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\u00c9 a cultura que torna as pessoas cru\u00e9is? Ou n\u00e3o seriam as pr\u00f3prias pessoas, maldosas por natureza, que produzem uma cultura \u00e0 sua imagem?<\/p>\n
Essa \u00e9 uma daquelas perguntas que mais custa a nos deixar em paz. De discuss\u00f5es sobre jogos violentos \u00e0 repercuss\u00e3o de crimes b\u00e1rbaros, somos atormentados pela possibilidade de que\u00a0o verdadeiro mal est\u00e1 no nosso cora\u00e7\u00e3o, longe do alcance de qualquer lei reguladora.<\/p>\n
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Claro, mesmo o entretenimento mais odioso n\u00e3o se compara com a crueldade que consider\u00e1vamos comuns no passado. Por mais que se critique os v\u00edcios dos “novos tempos”, poucas pessoas hoje em dia se sentiriam confort\u00e1veis com\u00a0com gladiaturas ou\u00a0com os antigos shows de horrores.<\/p>\n
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T\u00e3o diferentes n\u00f3s nos sentimos\u00a0que o psic\u00f3logo Steven Pinker<\/a>\u00a0chegou a\u00a0propor que a humanidade realmente se tornou melhor com o passar do tempo.\u00a0N\u00e3o apenas nosso entretenimento era b\u00e1rbaro e desumano, mas toda a sociedade que o rodeava.<\/p>\n Para quem tem coragem de revisitar\u00a0esse passado,\u00a0Goshiki no Fune<\/em>, mang\u00e1 de Youkou Kondo, \u00e9 ao mesmo tempo um soco no est\u00f4mago\u00a0e\u00a0uma\u00a0brisa de ar fresco.<\/p>\n <\/p>\n Baseado no conto do escritor Yasumi Tsuhara e com apenas 8 cap\u00edtulos, Goshiki no Fune <\/em>\u00e9 um dos mang\u00e1s mais despretensiosos, assombrosos\u00a0e tocantes\u00a0dos \u00faltimos tempos.<\/p>\n Se a indica\u00e7\u00e3o ao Pr\u00eamio Osamu Tezuka de 2015\u00a0n\u00e3o fala por si s\u00f3, seu enredo \u00a0deixa claro que\u00a0n\u00e3o \u00e9 uma obra como outra qualquer.<\/p>\n O mang\u00e1\u00a0<\/em>\u00e9 uma f\u00e1bula sobre um circo de horrores no Jap\u00e3o da Segunda Guerra Mundial.<\/p>\n Yukinosuke, um ator especializado em pap\u00e9is femininos (como Yakumo em\u00a0Showa Genroku Rakugo Shinjuu<\/a><\/em>) sofre de gangrena e precisa amputar as pernas. Aposentado dos palcos, condenado a se locomover em um carrinho de madeira, ele se torna pai adotivo de uma trupe de\u00a0rejeitados.<\/p>\n <\/p>\n Um garoto sem bra\u00e7os, que usa os dedos dos p\u00e9s como m\u00e3os. Uma mulher cujos joelhos dobram para o lado oposto. Um an\u00e3o com for\u00e7a sobrehumana. Uma menina deformada tatuada com escamas para parecer uma mulher-cobra.<\/p>\n <\/p>\n Se sozinhos seriam considerados aberra\u00e7\u00f5es, juntos eles se tornam algo pr\u00f3ximo de uma fam\u00edlia, vivendo em um barco decr\u00e9pito e entretendo os civis durante o pior conflito\u00a0da hist\u00f3ria da humanidade.<\/p>\n Circos que desenvolvem la\u00e7os familiares s\u00e3o um elemento j\u00e1 consagrado na fic\u00e7\u00e3o \u2013 e, antes dela, nos shows de horrores reais nos quais tais hist\u00f3rias foram\u00a0baseadas. Antes do avan\u00e7o da medicina, o submundo era o \u00faltimo ref\u00fagio para pessoas que sofriam de certas doen\u00e7as de desenvolvimento. E que, na maioria das vezes, eram abandonadas j\u00e1 do ber\u00e7o.<\/p>\n <\/p>\n \u00c9 o caso da hipertricose<\/a>, a s\u00edndrome por tr\u00e1s dos \u201clobisomens\u201d. Ou da prog\u00e9ria<\/a>, mal que provoca envelhecimento precoce na inf\u00e2ncia, parecida em sintomas com a situa\u00e7\u00e3o do protagonista de\u00a0O Curioso Caso de Benjamin Button<\/em>.<\/p>\n <\/p>\n No entanto, nem tudo eram flores. Circos de horrores acolhiam quem os aceitasse, mas cobravam um pre\u00e7o caro. Como tudo no submundo, seus artistas eram sujeitos a todo tipo de abuso, viol\u00eancia e humilha\u00e7\u00e3o.<\/p>\n No universo do ero guro<\/a><\/em>, hist\u00f3rias como essas se tornaram quase um g\u00eanero pr\u00f3prio. Goshiki no Fune <\/em>\u00e9 muito menos expl\u00edcito, mas justamente por isso seu terror nos corta ainda mais fundo.<\/p>\n Em uma cena, o grupo encontra duas g\u00eameas siamesas. Uma delas est\u00e1 viva; a outra, morta. Afetada pela guerra, sem dinheiro para lev\u00e1-la ao m\u00e9dico, a fam\u00edlia aceita vend\u00ea-la ao l\u00edder da trupe, que a submete a uma cirurgia arriscad\u00edssima para transform\u00e1-la em seu ganha-p\u00e3o.<\/p>\n Em outra, uma plateia entusiasmada paga para que as \u201caberra\u00e7\u00f5es\u201d fa\u00e7am sexo entre si. Os membros da fam\u00edlia aceitam sem reclamar. Yukinosuke, seu “pai” adotivo, \u00e9\u00a0pragm\u00e1tico: quem sabedo encontro n\u00e3o surgisse um\u00a0novo “artista”\u00a0que combinasse suas deformidades?<\/p>\n <\/p>\n Se esses\u00a0epis\u00f3dios nos arrepiam, essa \u00e9 justamente sua inten\u00e7\u00e3o. Se eles nos lembram de outras crueldades, muito menos espec\u00edficas que as adversidades de uma fam\u00edlia de artistas, n\u00e3o \u00e9 por acaso.<\/p>\n N\u00e3o \u00e9 preciso assistir a uma performance\u00a0underground\u00a0<\/em>de rejeitados pela sociedade para saber que nosso mundo tem problemas. H\u00e1 absurdos feitos \u00e0s claras que n\u00e3o perdem em nada para a degrada\u00e7\u00e3o humana celebrada nos antigos\u00a0show de horrores.<\/p>\n Na fic\u00e7\u00e3o, esse tipo de circo \u00e9 abordado justamente como cr\u00edtica ao universo que os cerca. Quando a depravidade \u00e9 a norma, a sociedade como um todo se mostra o mais terr\u00edvel dos espet\u00e1culos.<\/p>\n N\u00e3o deixem a aus\u00eancia de gore\u00a0<\/em>e a arte acess\u00edvel engan\u00e1-los.\u00a0Goshiki no Fune\u00a0<\/em>\u00e9 uma dessas obras. E, nisso, aproxima-se de uma das hist\u00f3rias mais influentes de toda a literatura.<\/p>\n <\/p>\n Victor Hugo \u00e9 mundialmente conhecido como autor de O Corcunda de Notre Dame <\/em>e Les Mis\u00e9rables. <\/em>A obra do escritor franc\u00eas, no entanto,\u00a0vai muito al\u00e9m de argumentos para musicais da Broadway\u00a0e filmes da Disney.<\/p>\n De nome, O Homem que Ri <\/em>\u00e9 um de seus livros menos conhecidos. No entanto, o impacto que teve sobre a literatura – e sobre as artes, de uma forma geral – \u00e9 rivalizado por poucas obras.<\/p>\n Sua trama\u00a0nos leva\u00a0a um mundo bastante parecido com aquele do mang\u00e1 de Kondou. <\/em>Hugo nos introduz aos\u00a0comprachicos<\/em>, uma gangue que sequestra crian\u00e7as e modifica seus corpos para vender a circos, shows de horrores e pervertidos.<\/p>\n <\/p>\n O\u00a0navio dos\u00a0comprachicos <\/em>eventualmente tem o que merece, e seu navio afunda perto da costa da Inglaterra. No entanto, uma testemunha de seus crimes sobrevive para contar a hist\u00f3ria.<\/p>\n Gwynplaine, um garoto cujo rosto foi deformado em um sorriso permanente, sobrevive ao naufr\u00e1gio. Sozinho em uma terra estranha, ele \u00e9 acolhido por\u00a0Ursus, um ator e fil\u00f3sofo itinerante.<\/p>\n Juntos, eles embarcam em uma jornada em torno do que existe de\u00a0mais sombrio, vergonhoso e inexplic\u00e1vel.\u00a0De cad\u00e1veres de piratas deixados para apodrecer na praia como exemplo a outros, at\u00e9 as mais s\u00f3rdidas intrigas palacianas, Gwynplaine conhece o pior que a humanidade tem a oferecer.<\/p>\n <\/p>\n Escrito em uma \u00e9poca em que Hugo havia sido exilado por conta de suas cr\u00edticas pol\u00edticas,\u00a0a fei\u00fara de Gwynplaine e do submundo em que vive n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 f\u00edsica, mas tamb\u00e9m simb\u00f3lica.<\/p>\n “O Homem que Ri”, como passa a ser conhecido, se transforma em uma den\u00fancia ambulante de tudo o que h\u00e1 de errado com sua sociedade. Preso a um rosto desfigurado, \u00e9 obrigado a sorrir para as injusti\u00e7as, para a crueldade, para os excessos da aristocracia e para a arbitrariedade da lei.<\/p>\n Como o pr\u00f3prio Victor Hugo colocou:<\/p>\n \u201cO morto de fome ri, o mendigo ri, o condenado ri, a prostituta ri, o \u00f3rf\u00e3o, para ganhar a vida, ri, o escravo ri, o soldado ri, o povo ri. A sociedade humana \u00e9 feita de tal forma que todas as perdi\u00e7\u00f5es, todas as indig\u00eancias, todas as cat\u00e1strofes, todas as febres, todas as \u00falceras, todas as agonias se resolvem \u00e0 beira do precip\u00edcio em uma horripilante careta de alegria. Esta careta suprema era ele. A lei superior, a for\u00e7a desconhecida que governa, fez com que um espectro vis\u00edvel e palp\u00e1vel, um espectro de carne e osso, consumasse a par\u00f3dia monstruosa que n\u00f3s chamamos mundo. Ele era este espectro.\u201d<\/p>\n<\/blockquote>\n Pois o riso, logo aprendemos, \u00e9 muitas vezes a \u00fanica arma que temos para nos defender. Quando somos impotentes para confrontar aqueles que nos reprimem, a piada se torna mais afiada que qualquer l\u00e2mina.<\/p>\n N\u00e3o importa em que pa\u00eds ou \u00e9poca vivemos. O Homem que Ri <\/em>parece sempre cutucar nossa ferida. N\u00e3o \u00e9 por acaso que se tornou um cl\u00e1ssico da literatura. Nem que tenha inspirado\u00a0o maior vil\u00e3o da hist\u00f3ria dos quadrinhos:<\/p>\n <\/p>\n Os protagonistas de Goshiki no Fune<\/em> com certeza se reconheceriam no conto de Gwynplaine. Eles, tamb\u00e9m, s\u00e3o \u201chomens de riem\u201d em um mundo que \u00e9, \u00e0 sua maneira, tamb\u00e9m uma aberra\u00e7\u00e3o.<\/p>\n O Jap\u00e3o da era Showa, com seu ufanismo, racismo e militarismo otimista, era um faz-de-contas de bravatas \u00e0 beira de\u00a0um precip\u00edcio. Precip\u00edcio que eventualmente chegaria\u00a0com a aplica\u00e7\u00e3o da arma mais terr\u00edvel j\u00e1 criada pelo homem.<\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil de entender como uma hist\u00f3ria como a de Gwynplaine venha a cair\u00a0como uma luva em\u00a0um mang\u00e1. O pr\u00f3prio Victor Hugo precisaria concordar: sua f\u00e1bula sobre o circo de aberra\u00e7\u00f5es\u00a0que \u00e9 a sociedade fala muito mais alto ao Jap\u00e3o do s\u00e9culo XX do que \u00e0 Inglaterra do XVII, quando se passa O Homem que Ri<\/em>.<\/p>\n Nos anos finais da guerra e durante a reconstru\u00e7\u00e3o, hist\u00f3rias de crian\u00e7as vendidas ou abandonadas por fam\u00edlias miser\u00e1veis, como as contadas por Goshiki no Fune<\/em>, se tornaram comuns.<\/p>\n O pr\u00f3prio g\u00eanero Shoujo Tsubaki<\/a>,<\/em>\u00a0\u00a0<\/em>que ganharia fama com o anime de Suehiro Maruo<\/a>, teve sua origem em apresenta\u00e7\u00f5es de kamishibai<\/a><\/em> dessa mesma \u00e9poca.<\/p>\n <\/p>\n Os sobreviventes da bomba at\u00f4mica, por sua vez, logo mostraram ao mundo que a radia\u00e7\u00e3o \u00e9 capaz de transformar humanos em monstros de uma forma que os comprachicos <\/em>de Victor Hugo jamais seriam capazes de imaginar.<\/p>\n <\/p>\nO cora\u00e7\u00e3o das trevas<\/h3>\n
O Homem que Ri<\/h3>\n
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O Jap\u00e3o e seu\u00a0show de horrores<\/h3>\n