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Chiaroscuro\u00a0<\/em><\/a>\u00e9 uma t\u00e9cnica art\u00edstica que exagera o contraste entre luz e sombra. Fora da pintura, a palavra \u00e0s vezes \u00e9 usada para descrever hist\u00f3rias que misturam o belo com o feio, o inocente com o perverso, o bem com o mal.<\/p>\n Animes e mang\u00e1s t\u00eam um gosto especial por esse recurso. Em especial, quando contrastam viol\u00eancia com personagens fofas. Pontos a mais se elas forem crian\u00e7as.<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n Elfen Lied\u00a0<\/em>e\u00a0Higurashi <\/em>o empregam para efeito de choque. Made in Abyss<\/em><\/a>, como medida da arbitrariedade da natureza. Madoka<\/em>, na reimagina\u00e7\u00e3o f\u00e1ustica<\/a> da moral de garotas m\u00e1gicas.<\/p>\n Com\u00a0Mahou Shoujo Site<\/em><\/a>, esse\u00a0contraste chegou ao n\u00edvel\u00a0exploitation<\/em>\u00a0– para desespero de alguns cr\u00edticos<\/a>, que v\u00eam nele uma desculpa para o\u00a0<\/em>mau gosto e at\u00e9 misoginia.<\/p>\n O destino parece sorrir (ou rosnar) a esses cr\u00edticos. Pois, logo ap\u00f3s\u00a0Mahou Shoujo Site<\/em>\u00a0receber uma adapta\u00e7\u00e3o, a temporada de ver\u00e3o 2018 incluir\u00e1 um lan\u00e7amento ainda mais pol\u00eamico.<\/p>\n Happy Sugar Life<\/em>, cuja dubiedade est\u00e1 presente desde o t\u00edtulo, \u00e9 uma s\u00e9ries mais intrigantes (e depravadas) a ganhar as telas nos \u00faltimos tempos.<\/p>\n <\/p>\n Escrito por Tomiyaki Kagisora, o mang\u00e1 nos apresenta Satou Matsuzaka, uma adolescente de olhos esbugalhados e um sorriso perfeito. T\u00e3o perfeito, na verdade, que suspeitamos que algo esteja errado.<\/p>\n Satou \u00e9 conhecida como uma garota f\u00e1cil, migrando de parceiro a parceiro com o t\u00e9dio de quem muda canais de madrugada. Eventualmente, ela se encontra nos bra\u00e7os de uma garota. E descobre uma paz de esp\u00edrito que homem algum j\u00e1 lhe proporcionou.<\/p>\n <\/p>\n Podia ser uma hist\u00f3ria sobre a descoberta da sexualidade, como tantas que j\u00e1 emocionaram leitores. N\u00e3o demora muito, por\u00e9m, para entendermos que se trata de tudo menos isso.<\/p>\n Shio Kobe, objeto dos desejos de Satou, \u00e9 uma crian\u00e7a na primeira inf\u00e2ncia. Sua rela\u00e7\u00e3o n\u00e3o parece ter nada de abertamente sexual, mas at\u00e9 a\u00ed, tampouco os sorrisos melosos e vozes mansas de tantos ped\u00f3filos.<\/p>\n Ao vermos Shio e Satou enla\u00e7adas em um abra\u00e7o, afundando no que parece ser um mar escuro, entendemos que sua rela\u00e7\u00e3o \u00e9 uma trag\u00e9dia anunciada, prestes a se deflagrar em nossas m\u00e3os.<\/p>\n <\/p>\n As verdades chegam aos poucos, em um passo que nos soa a um s\u00f3 tempo terrivelmente r\u00e1pido e dolorosamente lento.<\/p>\n “Satou” (\u7802\u7cd6) \u00e9 japon\u00eas para a\u00e7\u00facar, que encontra eco no t\u00edtulo da s\u00e9rie e na paleta tutti-frutti<\/em> de seus pain\u00e9is. \u00a0Logo no primeiro cap\u00edtulo, no entanto, nos deparamos com cartazes de uma Shio desaparecida e sacos ensanguentados que presumimos serem corpos.<\/p>\n \u00c9 a maneira como o mang\u00e1 nos conta que ultrapassamos uma linha. E que estamos fadados, tal como Alex de Laranja Mec\u00e2nica<\/em>, a olhar direto para o abismo.<\/p>\n O mang\u00e1 j\u00e1 foi descrito como shoujo ai<\/em>, mas o que chama de \u201camor\u201d \u00e9 bem diferente do que f\u00e3s do g\u00eanero esperam. Na sua compuls\u00e3o, Sato se mostra uma vers\u00e3o feminina de Barba Azul,<\/a> com direito a um quarto de segredos ensanguentados.<\/p>\n <\/p>\n Sato n\u00e3o deseja <\/strong>Shio mais do que a deseja apenas para si. <\/strong>O cativeiro \u00e9 o seu ninho de amor: a certeza reconfortante de que, em algum lugar da sua vida, h\u00e1 uma pessoa com olhos s\u00f3 para ela.<\/p>\n Tal como Barba Azul, no entanto, n\u00e3o demora para que o segredo de Sato comece a escapar pelas frestas. Na medida em que suas esquisitices chamam a aten\u00e7\u00e3o daqueles a sua volta, a garota faz de tudo para preservar seu segredo.<\/p>\n Por\u00e9m, a cada chantagem, fraude e po\u00e7a de sangue surge uma nova testemunha, um novo perigo a ser silenciado, uma nova linha a ser cruzada. De um “amor” doentio de in\u00edcio nasce a espiral viciosa de uma obsess\u00e3o.<\/p>\n Como sua protagonista em sua cruzada doentia, n\u00f3s tamb\u00e9m passamos a ver o mundo como um campo minado. Novos personagens s\u00e3o amea\u00e7as em potencial, mas tamb\u00e9m retratos de uma vida destru\u00edda.<\/p>\n Entre os parentes, amigos e conhecidos em seu entorno, encontramos v\u00edtimas de pedofilia, agress\u00e3o f\u00edsica, abandono familiar e tortura psicol\u00f3gica. Cada coadjuvante carrega seu pr\u00f3prio peso. Cada sorriso, um trauma dissimulado. Cada sombra, a amea\u00e7a de um novo predador.<\/p>\n <\/p>\n Happy Sugar Life <\/em>vem na linha de um conjunto de s\u00e9ries sobre garotas<\/a> que n\u00e3o hesitam em torturar suas protagonistas. Ceda \u00e0s apar\u00eancias por sua conta e risco: o mang\u00e1, na verdade, tem pouco a ver com essas obras.<\/p>\n Seus quadros s\u00e3o mais limpos que um quarto de hospital. Tal como uma cena do crime lavada por um psicopata, quase n\u00e3o h\u00e1 uma gota de sangue: apenas a insinua\u00e7\u00e3o de que algo est\u00e1 profundamente errado.<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n Nesse sentido, a vida de Sato tem menos de Mahou Shoujo Site <\/em>que do arco final de Oyasumi Punpun: <\/em>\u00a0um exame das emo\u00e7\u00f5es deturpadas de um grupo de jovens \u2013 e as consequ\u00eancias terr\u00edveis para suas vidas.<\/p>\n Satou fala de seus parceiros com a casualidade de uma adolescente para quem o sexo n\u00e3o \u00e9 mais um mist\u00e9rio. \u00c9 uma imagem realista \u2013 e, tamb\u00e9m, uma lufada de ar fresco diante das virgens improv\u00e1veis e par\u00f3dias de Messalinas que povoam os mang\u00e1s.<\/p>\n \u00c9, tamb\u00e9m, o retrato c\u00ednico de uma garota dopada contra seus pr\u00f3prios sentimentos.<\/p>\n Em dada cena, por exemplo, n\u00f3s a vemos perseguida por uma admiradora. Sato a comprime contra os arm\u00e1rios em um beijo violento que nos choca mais que a pr\u00f3pria v\u00edtima. Depois de alguns minutos de amassos, convence-a a parar de segui-la.<\/p>\n <\/p>\n Para Satou, seres humanos s\u00e3o obst\u00e1culos, e os gestos de afetos, ferramentas para contorn\u00e1-los.<\/p>\n N\u00e3o demora para que nos perguntemos se o que sente por Shio n\u00e3o \u00e9 uma muleta parecida. E sua rela\u00e7\u00e3o, longe de \u201camor\u201d, um est\u00edmulo desesperado para dar sentido ao seu vazio.<\/p>\n “Amor \u2013 ou \u00e9 apenas o romance? \u2013 \u00e9 um alucin\u00f3geno. \u00c9 o tapete voador, o truque de corda. \u00c9 aquilo<\/em> no singular, e ningu\u00e9m que o v\u00ea \u2013 o que significa, \u00e9 \u00f3bvio, acreditar nele \u2013 pode esperar continuar o mesmo. […] Houve momentos, David, em que eu pensei que s\u00f3 aquilo, s\u00f3 o fato de voc\u00eas dois, n\u00e3o importa o que veio disso, mas apenas ver voc\u00eas dois e sentir o que voc\u00eas significavam um para o outro e saber que amor \u00e9 um estado de consci\u00eancia alterada foi mais do que eu podia honestamente absorver. E aquilo de certa forma destruiu minha vida.”<\/p>\n<\/blockquote>\n\n