uma estudante de capacete se ajoelhava, pintando grandes caracteres em um cartaz com algo sobre o imperialismo americano invadindo a Ásia. Era uma típica cena da universidade na hora do almoço, mas na medida em que me sentei assistindo-a com atenção redobrada, eu me dei conta de um certo fato. Cada pessoa que eu enxergava diante de mim estava feliz na sua própria maneira. Se eles estavam realmente felizes ou simplesmente pareciam estar eu não podia dizer. Mas eles pareciam alegres nesse agradável começo de tarde no final de setembro, e por conta disso eu senti um tipo de solidão que me era novo, como se eu fosse o único ali que não pertencesse de fato à cena.

Em minha resenha de Night is Short, Walk on Girl, critiquei seu “compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada”.

“Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.”

Tatami Galaxy nos ensina que “curtir o momento”, muitas vezes, é a melhor forma de questionar a realidade. Ensinamento valioso em qualquer instante da vida, mas que adquire uma importância fundamental em tempos de crise como estes em que vivemos.

Ao contrário do narrador do anime de Yuasa, o relógio de nossas próprias vidas jamais voltará para nos dar uma segunda chance.

Meu antigo colega de japonês – de cujo nome, confesso, nem mais me lembro – talvez tenha custado a entender essa verdade. Gosto de pensar que a alfinetada que me deu naquele dia foi, em alguma medida, um recado a si próprio. Quem é esse sujeito que joga fora das minhas regras, mas esbanja a mesma alegria que suo tanto para obter?

Não posso dizer que nunca mais pensei no que ele me disse, sobretudo nessa fase da vida, em que estou mais próximo a voltar à faculdade como professor do que como aluno. Mas de uma coisa não tenho a menor dúvida: meus anos de campus não poderiam ter sido mais rosados.

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Entrevista: a Dublin de Joyce entre o passado, presente e futuro https://www.finisgeekis.com/2021/09/08/entrevista-a-dublin-de-joyce-entre-o-passado-presente-e-futuro/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/08/entrevista-a-dublin-de-joyce-entre-o-passado-presente-e-futuro/#respond Wed, 08 Sep 2021 21:51:06 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23020 Hoje trago algo diferente para vocês.

Se acompanham o blog há algum tempo, sabem que sou grande fã da obra de James Joyce. Minha admiração por esse autor já me levou a muitos lugares – por exemplo, a fazer cosplay de suas personagens pelas ruas de Dublin. Nunca, porém, antecipei o privilégio que vivi essa semana.

Junto com meu colega, o arqueólogo Alex Martire, entrevistei ninguém menos que Caetano Galindo, escritor, tradutor e um dos brasileiros mais engajados em tornar a obra do autor acessível ao grande público.

Naturalmente, historiadores e arqueólogos que somos, não podíamos deixar de falar sobre o passado. E falando de Joyce, esse “passado” tem nome e sobrenome: Dublin, Irlanda, 16 de junho de 1904.

Sua obra-prima, Ulisses, é uma recontagem da Odisseia de Homero ambientada na capital irlandesa dessa data. Tão detalhado é o retrato que fez da cidade no começo do século XX que o próprio Joyce disse que, se Dublin desaparecesse, poderia ser inteiramente reconstruída usando apenas sua obra de referência.

Isto, claro, em 1922, quanto o romance foi publicado pela primeira. E quanto a 2022, ano de que rapidamente nos aproximamos? Ulisses continuará a ter relevância quando a cidade que o inspirou deixar de existir, substituída por novas “Dublins”? Ou, melhor dizendo, conseguirá a própria Dublin honrar o pedestal em que Joyce a colocou na medida em que se transforma em outra coisa – e os lugares e edifícios citados no livro deixarem de existir?

A mim e ao Alex, Galindo se mostrou otimista. Disse que, por mais louvável que seja a adoração moderna a Joyce (o Bloomsday, evento dedicado ao autor, é atualmente a segunda maior festividade da Irlanda) não podemos esquecer de que ela é um fenômeno turístico bastante recente. Em 1941, quando Joyce morreu, a recepção na cidade foi fria. E levaria muitas décadas a amornar.

“Essa relação da cidade com o livro [foi] alterada na marra” ele disse, comentando sobre a pressão de leitores e críticos, sobretudo nos EUA, que elevaram Ulisses ao patamar de obra-prima da literatura. “A Irlanda meio que teve de engolir o Joyce de atravessado”.

Galindo também comentou como transformar lugares citados por seus livrosem museus não é o mesmo que preservá-los. A farmácia Sweeney, cenário de um dos capítulos de Ulisses, por exemplo, hoje é um centro cultural que organiza leituras de textos de Joyce. Não seria mais fiel ao espírito do romance que continuasse funcionando como uma farmácia? Onde está a linha entre manter a Joyce de Dublin e imortalizá-la como um monumento empalhado, inerte, que não mais pertence à vida cotidiana das pessoas?

“A [Sweeney’s] sobreviveu?” ele pergunta “É uma coisa fake. É uma coisa criada para se vincular ao fato de que aquelas paredes estão de pé. […] É Dublin se alterando por causa do Ulisses.”

E é nisso, talvez, que está a maior força desse romance de cem anos atrás. Dublin não é apenas o palco da história de Joyce. “A paisagem da cidade mudou” diz Galindo. “Ele sacralizou certos espaços […] Delimitou aqueles lugares como lugares especiais.”

Em tempos em que influencers pregam publicamente que clássicos não servem para nada, não é pouca coisa. Como o sultão de Sandman que barganhou com Morfeu para que seu reino durasse para sempre, Joyce conseguiu a proeza de transportar uma cidade inteira para o mundo dos sonhos.

“O Ulisses vai sobreviver. E aquela cidade vai sobreviver no Ulisses.”

Você pode assistir ou ouvir a entrevista completa na página do ARISE.

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“A Mulher da Saia Roxa”: humor, intrigas e pessoas invisíveis https://www.finisgeekis.com/2021/08/04/a-mulher-da-saia-roxa-humor-intrigas-e-pessoas-invisiveis/ https://www.finisgeekis.com/2021/08/04/a-mulher-da-saia-roxa-humor-intrigas-e-pessoas-invisiveis/#respond Wed, 04 Aug 2021 21:10:05 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22992 Certas histórias nos transportam para outros mundos. Outras arrancam nossas vendas, mostrando-nos universos paralelos escondidos debaixo dos nossos olhos.

A Mulher da Saia Roxa, de Natsuko Imamura, pertence ao segundo grupo. É, à primeira vista, um romance sobre uma obsessão mundana entre pessoas inconsequentes, escrito em uma prosa tão simples que nos desafia a procurar sentidos escondidos.

É, também, um romance sobre complôs e silenciamentos, sobre o preço de ver demais e os riscos de enxergar de menos. Um romance sobre temas tão sérios, escritos com tanta irreverência que parecem nos zombar ao mesmo tempo em que nos intrigam.

A julgar pelo título – e primeiros capítulos – é fácil ter a impressão de que estamos diante de uma história sobre uma personagem sui generis, uma Manic Pixie Dream Girl recém-chegada à meia-idade.

A Mulher da Saia Roxa, como a narradora nos conta, é uma figura da vizinhança. Faça sol ou faça chuva, usa sempre o mesmo figurino. Sempre almoça sozinha na mesma praça, em um banco que os locais já aprenderam a reservar para ela. Nem sempre é fácil encontrá-la, pois sua rotina irregular. Quando passa na rua, todos imediatamente reagem a sua presença. Reza a lenda que vê-la duas vezes ao dia traz boa sorte; três vezes, azar. Se é feita de carne e osso, ninguém sabe: é impossível tocá-la. Ela evita a multidão como se tivesse  “um terceiro olho habilmente escondido debaixo de sua franja, girando em 360 graus, dando a ela uma boa visão de o que quer que se aproximasse dela”.

Isso, ao menos, é o que diz a narradora. Leitores atentos, contudo, entenderão logo de cara que há algo mais sinistro em seu interesse. A Mulher da Saia Roxa, no final das contas,não é uma história sobre sua personagem epônima. É uma história sobre aquela que a observa.

É, enfim, uma história sobre uma stalker.

Capa da edição japonesa de “A Mulher da Saia Roxa”

Quem exatamente é essa narradora é algo que Imamura, nos apresenta apenas a conta-gotas. Ela chama a si mesma de “Mulher do Casaco Amarelo”. Ela trabalha como camareira, embora não ganhe o bastante para pagar o aluguel. Esconde suas economias no guarda-volumes de uma estação, à espera do dia em que será despejada. É de se perguntar se o “Casaco Amarelo” que veste com tanto orgulho é uma tentativa de se equiparar a sua heroína, ou apenas a única peça de roupas que lhe resta.

Por que ela é tão obcecada pela Mulher de Saia Roxa é um mistério que nos acompanha até as últimas páginas. Longe das reviravoltas e emoções à flor da pele que esperamos de um suspense, o enredo de A Mulher da Saia Roxa é corriqueiro a ponto de ser opressivo. Algo que a prosa frugal de Imamura vende com uma força diabólica.

Com exceção de uma cena, um tour de force de realismo mágico que poderia ensinar um truque ou dois a Haruki Murakami, não há no livro grandes tiradas ou floreios – ou, se eles existem, não foram incluídos na tradução que li, escrita por Lucy North. Como um excelente thriller, é um livro para se ler em uma única sentada.

Mas elogiá-lo nesses méritos não dá conta de explicar quão fundo o romance mergulha no poço dos sentimentos humanos. Tal como a vida da Mulher em Saia Roxa, há mais aqui do que aflora na superfície.

Não é preciso muito para entendermos que a Mulher da Saia Roxa não é “folclórica” mais do que excluída. Se os outros a evitam ou inventam histórias às suas custas é porque é assim que fazemos com as pessoas que chamamos de “estranhas”. Ela é magra porque come pouco, tem hábitos irregulares porque faz bicos de madrugada, usa amostras de xampu porque não tem dinheiro para produtos de higiene. Se possuísse mais do que uma saia, talvez seu nome seria outro.

Em dado momento, após muitas entrevistas fracassadas, A Mulher de Saia Roxa arranja emprego como camareira no mesmo hotel em que trabalha a narradora.

Coincidência ou armação? Para Imamura, a resposta não é importante. Suas personagens são misteriosas não porque guardam algum grande segredo, mas porque existem à margem da sociedade.

“Às vezes, nossas funcionárias simplesmente desistem, sem nenhum aviso” conta o diretor do hotel, como se fosse a coisa mais normal do mundo. “Eu não entendo você. Geralmente, você é quieta como um rato” ele diz em outra cena, enquanto escuta uma ameaça que o sacode nas bases. A Mulher de Saia Roxa é um livro sobre pessoas invisíveis.

Há uma cena marcante no início do romance em que A Mulher da Saia Roxa sofre provocações das crianças do bairro. Elas se aproximam escondidas e encostam em seu ombro para logo depois fugirem em gargalhada.Sua relação muda radicalmente quando a moça é empregada pelo hotel e passa a trazer chocolates para distribuir entre os jovens.

Como tantos adultos, aquelas crianças só enxergam outra pessoa como humana quando tem algo que podem lhe tirar.

A narradora é um caso ainda mais trágico: uma mulher tão solitária que precisa inventar uma obsessão com uma completa estranha para sentir que sua vida terá o que menor impacto sobre o mundo.

Como a dona de motel de Após o Anoitecer e as hostesses de Breasts and Eggs, as camareiras de A Mulher da Saia Roxa são mulheres economicamente vulneráveis, substituíveis, batalhando por espaço num mundo pronto para cuspi-las quando cumprem sua função. Mas nem por isso são privadas de garras com que se defender – ou dar o bote quando suas vítimas quando elas menos esperam.

A Mulher da Saia Roxa rapidamente acaba seu treinamento, distingue-se entre suas pares, sobe na hierarquia do hotel. Rumores começam a surgir: alguns lisonjeiros, outros perigosos. Ela ganha o apreço de suas supervisoras, então o desdém, finalmente o medo.

Quando uma das personagens finalmente sai das sombras e suas ações ameaçam trazer abaixo o hotel e seu dono, começamos a nos perguntar se não foi tudo proposital. Até os twists de seu enredo mudam de sentido, como se não fossem reviravoltas de verdade, mas apenas verdades ululantes que aprendemos a ignorar.

O quarto estava em silêncio mais uma vez. A porta automática lentamente se fechou, e o diretor respirou um longo suspiro de alívio.

“Diretor” eu subitamente ergui a voz.

Ele levou um susto. “Ah! Você me assustou. Há quanto tempo você está aí, Gondo-san?

“Eu estive aqui o tempo todo”.

Com quantas Mulheres da Saia Roxa cruzamos todos os dias nas ruas? Camareiras, garis, entregadores de comida, subempregados de toda sorte? Pessoas que sequer olhamos nos olhos para apanhar o troco que nos oferecem ou o negar o panfleto que nos empurram?

Imamura trabalhou como camareira antes de se dedicar apenas à literatura. Lendo seu romance, não é nenhuma surpresa. Nem tanto pelas descrições dos bastidores do hotel, mas pela sensibilidade cruel, mas ao mesmo tempo bem-humorada com que nos força a enxergar aqueles que a sociedade perde entre suas frestas.

Diz uma nota ao fim da edição anglófona que Imamura é fã de Yoko Ogawa e conhecida no Japão como “a segunda Sayaka Murata. Entre elas e Hiromi e Mieko Kawakami, só temos a agradecer o privilégio de compartilhar uma geração com escritoras desse calibre. O mundo em que vivemos parece uma montanha-russa com os freios quebrados. Graças a elas, e aos seus comentários, pelo menos encaramos a descida com os olhos abertos.

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“Heaven”: a violência e seus sentidos https://www.finisgeekis.com/2021/06/09/heaven-a-violencia-e-seus-sentidos/ https://www.finisgeekis.com/2021/06/09/heaven-a-violencia-e-seus-sentidos/#respond Wed, 09 Jun 2021 21:26:28 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22898 Quando resenhei Kagami no Kojou semanas atrás, não imaginei que trombaria com outro romance japonês sobre bullying tão cedo.

Mais surpreendente foi vê-lo escrito por ninguém menos que Mieko Kawakami, que conquistou o Japão e mundo com o incendiário Breasts and Eggs. Dotada de um estilo provocativo, às vezes furioso, sua prosa não poderia ser mais diferente da fantasia meiga de Kagami no Kojou.

Heaven, seu último romance, deixa isso claro. Trata-se de um livro desagradável ,feito para desagradar, e digo isto sem a menor malícia.

É uma fábula sobre o bullying tão imodesta em sua violência – e preto-e-branca em sua moralidade – que parece desafiar leitores a abandoná-la. A julgar pelo ódio e impotência que desperta em nós, é provável que realize este objetivo bem demais.

O céu e o inferno

Seu protagonista é um garoto de 14 anos que conhecemos apenas como “Olhos”. Estrábico, sofre constantes agressões de colegas por conta de sua aparência. Ou, ao menos, é o que ele imagina.

A história abre com um bilhetinho em seu estojo convidando-o a um encontro. Sua autora é Kojima, colega de classe tão atormentada pelas outras garotas como ele é pelos rapazes da turma.

O bullying os aproxima, e logo os dois forjam uma amizade. Longe de prover um porto-seguro contra as agressões, contudo, seu vínculo os transforma em alvos de um abuso ainda maior, que porá à prova sua resiliência – e a de nós, leitores.

Esqueça a lição de vida de Kagami no Kojou ou o humanismo de A Voz do Silêncio, que estendeu sua empatia até mesmo aos bullies. Em Heaven, os valentões são villões irremediáveis capazes de quebrar ossos e fazer as vítimas engolirem fezes. Capítulo após capítulo, Olhos irá do desconforto em ir à escola à insônia, para então contemplar o suicídio.

O próprio nome pelo qual o conhecemos  – Olhos – dá uma ideia da desumanidade a que é subjugado. Na visão dos colegas, como na nossa, ele é apenas uma vítima.

Esse não é um livro para os fracos.

O frágil e o antifrágil

O ensaísta Nassim Nicholas Taleb cunhou o termo “antifrágil” para descrever coisas que se tornam mais fortes quando sofrem dificuldades. É o princípio que rege nosso sistema imune, embora possa ser aplicado para muitas outras coisas: um time que jogue melhor a cada partida, uma sociedade que aprenda a resolver problemas quanto mais frequentemente os tiver.

Trago isso à tona porque é uma ideia frequentemente evocada em discussões sobre o bullying. Para alguns, sofrer provocações de colegas é um teste de caráter que jovens devem enfrentar sozinhos.  Apanhar se torna “bom” porque nos ensina a bater de volta. Ou, pelo menos, a entender que não somos feitos de vidro e não precisamos chorar com “frescuras”.

O que vale para socos literais vale também para os “pontapés” metafóricos que a vida nos dá. De marcas de vergonha, passar dificuldades, viver na pobreza, ter de trabalhar para o próprio sustentam se tornam virtudes: um Chapéu Seletor divino que separa os bons dos folgados. Não se sobe na vida sem antes sofrer.

Não é uma ideia necessariamente defendida na má-fé, muito embora apareça com frequência no discurso de conservadores e reacionários. Quando gastamos anos da vida comendo o pão que o diabo amassou, é tentador imaginar que nossas dores tenham um propósito.

Mas esse é um raciocínio míope, que ignora os milhares – quando não milhões – que beijam a lona antes de encontrem seu lugar no mundo.

Sim, um ou outro indivíduo conseguem escalar a pirâmide social da base até o topo. Mas e todos os outros que não o fizeram e desperdiçaram suas vidas com empregos sub-ótimos, delinquência, morte precoce? O que seria do nosso país, da nossa sociedade, se estas pessoas tivessem sido emancipadas em vez de varridas para baixo do tapete?

Essa é uma pergunta que Kawakami lança em seus livros, escrevendo com uma fúria que escapa de cada sentença. “Se você quer saber quão pobre uma pessoa era quando estava crescendo” sua narradora diz no início de Breasts and Eggs “pergunte a ela quantas janelas ela tinha.”

“Para os pobres, o tamanho da janela não é sequer um conceito. Ninguém tem vista para lugar nenhum. Uma janela é apenas um painel embaçado de vidro escondido atrás de estandes abarrotadas de compensado”.

Seu tom não é ácido por acaso. A pobreza e a necessidade corrompem – e não é uma corrupção que se limita aos bens materiais. Breasts and Eggs é recheado de personagens cansadas, desiludidas, traumatizadas. Tão maltratadas pela vida, na verdade, que não hesitam em propagar tristeza e sofrimento aonde quer que vão, como se, para terem justiça, todos precisassem sofrer como elas sofreram.

Suas personagens nada têm de “antifrágil”. Elas são apenas frágeis, às vezes quebradas, movidas por esta mesma fragilidade a machucar outras pessoas.

A escritora Mieko Kawakami

Heaven demonstra a falência moral desse discurso com ainda mais ênfase. Nenhuma personagem encarna essa crítica melhor que Kojima, convencida de que sofrer bullying nos torna pessoas melhores.

“Nós não estamos apenas obedecendo […] Nós estamos deixando acontecer.” ela explica a Olhos “Eu não acho de forma alguma que isso é fraqueza. É mais como uma força”.

Força pode até ser. Mas de que adianta tê-la se acabamos igualmente dobrados sobre o punho de um bully? Qual é o propósito de “ser forte” se, com isso, contribuiremos para uma sociedade regida por covardes?

É uma pergunta que Heaven tenta responder, mas infelizmente falha, tropeçando na sua própria violência. Seu retrato do bullying é tão caricato que é difícil relacioná-lo ao mundo real – ou saber que sabedorias realmente têm a oferecer.

Olhos nos conta que pedir ajuda aos pais ou aos professores não é uma opção. Kawakami, porém, nunca explica por que nenhum adulto está disposto a acreditar em sua palavra – mesmo quando, após uma cena chocante, ele retorna a casa ensanguentado da cabeça aos pés.

As próprias cenas de agressões são tão gráficas que flertam com a pornografia. No início do romance, assistimos a Olhos sendo forçado a comer giz, o que prontamente faz com que vomite. É uma peça “leve” para o padrão de seus atormentadores. Outra “brincadeira” o levará ao hospital. Uma terceira, a um estupro.

É de se perguntar até que ponto Kawakami realmente tem algo a dizer sobre bullying ou não usa essas cenas de tortura apenas por valor de choque.

De fato, tomado literalmente, o romance parece fetichizar os próprios abusos que supostamente condena. Ao contrário de Olhos, a esmagadora maioria das vítimas de bullying sofrem abusos significamente mais brandos: apelidos maldosos, exclusão pelos colegas, humilhações na frente da sala.

Até que ponto igualar a experiência desses jovens com os tormentos de Olhos não diminui a percepção de trauma que de fato sofrem na vida real?

Até que ponto a caricatura não contribui para a desculpa – que escutam tantas vezes em vida – de que o que sofrem não passa de uma “frescura?”

Metáforas e alegorias

“Caricatura”, na verdade, parece uma palavra errada, pois supõe uma imagem distorcida da própria realidade. Heaven, pelo contrário, é tão preto-no-branco, que parece querer ser lido como uma alegoria.

Como uma versão adolescente de , Olhos aceita seu tormento passivamente, confiando na misericórdia daqueles que o machucam. Seu bullying é menos um problema social que um caminho – ou um obstáculo – para que encontre um sentido na vida: o “Paraíso” a que seu título se refere.

Como lhe explica Kojima:

Nós entenderemos algumas coisas enquanto estivermos vivos e outras depois que morrermos. Mas não importa quando isto acontecer. O que importa é que toda a dor e toda a tristeza tenham um sentido.”

Kojima faz mais do que aceitar a violência dos colegas. Seu masoquismo chega a tal ponto que ela recusa a tomar banho ou se arrumar, de maneira a provocar ainda mais aqueles que a abusam. Quando Olhos comenta que gostaria de não ser estrábico, ela tem um surto. Como pode ele, que o destino abençoou com um alvo para bullies tão perfeito, tem coragem de negar tamanha bênção?

Mas a amiga não é a única personagem que parece saída de uma parábola bíblica. Momose, um de seus bullies, ocupa um papel similar: um Lúcifer que o tenta ao inferno para se contrapor a Kojima e seu paraíso.

Momose lhe conta que não existe razão por trás de seu bullying. Eles o torturam porque podem e sentem vontade, e esta é a única razão de que precisam, pois a vida não tem propósito:

“Mas pensa só nisso” disse Momose “Coincidência. É só o que existe. É assim que o mundo funciona. Eu não estou falando só de você sofrendo bullying. Por acaso alguma coisa no mundo acontece por uma razão? Tenho certeza de que a resposta é ‘não’. Sim, uma vez que ela tenha acontecido, você pode inventar todo tipo de explicação que parece que faz o maior sentido. Mas tudo começa do nada. Sempre. Você nasceu por motivo nenhum e o mesmo vale pra mim. Não há razão para nós estarmos aqui.

[…]

“Nada disso tem qualquer sentido. Todo mundo só faz o que eles querem. Eles têm estas ânsias, então eles tentam satisfazê-las. Nada é bom ou ruim. Havia uma coisa que eles queriam fazer, e eles tiveram a chance de fazer. O mesmo vale pra você.”

Criticar a passagem acima apontando que um adolescente jamais diria isso é perder de vida o mais importante. No romance de Kawakami, o bullying se torna uma metáfora para as agruras da própria vida, e Momose e Kojima, duas formas diferentes de encará-la: um hedonismo niilista, nietzcheano, e um conformismo messiânico.

Nesse sentido, Heaven tem menos a ver com Lonely Castle in the Mirror que com os mangás de Inio Asano e Shuzou Oshimi: histórias traumáticas, quase sádicas de adolescentes que descem ao abismo da depravidade humana – e lá encontram uma portilhola a um mundo diferente, se não necessariamente melhor.

Mas há duas virtudes fundamentais nas obras desses mangakás que os elevam acima de uma mera pornografia do sofrimento.

Primeiro, elas flertam com o místico, o surreal ou o fantástico. Nijigahara Holograph é uma narrativa mágica que entrelaça passado, presente e futuro.  A Cidade da Luz sela seu clímax com um ônibus voador. Em As Flores do Mal, cada passo de seu protagonista rumo ao abismo é seguido por uma flor gigantesca que brota sobre sua cidade:

Segundo, elas pingam de sarcasmo dirigidos as suas personagens, mesmo quando nos convidam a simpatizar com elas. Em As Flores do Mal, o protagonista Kasuga é psicologicamente torturado pela colega Nakamura, mas Oshimi deixa claro que foi a sua prepotência, sua esnobice adolescente, que o tornou vulnerável a seus encantos em primeiro lugar.

Asano leva isso ainda mais longe em Bom Noite Punpun, com uma personagem principal zombada por Deus, e que o próprio autor menospreza, nas introduções aos capítulos, como um furita inútil.

Graças a esses dois “temperos” – misticismo e humor – seus trabalhos ganham um tom surreal que mantém seus elementos repugnantes sob controle. Como um livro de Franz Kafka, somos capazes de entender as situações que suas personagens enfrentam como uma redução ao absurdo de males do dia a dia.

Kawakami domina bem essas técnicas, pois as usou para grande efeito em Breasts and Eggs. Makiko, irmã da protagonista, é uma quarentona esquelética de tão pobre que insiste em torrar uma fortuna que não tem para colocar implantes de silicone. Sua filha, Midoriko, encerra uma briga em família quebrando uma caixa de ovos sobre a cabeça. Uma visita da protagonista Natsuko à casa de banhos termina com uma visão de sonho surrealista digna de um conto de Haruki Murakami.

Heaven, pelo contrário,não possui nenhuma coisa nem outra, o que faz sua alegoria sobre bullying parecer excessiva e manipulativa. No final da leitura, é o gosto amargo de suas cenas de tortura que permanece, concentrado demais para remediar qualquer lição de sabedoria.

Se você, leitora ou leitor, tiver uma cópia de Kageki no Kajou, faça questão de mantê-la ao lado de Heaven. É provável que sinta vontade de relê-la após esse exercício de sadismo.

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“Kagami no Kojou”: por uma infância que supere os muros da escola https://www.finisgeekis.com/2021/05/19/kagami-no-kojou-por-uma-infancia-que-supere-os-muros-da-escola/ https://www.finisgeekis.com/2021/05/19/kagami-no-kojou-por-uma-infancia-que-supere-os-muros-da-escola/#respond Wed, 19 May 2021 22:37:27 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22847 Kagami no Kojo ( The Lonely Castle in the Mirror na sua edição em inglês ) é um obra enganosamente simples.

É um romance sobre uma criança seduzida a cruzar um portal a um mundo fantástico. Mas também é um romance que seduz a nós próprios com imagens familiares de contos-de-fada para entregar algo profundo e desconfortável.

É um livro tão honestamente mágico, no sentido ilusionista da palavra, que nos surpreende a cada virada ou revelação, muito embora saibamos que seus floreios existem apenas para nos desorientar.

Vencedor do prestigioso prêmio Honya Taisho, cujos rol de ganhadores inclue Ryu Murakami e Yoko Ogawa, é uma trama tão diminuta quanto suas jovens personagens – e tão capazes, como elas, de tomar nosso coração de assalto.

Através do espelho

Kokoro é uma garota com um problema. Por motivos que escapam ao seu controle, ela se tornou alvo da ira de Miori Sanada, garota mais popular do colégio.

Insatisfeita em humilhá-la na escola, Sanada decide pagar uma visita a sua própria casa acompanhada de sua gangue habitual de meninas. A duras custas, Kokoro consegue se manter escondida até que o grupo se disperse.

O que, exatamente, era seu plano Kokoro nunca descobre. No grande esquema das coisas, também não importa. Ao violar a fortaleza que julgava inexpugnável – seu próprio lar – Sanada deixou claro à Kokoro que não estaria segura em lugar nenhum.

Aterrorizada, a garota nunca mais vai à escola.

Capa da edição anglófona

A escolha vira seu mundo de ponta-cabeça. Conforme as aulas perdidas se acumulam, Kokoro flerta com um futuro fora do sistema. A implicação não passa despercebida a sua mãe, que faz de tudo para devolvê-la aos trilhos.

Essa, porém, não é a única transformação que sacode sua vida. Certo dia, Kokoro encontra o espelho do seu quarto brilhando misteriosamente. Ao tocá-lo, é magicalmente transportada a um castelo, recepcionada por uma garota mascarada que se apresenta como A Rainha Loba.

Sete outras crianças estão presentes. Todas, Kokoro descobre, também decidiram abandonar a escola. A Rainha Loba lhes conta que há uma chave no castelo capaz de realizar qualquer desejo. Qualquer um deles pode usar seu poder – a não ser que um dos outros a encontre primeiro.

Aqueles que esperam uma história de fantasia que lentamente se desdobra em uma metáfora para problemas reais, nas linhas de Eu Mato Gigantes, sairão desapontados. Mizuki Tsujimura, a autora, é uma conhecida por seus livros de suspense e emprega em seu romance todos os truques do gênero.

Há momentos em que sua trama parece enveredar a um Battle Royale entre as sete crianças, na medida em que seus objetivos pessoais afloram e a disputa pela chave as transforma em oponentes. Em outros, o livro flerta com o mistério existencial, com suas personagens lentamente questionando a identidade do castelo, da Rainha Loba, da própria realidade. Certas passagens só podem ser descritas como ficção científica.

Personagens de Kagami no Kojo. Fonte.

É prova do talento de Tsujimura que seu livro consiga flertar com tantas referências distintas sem perder a coerência. Mais impressionante ainda, porém, é que autora nunca perca de vista aquele que é seu tema principal: as angústias sofridas por crianças no Japão – em casos extremos, a ponto de transformá-las em párias sociais.

Embora recheada de fantasia, sua história se passa no mundo real tanto quanto no castelo detrás do espelho. A aventura de Kokoro no mundo da Rainha Loba acontece em paralelo com a tentativa de sua família e professores de trazê-la de volta à vida normal. E, por meio do espelho, dos dramas parecidos enfrentados por cada um de seus novos amigos.

Todos os convocados pela Rainha Loba possuem algum motivo para evitar a escola. Há aqueles que sucumbem diante das expectativas dos pais. Há o garoto que recusa a admitir ser vítima de bullying, mesmo após um espancamento coletivo quase levar para o hospital. Há sobreviventes de abusos sexuais. Há aqueles cujas vidas – e famílias – foram destroçadas por uma morte.

Tsujimura narra cada episódio com uma franqueza que beira a crueldade. Sua prosa não doura pílulas ou reforça horrores: apenas nos mostra a realidade nua e crua, simples e horripilante, como se vista pelos olhos de Kokoro.

O problema do futoukou

Diorama promocional de Kagaki no Kojo em livraria do Japão. Fonte

Uma nota incluída na edição em língua inglesa de Kagaki no Kojo menciona que o Japão é um dos piores países do mundo desenvolvido no que diz respeito à saúde mental de suas crianças.

A informação vem de um levantamento da UNICEF que pode ser consultado no site da organização. Segundo o documento, o Japão fica em penúltimo lugar entre todos os países da OCDE e União Europeiaem quesitos como bullying e satisfação com a vida.

Não é de se espantar, assim, que a recusa de suas personagens em ir para a escola seja mais do que um artifício literário. Pelo contrário, segundo uma pesquisa publicada em 2020, há quase 50 mil crianças na situação de Kokoro no Japão. A estatística preocupante, contudo, é outra: 70% dos estudantes japoneses vão para escola contra a vontade.

Não é à toa que o romance de Tsujimura virou um bestseller.

Esse comportamento é visto como um problema tão sério que ganhou um nome próprio. Na verdade, nomes, no plural.

O fenômeno tem visibilidade desde pelo menos os anos 1980, quando era chamado de tokokyohi (“fobia escolar” ou “recusa em ir à escola” ). Na época, era comum encará-lo como um ato deliberado de rebeldia – às vezes, com conotações políticas. Um livro sobre o assunto lançado em 1999, por exemplo, trazia o sugestivo título O Ensino Médio Japonês: Silêncio e Resistência.

Com o passar do tempo, porém, especialistas passaram a diferenciar aqueles que abertamente desafiavam a escola daqueles, como Kokoro, que eram vítimas de bullying, insegurança ou problemas familiares. Hoje, o fenômeno é mais conhecido como futoukou (“Não comparecimento à escola”).

Se você, como eu, nunca ouviu falar desse problema antes, está perdoado. O futoukou é uma das faces da educação japonesas menos abordadas pela cultura pop, a despeito de sua aparição ocasional em mangás em animes. Por exemplo, na figura de Jintan, protagonista de Anohana, cujas experiências foram baseadas no futoukou da própria autora, Mari Okada.

Jintan, de Anohana

Nenhuma obra que conheço, porém, vai tão fundo quanto Tsujimura na tentativa de representar – e explicar – esse fenômeno.

Lendo pesquisas científicas a respeito do futoukou, salta aos olhos o esmero da autora em capturar a realidade dessas crianças.

Quando os pais e a escola de Kokoro entendem que sua ausência não acabará tão cedo, ela começa a receber visitas de seu professor, o  Sr. Ida. Sua casa também recebe regularmente folhetos da escola, muitas vezes entregues por Tojo-san, uma de suas únicas amigas.

Segundo uma orientadora escolar entrevistada por Nicolas Tarjan, pesquisador da Universidade de Kyoto, tanto as visitas familiares quanto os folhetos são estratégias usadas por escolas japonesas para lidar com crianças com problemas psicológicos ou familiares.

A visita tem até um nome, katei houmon. Se a situação é delicada – ou há suspeitas de abuso – o professor pode ser também acompanhado pela polícia. Em alguns lugares, professores também fazem rondas em bares de karaokê e outros locais frequentados por jovens para tentar flagrar alunos fora da aula.

Essas patrulhas explicam porque Kokoro não só abandona a escola, mas gradualmente se recusa a sair de casa de todo. Elas também desempenham um papel importante na história pessoal de um dos colegas que encontra no castelo.

Já os folhetos, segundo a orientadora, foram uma solução encontrada para situações em que os professores não podem ou conseguem conversar com os alunos dentro de suas casas.

Tsukimura, no entanto, mostra claramente que o discurso é muito diferente da prática. E que as mesmas estratégias criadas para ajudar crianças podem, em vez disso, apavorá-las mais ainda.

Longe de uma voz amiga o Sr. Ida, aos olhos da protagonista, está mais próximo de um vilão. “Sempre que o Sr. Ida aparecia, Kokoro ficava incrivelmente ansiosa” Tsujimura escreve.  “Ela começava a suar, sentindo como se ela estivesse prestes a sufocar”.

O professor constrange Kokoro a fazer as pazes com Sanada, argumentando que tudo não passa de um mau-entendido. Nas sua opinião, a invasão domiciliar que tanto aterrorizou a protagonista foi uma simples ‘discussão’.

Há uma sugestão – presumida por Kokoro, é verdade – de que Sr. Ida caiu no encanto de Sanada, tal qual todas as outras as meninas da sala. Esse favoritismo ganha toques sinistros porque Ida é descrito como “um jovem” que sorri quando Sanada pergunta se tem namorada.

Os professors estavam sempre do lado de estudantes como Miori Sanada, que se destacavam. Aqueles que falavam com confiança durante a aula, que brincavam com seus amigos no intervalo, os estudantes normais e cheios de energia. Ela desesperadamente queria contar a ele o que elas haviam feito, e vê-lo estupefato, mas ela tinha certeza de que mesmo depois que ele escutasse a história completa, ele ainda ficaria do lado delas. Na verdade, ela sabia disso.

Para aqueles que leram a Voz do Silêncio, em que um professor faz vista grossa ao bullying de seus alunos, esse relato não tem nada de novo. Tarjan acrescenta ainda que a proibição de medidas duras de punição escolar levam muitos docentes ao extremo oposto, tornando-os relutantes em antagonizar seus alunos.

Mas, segundo o pesquisador, a principal causa do futoukou é um problema muito mais sério: uma disciplina escolar estrita e totalitária, que governa a vida das crianças dentro e fora da escola.

Uma ideologia, em outras palavras, que reduz indivíduos a estudantes.

We don’t need no education

No fundo, o problema de Kokoro e seus amigos através do espelho não são as violências que sofrem na escola. Ele vem, sim, da incapacidade de se enxergar como qualquer coisa além de um membro de sua escola.

Estar matriculado no colégio Yushikina No. 5, como o lugar é chamado, é toda a sua identidade. Eles são a escola. De onde que, quando esta mesma escola se prova um inferno, trocá-la por outra não é uma opção. A alternativa ao bullying e ao sofrimento é deixar de existir.

Tojo-san olhou para Kokoro. ‘É apenas escola, no final das contas’.

‘Apenas escola?’

‘Sim.’

A frase rodopiou na sua mente. Ela nunca, de modo algum, havia pensado naquilo daquela maneira.

A escola era tudo para ela, e tanto ir quanto não ir tinha sido excruciante. Ela não podia considerá-la apenas escola.

Ler Kagaki no Kajo como um fã de animes é uma experiência que provoca angústia, quando não uma pontada de culpa. É impressionante o quanto a mídia serve de vitrine para essa concepção tóxica do valor do ser humano.

A escola, nessas séries, não é apenas o espaço que crianças habitam. É o alfa e o ômega de sua existência.

Poucos animes refletem isso de forma mais caricata que Angel Beats, onde o próprio além-vida é representado por uma escola. Nem a morte é o suficiente para libertar os alunos de seu fardo como estudantes – e a “salvação” só é obtida por meio da formatura.

Pensar nisso nesses termos nos faz reavaliar os animes e mangás em que isso não acontece, da misantropia de um Flores do Mal à sexualidade fora de controle de um A Garota da Praia; da fuga física, via trem, dos jovens de The Gods Lie à fuga mental de uma Haruhi Suzumiya.

As personagens de Tsujimura são rebeldes menos apaixonados, mas seu livro é mais radical que qualquer uma dessas obras. Radical porque escancara o castelo solitário em que se refugiam essas crianças – e não tem medo de apontar onde os adultos erraram para que elas se vissem sob cerco.

É uma obra escrita para mudar o mundo. Ou, pelo menos, forçá-lo a olhar para aqueles que escapam por suas frestas.

Considerando seu sucesso editorial, dá para dizer que foi uma missão cumprida.

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