Muitos anos atr\u00e1s, um primo italiano, restaurador, deu para minha m\u00e3e um vaso que encontrou em um s\u00edtio arqueol\u00f3gico. Ele o escavara em Cariati<\/a>, uma pequenina cidade do sul da It\u00e1lia de onde veio a minha fam\u00edlia.<\/p>\n Estava em peda\u00e7os e parecia ser muito antigo. Grego? Romano? Etrusco? Ningu\u00e9m sabia ao certo, mas n\u00e3o importava. Minha fam\u00edlia sempre o tratou como um tesouro sem igual.<\/p>\n <\/p>\n <\/p>\n N\u00e3o toda a minha fam\u00edlia, \u00e9 verdade. Minha v\u00f3, nascida e criada em\u00a0Cariati, nunca entendeu para que tanto drama por causa de um simples vaso quebrado.<\/p>\n Eu, que sempre sonhei em ser arque\u00f3logo, achava aquilo um disparate. Como ela n\u00e3o conseguia ver o valor de artefato t\u00e3o antigo?\u00a0S\u00e9culos (se n\u00e3o mil\u00eanios!) atr\u00e1s algu\u00e9m criara, comprara e usara aquele vaso.<\/p>\n Como ela n\u00e3o podia se emocionar em ver que um item t\u00e3o b\u00e1sico quanto um pote de barro podia unir duas pessoas separadas por eras hist\u00f3ricas inteiras?<\/p>\n O tempo passou; meu entusiasmo, n\u00e3o. Eventualmente, \u00a0eu pr\u00f3prio virei um historiador e conheci minha cota de documentos e s\u00edtios hist\u00f3ricos. Para minha surpresa, foi finalmente ao conversar com\u00a0arque\u00f3logos que descobri que minha v\u00f3 estava certa.<\/p>\n Cer\u00e2mica (eles me contaram) era a garrafa PET do mundo antigo. Sim, elas s\u00e3o rel\u00edquias, mas est\u00e3o longe de ser os pergaminhos do Mar Morto.<\/p>\n <\/p>\n Milh\u00f5es de vasos maiores, mais bonitos e mais intactos que o meu j\u00e1 haviam sido encontrados em toda a Europa. Certos museus possu\u00edam caixas inteiras de potes parecidos, guardadas em dep\u00f3sitos porque ningu\u00e9m queria v\u00ea-los. Muitos foram destru\u00eddos<\/strong>, seja por descuido, seja para arrumar espa\u00e7o para artefatos mais valiosos:<\/p>\n O momento mais dif\u00edcil para quem trabalha em um museu \u00e9 quando uma cole\u00e7\u00e3o \u00e9 descartada.<\/p>\n<\/blockquote>\n Se por acaso algum visitante ass\u00edduo assistisse a esse descarte, provavelmente o seu afeto pelo museu desapareceria num \u00e1timo. Por isso, \u00e9 necess\u00e1ria uma discuss\u00e3o s\u00e9ria para que seja determinado o descarte, e que sejam escolhidas somente as pe\u00e7as para as quais realmente n\u00e3o h\u00e1 alternativa.<\/p>\n<\/blockquote>\n Mas que tipo de consolo \u00e9 esse? \u00a0Nada altera o fato de que um fragmento a muito custo coletado ir\u00e1 desaparecer.<\/p>\n<\/blockquote>\n Sim, que tipo de consolo \u00e9 esse? E n\u00e3o, esse n\u00e3o \u00e9 um dos depoimentos de meus colegas arque\u00f3logos.<\/p>\n \u00c9 um trecho de\u00a0O Museu do Sil\u00eancio<\/a>\u00a0<\/em>de Yoko Ogawa, um livro que traduziu t\u00e3o bem meus pensamentos que imaginei, por um instante, que estava eu pr\u00f3prio nos p\u00e9s do protagonista.<\/p>\n Escrito em 2000 e publicado pela Esta\u00e7\u00e3o Liberdade ano passado, o livro nos apresenta a uma das escritoras mais peculiares<\/a>\u00a0(e premiadas) do Jap\u00e3o contempor\u00e2neo.<\/p>\n\n
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Memento Mori<\/h3>\n