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H\u00e1 uma cena em Perfect Blue <\/em>que permanece em nossa mente muito depois do filme acabar. Murano, um fot\u00f3grafo, recebe um delivery de pizza. Assim que abre a porta, a entregadora o apunhala com uma chave de fenda.<\/p>\n Murano cambaleia. Um segundo golpe leva seu olho. Sangue cobre os m\u00f3veis na medida em que ensaia uma defesa f\u00fatil. A atacante o sobrepuja, e n\u00f3s vemos que \u00e9 Mima Kirigoe, nossa protagonista, uma atriz cujos nus Murano fotografou.<\/p>\n <\/p>\n Um projetor \u00e9 ligado acidentalmente, e imagens da pr\u00f3pria Mima incidem sobre ela. Enquanto golpeia um Murano j\u00e1 inanimado, a garota \u00e9 contraposta \u00e0s fotos de seu ensaio. A cada lembran\u00e7a, uma careta mais odiosa contorce seu rosto.<\/p>\n <\/p>\n Para boa parte dos espectadores, essa foi a tomada que os introduziu a Perfect Blue<\/em>. Capa de seu DVD, ela fez para o filme o que o grito de Janet Leigh no chuveiro no Psicose <\/em>fez ao cl\u00e1ssico de Hitchcock. E ajudou a transformar Satoshi Kon num dos maiores diretores dos anos 2000.<\/p>\n \u00c9 estranho imaginar o que seria do longa sem essa sequ\u00eancia. Mais estranho ainda saber que n\u00e3o existia no livro que deu origem \u00e0 hist\u00f3ria.<\/p>\n Com Perfect Blue: Complete Metamorphosis<\/a>, <\/em>publicado pela Seven Seas, leitores ocidentais podem finalmente conferir onde tudo come\u00e7ou.<\/p>\n <\/p>\n Escrito por Yoshikazu Takeuchi, o livro traz nomes conhecidos dos f\u00e3s do filme, em pap\u00e9is t\u00e3o diferentes que parecem uma outra hist\u00f3ria.<\/p>\n Mima Kirigoe \u00e9 uma idol <\/em>de sucesso diante do maior desafio de sua profiss\u00e3o: a idade. Amea\u00e7ada pelo sucesso de uma jovem rival, a artista \u00e9 for\u00e7ada a se reinventar para continuar relevante.<\/p>\n A solu\u00e7\u00e3o, para a surpresa de ningu\u00e9m, \u00e9 o sexo. Sob a orienta\u00e7\u00e3o de seus agentes, Mima \u00e9 rebaixada a um objeto de desejo, alavancando sua fama com ensaios er\u00f3ticos, performances ousadas e roupas provocativas.<\/p>\n Nem todos aprovam essa nova Mima. Um f\u00e3 an\u00f4nimo, obcecado pela inoc\u00eancia de sua antiga persona, resolve proteger sua pureza. Movido por uma adora\u00e7\u00e3o temperada por misoginia, ele est\u00e1 disposto a impedir que sua idol <\/em>favorita mude. Por todos os meios necess\u00e1rios.<\/p>\n As semelhan\u00e7as com sua adapta\u00e7\u00e3o cinematogr\u00e1fica acabam por aqui. O assassinato ic\u00f4nico do fot\u00f3grafo n\u00e3o faz parte do enredo, que traz, no entanto, sua pr\u00f3pria cota de sangue. Rumi, a assistente de Mima, aparece no romance, mas n\u00e3o o twist<\/em> chocante de sua vers\u00e3o das telas.<\/p>\n <\/p>\n Mais importantemente, o conflito entre verdade e fic\u00e7\u00e3o, del\u00edrio e realidade n\u00e3o tem lugar nessas p\u00e1ginas. Kon usou a hist\u00f3ria de Mima como pretexto para uma f\u00e1bula p\u00f3s-moderna. Takeuchi, por sua vez, escreve um suspense sem firulas, a meio caminho do terror slasher <\/em>e do romance er\u00f3tico.<\/p>\n A decis\u00e3o pode soar estranha aos calejados pelo anime, mas cai como uma luva a seu assunto espinhoso. Takeuchi apresenta um retrato asqueroso da pior face do mundo das idols<\/em>, em que jovens mulheres s\u00e3o induzidas \u00e0 promiscuidade e, paradoxalmente, punidas por abra\u00e7arem sua libido.<\/p>\n O stalker <\/em>de Mima, cujo nome nunca \u00e9 mencionado, \u00e9 o perfeito retrato desse ardil 22<\/a>. Em dada cena, o vil\u00e3o sequestra e estupra uma idol<\/em> para depois assassin\u00e1-la por ser \u201cimpura\u201d. A viol\u00eancia e cinismo s\u00e3o t\u00e3o revoltantes que faz do assassinato de Murano na vers\u00e3o cinematogr\u00e1fica uma catarse a altura.<\/p>\n O livro foi escrito em 1991, mas n\u00e3o parece ter envelhecido um ano desde sua publica\u00e7\u00e3o. Pelo contr\u00e1rio, \u00e9 imposs\u00edvel n\u00e3o compar\u00e1-lo ao show business <\/em>contempor\u00e2neo, dos esc\u00e2ndalos de ass\u00e9dio por tr\u00e1s das c\u00e2meras \u00e0 sexualiza\u00e7\u00e3o oportunista (e pasteurizada) de estrelas pop.<\/p>\n <\/p>\n \u00c9 uma pena, no entanto, que essa den\u00fancia tenha ganhado vida n\u00e3o nas p\u00e1ginas de um romance, mas no sucessor do pulp<\/em><\/a>, a\u00a0light novel<\/em><\/a> japonesa.<\/p>\n F\u00e3s de anime s\u00e3o bem familiares ao g\u00eanero, que incubou algumas das melhores<\/a> (e piores<\/a>) s\u00e9ries dos \u00faltimos tempos. Os amantes de literatura, por sua vez, merecem uma palavra de aviso.<\/p>\n Light novels <\/em>n\u00e3o s\u00e3o livros infanto-juvenis. Como o nome j\u00e1 entrega, s\u00e3o vers\u00f5es destiladas do bom e velho romance. Quem j\u00e1 estudou l\u00edngua estrangeira com aquelas vers\u00f5es simplificadas de grandes cl\u00e1ssicos reconhecer\u00e1 de cara o formato.<\/p>\n O vocabul\u00e1rio \u00e9 reduzido. Os per\u00edodos, simples. As met\u00e1foras, raras e \u00f3bvias. Os di\u00e1logos, engessados e expositivos. S\u00e3o hist\u00f3rias despidas ao mais b\u00e1sico (e an\u00f3dino) que a narrativa tem a oferecer.<\/p>\n Ao amante de literatura \u00e9 quase um exerc\u00edcio do que n\u00e3o <\/strong>fazer com uma pena em m\u00e3os \u2013 e uma prova da import\u00e2ncia de dominar as ferramentas da linguagem.<\/p>\n Perfect Blue <\/em>\u00e9 menos uma hist\u00f3ria que um enredo a espera de quem o articule. Ao evitar os meandros cerebrais da sua vers\u00e3o animada, a novel <\/em>de Takeuchi se afasta tamb\u00e9m da mensagem que transformou o filme em um cl\u00e1ssico cult.<\/p>\n O show business, <\/em>Kon nos conta, n\u00e3o \u00e9 uma agress\u00e3o apenas ao corpo. Ele destr\u00f3i tamb\u00e9m a mente, a realidade, nossa pr\u00f3pria consci\u00eancia como indiv\u00edduos.<\/p>\n H\u00e1 mais no mercado das idols <\/em>que homens maus judiando de garotinhas. \u00c9 uma gangrena maior que afeta a toda a sociedade, dopada em opioides, na m\u00eddia de massa, no seu pr\u00f3prio narcisismo impenitente.<\/p>\n N\u00e3o \u00e9 \u00e0 toa que seu anime foi adaptado t\u00e3o bem a hist\u00f3rias de v\u00edcio em drogas e ballet, nos filmes R\u00e9quiem para um Sonho <\/em>e Cisne Negro<\/em>. O assassinato de Murano por Mima n\u00e3o \u00e9 chocante pelo sangue ou pela nudez. Ele nos assombra porque j\u00e1 vimos essas pessoas antes, em outras profiss\u00f5es, sob outras loucuras.<\/p>\n <\/p>\n Takeuchi se aferroa ao primeiro ponto, com cenas de tortura e estupro para s\u00e1dico algum colocar defeito. Sem a vis\u00e3o de Kon, por\u00e9m, sua viol\u00eancia gr\u00e1fica desaba \u00e0 pornografia.<\/p>\n O autor salta de ponto de vista ao longo do romance, colocando o leitor ora nos p\u00e9s de Mima, ora no de sua rival, seus agentes e at\u00e9 do stalker <\/em>que a persegue. Com tudo \u00e0s claras, o sentimento de paranoia que Kon construiu t\u00e3o bem n\u00e3o encontra espa\u00e7o para crescer.<\/p>\n Perfect Blue, <\/em>o filme, \u00e9 a luta arraigada de uma mente contra a loucura e a obsess\u00e3o. Perfect Blue, <\/em>o livro, \u00e9 uma den\u00fancia maquinal do mercado de espet\u00e1culo, narrada com a inanidade de uma c\u00e2mera de seguran\u00e7a.<\/p>\n \u00c9 not\u00e1vel que os dois posf\u00e1cios inclu\u00eddos na edi\u00e7\u00e3o da Seven Seas \u2013 de 1991 e 1998, respectivamente \u2013 n\u00e3o trazem nada que n\u00e3o pud\u00e9ssemos inferir da pr\u00f3pria hist\u00f3ria. Takeuchi diz escrever da perspectiva de um f\u00e3 de idols<\/em>, coisa que seu texto deixa bem claro. Tal como o stalker <\/em>que persegue Mima, ele n\u00e3o consegue ver a big picture<\/em>.<\/p>\n <\/p>\n