\u00a0<\/strong>Certa vez, assistindo \u00e0 intro de Majora\u2019s Mask<\/em>, minha noiva fez o seguinte coment\u00e1rio:<\/p>\n \u201cOs jogos no passado eram mais m\u00e1gicos<\/em><\/strong>.\u201d<\/p>\n \u201cPor qu\u00ea? \u201d eu perguntei.<\/p>\n \u201cPorque deixavam mais a cargo da imagina\u00e7\u00e3o.\u201d<\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o d\u00e1 para negar o argumento. Os Zeldas\u00a0<\/em>do N64 n\u00e3o fizeram sucesso apenas por serem jogos bons. \u00c9 preciso de algo a mais para transformar pol\u00edgonos ambulantes em personagens cativantes.<\/p>\n <\/p>\n Quase vinte anos depois, a situa\u00e7\u00e3o parece ter mudado. Basta um titubeio pelo uncanny valley<\/a><\/em> para que um jogo seja crucificado. Mass Effect: Andromeda<\/a> <\/em>foi o alvo mais recente, mas sem d\u00favida n\u00e3o ser\u00e1 o \u00faltimo.<\/p>\n Assim, \u00e9\u00a0curioso notar que o CRPG mais financiado da hist\u00f3ria<\/strong> do\u00a0Kickstarter<\/strong> segue um caminho completamente diferente.<\/p>\n N\u00e3o qualquer CRPG, mas o sucessor espiritual de um dos maiores games\u00a0de todos os tempos: Planescape Torment.<\/em><\/p>\n <\/p>\n Produzido pela InXile, desenvolvedora de Brian Fargo que ressuscitou a franquia Wasteland <\/em>anos atr\u00e1s, Torment: Tides of Numenera<\/em> traz v\u00e1rios dos criadores de Planescape <\/em>de volta para um novo \u00e9pico.<\/p>\n O game da InXile se passa no cen\u00e1rio de Numenera<\/em>, do qual j\u00e1 falei aqui antes<\/a>. Trata-se de uma idade das trevas futurista, ambientada um bilh\u00e3o de anos no futuro. <\/strong><\/p>\n Oito \u201chumanidades\u201d j\u00e1 ascenderam e foram extirpadas por apocalipses planet\u00e1rios. No Nono Mundo, como a Terra passa a ser chamada, uma sociedade primitiva sobrevive em meio a destro\u00e7os de civiliza\u00e7\u00f5es passadas.<\/p>\n O cen\u00e1rio \u00e9 uma realiza\u00e7\u00e3o ambulante da 3\u00aa lei de Arthur C. Clarke: \u201cqualquer tecnologia suficientemente avan\u00e7ada \u00e9 indistingu\u00edvel da magia<\/strong>\u201d. De naves interdimensionais a monstros biomec\u00e2nicos, nanorrob\u00f4s a seitas m\u00edsticas, seu universo \u00e9 t\u00e3o ex\u00f3tico que borra as distin\u00e7\u00f5es entre \u201cfantasia\u201d e \u201cfic\u00e7\u00e3o cient\u00edfica\u201d.<\/p>\n <\/p>\n Nada mais justo para um sucessor espiritual de Planescape: Torment<\/em>, baseado no celebrado cen\u00e1rio Planescape <\/em>de D&D, que o pr\u00f3prio Monte Cook, criador de Numenera, <\/em>ajudou a criar.<\/p>\n <\/p>\n Fiel ao seu cen\u00e1rio, o game da InXile come\u00e7a com um mist\u00e9rio. Em uma abertura digna de Haibane Renmei<\/em>, nosso protagonista \u201cnasce\u201d enquanto despenca do c\u00e9u. Ou, mais precisamente, quando se espatifa no ch\u00e3o e descobre, como o Nameless One de Planescape: Torment<\/em>, que n\u00e3o \u00e9 capaz de morrer. <\/strong><\/p>\n Nossa personagem em Tides of Numenera<\/em> \u00e9 um Deus. Na verdade, um ex-Deus. <\/em>\u00a0<\/strong><\/p>\n Vaga pelo Nono Mundo uma figura cr\u00edptica chamada de Changing God, um imortal com o poder de criar novos corpos e transferir sua consci\u00eancia para eles. Os corpos rejeitados se tornam castoffs<\/em>, indiv\u00edduos que compartilham seus poderes, mas n\u00e3o suas mem\u00f3rias.<\/p>\n Seus experimentos com a imortalidade atra\u00edram a ira de uma for\u00e7a misteriosa conhecida como The Sorrow, uma contra-for\u00e7a da natureza \u00e0queles que violam seu equil\u00edbrio. Na sanha de evadi-la, o Changing God se v\u00ea em uma persegui\u00e7\u00e3o que durar\u00e1 s\u00e9culos, mudando freneticamente de corpos atr\u00e1s de uma forma capaz de destru\u00ed-la.<\/p>\n Em Tides of Numenera<\/em>, nosso protagonista \u00e9 o \u00faltimo dos castoffs<\/em>. Descobrindo que a Sorrow persegue estes castoffs<\/em> com a mesma energia com que ca\u00e7a o Changing God, ele parte em uma jornada atr\u00e1s do indiv\u00edduo que outrora habitou seu corpo.<\/p>\n <\/p>\n Se a sinopse acima foi o bastante para dar um n\u00f3 em sua cabe\u00e7a, j\u00e1 podem imaginar o tipo de jogo que Tides of Numenera <\/em>\u00e9. Tal como seu precedessor, Planescape: Torment,<\/em> \u00a0game da InXile \u00e9 um festival de criatividade, exotismo e uma das lores <\/em>mais interessantes<\/strong> a dar as caras em um RPG.<\/p>\n <\/p>\n Planescape: Torment <\/em>ficou c\u00e9lebre pelo seu roleplay <\/em>\u201ccabe\u00e7a\u201d, e Tides of Numenera <\/em>faz jus ao seu legado. Esque\u00e7a o final tricolor de Mass Effect 3 <\/em>ou a moral bin\u00e1ria de Fable <\/em>ou Star Wars: KotOR<\/em>. O game da InXile traz um dos leques mais diversos de atua\u00e7\u00e3o que um CRPG\u00a0pode oferecer.<\/p>\n O jogo \u00e9 baseado no elegante sistema Cypher<\/a>, o mesmo utilizado no RPG de mesa de Monte Cook. Tr\u00eas atributos (for\u00e7a, velocidade e intelecto) regem todas as intera\u00e7\u00f5es, e pontos de \u201cesfor\u00e7o\u201d podem ser gastos para facilitar tarefas em que ter\u00edamos dificuldade.<\/p>\n <\/p>\n Cypher tem sido elogiado como uma das maiores surpresas do RPG de mesa, e Tides of Numenera<\/em> mostra que sua reputa\u00e7\u00e3o \u00e9 merecida. Sua jogabilidade \u00e9 minimalista e eficiente, um sopro de ar fresco em compara\u00e7\u00e3o aos cl\u00e1ssicos isom\u00e9tricos da Infinity Engine que visa a simular.<\/p>\n O combate, por turnos, \u00e9 taticamente superior ao contempor\u00e2neo Pillars of Eternity<\/em>, embora n\u00e3o alcance o refinamento de Divinity: Original Sin <\/em>ou mesmo Wasteland 2, <\/em>t\u00edtulo anterior da InXile.<\/p>\n Seu diferencial mais memor\u00e1vel, no entanto, \u00e9 que eles n\u00e3o s\u00e3o sin\u00f4nimos de derramamento de sangue. Batalhas em Torment: Tides of Numenera<\/em> s\u00e3o chamadas de \u201ccrises\u201d, e sempre podem ser resolvidas de diversas maneiras, das quais a luta \u00e9 apenas uma.<\/p>\n <\/p>\n Ambiente, maquin\u00e1rio e uma s\u00e9rie de gadgets podem ser aproveitados para resolver situa\u00e7\u00f5es. NPCs (mesmo se hostis) est\u00e3o quase sempre abertos ao di\u00e1logo, e uma lista formid\u00e1vel de skills <\/em>nos d\u00e1 uma gama de possibilidades para manipul\u00e1-los aos nossos interesses.<\/p>\n Em uma \u00e9poca em que CRPGs se confundem com FPSs e Hack n\u2019 Slash<\/em>, esse \u00e9 um destaque que n\u00e3o pode ser subestimado. Sua \u00eanfase em caminhos n\u00e3o-violentos faz de Tides of Numenera<\/em> um jogo marcadamente lento, mas traz nuances de roleplay <\/em>virtualmente\u00a0in\u00e9ditas desde o Torment <\/em>original.<\/p>\n Muito disso \u00e9 fruto de seu volume colossal de escrita. Tides of Numenera <\/em>transborda de di\u00e1logos de uma maneira que mesmo o CRPG, g\u00eanero conhecido pela exig\u00eancia de leitura, poucas vezes faz.<\/p>\n O jogo abusa do tell don\u2019t show<\/em> \u2013 tanto, em alguns momentos, que nos sentimos jogando n\u00e3o um RPG isom\u00e9trico, mas uma visual novel.<\/p>\n <\/p>\n Se o texto n\u00e3o parece sup\u00e9rfluo, o m\u00e9rito \u00e9 da alt\u00edssima qualidade de sua escrita. E n\u00e3o digo isso com leviandade: o game \u00e9 assinado por uma equipe de peso, incluindo Patrick Rothfuss, autor de A Cr\u00f4nica do Matador do Rei.<\/a><\/em><\/p>\nTides of Numenera<\/strong><\/h3>\n
O enredo<\/h3>\n