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{"id":23113,"date":"2022-02-23T18:41:43","date_gmt":"2022-02-23T21:41:43","guid":{"rendered":"http:\/\/www.finisgeekis.com\/?p=23113"},"modified":"2022-02-23T18:42:26","modified_gmt":"2022-02-23T21:42:26","slug":"people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/2022\/02\/23\/people-from-my-neighbourhood-imaginacao-em-estado-bruto\/","title":{"rendered":"“People From My Neighbourhood”: imagina\u00e7\u00e3o em estado bruto"},"content":{"rendered":"\n

Era, como diria Vin\u00edcius<\/a>, um pr\u00e9dio muito engra\u00e7ado. Fam\u00edlias com exatamente seis pessoas ocupavam todos os apartamentos.<\/p>\n\n\n\n

Aqui e ali, coisas estranhas come\u00e7am a acontecer. Um homem cuja barba cresce mais r\u00e1pido do que \u00e9 capaz de cort\u00e1-la. Uma pessoa cujas bolha no p\u00e9 viraram mini lagoas \u2013 com girinos e tudo.<\/p>\n\n\n\n

\u201c\u00c9 coisa do Dem\u00f4nio\u201d explica uma vizinha de outro pr\u00e9dio. Seis, afinal de contas, \u00e9 o n\u00famero da besta.<\/p>\n\n\n\n

As pessoas da cidade come\u00e7am a evitar o pr\u00e9dio. Isolados do mundo, seus moradores criam sua pr\u00f3pria rotina, depois seu pr\u00f3prio banco central e moeda. Com o tempo, decretam independ\u00eancia e criam suas pr\u00f3prias for\u00e7as armadas. Na Ba\u00eda de T\u00f3quio, \u00e9 poss\u00edvel v\u00ea-los em exerc\u00edcios conjuntos com a Marinha Japonesa.<\/p>\n\n\n\n

Se a hist\u00f3ria acima a fez perguntar o que diabos acabou de ler, n\u00e3o est\u00e1 sozinha. A historinha vem de um dos contos de People From My Neighbourhood<\/em><\/a> da escritora Hiromi Kawakami.<\/p>\n\n\n\n

No papel, o livro \u00e9 um compilado de microfic\u00e7\u00e3o sobre os habitantes de um sub\u00farbio de T\u00f3quio. Na pr\u00e1tica, \u00e9 um \u00e1lbum de retratos t\u00e3o repleto de realismo fant\u00e1stico, absurdo, met\u00e1foras e humor que parece feito sob medida para fritar nossas sinapses.<\/p>\n\n\n\n

Esse n\u00e3o \u00e9 um livro escrito com palavras, mas com imagina\u00e7\u00e3o em estado bruto.<\/p>\n\n\n\n\n\n\n\n

As pessoas do meu bairro<\/strong><\/p>\n\n\n\n

\"\"<\/figure><\/div>\n\n\n\n

N\u00e3o olhe muito a fundo. Apenas curta o momento.<\/p>\n\n\n\n

Esse \u00e9 o sentimento que a protagonista sem nome de People From my Neighbourhood <\/em>parece evocar.<\/p>\n\n\n\n

Em sua voz, leitores veteranos de Kawakami reconhecer\u00e3o de pronto o bom-humor de Quinquilharias Nakano<\/a>, <\/em>seu romance sobre funcion\u00e1rios de uma descontra\u00edda loja de antiguidades. Em certas hist\u00f3rias, o paralelo mais forte \u00e9 com Parada<\/a>, <\/em>conto sobre crian\u00e7as que se descobrem acompanhadas por seres da mitologia japonesa.<\/p>\n\n\n\n

Por\u00e9m, se Nakano <\/em>mant\u00e9m dos dois p\u00e9s no campo do realismo e o segundo se insere na tradi\u00e7\u00e3o do folclore, People From My Neighbourhood <\/em>\u00e9 uma obra orgulhosamente mais ca\u00f3tica.<\/p>\n\n\n\n

Seus cap\u00edtulos n\u00e3o s\u00e3o exatamente \u201ccontos\u201d mais do que descri\u00e7\u00f5es de vizinhos de um bairro fict\u00edcio \u2013 e dos eventos, muitas vezes absurdos, que protagonizam. Um adolescente que s\u00f3 \u00e9 capaz de pronunciar tr\u00eas frases \u2013 \u201cDevo assinar aqui?\u201d, \u201cA conta final, por favor\u201d e \u201cEst\u00e1 chovendo forte hoje\u201d – e ocupa um banco no parque como se fosse seu escrit\u00f3rio. Vov\u00f4 Sombras, assim chamado por possuir duas sombras: uma em constante p\u00e9 de guerra com a outra. Hachiro, garoto-problema abandonado pela fam\u00edlia cuja cust\u00f3dia, entre os moradores, \u00e9 determinada por uma loteria. A dona de uma decr\u00e9pita casa noturna chamada Love, que passa noite ap\u00f3s noite cantando a mesma m\u00fasica no karaok\u00ea. Nenhum cliente jamais agracia seu estabelecimento. Ningu\u00e9m sabe como paga suas contas.<\/p>\n\n\n\n

Personagens j\u00e1 apresentadas reaparecem em contos futuros, n\u00e3o necessariamente, do mesmo jeito ou no mesmo momento de suas vidas. A narradora sem nome migra sem cerim\u00f4nia do passado ao presente e futuro. Muitas vezes, com t\u00e3o pouco apre\u00e7o \u00e0 ordem que suspeitamos se tudo n\u00e3o passa de uma \u201ctrollagem\u201d. Apenas Kawakami \u00e9 capaz de escrever sobre uma doen\u00e7a que transforma todos em pombos \u2013 com sequelas irrevers\u00edveis –\u00a0 e retornar ao status quo para o in\u00edcio de outro cap\u00edtulo.<\/p>\n\n\n\n

Nesse sentido, seu livro se aproxima do esp\u00edrito de Shinya Shokudou<\/a> <\/em>(Midnight Diner<\/em>), mang\u00e1 de Yarou Abe sobre as hist\u00f3rias \u2013 \u00e0s vezes maravilhosas ou sobrenaturais \u2013 de clientes de um boteco da madrugada. No caso de People From My Neighbourhood, <\/em>bem mais do que \u201c\u00e0s vezes\u201d.<\/p>\n\n\n\n

\"\"
Cena da adapta\u00e7\u00e3o \u00e0s telas de Shynia Shokudou<\/em><\/figcaption><\/figure><\/div>\n\n\n\n

Ao contr\u00e1rio de Shokudou, <\/em>a obra de Kawakami tem os dois p\u00e9s e alguns tent\u00e1culos no campo do realismo fant\u00e1stico. H\u00e1 um taxista que leva fantasmas para passear depois do expediente. \u201cMulheres s\u00e3o mulheres\u201d ele protesta \u201cSempre \u00e9 divertido t\u00ea-las por perto, mesmo se elas forem meio transl\u00facidas e n\u00e3o tiverem pernas\u201d.<\/p>\n\n\n\n

H\u00e1 uma garota que encontra uma criatura fedida em uma excurs\u00e3o escolar, cria-a at\u00e9 assumir a forma de um homem e a usa para sess\u00f5es intermin\u00e1veis de sexo. Quando seu companheiro insaci\u00e1vel come\u00e7a a tra\u00ed-la com outras mulheres, ela n\u00e3o consegue encontrar energias para se importar: \u201cafinal de contas, ele n\u00e3o era uma pessoa real, apenas uma coisa <\/em>estranha.\u201d<\/p>\n\n\n\n

Em certas hist\u00f3rias, \u00e9 dif\u00edcil escapar \u00e0 impress\u00e3o de que o livro de Kawakami \u00e9 uma cole\u00e7\u00e3o de retratos de uma humanidade reduzida ao absurdo. Seus contos come\u00e7am esquisitos, \u00e0s vezes absurdos, ent\u00e3o progridem a um n\u00edvel de nonsense <\/em>que viola qualquer suspens\u00e3o de descren\u00e7a.<\/p>\n\n\n\n

Em um dos contos, por exemplo, duas crian\u00e7as olham para uma est\u00e1tua de bronze e decidem que tamb\u00e9m gostariam de ser homenageadas desta maneira. Tempos depois, elas declaram guerra ao Estado pelo direito de terem seu pr\u00f3prio monumento. A revolu\u00e7\u00e3o \u00e9 derrotada meses depois, e as crian\u00e7as voltam para casa dramaticamente transformadas: uma tingira o cabelo de vermelho; outra aprendera a tocar trompete.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 o tipo de humor que esperamos do Flying Circus <\/em>de Monty Python <\/em>mais do que da autora de A Valise do Professor. <\/em><\/p>\n\n\n\n

Mas Kawakami \u00e9 menos consistentemente engra\u00e7ada que a trupe brit\u00e2nica, e se permite, vez ou outra, nos derrubar com a rasteira de um arroubo de emo\u00e7\u00e3o. A linha que separa o fant\u00e1stico do esquisito \u00e9 fina – fina demais, muitas vezes, para que enxerguemos a diferen\u00e7a. Se alguma pessoa consegue sobreviver \u00e0s 120 e poucas p\u00e1ginas de seu livro sem se lembrar de algum ex-morador ou indigente de seu pr\u00f3prio bairro, ela provavelmente n\u00e3o tem cora\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

No Jap\u00e3o contempor\u00e2neo, realismo fant\u00e1stico esteve por muito tempo atrelado ao sucesso sem paralelos de Haruki Murakami. People From My Neighbourhood <\/em>se distancia da atmosfera on\u00edrica e urbana de seus romances, mas tampouco se confunde \u00e0 prosa s\u00f3bria, melanc\u00f3lica de Yoko Ogawa<\/a>; \u00e0 s\u00e1tira perturbadora de Sayaka Murata, muito menos \u00e0 tradi\u00e7\u00e3o latino-americana do realismo m\u00e1gico. \u00c9 um livro dif\u00edcil de descrever, mais ainda de compreende, se \u00e9 que “compreens\u00edvel” \u00e9 sequer um verbo compat\u00edvel com sua irrever\u00eancia. \u00c9, por\u00e9m, uma obra que n\u00e3o deixa de nos surpreender da primeira \u00e0 \u00faltima frase.<\/p>\n\n\n\n

O que mais um leitor poderia querer?<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Era, como diria Vin\u00edcius, um pr\u00e9dio muito engra\u00e7ado. Fam\u00edlias com exatamente seis pessoas ocupavam todos os apartamentos. Aqui e ali, coisas estranhas come\u00e7am a acontecer. Um homem cuja barba cresce mais r\u00e1pido do que \u00e9 capaz de cort\u00e1-la. Uma pessoa cujas bolha no p\u00e9 viraram mini lagoas \u2013 com girinos e tudo. \u201c\u00c9 coisa do […]<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":23114,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"spay_email":"","jetpack_publicize_message":"","jetpack_is_tweetstorm":false},"categories":[580,17],"tags":[758,226,515,759],"jetpack_featured_media_url":"https:\/\/i1.wp.com\/www.finisgeekis.com\/wp-content\/uploads\/2022\/02\/20220223-people-cover.jpg?fit=1382%2C1235&ssl=1","jetpack_publicize_connections":[],"jetpack_shortlink":"https:\/\/wp.me\/p9rUzW-60N","_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/23113"}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=23113"}],"version-history":[{"count":2,"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/23113\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":23119,"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/23113\/revisions\/23119"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/media\/23114"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=23113"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=23113"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.finisgeekis.com\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=23113"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}