Warning: Use of undefined constant CONCATENATE_SCRIPTS - assumed 'CONCATENATE_SCRIPTS' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/finisgeekis/www/wp-config.php on line 98

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/feed-rss2.php on line 8
Entretenimento – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 18 Jan 2023 20:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Entretenimento – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 4 curiosidades sobre “Pentiment” que você provavelmente não conhecia https://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/ https://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/#respond Wed, 18 Jan 2023 19:56:56 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23223 Nós historiadores somos famosamente chatos. É muito difícil resistir à tentação de criticar um game ambientado no passado, ainda que seja a melhor experiência que já curtimos.

Pentiment é uma exceção. Ambientado na Baviera (atual Alemanha) na época da Reforma Protestante, o último game da Obsidian é o raro game histórico que parece ter acertado todas as notas. Estou para encontrar um colega que não sorria ao falar do esmero que teve em trazer o século XVI à luz do XXI.

Essa atenção teve um preço: algumas de suas referências podem soar bastante obscuras se você não for um fã de história medieval ou moderna.

E não, não estou falando apenas de O Nome da Rosa.

Pentiment, como a história de mistério que seu roteiro tece, vai muito além da superfície.

(Aviso: contém SPOILERS de Pentiment)

1) Martin Bauer é baseado em uma pessoa real

No primeiro ato do jogo, somos introduzidos a um jovem delinquente chamado Martin Bauer. Tão inconsequente quando é boca-suja, Martin, a princípio, serve apenas de red herring para complicar o mistério sobre a morte do Barão. Coisa que o próprio arquidiácono reconhece ao exclui-lo sumariamente da lista de suspeitos.

As coisas mudam a partir do segundo ato. Ao retornar à Tassing sete anos depois, Andreas reencontra Martin, irreconhecível de corpo e personalidade. Amável com sua esposa, afável com os vizinhos e engajado em causas políticas, é um novo homem.

Literalmente, como logo descobrimos.

O novo “Martin”, na verdade, é Jobst Färber, companheiro de crime do delinquente de Tassing que assume sua identidade após a morte do comparsa. Brigita, ex-esposa de Martin, concorda em acobertá-lo em troca de sua vista grossa para seu romance com Verônica. O resto da vila, se percebe o embuste, não vê motivos para a denúncia. “Martin”, afinal, é um sujeito muito melhor do que Martin jamais foi.

Fãs de história medieval (ou de cinema francês) entenderão de pronto a referência. Martin Bauer é baseado em Martin Guerre, um camponês que tentou a mesma fraude na França do século XVI.

Infelizmente para Guerre, ao contrário de seu xará de Tassing, seu truque não funcionou. O verdadeiro Martin não estava morto. Quando retornou para casa, o golpista foi denunciado, julgado e executado.

A singularidade do julgamento garantiu que sobrevivesse na cultura popular. Nos séculos seguintes, seu conto recebeu diversas adaptações. Uma delas, o filme O Retorno de Martin Guerre, é deliberadamente citada na quest de Pentiment (“O Retorno de Martin Bauer”)

Cartaz do filme “O Retorno de Martin Guerre” (1982), com Gérard Depardieu

Em qualquer de suas encarnações, o caso é menos interessante por conta do impostor do que de sua esposa. O episódio é representativo dos poucos caminhos disponíveis com que mulheres contavam para escapar de sua sina – e do risco que sofriam ao trilhá-los.

Lésbica, forçada a se casar ainda adolescente após ter sido engravidada por um bandido, Brigita é uma mulher vivendo no fio de uma navalha. Se estivesse no lugar dela e ajudar um crime pudesse tornar sua vida mais fácil, você aceitaria? Quanto você estaria disposta a sacrificar até que as consequências da mentira caíssem sobre seu colo?

São questionamentos que ressonam até os dias de hoje. Muita coisa mudou desde o século XVI, mas muitas pessoas continuam vivendo em fios de navalha, de toda natureza.

2) Otto Zimmerman não foi o primeiro a causar problemas com uma cabeça de santo

No clímax do jogo, Andreas e Magdalene descobrem que Padre Thomas é o mandante dos assassinatos em Tassing-Kirsau.

O religioso confessa que agiu como agiu para impedir que o segredo da vila viesse à tona: São Moritz e Santa Sátia, padroeiros de Tassing, nunca pisaram na aldeia. Sátia, em particular, pode nunca ter existido.

Na verdade, eles nada mais seriam que representações dos deuses romanos Marte e Diana, que os primeiros cristãos erroneamente interpretaram como imagens divinas.

O twist é a parte do jogo que, como historiador, menos me convence. Santos de origens suspeitas e/ou semelhanças com divindades pagãs existem a rodo na Europa. É realmente plausível que os peregrinos que os veneram há séculos parariam de adorá-los da noite para o dia? Sobretudo quando a abadia possui uma relíquia – portanto, um pedaço do santo?

Padre Thomas acredita que sim, e é isto que importa. Para isto, ele comete uma série de crimes para esconder duas peças de evidência que podem trazer a verdade à tona. A primeira é um velho livro em latim, Historia Tassiae (“A História de Tassing”). Trata-se de uma óbvia referência a O Nome da Rosa, que também envolve assassinatos cometidos para impedir um livro de ser lido – no caso, um volume perdido da Poética de Aristóteles.

Plano do mosteiro fictício onde “O Nome da Rosa” é ambientado. O professor de Bologna a que Andreas se refere é o autor do romance, Umberto Eco (que, na vida real, realmente foi professor da Universidade de Bologna)

A segunda evidência é mais indireta, mas nem por isso menos literária. Otto Zimmerman, o carpinteiro da cidade, encontra por acaso a cabeça da estátua de São Moritz que adorna a vila. O problema: em seu elmo está escrito Mars Pater (“Marte Pai”). Para Thomas, se Otto tornar pública sua descoberta, todos saberão que Moritz nunca pisou em Tassing.

Uma história muito parecida faz parte dos contos de Till Eulenspiegel (em português, também conhecido como Til Malasartes.) Trata-se de uma personagem cômica do folclore alemão, cujo hobby é desafiar autoridades e zombar de convenções sociais.

Em uma de suas estripulias, Till toma um crânio de um cemitério e paga um artesão para que o revista de prata. Então, disfarça-se de padre e anuncia ter encontrado a cabeça de um certo São Brandonus. Por uma pequena contribuição (monetária ou, no caso das mulheres da cidade, sexual) ele permitia que os habitantes da cidade a beijassem.

Ninguém descobre o golpe.

Till Eulenspiegel foi publicado pela primeira vez na década de 1510, exatamente quando se inicia o primeiro ato do jogo. Pentiment não esconde a coincidência: o livro é mencionado logo no primeiro diálogo entre Andreas e Claus Drucker, logo após a morte do barão.

Easter egg adicional: Claus, no livro, é o nome do pai de Till.

Dependendo das escolhas que você fizer para a formação de Magdalene no terceiro ato há uma referência ainda mais explícita a ser encontrada. Conversando sobre santos com Padre Thomas, a jovem tem a chance de confrontá-lo com a história de Till. O religioso então responde que vidas de santo não precisam ser 100% reais para nos inspirar, tal como os contos de Till Eulenspiegel falam sobre verdades a despeito de serem ficção.

Bem hipócrita para um homem que está disposto a matar para esconder a verdade de seu rebanho.

3) Abades também eram senhores – no sentido “feudal” da palavra

Na sua primeira refeição do jogo, acompanhado de Endris e Otto Zimmerman, Andreas descobre que as relações entre Tassing e Kiersau são tensas. Todos os camponeses devem tributo à abadia, que controla a região e seus recursos naturais. Nem todos acham que o imposto é justo.

As coisas pioram no segundo ato. Cansado de ser contrariado por Otto, o Abade Gernot cerra fileiras contra Tassing. Os impostos aumentaram. Os camponeses perdem o acesso à floresta e ao riacho. Num golpe de particular crueldade, ele impede que a população visite a relíquia de São Moritz.

Se você ainda se lembra das aulas de feudalismo na escola, a situação pode ter parecido bizarra. Afinal, aprendemos que havia três ordens na Idade Média: aqueles que lutam, aqueles que oram e aqueles que trabalham. Aos clérigos, cabia rezar. Neste caso, por que raios eles tinham terras e pessoas sob sua autoridade?

Porque, como costuma ser o caso, as coisas na prática eram mais complicadas. No período medieval, mosteiros controlavam pessoas e territórios tanto quanto senhores seculares – com todos os fardos e obrigações que isto implicava. Aliás, abades e senhores muitas vezes vinham das mesmas famílias. Não era incomum que as grandes abadias de um dado reino ou território fossem controladas pelas mesmas dinastias que ocupavam a Coroa.

Como atores importantes no jogo político, também não era surpreendente que abades jogassem sujo para expandir seus territórios. Caso Andreas possua uma educação em direito, Andreas pode descobrir que Kiersau estava tramando para roubar as terras da viúva Ottillia. Pior: por meio de fraude.

Um exemplo muito parecido aconteceu de verdade com a abadia de San Clemente a Casauria, no norte da Itália, no final do século IX. Num espaço de poucos anos, o monastério agressivamente comprou terras vizinhas, até que praticamente todos os habitantes da região se tornassem dependentes da Igreja

Obviamente, a Itália do século IX não era a Baviera do século XVI. Manobras como as de Casauria eram mais fáceis de se orquestrar no passado porque a paisagem política e econômica da região ainda estava para se consolidar. Com o passar dos séculos, tomar terras passou a ser complicado, pois implicava em competir diretamente com os interesses de outras abadias ou senhorios. De onde a decisão do Abade Gernot em mirar justamente no elo mais vulnerável: viúva, idosa e malquista em Tassing, Ottilla é a vítima perfeita.

4) A caça às bruxas foi um fenômeno moderno, não medieval

Dependendo de nossas escolhas ao longo de Pentiment, podemos nos deparar com a revelação de que Vacslav e Ursula queimaram na fogueira após os eventos da história. Ele, por advogar ideias heréticas sobre o livro do Gênese; ela, por adorar os Deuses Antigos do passado pagão.

Se você está acostumado a escutar que a Idade Média foi a Idade das Trevas, em que indivíduos (sobretudo mulheres) eram queimados a rodo por todo tipo de infração espiritual, talvez o timing da execução possa ter lhe parecido estranho.

Afinal, estamos diante de uma história que se passa justamente na passagem da Idade Média para o que entendemos por modernidade. Por que Ursula e Vacslav foram queimados justo agora, sendo que durante as décadas que a história cobre os camponeses de Tassing tiveram total liberdade para invocar Perchta e misturar ideias cristãs com costumes pagãos?

Com o advento da impressora, alfabetização popular e demandas por liberdade religiosa, não seria mais intuitivo que o mundo ficasse mais liberal e menos persecutório com o passar das décadas)?

Por incrível que pareça, não. Embora caças às bruxas tenham sido associadas à Idade Média, elas foram um fenômeno quase que exclusivamente moderno. No que é hoje sul da Alemanha, região retratada em Pentiment, alguns dos maiores processos aconteceram poucas décadas depois dos eventos do jogo. Os processos de Salem, possivelmente os mais famosos do mundo, foram realizados ainda depois, entre 1692 e 93

Imagem do livro “The history of witches and wizards, publicado em 1720

Olhando essas datas, dá para entender por que a modernidade achou melhor condenar seus crimes às fogueiras do passado. A ideia de que a mesma época que nos legou René Descartes e Isaac Newton produziu episódios de intolerância e fanatismo religioso é desconfortável.  Muito mais fácil é alimentar a ilusão de que o obscurantismo é uma velha superstição que estamos a caminho de extinguir.

Essa ingenuidade, porém, teve efeitos sérios que perduram até os dias de hoje. Ainda hoje, continuamos incapaz de aceitar que atos de extremismo, negacionismo ou terrorismo não são exceções remanescentes do passado, mas parte do que somos: pecados da época contemporânea, não de uma “era medieval”.

Empenhados em recusar responsabilidade sobre tudo o que sofremos, não fazemos a pergunta mais importante: até que ponto os pesadelos dos dias de hoje – disparos em massa de discursos de ódio, fim de empregos por conta de IAs, ataques à democracia liberal – não são subprodutos de nosso próprio movimento de progresso?

Se nada mais, ao ambientar deliberadamente sua história em uma época de transição ideológica e cultural, Pentiment nos mostra que não é a primeira vez que a humanidade se depara com essa questão. E, tal como o foi na época da Reforma Protestante, não é o tipo de  questão que podemos ignorar.

Como Pentiment e outros RPGs nos ensinam, ações têm consequências. Sua ausência também.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/feed/ 0 23223
“Os Triunfos de Tarlac” dev diary #9: a arte do jogo https://www.finisgeekis.com/2022/07/01/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-9-a-arte-do-jogo/ https://www.finisgeekis.com/2022/07/01/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-9-a-arte-do-jogo/#comments Fri, 01 Jul 2022 20:48:10 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23159

Fidelidade histórica em jogos é um dos pontos mais discutidos por entusiastas na disciplina – Embora, como defendi em outra ocasião, não necessariamente o mais importante. Para nós, historiadores, representar adequadamente coisas como sistemas políticos, mentalidades e transformações de longo prazo costuma ser mais importante do que saber que tipo de fivela de cinto ou rei ou príncipe usava.

Isso não significa que se preocupar com a representação de armas, roupas e edifícios em jogos históricos não seja importante. Para certos jogos – como os arqueogames – reconstituir elementos da cultura material é um objetivo de primeira ordem. Mesmo para jogos mais abstratos, como o nosso, é uma oportunidade de apresentar a leigos reconstituições do passado que fogem dos chavões comumente associados à era medieval.

Embora Os Triunfos de Tarlac seja um jogo bastante abstrato, nos esforçamos para desafiar esses clichês dentro dos limites que nosso material permitia.

Fichas de batalha

Dois clichés específicos de que queríamos distância diziam respeito à indumentária dos guerreiros – de longe, um dos aspectos da Idade Média mais fetichizados pela mídia. O primeiro era a imagem de soldados vestindo armaduras lustrosas feitas de placas de aço. Embora tenham se tornado um ícone de Idade Média, este tipo de equipamento é mais recente que as primeiras armas de fogo e só se popularizou de verdade no fim do século XV e no século XVI – para efeitos de comparação, na mesma época em que os europeus começaram colonizar a América.

O segundo cliché diz respeito aos irlandeses. Na cultura pop, habitantes da Irlanda e Escócia frequentemente são retratados como bárbaros que marchavam para a guerra nus e pintados de azul. Como escreveu uma importante historiadora do século XX – hoje devidamente criticada – é como se não houvesse diferença entre a Irlanda conquistada pelos ingleses e a Gália na época de César.

Há um motivo para o tropo: além das razões políticas relacionadas ao imperialismo britânico, é muito difícil obter informações sobre como os guerreiros da época de Tarlac realmente eram. Isso não é tanto um problema em relação aos ingleses, sobre cujos guerreiros existem bastantes fontes iconográficas e também arqueológicas – ex. figuras em manuscritos, selos, efígies funerárias e armas e armaduras que sobreviveram ao teste dos tempos.

Selo de Gilbert de Clare, um dos antepassados dos de Clare de Thomond. Data: c. 1218-30

Porém, a situação é diferente em relação aos irlandeses. Embora tenhamos fontes visuais sobre o período anterior à conquista inglesa (século XII) e sobre o início da era moderna (séculos XV a XVII), contamos com pouquíssimas evidências sobre o intervalo entre essas épocas.

Dessa maneira, não tivemos escolha senão expandir nosso leque temporal e incorporar fontes visuais mais distantes. Na medida do possível, esse material foi comparado a descrições narrativas tiradas da saga Os Triunfos de Tarlac. Em outros casos, contudo, tivemos de utilizar nossa imaginação.

Para evitar cair no clichê de uma Irlanda bárbara, decidi como critério de “desempate” que, na ausência de informações, basearíamos nossas personagens em armas e armaduras de um período posterior (sécs. XV-XVII), não anterior. Nosso exército gaélico, portanto, é provavelmente mais “moderno” que os soldados que marcharam contra os ingleses liderados por Tarlac Ó Briain, embora nem tão modernos a ponto de se confundir com os paladinos em armaduras brilhantes que viriam dominar os campos de batalha da Renascença.

Ficha de batalha (versão inglesa)
Ficha de batalha (versão irlandesa)

O primeiro detalhe que salta aos olhos quando comparamos as duas fichas é o quão similares seus guerreiros são. Isto foi proposital. Exércitos na Irlanda eram, por necessidade, multiculturais: tanto ingleses quanto irlandeses contavam com soldados e mercenários provenientes de outras culturas. Nossa ilustração buscou atentar para esse fato, retratando soldados que bem poderiam se confundir no calor da batalha – algo que historicamente ocorria.

Fichas de devastação/destruição

A ficha de devastação se tornou a imagem mais icônica do nosso jogo. Foi ela que escolhemos para a capa do manual e todo o material de divulgação.

Aqui, todo o mérito pertence ao nosso artista, Vinícius Veneziani. Meu único briefing havia sido que as fichas deveriam incluir um assentamento – possivelmente um mosteiro – sendo saqueado.

Veneziani escolheu não um mosteiro qualquer, mas a Abadia de Clare, o exato lugar onde a saga que inspirou o jogo foi escrita. Ele também incluiu o Castelo de Bunratty – capital inglesa no reino de Thomond – e o antigo Castelo de Quin – outra importante fortaleza inglesa, hoje destruída.

A imagem não é exatamente fidedigna: na vida real, esses três lugares estão há dezenas de quilômetros de distância um do outro. Porém, inclui-los no mesmo quadro dá à imagem uma importância simbólica. Ele concentra três dos assentamentos mais importantes pertencentes às duas linhagens-chave do conflito: os Uí Bhriain e os de Clare.

Um detalhe curioso: os animais retratados nessa ficha são vacas Kerry. Trata-se de uma das raças contemporâneas de gado que mais se assemelham às vacas criadas na Irlanda na época de Tarlac.

A mesma vaca também aparece na nossa ficha de gado – que inclui, como easter egg, um auto-retrato do nosso artista (à direita)!

O Tabuleiro

Se a ficha de devastação se tornou o cartão de visitas do jogo, o tabuleiro é o elemento que mais recebe atenção dos próprios jogadores. É ao redor dele, afinal de contas, que passarão horas a fio durante suas partidas.

Nós sabíamos que ele precisava ficar não apenas funcional, mas bonito – de preferência, impressionante.

A tarefa ficou a cargo de outro de nossos artistas, Gabriel Cordeiro – que também se encarregou de colorir as fichas desenhas por Vinícius. Para tanto, ele se inspirou no Mapa Gough: uma obra cartográfica de meados do século XIV que representa a Irlanda e Inglaterra.

Detalhe do mapa Gough
Detalhe do tabuleiro de Os Triunfos de Tarlac

Os castelos são baseados em Bunratty, mesma fortaleza inglesa retratada na nossa ficha de devastação. Os longphoirt (assentamentos irlandeses), por outro lado, foram inspirados nos ráthanna e cathracha: tipos de residência circulares populares entre famílias gaélicas.

Aqui, fomos também obrigados a fazer concessões. Ráthanna e cathracha não foram os únicos tipos de fortaleza construídas por irlandeses na época em que o jogo se passa. Os Triunfos de Tarlac inclusive sugerem, em uma passagem, que Clonroad, residência principal dos Uí Bhriain, possuía muralhas e defesas de pedra. Teria ela sido, na vida real, mais parecida a um castelo que a um ráth?

Infelizmente, não sabemos. Boa parte dos assentamentos dessa época foram eventualmente abandonados. Em muitos casos, sequer sabemos seus nomes – ou mesmo sua localização exata! O que de fato sabemos é que pelo menos algumas das residências irlandesas da época seguiam esse modelo – por exemplo, Caherballykinvarga, no antigo reino de Corcamruad. E foi nelas que baseados o design do jogo.

Se esse processo criativo nos ensinou alguma coisa, foi que fidelidade histórica é importante, mas deve ser encarada como um horizonte, não como um requisito. É impossível fazer um jogo que seja uma fotografia perfeita do passado. Não temos informações suficientes (e, mesmo que tivéssemos, quem segura a câmera sempre afeta o resultado da imagem).

Certas escolhas artísticas podem nos ajudar a lidar com nossas lacunas de saber. No contexto do nosso jogo, o traço cartunesco de Vinícius Veneziani e as cores fortes de Gabriel Cordeiro deram à sua identidade visual um aspecto irreverente, que gera menos expectativas que um trabalho fotorrealista. Com sorte, ela também servirá de antídoto à densidade de suas regras, contribuindo para fazer de Tarlac um jogo mais acessível.

O fim da jornada

Esse é o último diário de desenvolvimento de Os Triunfos de Tarlac. Após mais de dois anos de desenvolvimento, nosso jogo finalmente terá seu lançamento oficial!

Espero que você tenha curtido acompanhar nossa jornada até aqui!

O material do jogo está disponível para download nesse endereço, em formato print & play.Planejamos também lançar uma versão digital nos próximos meses, que será incluída nessa mesma página.

Boa jogatina! Que suas campanhas na Irlanda da época de Tarlac também sejam um triunfo!

 

Historical accuracy in games is one of the most talked about topics among history enthusiasts– although, as I argued elsewhere, not necessarily the most important one. For us, historians, to adequately represent things like political systems, mentalities and long-term transformations is usually more relevant than to know which type of belt buckle a given king or prince used.

This does not mean paying attention to the representation of weapons, clothing and buildings in historical games is unimportant. For some – like archaeogames – recreating certain features of a material culture might be a first order priority. Efforts towards this goal can also be an opportunity to introduce laypersons to recreations of the past that challenge tropes often associated with the medieval era.

Although The Triumphs of Turlough is a very abstract game, we did our best to confront these clichés within the limits of our material.

Battle tokens

Two specific tropes we wanted to avoid at all costs concern the equipment worn by warriors – by far one of the most fetichized aspects of the Middle Ages. The first is the image of soldiers clad in shining plate armor. Iconic as it may be, this type of personal protection is actually more recent than the first firearms and only became truly widespread in the late 15th and 16th centuries – for effects of comparison, around the same time Europeans started to colonize the Americas.

The second trope concerned the Gaelic Irish. In popular culture, the Irish and Scottish from this period are often portrayed as barbarians that marched to war naked and/or painted with woad. As a famous 20th century historian – now duly criticized – once wrote, it was as if there was no difference between Ireland in the time of the English conquest and Gaul during the campaigns of Caesar.

There is a reason why this trope is so popular. In addition to political factors harking back to the centuries of British imperialism, it is very hard to obtain information about what warriors in the time of Turlough actually looked like. This is not so much an issue in relation to the English, about whom there are plenty of sources – e.g. figures in manuscripts, seals, effigies, and surviving arms and armour.

Seal of Gilbert de Clare, an ancestor of the de Clares de Thomond. c. 1218-30

However, the situation is different in relation to the Irish. Although we have some visual sources from the period before the English conquest (12th c.) and from the Early Modern period (15th – 17th c.), there is preciously little evidence from the interval between these eras.

To address this gap, we had no choice to broaden our scope and include visual sources from other centuries. Whenever possible, this material was compared to descriptions of military equipment from the saga-text The Triumphs of Turlough. In other cases, however, we were forced to use our imagination.

To avoid falling into the cliché of a barbaric Ireland, I decided that, in the case of absence of data, we would base our artwork in arms and armour from a later period (15th – 17th c.). Our Gaelic army, therefore, is probably more “modern” than the soldiers that marched under Turlough O’Brien, although not modern enough to be taken for the paladins in shining armour that would dominate battlefields during the Renaissance.

Battle token (English version)
Battle token (Irish version)

The first thing one notices when comparing both tokens is how similar they are. This was intentional. Armies in Ireland were mixed by necessity: both the English and the Irish recruited soldiers and mercenaries from different cultures. Our artwork tried to account to that fact, portraying warriors that could well struggle to identify friends and foes in the heat of battle – something that historically happened.

Devastation/destruction tokens

The devastation token became the most iconic image of our game. It was the image we chose for the rulebook cover and all our promotional material.

Here, all the credit belongs to our artist Vinícius Veneziani. The only guideline I gave him during briefing was to include a settlement (possibly a monastery) being raided.

Veneziani chose not just any monastery, but Clare Abbey, the exact place where the saga that inspided the game was written. He also included Bunratty castle – the English capital in Thomond – and the old castle at Quin – another important stronghold, which was later dismantled.

The image is not quite true to life: in reality, these three places are located several kilometers apart from one another. However, including them in a single picture provides the token with symbolic meaning. It features three of the most importante settlements belonging to the main lineages involved in the conflict: the Uí Bhriain and the de Clare.

An interesting detail: the animals in this token are modeled after the Kerry cow, one of the contemporary breeds that resembles the most the cattle reared in the time of Turlough.  

The same cow is featured in our cattle token – along with a self-portrait of our artist (on the right)!

The game board

If the devastation token became our game’s greeting card, the board is the element that receives the most attention from players. It is around it, after all, that they will spend countless hours during matches.

We knew it needed not only to be functional, but also pretty – even better, it should be impressive.

The task fell on another of our artists, Gabriel Cordeiro (who also colored the tokens drawn by Vinícius Veneziani). To that end, he took inspiration from the Gough Map, a mid-14th c. cartographic source that features Ireland and Britain.

Detail from the Gough map
Detail from The Triumphs of Turlough game board

The castles are based on Bunratty, the same English stronghold from our devastation token. The longphoirt (Irish settlements), on the Other hand, were inspired by raths and cahers: circular holdings popular among Gaelic families of the time.

Here, we had again to make some concessions. Raths and cahers were not the only types of settlement built by the Irish in the period the game is set. The saga The Triumphs of Turlough even mentions, in one passage, that Clonroad, head place of the Uí Bhriain, had walls and fortifications made of stone. Is it possible that it resembled a castle more than a rath?

Unfortunately, we don’t know. Most settlements from this period were eventually abandoned. In many cases, we don’t even know their names – or even their exact location! What we do know is that at least some of the Irish longphoirt resembled raths or cahers – for example, Caherballykinvarga in the kingdom of Corcomroe. It was on these settlements that we based our design for the game.

If this creative process taught us anything, is that historical accuracy is important, but it should be pursued as a horizon, never as a requisite. It is impossible to make a game that is a perfect photograph of the past. We don’t have enough data (and, even if we did, the person holding the camera always affects the result).

Certain artistic choices can help us deal with knowledge gaps. In the context of our game, the Vinícius Veneziani’s cartoonish style and Gabriel Cordeiro’s bold colours brought some irreverence to its visual identity, granting the game a leeway in regards to detail it would not have enjoyed if we had pursued strict realism. With luck, this art style will also act as an antidote to the density of Turlough’s rules, making it more accessible to a larger audience.

The end of the journey

I hope you enjoyed following our journey so far!

This is the last dev diary for The Triumphs of Turlough. After more than two years of development, we will be having our official launch on August 15th.

The print & play game material can be downloaded here. We are also planned a digital version in the coming months, that will also be available at this same address.

Have a good game! And may your campaigns in Ireland in the time of Turlough also be a triumph!

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/07/01/os-triunfos-de-tarlac-dev-diary-9-a-arte-do-jogo/feed/ 2 23159
“Drive My Car”: para que serve uma adaptação? https://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/ https://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/#respond Wed, 16 Mar 2022 21:41:48 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23121 Adaptações têm uma fama ambígua no mundo do cinema. Se é verdade que livros e filmes flertam um com o outro desde os primórdios da sétima arte, poucas opiniões são mais repetidas que a máxima “o livro é melhor”.

Quando soube que o conto Drive My Car de Haruki Murakami havia sido adaptado ao cinema, contive meu entusiasmo. Embora Murakami seja o escritor japonês mais popular da atualidade, adaptações de suas obras foram, até hoje… menos que ótimas, para dizer o mínimo. Saber que o novo filme possuía quase três horas pouco fez para aliviar minha desconfiança. Roteiristas frequentemente patinam para adaptar romances a uma história deste tamanho. O que seria de um conto de menos de 40 páginas?

Como quem assistiu Drive My Car sabe, a resposta é um primor do cinema japonês contemporâneo.

Mas comentar por que o filme de Ryusuke Hamaguchi conseguiu acertar em cheio é apenas pretexto para uma discussão mais importante: talvez esteja na hora de repensarmos na nossa relação com as adaptações.

Qual é, afinal de contas, o sentido de contar de novo uma história que já foi escrita?

E o que, exatamente, torna uma adaptação ‘bem’ ou ‘mal’ sucedida?

Drive My Car em palavras…

Capa original do livro “Homens sem Mulheres”

Se o filme de Hamaguchi é qualquer indicativo, a primeira escolha começa antes mesmo que as filmagens. Drive My Car, o conto, é um excelente material para adaptações.

Haruki Murakami é conhecido por seu realismo fantástico e por um estilo intuitivo, quase anárquico de escrita. O escritor já afirmou diversas vezes que não é um “contador”, e sim “observador de histórias”: simplesmente registrando as ideias que saem de sua cabeça. Boa sorte para adaptar um livro destes a um roteiro – mais ainda para fazê-lo funcionar em movimento.

Para complicar as coisas, Homens sem Mulheres, coletânea a que Drive My Car pertence, está longe de seu melhor trabalho. Suas histórias, em grande parte, giram em tornos de homens desprezíveis que insistem em atribuir às mulheres a culpa de suas mágoas. Há mais autocomiseração e misoginia em suas páginas que frases bem construídas. Pelo contrário, alguns períodos, como “todas as mulheres nascem com um órgão especial, independente que lhes permite mentir”, nos fazem perguntar o que passou pela cabeça do editor ao publicá-las.

Drive My Car é uma exceção às duas regras. O conto não apenas demonstra um controle da linguagem de que suas obras posteriores parecem ter perdido, como esbanja uma empatia que falta a seus colegas de coletânea. Seu protagonista é, de fato, um “homem sem mulher” – mas quem é essa mulher e o real significado de sua ausência são questões nada óbvias que nos acompanham pelo conto inteiro – e que o final, em aberto, pouco se esforça para elucidar.

O homem em questão é Kafuku, ator veterano de teatro. Sua esposa (Oto no filme, sem nome no conto) é uma companheira perfeita e colega de trabalho, que grava os diálogos de sua peça para que estude no carro enquanto dirige. Ela também o trai. Serialmente. Com múltiplos homens.

Dividido entre a estabilidade conjugal e um acerto de contas que sem dúvida a destruiria, Kafuku opta pela inação. Em tempo, nenhuma outra escolha lhe será possível. Sua esposa morre (de câncer fulminante no conto, de uma doença súbita não declarada no filme). A dúvida, o choque, e os assuntos inacabados corroem o que resta do homem que um dia foi.

Não é difícil simpatizar com Kafuku. Embora seja a personagem ponto de vista, o ator parece viver pelo mote de outra personagem de Murakami, que certa vez disse que “apenas escrotos sentem pena de si mesmos”.  O conto é quase que inteiramente contado do banco de trás de seu Saab 900, em conversas com Misaki, motorista contratada pelo teatro depois que um diagnóstico de glaucoma o impossibilita de dirigir.

É Misaki que, em dado momento, lhe dispara uma Pergunta-Gretchen – “Por que você não tem amigos?” – depois da qual Kafuku se abre como uma rede esgarçada por toneladas de pensamentos vergonhosos.

… e em imagens

E é aqui que as semelhanças do filme com seu material de origem acabam.

Em seu longa, Hamaguchi força Kafuku para fora de seu Saab com a mesma violência da pergunta de Misaki. Sua esposa, antes uma recordação mal digerida, ganha um nome. Flashbacks da traição nos mostram os detalhes que o protagonista do conto reluta até em imaginar.

Enquanto que Murakami apenas nos informa que Kafuku estava ensaiando a peça Tio Vânia de Tchekov, Hamaguchi transforma sua montagem em uma história dentro da história, praticamente nos forçando a enxergar os paralelos entre uma obra e outra.

Em mãos menos habilidosas, a inclusão de toda essa bagagem extra afundaria a história mais rapidamente do que levaríamos para dizer que “o livro era melhor!”.  Mas há duas características do filme de Hamaguchi que o põe em um caminho diferente.

Em primeiro lugar, a despeito de todos os desvios, ambas as obras chegam ao mesmo lugar.

Kafuku, descobrimos no conto, é um homem sem mulheres, no plural. Muito antes de descobrir a traição, seu casamento foi abalado com a morte precoce de sua filha. Murakami nunca soletra o paralelo, mas é possível deduzir que, como Molly e Leopold Bloom de Ulisses, foi a morte da criança que colocou Kafuku e sua esposa em uma crise que apenas os braços de terceiros podia aliviar.

E Misaki, sua motorista, é uma mulher sem homem. Especificamente, uma mulher da idade de sua filha, consternada pela ausência de uma figura paterna. É da aproximação entre os dois, mais do que a traição que sofreu, que o conto verdadeiramente trata.

O filme de Hamaguchi subverte essa prioridade, afogando o relacionamento de Misaki e Kafuku sob o peso de quase três horas de tramas paralelas. Até mesmo o amante de sua esposa (no conto, apenas um de muitos) ganha um holofote para chamar de seu – junto com um arco pessoal que envolve suas ambições como ator e até mesmo um passado criminoso.

Mas Misaki e Kafuku ainda assim se encontram e abrem-se um para outro e percebem que são peças de um mesmo quebra-cabeças, ainda que tão maltratado pelos anos que dificilmente pode ser montado.

“Isso é tudo o que fazemos” disse, certa vez, outra personagem de Murakami, “tomamos infinitamente o caminho mais comprido”. Drive My Car, o filme, vive por esta máxima.

Em segundo lugar, mesmo o conteúdo original de Hamaguchi parece misteriosamente Murakamiano.

A traição de sua esposa, no conto apenas mencionada, ganha no longa uma cena de sexo ao som do Rondó K.485 de Mozart– tocado de um disco de vinil, ainda por cima. Leitores veteranos do autor reconhecerão de pronto o apreço de Murakami por música clássica – e por cenas eróticas (segundo seus críticos) mais tristes que prazerosas de se ler.

Se originalmente uma tomboy nas linhas de Kaoru, a durosa dona de um motel e Após o Anoitecer, a Misaki do filme mais se aproxima de uma contraparte jovem de Reiko, ex-pianista de Norwegian Wood que aconselha o protagonista Toru à luz dos sofrimentos de seu próprio passado.

O longa, de fato, parece quase uma releitura de Norwegian Wood, com jovens universitários com as emoções à flor da pele trocados por adultos de meia-idade. Mesmo as digressões mais originais de Hamaguchi – as cenas e mais cenas sobre o processo de criação de Kafuku, a subtrama sobre uma atriz surda-muda – lembram o enredo livre de seu romance de 1987, que acompanhar suas personagens sem a mordaça de um Kishotenketsu ou uma estrutura em três atos.

É possível imaginar um mundo paralelo em que Muramaki em pessoa tivesse concebido cada um desses detalhes. Provavelmente, enquanto escutava o Rondó K.485. Ou corria pela manhã.

Um ponto de partida… para a própria obra

Nada disso desmerece o trabalho de Hamaguchi e Takamasa Oe, que coassina o roteiro. Pelo contrário, suas escolhas mostram que seu filme possui algo cada vez mais raro no campo do entretenimento. Um propósito.

Hoje em dia, gastamos tanta energia debatendo se uma adaptação é ou não boa que raramente nos perguntamos para que serve uma adaptação.

Qual é o propósito de reescrever uma história que já existe? Para que revisitar conflitos, plot twists e retratos conhecidos de antemão?

Hamaguchi e Oe têm uma resposta: ela é apenas um ponto de partida – não, necessariamente, para novas ideias, ao menos não como um fim em sim, mas para fisgar aquelas escondidas no próprio texto; não para negar ou substituir a obra, mas para torná-la mais a obra que é.

Leiam comigo as últimas linhas do conto:

— Eu vou dormir um pouco – disse Kafuku.

Misaki não respondeu. Ela estudou quietamente a estrada. Kafuku estava grato pelo seu silêncio.

Quando Misaki aparece na última cena do filme de Hamaguchi, ela também estuda quietamente a estrada. Ela não está na companhia de Kafuku, dirigindo-o a mais uma peça. Não está mais sequer no Japão. Hamaguchi não nos explica o que faz na Coreia ou porque dirige o carro que pertencera ao ator.

Mas nós, como ele, somos gratos pelo seu silêncio.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/03/16/drive-my-car-para-que-serve-uma-adaptacao/feed/ 0 23121
“People From My Neighbourhood”: imaginação em estado bruto https://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/ https://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/#respond Wed, 23 Feb 2022 21:41:43 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23113 Era, como diria Vinícius, um prédio muito engraçado. Famílias com exatamente seis pessoas ocupavam todos os apartamentos.

Aqui e ali, coisas estranhas começam a acontecer. Um homem cuja barba cresce mais rápido do que é capaz de cortá-la. Uma pessoa cujas bolha no pé viraram mini lagoas – com girinos e tudo.

“É coisa do Demônio” explica uma vizinha de outro prédio. Seis, afinal de contas, é o número da besta.

As pessoas da cidade começam a evitar o prédio. Isolados do mundo, seus moradores criam sua própria rotina, depois seu próprio banco central e moeda. Com o tempo, decretam independência e criam suas próprias forças armadas. Na Baía de Tóquio, é possível vê-los em exercícios conjuntos com a Marinha Japonesa.

Se a história acima a fez perguntar o que diabos acabou de ler, não está sozinha. A historinha vem de um dos contos de People From My Neighbourhood da escritora Hiromi Kawakami.

No papel, o livro é um compilado de microficção sobre os habitantes de um subúrbio de Tóquio. Na prática, é um álbum de retratos tão repleto de realismo fantástico, absurdo, metáforas e humor que parece feito sob medida para fritar nossas sinapses.

Esse não é um livro escrito com palavras, mas com imaginação em estado bruto.

As pessoas do meu bairro

Não olhe muito a fundo. Apenas curta o momento.

Esse é o sentimento que a protagonista sem nome de People From my Neighbourhood parece evocar.

Em sua voz, leitores veteranos de Kawakami reconhecerão de pronto o bom-humor de Quinquilharias Nakano, seu romance sobre funcionários de uma descontraída loja de antiguidades. Em certas histórias, o paralelo mais forte é com Parada, conto sobre crianças que se descobrem acompanhadas por seres da mitologia japonesa.

Porém, se Nakano mantém dos dois pés no campo do realismo e o segundo se insere na tradição do folclore, People From My Neighbourhood é uma obra orgulhosamente mais caótica.

Seus capítulos não são exatamente “contos” mais do que descrições de vizinhos de um bairro fictício – e dos eventos, muitas vezes absurdos, que protagonizam. Um adolescente que só é capaz de pronunciar três frases – “Devo assinar aqui?”, “A conta final, por favor” e “Está chovendo forte hoje” – e ocupa um banco no parque como se fosse seu escritório. Vovô Sombras, assim chamado por possuir duas sombras: uma em constante pé de guerra com a outra. Hachiro, garoto-problema abandonado pela família cuja custódia, entre os moradores, é determinada por uma loteria. A dona de uma decrépita casa noturna chamada Love, que passa noite após noite cantando a mesma música no karaokê. Nenhum cliente jamais agracia seu estabelecimento. Ninguém sabe como paga suas contas.

Personagens já apresentadas reaparecem em contos futuros, não necessariamente, do mesmo jeito ou no mesmo momento de suas vidas. A narradora sem nome migra sem cerimônia do passado ao presente e futuro. Muitas vezes, com tão pouco apreço à ordem que suspeitamos se tudo não passa de uma “trollagem”. Apenas Kawakami é capaz de escrever sobre uma doença que transforma todos em pombos – com sequelas irreversíveis –  e retornar ao status quo para o início de outro capítulo.

Nesse sentido, seu livro se aproxima do espírito de Shinya Shokudou (Midnight Diner), mangá de Yarou Abe sobre as histórias – às vezes maravilhosas ou sobrenaturais – de clientes de um boteco da madrugada. No caso de People From My Neighbourhood, bem mais do que “às vezes”.

Cena da adaptação às telas de Shynia Shokudou

Ao contrário de Shokudou, a obra de Kawakami tem os dois pés e alguns tentáculos no campo do realismo fantástico. Há um taxista que leva fantasmas para passear depois do expediente. “Mulheres são mulheres” ele protesta “Sempre é divertido tê-las por perto, mesmo se elas forem meio translúcidas e não tiverem pernas”.

Há uma garota que encontra uma criatura fedida em uma excursão escolar, cria-a até assumir a forma de um homem e a usa para sessões intermináveis de sexo. Quando seu companheiro insaciável começa a traí-la com outras mulheres, ela não consegue encontrar energias para se importar: “afinal de contas, ele não era uma pessoa real, apenas uma coisa estranha.”

Em certas histórias, é difícil escapar à impressão de que o livro de Kawakami é uma coleção de retratos de uma humanidade reduzida ao absurdo. Seus contos começam esquisitos, às vezes absurdos, então progridem a um nível de nonsense que viola qualquer suspensão de descrença.

Em um dos contos, por exemplo, duas crianças olham para uma estátua de bronze e decidem que também gostariam de ser homenageadas desta maneira. Tempos depois, elas declaram guerra ao Estado pelo direito de terem seu próprio monumento. A revolução é derrotada meses depois, e as crianças voltam para casa dramaticamente transformadas: uma tingira o cabelo de vermelho; outra aprendera a tocar trompete.

É o tipo de humor que esperamos do Flying Circus de Monty Python mais do que da autora de A Valise do Professor.

Mas Kawakami é menos consistentemente engraçada que a trupe britânica, e se permite, vez ou outra, nos derrubar com a rasteira de um arroubo de emoção. A linha que separa o fantástico do esquisito é fina – fina demais, muitas vezes, para que enxerguemos a diferença. Se alguma pessoa consegue sobreviver às 120 e poucas páginas de seu livro sem se lembrar de algum ex-morador ou indigente de seu próprio bairro, ela provavelmente não tem coração.

No Japão contemporâneo, realismo fantástico esteve por muito tempo atrelado ao sucesso sem paralelos de Haruki Murakami. People From My Neighbourhood se distancia da atmosfera onírica e urbana de seus romances, mas tampouco se confunde à prosa sóbria, melancólica de Yoko Ogawa; à sátira perturbadora de Sayaka Murata, muito menos à tradição latino-americana do realismo mágico. É um livro difícil de descrever, mais ainda de compreende, se é que “compreensível” é sequer um verbo compatível com sua irreverência. É, porém, uma obra que não deixa de nos surpreender da primeira à última frase.

O que mais um leitor poderia querer?

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/02/23/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto/feed/ 0 23113
“Le Sommet des Dieux”: a obsessão humana é sua própria montanha https://www.finisgeekis.com/2021/12/22/le-sommet-des-dieux-a-obsessao-humana-e-sua-propria-montanha/ https://www.finisgeekis.com/2021/12/22/le-sommet-des-dieux-a-obsessao-humana-e-sua-propria-montanha/#respond Wed, 22 Dec 2021 20:39:57 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23079 Eu era criança quando chegou às livrarias No Ar Rarefeito, relato do jornalista Jon Krakauer sobre o desastre do Monte Evereste de 1996.  Graças, entre outras coisas, a um número excessivo de alpinistas pouco treinados, a temporada de escaladas resultou em uma tragédia. Doze pessoas morreram. 

Na época, não tinha idade, nem interesse, para ler o testemunho de Krakauer, um dos sobreviventes da dita temporada. Mas acompanhei os acontecimentos por meio do meu pai, que escolheu o livro do jornalista como leitura de férias e o terminou com a palidez de quem sobrevive a uma avalanche. “Se fosse hoje, eu não o leria” ele me disse anos depois, ainda chocado com seu conteúdo. 

De todos os detalhes horripilantes que compartilhou comigo, o que ficou em minha mente foi o de Beck Weathers, sobrevivente que voltou para casa sem as mãos, pés e nariz. 

A imagem de um alpinista semicongelado, sem nariz, habitou meus pesadelos por semanas à fio. 

Por conta disso, alpinismo sempre me pareceu um esporte mais sinistro que heroico; uma compulsão perigosa mais do que a empreitada romântica de humanos desafiando a natureza. 

É um bom mindset com que encarar Le Sommet des Dieux, animação de Patrick Imbert baseada no mangá de Jiro Taniguchi.

O cume dos deuses

É o tipo de coisa que jamais adivinharia dos trailers, mas Le Sommet des Dieux tem mais em comum com Cidadão Kane que com um filme tradicional de escalada.  

Suas primeiras cenas nos apresentam a Fukumachi, um fotógrafo enviado ao Evereste para cobrir a temporada de alpinismo. Ao escutar que trabalha em uma revista, um sujeito lhe oferece uma câmera antiga. Segundo ele, ela teria pertencido a George Mallory, alpinista britânico que desapareceu na montanha em 1924. 

A relíquia é mais do que uma simples curiosidade. Diz a história oficial que o Evereste foi escalado pela primeira vez por Edmund Hillary e Tenzing Norgay em 1953. Mas e se Mallory, antes de desaparecer, tivesse alçado o cume e fotografado a conquista? Estas fotos, se reveladas, reescreveriam a história do alpinismo. 

Fukumachi se recusa a comprar a câmera, tomando-a por uma fraude. Algo, porém, o faz mudar de ideia. Logo depois de receber sua negativa, o sujeito que a vendeu é confrontado por outro alpinista, que o acusa de lhe ter roubado a máquina. Para a surpresa de Fukumachi, ele é ninguém menos que Habu Jôji, lendário escalador japonês que desapareceu da sociedade anos atrás. 

Fukumachi pede a licença de seu editor para ir atrás de Habu – em teoria, ao menos, para recuperar a câmera de Mallory. Porém, quanto mais retraça os passos do famoso alpinista, mais a ambição de reconstituir a vida deste homem se transforma em um fim em si. 

Habu não é Charles Foster Kane, mas as migalhas de sua vida, examinadas por Fukumachi por meio de reportagens antigas, vídeos e conversas com antigos conhecidos, parecem arrancadas do filme clássico de Orson Welles.  

Ele era genial, mas irascível. Todos que cruzaram seu caminho terminaram mortos, traumatizados ou enfurecidos. “Para Habu, nós éramos apenas um degrau para que ele escalasse montanhas cada vez mais altas”, confessa um ex-parceiro. 

Em um flashback no início do filme, ele abandona uma confraternização entre colegas de seu clube de montanhismo. Do lado de fora, é interpelado por um desconhecido que lhe pede dicas de escalada. Habu atende seu pedido – por horas a fio, sem sequer se preocupar em procurar um assento.  

Somos lembrados da atriz Ayumi Himekawa de Glass no Kamen, que admite que sua rival artística, Maya Kitajima, é a única pessoa no mundo que a entende. 

Le Sommet des Dieux é uma adaptação do mangá Kamigami no Itadaki de Jiro Taniguchi; este, por sua vez, baseado em romance de Baku Yumemakura lançado em 1998.  O Evereste continua onde sempre esteve, mas muita coisa mudou, de lá para cá, em sua imagem popular.

Em 1998, o desastre do Evereste – e a polêmica suscitada pelo livro de Krakauer – ainda estavam frescos na memória. Mallory – cujo cadáver seria de fato encontrado um ano depois – ainda era uma figura semi-folclórica. A imagem do monte como um playground para ricaços estava em processo de construção. Como experiência, a obsessão por escalá-lo despertava mais espanto que sarcasmo, Fosse a montanha uma droga, seu “consumo” era a nóia eufórica de um novo narcótico, não as consequências batidas de um produto há muito recriminado. 

Hoje, depois de dois desastres ainda maiores do que o de 1996, uma greve de sherpas (os guias nepaleses que acompanham as expedições) e denúncias frequentes do dano ambiental causado pela indústria do alpinismo, ninguém precisa de um filme para entender que há algo de errado em nossa relação com as montanhas. Isto funciona para o filme de Imbert, que se permite acompanhar as vidas de Habu e Fukumachi sem a necessidade de emitir juízos. 

Seu longa se passa quase que inteiramente ao ar livre, mas os conflitos que retrata são pessoais e internos. As cenas de escalada são tours de force de suspense, mas elas não têm qualquer pretensão de heroísmo. Pelo contrário, a cinematografia de Imbert parece estimular em nossos corações uma curiosidade sádica, como se a decisão voluntária de escalar uma montanha fosse comparável ao esforço visceral para sobreviver a uma tragédia. “Ele vai ou não sobreviver?” é o que nos perguntamos a cada corda estourada ou pedra fora de lugar. E a resposta, entendemos, depende nem tanto do que enfrentamos por fora, mas também pelo que temos por dentro.  

É um prazer similar ao de assistir à personagem de James Franco serrar seu próprio braço em 127 horas – se é que “prazer” é o nome correto para este sentimento.   

As montanhas são só um caminho 

Como alguém sem disposição para gastar grandes fortunas arriscando a vida em montanhas, a obsessão de Habu me parece tão absurda quanto a ambição de um Jeff Bezos ou Elon Musk de viajar ao espaço. 

Mas encarar o filme de Imbert como uma mera fábula sobre ricos excêntricos é perder de vista o mais importante.  

Nem todas as compulsões humanas envolvem voos ao Nepal e tanques de oxigênio. Entre nós, pessoas comuns, há também aqueles que se colocam na linha do perigo por motivos nem sempre aparentes. Pessoas obcecadas por desafios sexuais, brigas de rua, rachas em avenidas desertas, substâncias nocivas; obcecadas pelo frio na barriga de subir na ponta dos pés à beira de um abismo, sem saber quão fundo cairão se o pior acontecer. 

Ou ainda compulsões menos óbvias, como a que move Fukumachi a reconstruir a história – e os motivos – de Habu. Eventualmente, o fotógrafo é obrigado a admitir que o alpinista é seu próprio Evereste particular: um desafio intransponível, um cume que não parará de tentá-lo com seus segredos até ser desvendado. 

O que move pessoas a essas obsessões? 

“Não sei o que é” responde Habu no filme. “Parei de me perguntar isso quando percebi que não vivia sem escalar.” 

Nós, pessoas, somos obcecadas por sentidos. Não estamos satisfeitos em seguir o curso dos dias e atender nossas vontades primárias. Precisamos sentir que caminhamos para algum lugar, que a vida é mais do que uma série de eventos marcantes pontuados por vales de insignificância. 

Dessa necessidade vem o milenar (e infinito) imperativo para dar um sentido à nossa existência, causar um impacto nos outros, ser lembrado. 

Não para Habu. “Algumas pessoas buscam o sentido da vida.” Ele diz. “Eu não.” 

“Escalar é a única coisa que me faz sentir vivo.” 

“As montanhas são um caminho, não o objetivo”, complementa Fukumachi. 

Sim. Mas um caminho para onde? 

Para uma vida que nos proporcionará o alívio de nunca mais ter de procurar respostas. 

Podemos denunciar esse estilo de vida como uma tentativa maquiada de escapismo. Podemos zombar daqueles, como Habu, que precisam subir acima dos oito mil metros para gozar de uma satisfação que a vida cotidiana já nos proporciona. 

Porém, como uma montanha em toda a sua glória, não podemos ignorá-los. Nem deixar de admitir, ainda que apenas para nós mesmos, no escuro dos nossos pensamentos, que gostaríamos de experimentar, por um instante que fosse, o mundo através de seus olhos.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/12/22/le-sommet-des-dieux-a-obsessao-humana-e-sua-propria-montanha/feed/ 0 23079
“Heike Monogatari” e a devassidão https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/ https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/#respond Wed, 08 Dec 2021 22:38:46 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23062 É normal que cidadãos falem mal de seus políticos.

Viver em sociedade é uma coisa naturalmente estressante. Não escolhemos em que país, ou sob que tipo de governo, temos o infortúnio de nascer. Ninguém nos pergunta se queremos ou não obedecer às leis. E aqueles que estão no poder têm uma capacidade sem igual de tornar nossa vida um inferno, sem que, na maioria das vezes, possamos fazer qualquer coisa para evitar.

A onda de populismos de extrema-direita que sacudiu o mundo na última década deu um novo sentido a essa insatisfação. Os líderes que subiram ao poder não são apenas corruptos ou incompetentes. São seres humanos repugnantes em praticamente todos os sentidos imagináveis, que parecem se esforçar para violar cada limite da decência e bom gosto.

Para aqueles que acompanham os noticiários, a impressão é de que não somos mais apenas passageiros em uma viagem que embarcamos a contragosto (o que já seria, por si só, ruim). Estamos acorrentados a um veículo que segue desgovernado à beira de um precipício.  

Se existe algum alento, é o de que não somos os primeiros a vivenciar tempos turbulentos – nem a transformar estas turbulências em arte. Heike Monogatari, épico da literatura japonesa recentemente adaptado às telas, é uma verdadeira lição do que torna um governo legítimo – e das águas profundas que nos esperam se nossos líderes flertarem com o abismo.

Tirania e devassidão

Se você não conhece a obra, aqui vai um primer.

Heike Monogatari é um épico sobre a derrocada dos Heike (também conhecidos como Taira), clã que dominou a política japonesa no final do século XII. Poderosos e bem conectados, os Heike deixam o sucesso subir à cabeça e se rendem a atrocidades de toda espécie. Seus desmandos motivam um clã rival, os Genji, a usurpá-los do poder.

O conflito, baseado em eventos reais, é conhecido como a Guerra Genpei e terminou com a vitória dos Genji.

Sua adaptação em anime, produzida pelo estúdio Science Saru e dirigida por Naoko Yamada, condensa em apenas 11 episódios as mais de 700 páginas do texto original (a depender da edição). Mesmo assim, ela preserva a lição central da obra sobre a natureza e consequências do poder.

Lendo (ou assistindo) Heike Monogatari à luz dos populismos contemporâneos, poucas personagens nos despertam mais familiaridade que Kiso no Yoshinaka, o terrível comandante dos Genji que toma Kyoto das mãos dos Heike. Bruto criado no anterior, a pompa e a etiqueta da capital imperial são tão incompreensíveis quanto uma língua estrangeira. Pior, Kiso parece tirar prazer em escandalizar seus pares – e mesmo seus superiores – quebrando o maior número de regras possível.

Como os populistas de hoje, ele se gaba de ser um outsider, vestindo a intransigência com o establishment e o desprezo às regras do jogo como um manto de que se orgulhar.

Infelizmente para as personagens do épico, se os outsiders de hoje fingem serem “gestores”, “capitães” ou coisas que o valham, Kiso não esconde ser um sádico. Ele destrói plantações e rouba comida dos camponeses para dar aos seus soldados. Para sanar o tédio, permite que os homens invadam as casas das pessoas e estuprem seus habitantes.

Kiso é um tirano, mas criticá-lo por ser “autoritário” é perder de vista o mais importante. Ele não desrespeita o imperador porque está em uma cruzada popular contra a monarquia. Ele é simplesmente imaturo e não gosta de se impor limites.

Ele não destrói plantações porque pratica uma ação calculada de terra queimada. Ele o faz porque tem um cavalo e, segundo ele, cavalos precisam comer.

Ele não aterroriza a população como parte de um regime de medo – como tantos ditadores na era contemporânea. Como um adolescente manhoso, ele acredita que o mundo gira em torno do seu umbigo, e as vontades dos outros não importam.

O filósofo Harry Frankfurt tem um nome para a postura de Kiso: devassidão. Segundo ele, o devasso é um indivíduo que age sempre de acordo com suas vontades imediatas. Ele não tem capacidade de se segurar e pensar no longo prazo; de considerar se aquele curso de ação, no fundo, é o mais apropriado. Quando o desejo bate, é com a força de uma abstinência de droga.

Quando o devasso é contrariado, ele não consegue resistir à vontade de mostrar o dedo do meio. Mesmo que ele seja um ministro, e as “ofensas” que recebeu sejam críticas a sua atuação em um episódio de calamidade pública.

Quando o devasso sente vontade de fazer uma piada racista, ele não tem como se segurar. Mesmo que os alvos da troça seja parceiros comerciais e seu gesto desencadeie uma crise diplomática.

Quando o devasso perde, não tem esportiva para aceitar a derrota. Como uma criança que ainda não aprendeu limites, ele esperneia, grita que “não valeu” e ameaça levar sua bola embora. Mesmo que a “derrota” em questão seja uma eleição e a “bola”, o futuro do país.

Pra Frankfurt, o devasso não é só uma pessoa irresponsável. Ele não é sequer uma pessoa. Como um animal selvagem, ele é regido completamente pelas vísceras. Debater com um representante da laia é uma perda de tempo. Ser governado por um, uma tragédia.

O texto de Heike Monogatari  dá voz a esse sentimento:

“A capital inteira fervia com os Genji,
Que entravam em todos os lugares e cometiam incontáveis roubos.
Mesmo em terras que pertenciam a Kamo ou Hachiman [i.e. sagradas],
Eles ceifavam plantas de arroz ainda verdes para alimentar seus cavalos.
Eles invadiam depósitos e tomavam o que havia dentro deles;
Eles roubavam de viajantes e os privava de suas roupas.
“Quando os Heike controlavam a cidade”, as pessoas diziam,
“O lorde Kiyomori era apenas uma vaga ameaça.
Ninguém roubava todas as suas roupas.
Melhor os Heike que os Genji.”

Mais do que cruel, o devasso é perigoso porque suas ações são arbitrárias. Ao contrário de um tirano “consistente”, que sempre retribui os aliados ou tortura seus inimigos, o devasso faz o que lhe der na telha.

Ele é o sujeito que cobre aliados de privilégios em um momento, para mais tarde “fritá-los” e salvar a própria pele. É o covarde que beija os pés de seus superiores quando recebe uma intimação, mas volta atrás nas palavras na primeira oportunidade.

Apoiar um devasso é como se pendurar na roda da fortuna. Parece bom enquanto estamos por cima, mas não sabemos qual momento de glória será nosso último.

Em Heike Monogatari, os aliados de Kiso aprendem isso da forma mais difícil. Cansados dos seus desmandos, os próprios Genji enviam tropas contra ele. Num exemplo ainda mais chocante de devassidão (infelizmente cortado da versão anime) Kiso cogita brevemente virar casaca e se unir aos Heike para salvar a própria pele.

É fácil tirar dessa parte da história a mensagem de que “devassos são ruins, e devemos expulsá-los da política”. Embora não deixe de ser verdade, é uma lição fácil – e pequena – demais para as ambições do épico.

Algo que salta aos olhos quando apreciamos a obra nos dias de hoje é a ausência de protagonistas e antagonistas claros. Não porque a história tenha uma moralidade cinza, mas porque fala de vícios e virtudes que vão além de meras dinastias.

Heróis ou vilões, devassos ou comedidos, todos têm momentos de fraqueza, instantes de redenção, pecados a pagar.

Apreciando a obra sob o ponto de vista da devassidão, não é difícil entender o porquê. Afinal,

Um governo não precisa de ‘devassos’ para ser ele próprio devasso

A afirmação acima é de Arthur Applbaum, um dos pensadores que mais tem se dedicado a entender os efeitos da devassidão na política. Como ele explica, esse é um problema que vai muito além dos populistas do momento.

Tal como é esperado de uma pessoa bolar planos e agir consistentemente, ele diz, um governo deve ser capaz de fazer o mesmo. Na verdade, é ainda mais importante que um governo não seja governado pelos seus impulsos, pois a vida seu povo está, literalmente, em suas mãos.

Um indivíduo devasso pode matar alguém em um surto de ódio. Um governo devasso pode exterminar toda uma população, destruir relações diplomáticas ou causar danos irreversíveis ao meio ambiente.

Por incrível que pareça, diz Applbaum, esse governo não precisa ser formado por pessoas devassas. Uma cúpula que não consiga tomar decisões ou parar de brigar internamente pode, para todos os fins, agir de maneira indistinguível a um devasso. Mesmo que seus membros sejam os sujeitos mais íntegros, comedidos e racionais da face da Terra.

Emprestando uma metáfora da filósofa Christine Korsgaard, Applbaum compara esse governo a um saco cheio de ratos. Presos com seus colegas, os animais vão se mexer desesperadamente. Com o tempo, é até capaz que o próprio saco “caminhe” alguns centímetros para um lado ou para o outro. Diante de um estímulo externo – por exemplo, um tapa – é provável que os ratos, por coincidência, fujam para a mesma direção. Porém, não é possível dizer que o saco aja, como se tivesse uma capacidade de cálculo.

Governos devassos são tão perigosos quanto líderes devassos, pois reproduzem seu maior vício: a arbitrariedade. Tal como um devasso pode decidir salvar uma pessoa em uma ocasião e mandá-la matar amanhã por mero capricho, o governo devasso é completamente imprevisível.

O Clã Taira de Heike Monogatari é um exemplo perfeito de governo devasso. Fiel aos comentários de Applbaum, nem todos os seus membros são ruins. No início do épico, Shigemori, filho do patriarca Kiyomori, é uma bússola moral para a família. O nobre faz de tudo para preservar a reputação da família, chegando ao cúmulo de peitar o próprio pai – algo inimaginável segundo as normas sociais da época.

Mesmo Kiyomori, a despeito de ser um tirano, nem sempre foi um devasso. Para tomar o poder durante a Rebelião Heiji – uma guerra que precede os eventos do épico – ele balanceou a truculência com doses copiosas de misericórdia.

Seu principal rival, o líder Genji Minamoto no Yoritomo, por exemplo, passou anos se recusando a erguer um dedo contra os Heike. O motivo? Kiyomori havia poupado sua vida durante o conflito, ação pela qual ele ainda era grato. O patriarca dos Heike podia ser cruel, mas sabia que sua linhagem só se manteria no poder se planejasse para o futuro.

Infelizmente, Shigemori e o jovem Kiyomori eram apenas dois ratos no saco escuro que era o clã Taira. Com a idade, Kiyomori se torna cruel e arbitrário. A toda e qualquer ameaça ele responde com violência, mesmo que isto só piore as coisas no longo prazo. Na verdade, ele sequer consegue pensar no longo prazo. No leito de morte, ele literalmente diz que seu único desejo é ver seu rival, Yoritomo, morto a qualquer custo.

Os outros membros dos Taira são ainda piores. Munemori, outro filho de Kiyomori, cria um incidente político por conta de um cavalo. Ele cobiçava a montaria de Minamoto no Nakatsuna, do clã Genji. Quando Nakatsuna lhe disse que não lhe entregaria o cavalo, Munemori usou o poder da sua família para tomá-lo à força. Não satisfeito, batizou o animal de “Nakatsuna” para ridicularizar publicamente o nobre Genji.

Mas o exemplo que melhor ilustra o ponto de Applbaum é talvez o de Shigehira, um dos generais dos Taira. Enviado para refrear uma rebelião entre os monges de Nara – onde estão alguns dos templos mais importantes do Japão – ele acaba acidentalmente ponto fogo em todo o complexo.

A tragédia gera um mal-estar de que os Taira nunca mais conseguiriam se descolar. Tempos depois, quando os ventos começam a soprar em outra direção e os inimigos da família avançam contra a capital, Kiyomori e seus descendentes até chegam a implorar pela ajuda de outros templos. Os monges, porém, haviam aprendido sua lição:

“Sannou [, deus do Monte Hiei,] tenha piedade de nós!
Três mil monges, acrescentem sua força à nossa!”
Esse foi o espírito do apelo dos Heike,
Mas sua conduta ao longo dos anos
Ofendera demais os deuses
E traíra toda a esperança dos homens.
Suas preces não obtiveram resposta;
Suas súplicas não convenceram a ninguém.

Ao contrário de Kiso e Munemori, Shigehira não é um devasso. A destruição de Nara foi um erro tático que ele nunca tentou negar e pelo qual sempre se arrependeu. Como ele mesmo afirma antes de sua execução, seu único crime foi ter obedecido ordens de seus superiores. Coisa que só fez porque a alternativa – a execução por desobediência – era pior.

Infelizmente para Shigehira, seus “superiores” eram um saco de ratos que tratava a política como um jogo de acerte-a-marmota. A mão que botou fogo em Nara pertencia a uma pessoa capaz de pesar ações e consequências, mas o governo que lhe deu a ordem reagiu à rebelião dos monges como um animal selvagem a um cheiro desconhecido.

Shigemori, o Heike “do bem”, até tenta, mas não consegue desviar o clã do precipício a que se dirige. Embora sua versão literária não tenha o mesmo dom da profecia de sua encarnação no anime, ela é sábia o suficiente para entender uma verdade dolorosa. Verdade que, às vésperas de uma eleição presidencial que promete ser tão desastrosa quanto a de 2018, faríamos bem em aprender:

Um governo, uma nação, é maior que a boa vontade de um único indivíduo. É uma entidade grande demais – perigosa demais – para ser largada à deriva.

Colocá-la de volta ao rumo não é tarefa para devassos que prometeram “se comportar”, salvadores da pátria ou autointitulados “técnicos” subordinados a ministérios desgovernados.

Precisamos, urgentemente, nos livrar desse saco de ratos. Ou então estaremos, como os Heike, fadados a afundar no nosso próprio Estreito de Shimonoseki.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/feed/ 0 23062
“Entregas Expressas da Kiki”: cedo ou tarde, todos devemos aposentar nossas vassouras https://www.finisgeekis.com/2021/11/24/entregas-expressas-da-kiki-cedo-ou-tarde-todos-devemos-aposentar-nossas-vassouras/ https://www.finisgeekis.com/2021/11/24/entregas-expressas-da-kiki-cedo-ou-tarde-todos-devemos-aposentar-nossas-vassouras/#respond Wed, 24 Nov 2021 21:47:50 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23049 É mérito do Studio Ghibli que seus filmes pareçam capítulos de uma mesma história, reflexões de uma mesma (e coletiva) mente criativa. Mesmo quando se tratam de adaptações de livros variados, escritos por autores de diferentes cantos do mundo.

Conhecer como eram essas histórias antes de serem transformadas por Miyazaki e companhia  é uma experiência tão gratificante quanto rara. Boa parte desses títulos, como As Memórias de Marnie e Kiri no Mukō no Fushigi-na Machi (inspiração para “A Viagem de Chihiro”) nunca foram lançados no mercado nacional.

Leitores brasileiros podem respiram um pouco mais aliviados. No começo do mês, Entregas Expressas da Kiki, inspiração do clássico O Serviço de Entregas de Kiki (1989), finalmente ganhou uma tradução para o português.

Lançado pela Estação Liberdade com belíssimas ilustrações de Daniel Kondo, o livro é nossa chance de conhecer uma referência importantíssima para o gênero de garotas mágicas – e para o romance infanto-juvenil japonês como um todo.

Àqueles que assistiram à clássica adaptação de Hayao Miyazaki, a premissa de Entregas Expressas de Kiki soará imediatamente familiar. Isto não significa, obviamente, que o romance não ofereça algumas surpresas pelo caminho.

Sua protagonista é Kiki, filha única de uma bruxa e um antropólogo especializado em magia, próxima de completar seus treze anos. Como reza a tradição das feiticeiras, ela precisa deixar a casa dos pais e morar em outra cidade por um ano, usando sua magia para ajudar as pessoas. Munida da vassoura de sua mãe e na companhia de Jiji, seu gato preto, ela alça vôo na esperança de encontrar uma nova casa.

Kiki não é a mais tradicional das bruxas, se é que podemos esperar tal coisa de uma menina de sua idade. Cansada do acolhedor, porém claustrofóbico vilarejo de sua família, ela decide se instalar na maior cidade que encontra.

O que poderia dar errado?

A cidade de Koriko na adaptação cinematográfica do livro de Kadono

Como aqueles que também trocaram o interior pela metrópole bem sabem, muita coisa. A cidade em questão, Koriko, opera num ritmo próprio, seus habitantes tão apressados e indiferentes quanto as engrenagens de um relógio. Mimados pelas benesses da modernidade, eles não vêem necessidade de magia. A presença de uma bruxa de vassoura e vestido preto desperta toda sorte de desconfianças.

Felizmente, Kiki é criativa na mesma medida que rebelde e rapidamente aprende a se encaixar nesse mundo estranho.  Fazendo uso de sua vassoura, a garota funda um serviço de entregas expressas, antecessor bruxesco dos drones de entrega da Amazon. Capítulo a capítulo, o romance acompanha o desenrolar de suas encomendas, tal como as verdades – algumas agradáveis, outras nem tanto – que aprende sobre os outros e si mesma.

Nas mãos certas, é o tipo de premissa que permite ser espandida indefinidamente, cada episódio uma nova encomenda. Potencial que sua autora, Eiko Kadono, levou a cabo. No Japão, o romance inspirou uma série de sete livros, o último dos quais publicado em 2017.

Fico curioso em conhecer os volumes seguintes da série (oportunidade que, com sorte, a Estação Liberdade nos proporcionará num futuro próximo). Não apenas pelo prazer de revisitar a prosa singela de Kadono, mas por conferir como sua protagonista mudou ao longo desses quase trinta anos.

Mais do que uma simples história sobre bruxas, afinal de contas, Kiki foi uma referência importantíssima para a consagração de um dos gêneros mais queridos por amantes da cultura pop japonesa: o mahou shoujo ou garota mágica. Gênero esse que passou por tantas transformações desde o longínguo ano de 1985, quando o primeiro livro foi publicado, quanto sua bruxinha titular durante seu ano de aprendizagem.

De majokko a mahou shoujo

Antes de se tornarem um ícone pop do Japão contemporâneo – Sailor Moon chegou a ser escolhida como uma das “embaixadoras” das Olimpíadas de 2020) – as garotas mágicas não eram necessariamente tão diferentes das bruxas de vassoura e chapéus pontudos do folclore ocidental. Em boa parte, isto se deve à influência da sitcom americana A Feiticeira. Tal como a série dos 1960, o mote do gênero era mostrar as desventuras de uma usuária de magia em um mundo contemporâneo. E, com isso, brincar – e também refletir – sobre o quão desencantada nossa sociedade se tornou.

Majokko Megu-chan, clássico do gênero garota mágica. Como outras de sua geração, a série foi fortemente inspirada pela sitcom “A Feiticeira”

Kiki é uma obra de outra mídia, mas compartilha o ponto de vista dos animes e mangás dessa geração. Nesse sentido, é um registro importante do que significava ser uma “garota mágica” antes dos báculos e cenas de transformação se tornarem parte inseparável de seu apelo. Não é uma coincidência, por sinal, que nos anos 1970 estas heróinas eram conhecidas como majokko (“pequenas bruxas”). Kiki se sentiria em casa na sua companhia.

Curiosamente, esse paralelo fica mais evidente no romance de Kadono que em sua adaptação cinematográfica. Nele, Kiki não é “mágica” apenas em razão de seus poderes, mas porque traz magia à vida das pessoas, convidando-as a encarar o mundo de uma forma mais encantada.

É o caso de capítulo em que a bruxinha é contratada para salvar o ano-novo. Ao descobrir que o relógio da cidade está quebrado a poucas horas antes do réveillon, o prefeito pede para que roube o aparelho de uma aldeia vizinha.

Ou então o episódio em que Kiki precisa agir para que o inverno não dure para sempre. Acontece que sua cidade anuncia o começo da primavera com um festival musical, uma cerimônia à la Dia da Marmota que os locais acreditam ser capaz de espantar o frio. Infelizmente, os músicos escalados esqueceram os instrumentos no trem. Se não conseguir reavê-los à tempo, a cidade estará fadada a um ano gélido.

Kadono nunca esconde o que realmente está em jogo: o grito de socorro de uma sociedade desencantada, redescobrindo valor em seus rituais e superstições.

O declínio da magia

Kiki, no final das contas, é uma carta de amor aos encantos sutis que experimentamos ao longo do dia. Trens, aviões, correios e drones da Amazon podem tornar nosso cotidiano mais fácil, mas não é só disse que se faz uma vida. Que não sejamos capazes de conjurar feitiços não significa que não tenhamos nossa própria espécie de magia: pequenos rituais, curiosidade, a capacidade de nos maravilhar com as surpresas do dia-a-dia. Nem que sejam tão mundanas como um prado coberto por capim-cidreiras que nos deixa cheirosos após uma soneca.

Não se trata de uma magia tão deslumbrante quanto uma bola de fogo ou a capacidade de parar o tempo. Para o nosso bem, contudo, é bom que seja o suficiente.

A despeito de seu frequente bom-humor, o livro de Kadono não esconde um lado trágico. No início do romance, a mãe de Kiki conta à filha que, de todos os sortilégios de bruxa, ela conhece apenas a alquimia e o vôo com vassoura. À Kiki, ensinou apenas o segundo, de onde tiramos que a arte de fazer poções morrerá com ela.

Quantas outras habilidades não tiveram destino semelhante? Por quanto tempo a própria Kiki conseguirá manter a tocha acesa diante das conveniências da vida moderna e pressões da vida adulta?

Por quanto tempo qualquer um de nós consegue manter vivas as fantasias de nossas infâncias?

Como outras histórias de garotas mágicas, Kiki é também uma metáfora sobre nosso próprio crescimento; sobre o desafio de abrir mão das poções mágicas e gatos falantes que herdamos de nossos pais e encarar o mundo com nossos próprios recursos.

A cidade de Koriko. Ilustração de Daniel Kondo.

Há uma cena no final do romance em que Kiki sobrevoa sua nova cidade. O pôr do sol bate na torre do relógio e cria uma sombra que lembra um ponteiro.

É uma imagem bonita, que nos mostra como a própria Koriko, antes uma selva de concreto, se tornou mágica aos olhos da bruxinha. Mas ela também traz uma mensagem mais sóbria/séria/melancólica.

Os ponteiros do relógio estão sempre se mexendo, sejamos ou não capazes de enxergá-los. O tempo não para. Cedo ou tarde, preparados ou não, todos nós estamos fadados a aposentar nossas vassouras.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/11/24/entregas-expressas-da-kiki-cedo-ou-tarde-todos-devemos-aposentar-nossas-vassouras/feed/ 0 23049
“Temple Alley Summer”: o passado nunca morre de verdade https://www.finisgeekis.com/2021/11/03/temple-alley-summer-o-passado-nunca-morre-de-verdade/ https://www.finisgeekis.com/2021/11/03/temple-alley-summer-o-passado-nunca-morre-de-verdade/#respond Wed, 03 Nov 2021 21:57:52 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23040 O mês das bruxas acaba de terminar (ou de começar, se você for purista e levar em conta que o festival que inspirou o Halloween era celebrado dia 01/11 e seu nome – Samhain – significa “novembro” ).

Ainda que você não seja tão fã da pantomina carnavalesca em que os americanos transformaram a data, o Dia das Bruxas é uma desculpa perfeita para conferir obras sobre assombrações e o além. Mesmo aquelas que pouco têm a ver com abóboras esculpidas ou chapéus pontudos.

Kimyouji Yokochou no Natsu, ainda inédito no Brasil, mas publicado em inglês como Temple Alley Summer, é uma leitura do tipo. O romance infanto-juvenil é uma fábula sobre inocência, fantasia e nossa relação com morte, contada de uma maneira tão transparente, em sua simplicidade, quanto os fantasmas que a povoam.

Não é de surpreender, considerando que foi escrito por ninguém menos que Sachiko Kashiwaba, autora do livro que inspirou A Viagem de Chihiro.

O Templo do Retorno à Vida

Há uma vibe de antiguidade em Temple Alley Summer que encaixa perfeitamente em seu enredo sobre assombrações, templos amaldiçoados e casarões misteriosos. Embora tenha sido originalmente escrito em 2011, sua história parece pertencer a uma época mais simples, em que nossa percepção do sobrenatural era mais guiada pelas coisas que enxergávamos – e as que não víamos – que pela mídia de massa.

É uma ironia que não escapa à Kashiwaba, que começa seu livro justamente com um programa de TV. Kazu, aluno da quinta série na pequena cidade de Masuda, interior do Japão, está assiste a um enlatado sobre fantasmas antes de dormir. Ao ir ao banheiro no meio da noite, é surpreendido por uma visão mais assustadora que qualquer vídeo de poltergeist.

Uma garota aparece em um dos cômodos da sua casa vestida em um kimono fúnebre.

A menina desaparece tão cedo surgiu. Seus pais, como é típico de pais fazerem, não acreditam em sua história.

As coisas ficam mais estranhas quando Kazu reencontra a estranha na escola, vestindo o uniforme de seu ano. Nenhum de seus colegas nota nada de errado em sua presença. Pelo contrário, agem como se ela sempre tivesse estudado com eles.

Teria uma assombração realmente voltado à vida e ocupado um espaço em sua rotina? Ou estaria Kazu apenas ficando louco?

Pouco a pouco, o garoto começa a acreditar na primeira opção. Durante um trabalho da escola, Kazu desenterra por acaso um antigo mapa de sua cidade. Segundo ele, cerca de cem anos atrás sua rua costumava se chamar Kimyōji Yokochō, algo como “beco do templo Kimyou”. Em japonês, o nome do santuário se escreve com os ideogramas para “retorno” e “vida”, como se estivesse de alguma forma relacionado com a missão de trazer os mortos de volta do além.

Basta que Kazu comece a fazer perguntas para que entenda que não está lidando apenas com mortos, mas também com os esqueletos, metafóricos, que os vivos escondem no armário. Os velhos de sua rua prontamente negam ter ouvido falar do templo. Dois membros do conselho do bairro visitam sua casa para lhe convencer de que pesquisar a respeito é uma perda de tempo. De uma mera história de fantasmas, Temple Alley Summer começa a se assemelhar a uma versão infanto-juvenil de O Bebê de Rosemary.

Kazu eventualmente descobre que o templo Kimyou realmente existiu, mas foi destruído por um grupo de pessoas que considerava errado trazer os mortos de volta à vida. Seus adeptos, todavia, continuaram os ritos em segredo, dando uma nova chance a almas perdidas.

É óbvio que Akari, sua recém-aparecida “amiga”, é uma dessas pessoas.

Ressentimentos e segundas-chances

Minha sinopse talvez faça o livro parecer mais sombrio do que de fato é. Kashiwaba escreve sobre templos, mortos-vivos e seitas misteriosas, mas Temple Alley Summer deixa claro que estes elementos são apenas um pano de fundo para uma questão maior: Se existisse um poder capaz de trazer mortos de volta à vida, seria correto utilizá-lo?

Você, leitora, o utilizaria?

Kazu acha que tem uma resposta, mas sua certeza desmancha quanto mais se aproxima de Akari. Sim, mortos-vivos são uma violação das leis da natureza. Mas, até aí, não é injusta uma natureza que permite que meninas morram aos dez anos, antes de aproveitarem o melhor que a vida tem a oferecer? Até que ponto certas pessoas não merecem uma segunda chance? Até que ponto desejar uma segunda chance em vez de curtir o pouco tempo que nos resta não invalida a própria razão de se viver?

Não tive a oportunidade de ler Kiri no Mukou no Fushigi na Machi, o livro de Kashiwaba que inspirou A Viagem de Chihiro. Não sei dizer, portanto, se a exuberância do filme se deve à imaginação de Miyazaki ou à história que o inspirou.

Tenho a impressão de que é o primeiro caso, pois Temple Alley Summer não poderia ser mais diferente da obra-prima dodiretor.

Não que não existam pontos em comum entre romance e filme. Alguns detalhes, como uma mãe invisível e um varal que se materializa na medida em que surgem roupas a secar, parecem tirados diretamente da mente dos animadores do Studio Ghibli. Kazu, como Chihiro, aprende a enxergar o maravilhoso nas coisas mais mundanas.  

Mas se no longa de Miyazaki essa lição é colorida por um mundo paralelo que desafia os limites da imaginação, o romance de Kashibawa é uma jornada para dentro. Como em As Aventuras de Marnie, o aprendizado de Kazu vem não de fugir da realidade, mas de redescobrir o valor dos lugares e pessoas com que sempre conviveu.

É curioso que, quando Temple Alley Summer finalmente abraça a fantasia, o faça por meio da literatura. Em dado momento, na sanha de realizar os sonhos inacabados de Akari, Kazu sai em busca de um conto de fadas que costumava ler, serializado em uma revista há muito descontinuada.

Essa história-dentro-da-história chega a lembrar A Cidade sem Ninguém de Chobits, não apenas por conta de seu tom, mas pela maneira como força as personagens do romance – e também a nós, que a lemos através de seus olhos – a enxergar seu conflito de outra maneira. Se a escrita de Kashiwaba possui uma vibe de antiguidade, ela vale em dobro para o conto de fada. Até mesmo as ilustrações são diferentes, em um estilo que parece pagar tributo às xilogravuras dos séculos XVII e XVIII.

É coincidência que um romance que se inicia com um enlatado de TV termine com uma homenagem literária a Charles Perrault aos Irmãos Grimm? Eu duvido muito.

Mortos não retornam ao nosso mundo, e provavelmente isto é para o bem. Mas o passado nunca morre de verdade, e há diversos sortilégios que podem trazê-lo de volta à vida, escondidos em mapas antigos, histórias contadas e memórias daqueles que estão por aqui há mais tempo que nós.

Tudo o que precisamos é de uma pitada de curiosidade.

 

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/11/03/temple-alley-summer-o-passado-nunca-morre-de-verdade/feed/ 0 23040
“Tatami Galaxy”, ou por que devo desculpas a Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/#comments Wed, 22 Sep 2021 23:54:33 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23027 Aconteceu no meu primeiro ano da faculdade.

Foi a melhor época da minha vida até o momento, mas também a mais estressante. Farto até a medula de simulados e aulas de decoreba, decidi que tinha chegado a hora de aproveitar minha vida ao máximo. Tudo o que sentia vontade de fazer fiz questão de levar a cabo. Ao mesmo tempo.

Toquei violino em uma orquestra de câmara amadora. Comecei minha iniciação científica. Entrei em turmas de latim e japonês. Nas horas vagas, saía com minha namorada ou meus dois círculos de amigos: os novos, da faculdade, e os antigos da escola.

Minha rotina era uma montanha-russa entre o sentimento de realização e a iminência de um burnout. Nunca me sentira tão completo e, ao mesmo tempo, tão cansado.

Foi então que escutei de um colega da aula de japonês:

“Quer dizer que você não vai em festas? Você não tem medo de deixar essa oportunidade passar e viver com remorso pelo resto da vida?”

Eu travei. Menos, imagino, por ter visto sabedoria em suas palavras que por ter escutado uma frase tão absurda de alguém que, para todos os fins, era até então um desconhecido. Tirando os “bons dias” e os exercícios de diálogo que fazíamos na aula, aquela era a conversa mais longa que já tínhamos tido.

Senti vontade de responder que estudava na FFLCH-USP, que pouco tinha a ver com o campus cor-de-rosa das comédias românticas americanas. E que meus colegas eram menos conhecidos por festas que por ocuparem a reitoria durante greves e se vestirem de mendigo em tempo integral. (Era um clichê, obviamente, mas todo clichê tem uma ponta de verdade).

Mas apenas desconversei com uma desculpa qualquer, chocado pela minha própria fraqueza diante de um comentário tão estúpido. Eu já estava dando tudo de mim. Não havia mais horas no dia para fazer qualquer outra coisa. Será que mesmo assim estava desperdiçando meus anos de juventude?

Se você curte animes deve reconhecer meu drama no protagonista de The Tatami Galaxy, anime de Masaaki Yuasa baseado no romance de Tomihiko Morimi. Assistindo a série pela primeira vez no esquenta para uma sequência já anunciada, me dei conta de uma coisa.

Quando resenhei Night is Short, Walk on Girl, livro anterior de Morimi que serve de prequel a Tatami Galaxy, teci comentários um tanto duros. Decepção que atribuí ao próprio Morimi, cujo infanto-juvenil Penguin Highway me deixou com um gosto ainda mais amargo na boca.

Assistindo a Tatami Galaxy, percebo que cometi um erro de julgamento. E está na hora de retificá-lo.

Por uma vida cor-de-rosa

Antes de mais nada, uma introdução. Tatami Galaxy – para o caso, não improvável, de você nunca ter ouvido falar desse nome – é a história de um rapaz em um alojamento estudantil de uma universidade de Kyoto. Seu sonho, como o de tantos outros de sua idade, é curtir a “vida cor-de-rosa” dos anos de faculdade o mais intensamente que pode. O destino, porém, tem outros planos. Cada tentativa de dar sentido a sua graduação termina da mesma forma: largando-o sozinho em seu quarto, frustrado, perguntando-se como conseguiu deixar o melhor da juventude escapar pelos dedos.

“Tentativas”, no plural. Cada episódio termina com a tomada de um relógio girando em reverso. O episódio seguinte nos devolve a um momento anterior, mostrando um contrafatual do que aconteceria se tivesse aproveitado uma oportunidade diferente. A “galáxia de tatami” de seu título não é uma referência apenas ao seu alojamento (tatami, além daquele tipo de piso japonês, é uma medida de tamanho usado em residências). É também o leque das suas próprias experiências universitárias, que ele é forçado a reviver como em um Dia da Marmota.

Em temas, não só em estilo visual, o anime é uma versão expandida de Night is Short, Walk On Girl, história sobre a falta de sorte de um universitário tentando se aproximar de sua garota dos sonhos em uma noite fantástica quando tudo acontece.

O fato de que nenhum de seus protagonistas tenha nome diz mais que todas as elucubrações que eles de fato fazem, metralhadas em um ritmo tão alucinante que obriga espectadores a pausar o vídeo para entendê-las. O narrador de ambas as histórias é um everyman representando todos os jovens homens com hormônios nas alturas que já experimentaram em desespero por não encontrarem o prazer que mereciam. Prazer esse que envolve, invariavelmente, uma bela moça de cabelos negros.

Como Virgens Suicidas, em uma versão ainda mais pop e millennial, são histórias sobre o olhar masculino: sobre a necessidade de homens de ter seus prazeres atendidos e a indignação com que reagem quando esse privilégio lhes é negado.

Mas se Virgens Suicidas se tornou um clássico contemporâneo por questionar, criticamente, o que significa ser um “objeto” do olhar de outrem. Night is Short, Walk on Girl é frenético demais para colocar seu protagonista debaixo de uma lupa. Saímos do livro incertos se devemos tirar sarro do protagonista ou simpatizar com sua cruzada fracassada, por mais repreensível que ela seja. Problema este que incomoda ainda mais em Penguin Highway, outro livro de Morimi com um enredo duas vezes menos interessante e um protagonista triplamente mais chauvinista.

Quando seu “herói” se orgulha de desenhar os peitos de mulheres que conhece, você sabe que tem um problema).

Tatami Galaxy, porém, vira a falta de simpatia de sua personagem central de ponta cabeça. E de uma maneira que me fez entender que essas obras tem mais sabedoria do que aparentam à primeira vista.

Parte desse mérito vem da maneira como equilibra os impulsos sexuais de seu narrador com um enredo mais vago sobre a dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Parte, também, vem do fato de que esse narrador não é o verdadeiro protagonista de sua história.

Ao longo dos onze episódios, sua história é entrecruzada com a de outras pessoas com suas próprias agendas: Jougasakai, galã da turma que esconde um romance com uma boneca sexual; Ozu, colega que insiste em levá-lo para o mau caminho; Akashi, a “garota de seus olhos” – mas também uma mulher que não hesita em lhe pregar peças quando lhe convém; Higuchi, mistura de youkai e Grande Lebowski que parece puxar as cordas de seu destino, mas também viver um dia por vez, sem dar satisfações a qualquer um.

Na medida em que vemos as relações entre essas personagens evoluírem, fica difícil saber se estamos de fato assistindo à história do narrador ou as suas histórias, pelos olhos dele. Ironia que não escapa ao próprio narrador, que sofre para entender como pessoas tão imperfeitas, tão distantes de seu ideal de masculinidade, conseguem ter a vida cor-de-rosa que tanto persegue.

É impossível não lembrar de um trecho de Norwegian Wood, o belíssimo e melancólico romance de Haruki Murakami:

“Da direção do prédio do centro estudantil vinha o som de uma voz grossa praticando escalas. Aqui e ali estavam grupos de quatro ou cinco estudantes expressando quaisquer opiniões eles vinham a ter, rindo e gritando um ao outro. No estacionamento, um punhado de rapazes andavam de skate. Um professor com uma maleta de couro cruzou o estacionamento, evitando os skatistas. No pátio, uma estudante de capacete se ajoelhava, pintando grandes caracteres em um cartaz com algo sobre o imperialismo americano invadindo a Ásia. Era uma típica cena da universidade na hora do almoço, mas na medida em que me sentei assistindo-a com atenção redobrada, eu me dei conta de um certo fato. Cada pessoa que eu enxergava diante de mim estava feliz na sua própria maneira. Se eles estavam realmente felizes ou simplesmente pareciam estar eu não podia dizer. Mas eles pareciam alegres nesse agradável começo de tarde no final de setembro, e por conta disso eu senti um tipo de solidão que me era novo, como se eu fosse o único ali que não pertencesse de fato à cena.

Em minha resenha de Night is Short, Walk on Girl, critiquei seu “compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada”.

“Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.”

Tatami Galaxy nos ensina que “curtir o momento”, muitas vezes, é a melhor forma de questionar a realidade. Ensinamento valioso em qualquer instante da vida, mas que adquire uma importância fundamental em tempos de crise como estes em que vivemos.

Ao contrário do narrador do anime de Yuasa, o relógio de nossas próprias vidas jamais voltará para nos dar uma segunda chance.

Meu antigo colega de japonês – de cujo nome, confesso, nem mais me lembro – talvez tenha custado a entender essa verdade. Gosto de pensar que a alfinetada que me deu naquele dia foi, em alguma medida, um recado a si próprio. Quem é esse sujeito que joga fora das minhas regras, mas esbanja a mesma alegria que suo tanto para obter?

Não posso dizer que nunca mais pensei no que ele me disse, sobretudo nessa fase da vida, em que estou mais próximo a voltar à faculdade como professor do que como aluno. Mas de uma coisa não tenho a menor dúvida: meus anos de campus não poderiam ter sido mais rosados.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/feed/ 2 23027
Entrevista: a Dublin de Joyce entre o passado, presente e futuro https://www.finisgeekis.com/2021/09/08/entrevista-a-dublin-de-joyce-entre-o-passado-presente-e-futuro/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/08/entrevista-a-dublin-de-joyce-entre-o-passado-presente-e-futuro/#respond Wed, 08 Sep 2021 21:51:06 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23020 Hoje trago algo diferente para vocês.

Se acompanham o blog há algum tempo, sabem que sou grande fã da obra de James Joyce. Minha admiração por esse autor já me levou a muitos lugares – por exemplo, a fazer cosplay de suas personagens pelas ruas de Dublin. Nunca, porém, antecipei o privilégio que vivi essa semana.

Junto com meu colega, o arqueólogo Alex Martire, entrevistei ninguém menos que Caetano Galindo, escritor, tradutor e um dos brasileiros mais engajados em tornar a obra do autor acessível ao grande público.

Naturalmente, historiadores e arqueólogos que somos, não podíamos deixar de falar sobre o passado. E falando de Joyce, esse “passado” tem nome e sobrenome: Dublin, Irlanda, 16 de junho de 1904.

Sua obra-prima, Ulisses, é uma recontagem da Odisseia de Homero ambientada na capital irlandesa dessa data. Tão detalhado é o retrato que fez da cidade no começo do século XX que o próprio Joyce disse que, se Dublin desaparecesse, poderia ser inteiramente reconstruída usando apenas sua obra de referência.

Isto, claro, em 1922, quanto o romance foi publicado pela primeira. E quanto a 2022, ano de que rapidamente nos aproximamos? Ulisses continuará a ter relevância quando a cidade que o inspirou deixar de existir, substituída por novas “Dublins”? Ou, melhor dizendo, conseguirá a própria Dublin honrar o pedestal em que Joyce a colocou na medida em que se transforma em outra coisa – e os lugares e edifícios citados no livro deixarem de existir?

A mim e ao Alex, Galindo se mostrou otimista. Disse que, por mais louvável que seja a adoração moderna a Joyce (o Bloomsday, evento dedicado ao autor, é atualmente a segunda maior festividade da Irlanda) não podemos esquecer de que ela é um fenômeno turístico bastante recente. Em 1941, quando Joyce morreu, a recepção na cidade foi fria. E levaria muitas décadas a amornar.

“Essa relação da cidade com o livro [foi] alterada na marra” ele disse, comentando sobre a pressão de leitores e críticos, sobretudo nos EUA, que elevaram Ulisses ao patamar de obra-prima da literatura. “A Irlanda meio que teve de engolir o Joyce de atravessado”.

Galindo também comentou como transformar lugares citados por seus livrosem museus não é o mesmo que preservá-los. A farmácia Sweeney, cenário de um dos capítulos de Ulisses, por exemplo, hoje é um centro cultural que organiza leituras de textos de Joyce. Não seria mais fiel ao espírito do romance que continuasse funcionando como uma farmácia? Onde está a linha entre manter a Joyce de Dublin e imortalizá-la como um monumento empalhado, inerte, que não mais pertence à vida cotidiana das pessoas?

“A [Sweeney’s] sobreviveu?” ele pergunta “É uma coisa fake. É uma coisa criada para se vincular ao fato de que aquelas paredes estão de pé. […] É Dublin se alterando por causa do Ulisses.”

E é nisso, talvez, que está a maior força desse romance de cem anos atrás. Dublin não é apenas o palco da história de Joyce. “A paisagem da cidade mudou” diz Galindo. “Ele sacralizou certos espaços […] Delimitou aqueles lugares como lugares especiais.”

Em tempos em que influencers pregam publicamente que clássicos não servem para nada, não é pouca coisa. Como o sultão de Sandman que barganhou com Morfeu para que seu reino durasse para sempre, Joyce conseguiu a proeza de transportar uma cidade inteira para o mundo dos sonhos.

“O Ulisses vai sobreviver. E aquela cidade vai sobreviver no Ulisses.”

Você pode assistir ou ouvir a entrevista completa na página do ARISE.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/09/08/entrevista-a-dublin-de-joyce-entre-o-passado-presente-e-futuro/feed/ 0 23020