Tudo come\u00e7ou com um desafio.<\/p>\n
Um dos editores da revista\u00a0shoujo\u00a0<\/em>Nakayoshi<\/a> confessou \u00e0 mangak\u00e1 Nanase Ohkawa que estavam com um problema. A publica\u00e7\u00e3o n\u00e3o conseguia expandir seu p\u00fablico para al\u00e9m das crian\u00e7as.<\/p>\n Ele esperava que Ohkawa e seu grupo, um quarteto de mulheres conhecidas como CLAMP, tivessem o sucesso que at\u00e9 ent\u00e3o os havia eludido: uma s\u00e9rie infantil que mantivesse as leitoras interessadas mesmo depois de crescidas.<\/p>\n \u00c0 luz do presente, a aposta parecia fadada a dar certo. Mas aqueles eram os anos 1990. Cardcaptor Sakura<\/em>, seu grande sucesso na demografia\u00a0shoujo,\u00a0<\/em>ainda estava por ser escrito. O pedido do editor trazia um dificuldade, mas era uma dificuldade que Ohkawa n\u00e3o podia ignorar. Tinha sido a Nakayoshi, afinal de contas, que trouxera ao mundo\u00a0A Princesa e o Cavaleiro\u00a0<\/em>e\u00a0Sailor Moon<\/em>.<\/p>\n Lan\u00e7ar um t\u00edtulo em suas p\u00e1ginas colocaria a CLAMP no rol dos grandes do universo dos mang\u00e1s.<\/p>\n <\/p>\n O t\u00edtulo em quest\u00e3o foi\u00a0Guerras M\u00e1gicas de Rayearth,\u00a0<\/em>e seu sucesso superou em muito o briefing\u00a0<\/em>original. Mais de vinte e cinco anos depois, a s\u00e9rie n\u00e3o apenas superou as barreiras de sua demografia, como continua a inspirar uma gera\u00e7\u00e3o de adultos.<\/p>\n Apontar o que torna esse\u00a0isekai\u00a0<\/em>da CLAMP t\u00e3o especial \u00e9, de certa forma, uma tarefa insol\u00favel. Nenhuma obra se torna um cl\u00e1ssico desse porte significando o mesmo para todos que a apreciam. Parte dessa riqueza talvez venha do fato de que, para elevar sua hist\u00f3ria, Ohkawa trouxe ao mundo de C\u00e9firo um dos problemas mais espinhosos da experi\u00eancia humana.<\/p>\n Com\u00a0Rayearth\u00a0<\/em>finalmente dispon\u00edvel no streaming brasileiro<\/a>, n\u00e3o poderia haver oportunidade melhor para mergulhar nessa quest\u00e3o.<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n Todos que j\u00e1 leram ou assistiram \u00e0 obra sabem dizer exatamente onde ela prova a que n\u00e3o \u00e9 uma s\u00e9rie como as outras. Falo, \u00e9 claro, do final do primeiro arco, quando o conflito que move a s\u00e9rie finalmente se revela pelo que de fato \u00e9.<\/p>\n Rayearth\u00a0<\/em>come\u00e7a sem surpresas. Tr\u00eas meninas s\u00e3o teleportadas a um mundo paralelo para salvar uma princesa do grande vil\u00e3o. Em retrospecto, \u00e9 poss\u00edvel imaginar Ohkawa puxando as cordinhas de seu enredo, preparando as leitoras da\u00a0Nakayoshi\u00a0<\/em>para um choque de que n\u00e3o se esqueceriam.<\/p>\n Cap\u00edtulos depois, descobrimos que a princesa n\u00e3o \u00e9 uma donzela em defesa, e sim uma rainha pescadora<\/a>, fadada a governar uma terra regida pelas suas emo\u00e7\u00f5es. O vil\u00e3o n\u00e3o \u00e9 um inimigo, mas o grande amor de sua vida, lutando uma guerra ingrata para libert\u00e1-la de seu fardo. E as guerreiras m\u00e1gicas n\u00e3o s\u00e3o hero\u00ednas, e sim as executoras que ela pr\u00f3pria convocou para dar fim a sua agonia.<\/p>\n <\/p>\n Lendo a hist\u00f3ria pela primeira vez, durante uma viagem de avi\u00e3o aos 18 anos, tive a impress\u00e3o de que algo mais forte que a turbul\u00eancia me sacudia no assento. Ainda hoje estreme\u00e7o ao pensar no qu\u00e3o mais poderosa ela foi \u00e0queles que a acompanharam em sua inf\u00e2ncia.<\/p>\n Precisei, contudo, de outra d\u00e9cada para descobrir que Ohkawa n\u00e3o fora a primeira a dar vida \u00e0quela f\u00e1bula. Vinte anos anos, a escritora americana Ursula Le Guin havia ganhado o pr\u00eamio Hugo com uma hist\u00f3ria suspeitamente parecida,\u00a0Os Que se Afastam de Omelas<\/a>.<\/em><\/p>\n <\/p>\n O<\/i> conto trata de uma cidade, \u00e0 primeira vista, perfeita demais para existir. Seu povo n\u00e3o precisava de reis, de armas ou de escravos. De prociss\u00f5es nababescas a\u00a0orgias lis\u00e9rgicas, Omelas tinha o suficiente para realizar qualquer sonho. Como a C\u00e9firo de Rayearth<\/em>, era uma terra limitada apenas pela imagina\u00e7\u00e3o.<\/p>\n Havia apenas um por\u00e9m: num calabou\u00e7o subterr\u00e2neo, escondido das vistas dos outros, uma crian\u00e7a era mantida nas piores condi\u00e7\u00f5es de cativeiro. Sem luz ou ar fresco, longe do contato humano, ela dormia sobre seus escrementos enquanto o resto das pessoas aproveitava sua utopia.<\/p>\n Ningu\u00e9m sabe ao certo por que manter a crian\u00e7a naquele estado era necess\u00e1rio. Apenas que, sem seu sacrif\u00edcio, o para\u00edso em que viviam deixaria de existir. E ningu\u00e9m estava disposto a desafiar o pacto maldito que fazia as flores desabrocharem.<\/p>\n <\/p>\n Le Guin n\u00e3o foi a \u00fanica<\/a>, nem a\u00a0primeira<\/a>, a nos convidar a pensar numa utopia movida pelo sofrimento de um pilar. No entanto, seu conto \u00e9 aquele que coloca esta f\u00e1bula nos termos mais pr\u00f3ximos aos de\u00a0Rayearth.\u00a0<\/em>De fato, para n\u00f3s que temos familiaridade com a s\u00e9rie, as \u00faltimas palavras de\u00a0Omelas\u00a0<\/em>soam suspeitamente com a voz de Lantis:<\/p>\n \u00c0s vezes, uma das garotas ou um dos meninos adolescentes que v\u00e3o ver a crian\u00e7a n\u00e3o voltam para casa para chorar ou enraivecer-se; n\u00e3o voltam, de fato, para casa de todo. […] Cada um sozinho, eles se dirigem a oeste ou a norte, em dire\u00e7\u00e3o \u00e0s montanhas. Eles continuam em frente. Eles deixam Omelas, eles seguem adiante escurid\u00e3o adentro e n\u00e3o retornam. O lugar aonde eles v\u00e3o \u00e9 um lugar ainda menos imagin\u00e1vel para a maioria de n\u00f3s que a cidade da felicidade. Eu n\u00e3o posso de forma alguma descrev\u00ea-lo. \u00c9 poss\u00edvel que ele n\u00e3o exista. Mas eles parecem saber onde eles est\u00e3o indo, aqueles que se afastam de Omelas. <\/em><\/p><\/blockquote>\n \u00c9 um final poderoso como a rajada de um\u00a0mashin<\/em>, n\u00e3o pela natureza de sua cr\u00edtica, mas pela sutileza como a expressa. Indignar-se com a injusti\u00e7a n\u00e3o \u00e9 o suficiente.<\/p>\n Le Guin nos convida, como Zagato no in\u00edcio de\u00a0Rayearth,\u00a0<\/em>a ousar a acreditar em\u00a0um mundo diferente.<\/p>\n Mesmo que, para alcan\u00e7\u00e1-lo, precisemos seguir adiante escurid\u00e3o adentro, sem a menor garantia de que encontraremos alguma coisa do outro lado.<\/p>\n Zagato \u00e9 um daqueles que se afastaram de Omelas.<\/p>\n <\/p>\n Essas similaridades entre as duas obras levaram\u00a0alguns<\/a> a afirmar que Rayearth <\/em>e Omelas <\/em>s\u00e3o essencialmente a mesma hist\u00f3ria. Mas existe uma diferen\u00e7a fundamental nos pensamentos de Ohkawa e le Guin que n\u00e3o pode ser menosprezada.<\/p>\n Individualista convicta, a l\u00edder do CLAMP acredita que cada pessoa \u00e9 respons\u00e1vel \u2013 e a \u00fanica<\/strong> respons\u00e1vel \u2013 por mudar seu destino. Como ela disse em uma\u00a0entrevista \u00e0 Animerica<\/a>,<\/p>\n Eu acho que \u00e9 uma mentira [dizer] que existe uma for\u00e7a m\u00edstica a\u00ed fora, manipulando sua sina. […] Eu acho que destino \u00e9 algo que voc\u00ea escolhe fazer, mesmo quando voc\u00ea est\u00e1 sendo conduzido por ele. Por exemplo, se voc\u00ea est\u00e1 no trabalho e voc\u00ea quer pedir demiss\u00e3o, \u00e9 necess\u00e1rio muita energia para faz\u00ea-lo. Voc\u00ea estar\u00e1 perdendo uma vida est\u00e1vel, e se voc\u00ea n\u00e3o gosta disto, voc\u00ea ter\u00e1 de aprender a lidar com a maneira como as coisas s\u00e3o. Mas se voc\u00ea quiser mudar as coisas, apenas voc\u00ea pode fazer isso para voc\u00ea mesma. Se voc\u00ea n\u00e3o gostar de fazer <\/em>isto<\/strong>, voc\u00ea deixa as circunst\u00e2ncias ditarem seu destino. Mas se voc\u00ea tem determina\u00e7\u00e3o e coragem, eu acho que voc\u00ea pode mudar seu destino.<\/em><\/p><\/blockquote>\nAt\u00e9 que ponto temos o poder de mudar o mundo?<\/strong><\/h3>\n
O poder de ditar nosso pr\u00f3prio destino<\/strong><\/h3>\n