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videogames – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 18 Jan 2023 20:01:00 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 videogames – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 4 curiosidades sobre “Pentiment” que você provavelmente não conhecia https://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/ https://www.finisgeekis.com/2023/01/18/4-curiosidades-sobre-pentiment-que-voce-provavelmente-nao-conhecia/#respond Wed, 18 Jan 2023 19:56:56 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23223 Nós historiadores somos famosamente chatos. É muito difícil resistir à tentação de criticar um game ambientado no passado, ainda que seja a melhor experiência que já curtimos.

Pentiment é uma exceção. Ambientado na Baviera (atual Alemanha) na época da Reforma Protestante, o último game da Obsidian é o raro game histórico que parece ter acertado todas as notas. Estou para encontrar um colega que não sorria ao falar do esmero que teve em trazer o século XVI à luz do XXI.

Essa atenção teve um preço: algumas de suas referências podem soar bastante obscuras se você não for um fã de história medieval ou moderna.

E não, não estou falando apenas de O Nome da Rosa.

Pentiment, como a história de mistério que seu roteiro tece, vai muito além da superfície.

(Aviso: contém SPOILERS de Pentiment)

1) Martin Bauer é baseado em uma pessoa real

No primeiro ato do jogo, somos introduzidos a um jovem delinquente chamado Martin Bauer. Tão inconsequente quando é boca-suja, Martin, a princípio, serve apenas de red herring para complicar o mistério sobre a morte do Barão. Coisa que o próprio arquidiácono reconhece ao exclui-lo sumariamente da lista de suspeitos.

As coisas mudam a partir do segundo ato. Ao retornar à Tassing sete anos depois, Andreas reencontra Martin, irreconhecível de corpo e personalidade. Amável com sua esposa, afável com os vizinhos e engajado em causas políticas, é um novo homem.

Literalmente, como logo descobrimos.

O novo “Martin”, na verdade, é Jobst Färber, companheiro de crime do delinquente de Tassing que assume sua identidade após a morte do comparsa. Brigita, ex-esposa de Martin, concorda em acobertá-lo em troca de sua vista grossa para seu romance com Verônica. O resto da vila, se percebe o embuste, não vê motivos para a denúncia. “Martin”, afinal, é um sujeito muito melhor do que Martin jamais foi.

Fãs de história medieval (ou de cinema francês) entenderão de pronto a referência. Martin Bauer é baseado em Martin Guerre, um camponês que tentou a mesma fraude na França do século XVI.

Infelizmente para Guerre, ao contrário de seu xará de Tassing, seu truque não funcionou. O verdadeiro Martin não estava morto. Quando retornou para casa, o golpista foi denunciado, julgado e executado.

A singularidade do julgamento garantiu que sobrevivesse na cultura popular. Nos séculos seguintes, seu conto recebeu diversas adaptações. Uma delas, o filme O Retorno de Martin Guerre, é deliberadamente citada na quest de Pentiment (“O Retorno de Martin Bauer”)

Cartaz do filme “O Retorno de Martin Guerre” (1982), com Gérard Depardieu

Em qualquer de suas encarnações, o caso é menos interessante por conta do impostor do que de sua esposa. O episódio é representativo dos poucos caminhos disponíveis com que mulheres contavam para escapar de sua sina – e do risco que sofriam ao trilhá-los.

Lésbica, forçada a se casar ainda adolescente após ter sido engravidada por um bandido, Brigita é uma mulher vivendo no fio de uma navalha. Se estivesse no lugar dela e ajudar um crime pudesse tornar sua vida mais fácil, você aceitaria? Quanto você estaria disposta a sacrificar até que as consequências da mentira caíssem sobre seu colo?

São questionamentos que ressonam até os dias de hoje. Muita coisa mudou desde o século XVI, mas muitas pessoas continuam vivendo em fios de navalha, de toda natureza.

2) Otto Zimmerman não foi o primeiro a causar problemas com uma cabeça de santo

No clímax do jogo, Andreas e Magdalene descobrem que Padre Thomas é o mandante dos assassinatos em Tassing-Kirsau.

O religioso confessa que agiu como agiu para impedir que o segredo da vila viesse à tona: São Moritz e Santa Sátia, padroeiros de Tassing, nunca pisaram na aldeia. Sátia, em particular, pode nunca ter existido.

Na verdade, eles nada mais seriam que representações dos deuses romanos Marte e Diana, que os primeiros cristãos erroneamente interpretaram como imagens divinas.

O twist é a parte do jogo que, como historiador, menos me convence. Santos de origens suspeitas e/ou semelhanças com divindades pagãs existem a rodo na Europa. É realmente plausível que os peregrinos que os veneram há séculos parariam de adorá-los da noite para o dia? Sobretudo quando a abadia possui uma relíquia – portanto, um pedaço do santo?

Padre Thomas acredita que sim, e é isto que importa. Para isto, ele comete uma série de crimes para esconder duas peças de evidência que podem trazer a verdade à tona. A primeira é um velho livro em latim, Historia Tassiae (“A História de Tassing”). Trata-se de uma óbvia referência a O Nome da Rosa, que também envolve assassinatos cometidos para impedir um livro de ser lido – no caso, um volume perdido da Poética de Aristóteles.

Plano do mosteiro fictício onde “O Nome da Rosa” é ambientado. O professor de Bologna a que Andreas se refere é o autor do romance, Umberto Eco (que, na vida real, realmente foi professor da Universidade de Bologna)

A segunda evidência é mais indireta, mas nem por isso menos literária. Otto Zimmerman, o carpinteiro da cidade, encontra por acaso a cabeça da estátua de São Moritz que adorna a vila. O problema: em seu elmo está escrito Mars Pater (“Marte Pai”). Para Thomas, se Otto tornar pública sua descoberta, todos saberão que Moritz nunca pisou em Tassing.

Uma história muito parecida faz parte dos contos de Till Eulenspiegel (em português, também conhecido como Til Malasartes.) Trata-se de uma personagem cômica do folclore alemão, cujo hobby é desafiar autoridades e zombar de convenções sociais.

Em uma de suas estripulias, Till toma um crânio de um cemitério e paga um artesão para que o revista de prata. Então, disfarça-se de padre e anuncia ter encontrado a cabeça de um certo São Brandonus. Por uma pequena contribuição (monetária ou, no caso das mulheres da cidade, sexual) ele permitia que os habitantes da cidade a beijassem.

Ninguém descobre o golpe.

Till Eulenspiegel foi publicado pela primeira vez na década de 1510, exatamente quando se inicia o primeiro ato do jogo. Pentiment não esconde a coincidência: o livro é mencionado logo no primeiro diálogo entre Andreas e Claus Drucker, logo após a morte do barão.

Easter egg adicional: Claus, no livro, é o nome do pai de Till.

Dependendo das escolhas que você fizer para a formação de Magdalene no terceiro ato há uma referência ainda mais explícita a ser encontrada. Conversando sobre santos com Padre Thomas, a jovem tem a chance de confrontá-lo com a história de Till. O religioso então responde que vidas de santo não precisam ser 100% reais para nos inspirar, tal como os contos de Till Eulenspiegel falam sobre verdades a despeito de serem ficção.

Bem hipócrita para um homem que está disposto a matar para esconder a verdade de seu rebanho.

3) Abades também eram senhores – no sentido “feudal” da palavra

Na sua primeira refeição do jogo, acompanhado de Endris e Otto Zimmerman, Andreas descobre que as relações entre Tassing e Kiersau são tensas. Todos os camponeses devem tributo à abadia, que controla a região e seus recursos naturais. Nem todos acham que o imposto é justo.

As coisas pioram no segundo ato. Cansado de ser contrariado por Otto, o Abade Gernot cerra fileiras contra Tassing. Os impostos aumentaram. Os camponeses perdem o acesso à floresta e ao riacho. Num golpe de particular crueldade, ele impede que a população visite a relíquia de São Moritz.

Se você ainda se lembra das aulas de feudalismo na escola, a situação pode ter parecido bizarra. Afinal, aprendemos que havia três ordens na Idade Média: aqueles que lutam, aqueles que oram e aqueles que trabalham. Aos clérigos, cabia rezar. Neste caso, por que raios eles tinham terras e pessoas sob sua autoridade?

Porque, como costuma ser o caso, as coisas na prática eram mais complicadas. No período medieval, mosteiros controlavam pessoas e territórios tanto quanto senhores seculares – com todos os fardos e obrigações que isto implicava. Aliás, abades e senhores muitas vezes vinham das mesmas famílias. Não era incomum que as grandes abadias de um dado reino ou território fossem controladas pelas mesmas dinastias que ocupavam a Coroa.

Como atores importantes no jogo político, também não era surpreendente que abades jogassem sujo para expandir seus territórios. Caso Andreas possua uma educação em direito, Andreas pode descobrir que Kiersau estava tramando para roubar as terras da viúva Ottillia. Pior: por meio de fraude.

Um exemplo muito parecido aconteceu de verdade com a abadia de San Clemente a Casauria, no norte da Itália, no final do século IX. Num espaço de poucos anos, o monastério agressivamente comprou terras vizinhas, até que praticamente todos os habitantes da região se tornassem dependentes da Igreja

Obviamente, a Itália do século IX não era a Baviera do século XVI. Manobras como as de Casauria eram mais fáceis de se orquestrar no passado porque a paisagem política e econômica da região ainda estava para se consolidar. Com o passar dos séculos, tomar terras passou a ser complicado, pois implicava em competir diretamente com os interesses de outras abadias ou senhorios. De onde a decisão do Abade Gernot em mirar justamente no elo mais vulnerável: viúva, idosa e malquista em Tassing, Ottilla é a vítima perfeita.

4) A caça às bruxas foi um fenômeno moderno, não medieval

Dependendo de nossas escolhas ao longo de Pentiment, podemos nos deparar com a revelação de que Vacslav e Ursula queimaram na fogueira após os eventos da história. Ele, por advogar ideias heréticas sobre o livro do Gênese; ela, por adorar os Deuses Antigos do passado pagão.

Se você está acostumado a escutar que a Idade Média foi a Idade das Trevas, em que indivíduos (sobretudo mulheres) eram queimados a rodo por todo tipo de infração espiritual, talvez o timing da execução possa ter lhe parecido estranho.

Afinal, estamos diante de uma história que se passa justamente na passagem da Idade Média para o que entendemos por modernidade. Por que Ursula e Vacslav foram queimados justo agora, sendo que durante as décadas que a história cobre os camponeses de Tassing tiveram total liberdade para invocar Perchta e misturar ideias cristãs com costumes pagãos?

Com o advento da impressora, alfabetização popular e demandas por liberdade religiosa, não seria mais intuitivo que o mundo ficasse mais liberal e menos persecutório com o passar das décadas)?

Por incrível que pareça, não. Embora caças às bruxas tenham sido associadas à Idade Média, elas foram um fenômeno quase que exclusivamente moderno. No que é hoje sul da Alemanha, região retratada em Pentiment, alguns dos maiores processos aconteceram poucas décadas depois dos eventos do jogo. Os processos de Salem, possivelmente os mais famosos do mundo, foram realizados ainda depois, entre 1692 e 93

Imagem do livro “The history of witches and wizards, publicado em 1720

Olhando essas datas, dá para entender por que a modernidade achou melhor condenar seus crimes às fogueiras do passado. A ideia de que a mesma época que nos legou René Descartes e Isaac Newton produziu episódios de intolerância e fanatismo religioso é desconfortável.  Muito mais fácil é alimentar a ilusão de que o obscurantismo é uma velha superstição que estamos a caminho de extinguir.

Essa ingenuidade, porém, teve efeitos sérios que perduram até os dias de hoje. Ainda hoje, continuamos incapaz de aceitar que atos de extremismo, negacionismo ou terrorismo não são exceções remanescentes do passado, mas parte do que somos: pecados da época contemporânea, não de uma “era medieval”.

Empenhados em recusar responsabilidade sobre tudo o que sofremos, não fazemos a pergunta mais importante: até que ponto os pesadelos dos dias de hoje – disparos em massa de discursos de ódio, fim de empregos por conta de IAs, ataques à democracia liberal – não são subprodutos de nosso próprio movimento de progresso?

Se nada mais, ao ambientar deliberadamente sua história em uma época de transição ideológica e cultural, Pentiment nos mostra que não é a primeira vez que a humanidade se depara com essa questão. E, tal como o foi na época da Reforma Protestante, não é o tipo de  questão que podemos ignorar.

Como Pentiment e outros RPGs nos ensinam, ações têm consequências. Sua ausência também.

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“A Plague Tale: Innocence”: a fantasia dá conta de explicar a Peste Negra? https://www.finisgeekis.com/2020/04/01/a-plague-tale-innocence-a-fantasia-da-conta-de-explicar-a-peste-negra/ https://www.finisgeekis.com/2020/04/01/a-plague-tale-innocence-a-fantasia-da-conta-de-explicar-a-peste-negra/#respond Wed, 01 Apr 2020 17:26:27 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22227 Com jornais mundo afora reduzidos à mesma notícia, não é de se espantar que muitas pessoas estejam buscando na ficção uma resposta às questões do momento. Livros, filmes, séries e jogos sobre contágios nunca pareceram tão urgentes – ou, para alguns, tão perigosos.

No mundo dos games, um dos destaques é A Plague Tale: Innocence. Lançado ano passado, o jogo foi aclamado por público e crítica, a ponto de ter sido considerado “a mais poderosa representação da Peste Negra na mídia”.

Uma publicação elogiou seu retrato da França na Idade Média como “muito crível” e “autêntica”. O portal francês Millenium foi ainda mais longe, declarando-o “uma perfeita encarnação do nosso passado”.

O fascinante nesses comentários não é sua babação de ovo – o game faz por merecê-la – mas o fato de que A Plague Tale nunca se propôs a ser um game fidedigno. História de Amicia e Hugo, irmãos que buscam sobreviver à epidemia de 1348, e acabam na mira da Inquisição, o game inclui detalhes históricos ao lado de liberdades poéticas como profecias e conspirações de alquimistas.

Mesmo seu desastre-tema – a peste – não funciona como uma doença de verdade. Na vida real, a Peste Negra foi causada por uma bactéria transmitida por pulgas de ratos. No jogo, são os próprios ratos que devoram as pessoas, guiados pelos poderes telepáticos de um Flautista de Hamelin.

Produto de uma era pré-coronavírus, A Plague Tale parece duvidar de que um inimigo invisível possa ser apavorante.

 

[Ser fiél à História] não é realmente nosso objetivo” disse em entrevista o diretor do jogo, que declarou ter se inspirado em fontes tão não-medievais quanto a peça Macbeth, pintores do séculos XVII e XVIII e até mesmo O Túmulo dos Vagalumes de Isao Takahata.

Tudo isso são ingredientes para um grande jogo. Mas seriam eles suficientes para fazer jus à Peste Negra?

Até que ponto a ficção histórica – para não dizer a fantasia – são capazes de dar conta de um dos momentos mais terríveis da história da humanidade?

Ser fiel versus parecer fiel

A armadura do guerreiro da inquisição, com uma cruz enorme no rosto e os espinhos nas grevas, dificilmente tem base histórica. Importa? Talvez não

 

Essa é uma pergunta que historiadores estão cansados de ouvir. Nem por isso sua resposta é simples.

Entre aqueles que discutem se games “acertam” ou não suas representações do passado, há algumas palavras que ouvimos com frequência: acurácia e autenticidade.

Acurácia diz respeito ao quanto daquela obra é fiel ao que sabemos da história. As datas estão corretas? Esse modelo de armadura existiu? Os valores das personagens estão de acordo com sua época ou parecem vaiajantes do tempo jogados de gaiato em outra era?

Autenticidade, por outro lado, é aquela sensação de que estamos diante de uma janela para o passado. É o que sentimos quando uma obra histórica parece “certa”, ainda que não possamos apontar o dedo e dizer por quê. É aquele frio na barriga de quando visitamos um lugar antigo e pensamos: “setecentos anos atrás, outras pessoas estiveram onde eu estou hoje”.

Mesmo que o lugar em questão tenha sido destruído e reconstruído trocentas vezes e sequer fique no lugar original.

Kinkakuji, um dos templos mais famosos de Kyoto, no Japão. A construção original, do século XIV, foi completamente destruída em um incêndio em 1950. Experimente dizer isso para os turistas.

 

À princípio, pode parecer que acurária e autenticidade são apenas nomes diferentes para a mesma coisa. Afinal, para passar uma sensação crível do passado é necessário acertar nos detalhes. Correto?

Não necessariamente.

A ideia que nós, pessoas do presente, temos da Idade Média – ou de qualquer outra época –  nem sempre tem a ver com o que esse período de fato foi. E como psicólogos estão cansados de nos lembrar, nós somos seres emocionais que julgamos o mundo à luz das nossas experiências. Em especial, temos o hábito de achar que a primeira impressão é a mais verdadeira, só porque veio antes das outras.

Se nós aprendemos que a história foi de um jeito (e gostarmos de acreditar naquilo) é muito difícil mudar de opinião. Mesmo que ela esteja 100% errada.

Um dos exemplos mais chocantes são as estátuas gregas e romanas. De tão acostumados que somos em vê-las como são hoje, com seu mármore exposto, parece errado pensar que um dia elas foram pintadas. Porém, é exatamente isto que dizem os arqueólogos.

Réplica de estátua grega, com provável pintura original. Fonte: Smithsonian

Coisa parecida acontece com a Idade Média. Pense em um castelo, e é provável que a primeira imagem que lhe venha à mente seja a de um prédio cinzento, esburacado, cercado de corvos.

Esse, afinal, é o estado em que a maioria dessas fortalezas se encontra no dia de hoje. Não na Idade Média, em que tais prédios passavam por manutenção de rotina e eram decorados com tapeçarias e afrescos. A “Era das Trevas” era muito mais colorida do que imaginamos à primeira vista.

Tapeçaria retratada no game A Plague Tale

E estátuas e paredes são apenas a ponta do iceberg. Um game que tente recriar pessoas do passado com seus valores e ideias originais terá personagens com que ninguém conseguirá se identificar. Em tempos de diversity casting e produtores que se esforçam para não alienar consumidores, uma obra destas sequer sairia do papel.

Não é só que esse passado reconstituído parecerá chato ou repugnante. De tão acostumados que somos com o mundo como funciona hoje, é provável que ele nos soe falso.

O passado, como disse um escritor britânico é um país estrangeiro. E quanto mais retrocedemos, mais esquisito ele fica.

 

Usando a fantasia para explicar a realidade

Uma maneira de contornar esse problema é mentindo de propósito.

Pode parecer um absurdo, mas a aposta faz sentido. Esta “mentira”, se bem feita, serve para dar aos jogadores uma referência familiar, diminuindo o choque cultural.  A ideia é inserir elementos que o criador (e, idealmente, o gamersabe que não são existiram, mas que são capazes de provocar uma resposta emocional.

É o que faz a série Assassin’s Creed com seus enredos conspiratórios dignos de livros de Dan Brown. Gamers dificilmente sairão do jogo achando que rixas milenares entre assassinos e templários são reais. Porém, essa trama hollywoodiana lhes permite visitar cidades do passado sem ter de lidar com as regras arbitrárias, costumes incompreensíveis e pessoas asquerosas de outras épocas. Goste ou não dos jogos, é inegável que suas reconstruções são incrivelmente acuradas, ao ponto de ter ganhado funções educacionais.

Crusader Kings 2, o celebrado game de estratégia da Paradox, fez a mesma coisa. Embora pareça uma simulação tenebrosamente complexa, o jogo torna sua bagagem história digerível com mecânicas que o transformam quase num spin-off de The Sims. Por meio de seus muitos patches e expansões, podemos criar nossas famílias, montar nossos castelos, viver grandes amores e até fazer pactos com o diabo.

O resultado fala por si só. Segundo o designer Henrik Fahraeus, o sucesso dessas mecânicas foi tamanho que ele se arrepende de ter gastado tanto tempo com os outros sistemas do jogo.

Se A Plague Tale pareceu tão autêntico é porque, como esses games, usou a fantasia histórica para grande efeito. Nas palavras de seu criador,

[P]ara nós, não há nada de sobrenatural em primeiro lugar. Ele pode ser interpretado como a visão de uma doença intangível vista pelos olhos de crianças. Elas criam uma fantasia porque estão apavoradas, perdidas, em choque. E, em meados do século XIV, ciência e crenças não eram as mesmas de hoje.

É um argumento difícil de rebater – sobretudo nos dias de hoje, quando certas pessoas, novamente assustadas por uma pandemia, apelam à crendices, teorias da conspiração e acusações sem sentido em vez de encarar os fatos diante de seus olhos.

Sacrifricando acurácia na medida certa,  A Plague Tale passa uma autenticidade que nossos dias de isolamento social só torna mais poderosa.

As ruas desertas de suas fases, povoadas por soldados impondo toques de recolher, passa a lição importante de que o momento que vivemos, por mais traumático que seja, está longe de ser único. 

Quarentenas, epidemias e mortes em massa de vulneráveis foram a ordem do dia para gerações inteiras de pessoas. E se hoje é tão difícil absorver o terror do Covid-19 é prova do quanto a humanidade progrediu no espaço de apenas poucos séculos.

Surpreendentemente para um jogo sobre a Peste Negra, A Plague Tale consegue falar de tudo isso sem cair no clichê de que a Idade Média teria sido uma “era das trevas”.

O período medieval que o estúdio Asobo nos apresenta é de fato sombrio, mas é também uma época de profundas mudanças, indústria e inventividade humana. Ambientados no início da Guerra dos Cem Anos, seus cenários trazem não só campos de batalha, mas também oficinas, forjas, enormes guindastes construindo balistas e catapultas. As catedrais que exploramos no curso do jogo são amedrontadoras, mas também obras-primas da arquitetura.

Mesmo o Grão Inquisidor, principal antagonista do jogo, está mais para um cientista maluco que um fanático religioso. Na sua sanha de controlar os ratos que transmitem a peste, ele recruta um exército de monges para auxiliá-los em sua pesquisa. Foi pela ação de religiosos como estes que, historicamente, nasceram as primeiras universidades.

Registro primitivo de autópsia no codex de A Plague Tale

A Plague Tale não é o mais fiel jogo sobre a Idade Média que existe. Ainda assim, na sua mistura singela de fantasia com verdade ele traz uma virtude que os Kingdom Come: Deliverances da vida, obcecados por “realismo”, passam longe de entregar: uma mensagem relevante para o presente.

Nada mal para um jogo que sequer se propôs a ser histórico.

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“História Através dos Games”: minha participação no documentário do The Enemy https://www.finisgeekis.com/2020/01/07/historia-atraves-dos-games-minha-participacao-no-documentario-do-the-enemy/ https://www.finisgeekis.com/2020/01/07/historia-atraves-dos-games-minha-participacao-no-documentario-do-the-enemy/#respond Tue, 07 Jan 2020 19:33:57 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22146 Se você acompanha o canal do The Enemy, plataforma de games do Omelete, o que contarei agora não é nenhuma surpresa.

Recentemente, tive a honra de participar de um projeto incrível concebido pelo site. Trata-se do “História Através dos Games”, uma série de documentários sobre jogos históricos que investiga o que eles podem, de fato, nos ensinar sobre o passado.

A primeira temporada entrou no ar nas últimas semanas e é dedicada ao maior conflito da história mundial. A série destrincha três jogos AAA que visitam a Segunda Guerra Mundial, explorando  (e questionando) seus vieses.

O primeiro capítulo discute Call of Duty: World War II e suas representações (para alguns, polêmicas) do Holocausto e do nazismo. O segundo se debruça sobre Battlefield V e sua tentativa de dar voz a histórias não contadas da WWII – em alguns casos, às custas da rigidez histórica. O terceiro escancara as portas da ficção, explorando o mundo alternativo – e distópico – de Wolfenstein: The New Order.

A série foi um dos maiores – e mais ambiciosos – projetos de que tive o prazer de participar. Ao assistir ao documentário, meses depois de ter gravado minhas entrevistas, foi difícil conter minha surpresa ao ver o número de acadêmicos e figurões da indústria que a equipe se deu ao trabalho de reunir. Que uma empresa de peso como o Omelete esteja disposta a investir tempo e dinheiro num conteúdo com esse nível de qualidade é prova de que o universo geek no Brasil está sem dúvidas em ótimas mãos.

Os três vídeos estão disponíveis da plataforma do The Enemy e são obrigatórios a fãs de games e história:

 

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Entre o dado e a pena: o futuro da narrativa nos roguelites https://www.finisgeekis.com/2019/11/20/entre-o-dado-e-a-pena-o-futuro-da-narrativa-nos-roguelites/ https://www.finisgeekis.com/2019/11/20/entre-o-dado-e-a-pena-o-futuro-da-narrativa-nos-roguelites/#comments Wed, 20 Nov 2019 21:19:08 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22080 Não é nenhum segredo que videogames são capazes de contar boas histórias.

Todos que já passaram algum tempo atrás de um controle são capazes de se lembrar de um momento em que vibraram rm triunfo – ou se encolheram no chão, chocados pelo destino de personagens virtuais como se fossem velhos amigos.

Mesmo assim, combinar boas histórias com games interessantes continua um desafio. Não são poucos os jogos que parecem filmes interativos, picotando cutscenes entre vinhetas de gameplay inseridos de última hora para justificar um lançamento na Steam.

De certa forma, a ideia de um “autor” responsável por contar uma história parece incompatível com a essência dos games, como playgrounds que prometem nos deixar fazer o que quisermos, na hora em que quisermos.

E quanto mais “gamístico” um game for, mais difícil fica juntar essas duas obrigações contraditórias.

Esse é o caso dos roguelites, um dos mais peculiares, desafiadores e amados gêneros da mídia. Inspirados no clássico Rogue, roguelites são caracterizados por cenários procedurais, morte permanente e, na sua maioria, mecânicas de hack n’slash ou  de exploração. O gênero ganhou um boost de popularidade a partir da Era de Ouro indie, com clássicos como Spelunky, FTL e The Binding of Isaac.

O motivo? Numa cena AAA marcada por jogos seguros, “nos trilhos”, direcionada ao público mais amplo possível, esses games arriscavam ser abertos, imprevisíveis e sadicamente difíceis.

Como eu escrevi em um outro artigo, roguelites, de certa forma, são games no seu nível mais “puro”. Cutscenes e narrações são mínimas. Os cenários e inimigos que lança contra nós estão lá não pela vontade de um Autor, mas pela indiferença de um RNG.

O que essa pureza não faz muito bem é contar histórias – pelo menos, não no sentido tradicional, mais ou menos linear que viemos a esperar de games como The Witcher ou Mass Effect. Parte disso, sem dúvida, tem a ver com a necessidade de nos matar, muitas e muitas vezes. Elemento crucial – e obrigatório – de qualquer roguelite que se preze.

Não é impossível se emocionar com uma história em que somos forçados a recomeçar do zero a cada passo em falso, nas peles de um novo protagonista que, em questão de minutos, estará morto também. Mas, convenhamos, fica muito mais difícil.

Esses jogos nos emocionam porque conseguem nos convencer que as personagens na nossa tela são mais que um conjunto de pixels. São pessoas que, nas 40h que levamos para chegar aos créditos, aprendemos a entender, torcer por – e, às vezes, amar – como nossos amigos de verdade.

Esse ano, dois jogos arriscaram desafiar esse paradigma, combinando a liberdade dos roguelites com histórias tão poderosas quanto o melhor que a mídia tem a oferecer. Estes games pouco têm em comum além de dividirem o mesmo rótulo, mas conseguem, cada um a sua maneira, nos forçar a rever o que esperamos da mídia.

Crying Suns

Criado pela francesa Alt Shift, Crying Suns é um roguelite de exploração espacial que acerta as mesmas notas de FTL. A diferença está na paleta de cor. E não digo apenas literalmente.

Inspirado em Duna de Frank Herbert e na saga Fundação de Isaac Asimov, Crying Suns é uma experiência sombria e cerebral, agarrado a uma narrativa tão melancólica quanto seu universo silencioso.

Nosso protagonista é o capitão Idaho, oficial a serviço de um império que colonizou toda a galáxia. Ou, pelo menos, seu clone.

Começamos o jogo em uma estação de clonagem nos confins do espaço, despertados de um pod por um robô que nos convoca a uma missão. A tecnologia que mantinha o império funcionando misteriosamente “desligou”, levando toda a galáxia ao colapso.  E caberá a nós, cópias do melhor comandante que a humanidade já teve, descobrir o que aconteceu.

É com esse gimmick que o jogo incorpore, de uma maneira elegante, o permadeath na sua narrativa. Cada vez que morremos em uma das muitas batalhas, acordamos de um novo pod: um novo clone pronto a tomar a tocha do antigo capitão Idaho.

Toda nossa tripulação, na verdade, está preservada na estação – e, com ela, suas memórias. Diferente dos redshirts de FTL, de que nos despedimos mais rápido do que levamos para decorar seus nomes, estes são soldados com que exploramos e lutamos, celebramos as vitórias e sofremos as derrotas. E que, ao final do jogo, passamos a respeitar como companheiros de uma mesma história trágica.

Nossas mortes também têm um impacto nos NPCs que encontramos ao longo de nossa jornada. Conforme batalhamos nosso caminho até a capital do império, encontramos velhos inimigos e novos rivais, que servem de chefões às fases do game. Longe de simples antagonistas, eles trazem pistas sobre o futuro do império – e o passado difícil que o próprio Idaho esconde no armário.

Ao contrário de nós, nenhuma dessas personagens possuem vidas infinitas: uma vez que as derrotemos, elas morrem para valer. Se precisarmos jogar novamente a fase por conta do permadeath, quem encontramos são outros NPCs, em alguns casos tão importantes quantos os primeiros, com coisas únicas a dizer sobre a narrativa que nos une.

É preciso morrer – e fracassar – para apreciar tudo o que o jogo tem a nos dizer.

Children of Morta

Children of Morta, do estúdio Dead Mage, é menos ousado no seu flerte com o game over. O que ele entrega de convencional, contudo, ele compensa com gameplay impecável – e uma das narrativas mais estranhamente fofas de qualquer hack n’slash.

O jogo acompanha os Bergsons, família de aventureiros que há gerações enfrenta as bestas do Monte Morta. Um dia, uma corrupção misteriosa começa a se espalhar sobre o povoado. Caberá aos Bergson espanarem a poeira de suas armas e cumprirem seu dever como defensores da humanidade.

Roguelite em essência, Children of Morta, ao mesmo tempo, é um jogo que carrega suas credenciais narrativas na manga. Como os trailers deixam claro, ele é um jogo sobre amor.

Esqueletos, goblins e lagartos gigantes tombam perante nossa espada com o passar das fases. Estes reveses, contudo, são apenas a perfumaria de um conflito maior: o desafio de uma família de se manter unida quando tudo conspira para separá-la.

Os primos Mark e Joey nutrem uma rivalidade. Ben, o tio, amarga a lembrança de uma esposa morta e uma perna ruim que o impede de lutar. Mary, a mãe, está grávida, e teme que a proximidade à corrupção de morta leve seu filho por nascer a um lugar de onde ela não poderá salvá-lo.

As lutas dos Bergson podem ser fantásticas, mas eles refletem o espírito, senão a substância, de tantas batalhas diárias que famílias enfrentam no mundo real: dificuldades financeiras, uma gravidez inesperada, a morte de uma matriarca ou de um bêbe prematuro.

Não é de se espantar que o game tenha conquistado o interesse da publisher polonesa 11 Bit Studio, responsável por This War of Mine. Se aquele jogo deu um rosto humano  à guerra – e, com isso, criticou a beligerância sádica de tantos jogos de combate – Children of Morta é o contraponto perfeito às namoradas em geladeiras que games vergonhosamente abusam sobre o pretexto de retratar “conflitos familiares”.

Entre o dado e a pena

 

O acesso à criação de games nunca foi tão democratizado. Se antes desenvolvimento era um talento de poucos, hoje qualquer um com um pouco de criatividade (e um tantitnho de programação) pode trazer suas próprias aventuras à vida.

Se por um lado isso culmina num mercado incrivelmente diverso, por outro fica mais difícil saber para que lado a mídia está caminhando.

Longe estão os dias em que meia dúzia de produtoras ditava o que chegaria ou não aos gamers. E certos jogos contemporâneos parecem se dirigir a caminhos tão opostos que mal parecem parte da mesma mídia. É o caso dos CRPGs ocidentais, que parecem, de um lado, ter cedido à gaiola dourada dos blockbusters AAA ; de outro, regredido à simplicidade das visual novels.

Disco Elysium (acima) e Anthem (abaixo). Dois games que, de próximo, tem apenas a data de lançamento

Crying Suns e Children of Morta parecem se oferecer de ponte a essas fanbases fraturadas. Eles unem o apelo emocional daqueles que jogam pela história com o masoquismo dos fãs de roguelites; ,a vibe retrô da pixel art com a alta resolução exigida pelos gamers mais moderninhos.

Nenhum dos jogos é perfeito. Crying Suns possui um número pequeno demais de encontros randômicos – o beijo da morte para roguelites, que dependem de mundos procedurais, imprevisíveis, para manter o desafio.

É provável que você decore a melhor resposta para cada desenlace muito antes das 20 e poucas horas necessárias para se chegar até o fim. Por esta e por outras, a PC Gamer o considerou um ótimo jogo de estratégia, mas um péssimo roguelike.

Children of Morta se sai um pouco melhor, mas isso porque ele “rouba”. Tal como sua “pixel art”, que usa animações complexas e efeitos de luz para atingir um visual que nenhum jogo “retrô” teria, seu gameplay é menos avant-garde do que nos faz acreditar à primeira vista.

Um santuário nas profundezas da casa dos Bergson protege a família de perigos letais. Não há “morte” no sentido roguelite-ano do termo: quando somos derrotados, um santuário nos teleporta de volta à segurança de casa. E, com ele, todo nosso progresso.

Todos os colecionáveis e quest items com que topamos aparecem na nossa casa quando retornamos do dungeon, independente do resultado da nossa missão. Encontros únicos e side quests tampouco são perdidas. A única coisa que os jogo nos tira são power up temporários – mas, até aí, estes iriam embora de qualquer forma, vitória ou derrota.

Pode ser cri-cri apontar defeitos em jogos que acertam tanto em coisas que outros games sistematicamente erram. Mas o próprio fato de estarmos fazendo tais críticas é sinal de como os jogos evoluímos – e como nós próprios, gamers, nos tornamos mzixexigentes.

Boas histórias, como bom gameplay, tem um quê de viciante. Uma vez que nos acostumamos a dias improdutivos no trabalho, pensando na trajetória de personagens que voltaremos a encarnar quando voltarmos à casa, nos contentamos com nada menos que isto.

Separados, cada uma dessas coisas – o “dado” do gameplay e a “pena” da narrativa – são capazes de muito. Juntos, talvez sejam capazes de tudo. Inclusive, de inspirar o futuro dos games.

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4 maneiras como a música transforma nossa experiência com os games https://www.finisgeekis.com/2019/11/06/4-maneiras-como-a-musica-transforma-nossa-experiencia-com-os-games/ https://www.finisgeekis.com/2019/11/06/4-maneiras-como-a-musica-transforma-nossa-experiencia-com-os-games/#respond Wed, 06 Nov 2019 20:18:41 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22055 Pense em algum jogo que tenha te emocionado, e é provável que não é apenas do gameplay que você se lembrará. Jogos têm muitos atrativos. Alguns deles só ganham vida com a batuta de um maestro.

Às vezes, são músicas que fazem parte da mecânica, como as melodias de Zelda: Ocarina do Tempo. Às vezes, são trilhas bombásticas como as da série Final Fantasy ou Nier: Automata. Em outras, são “palhinhas” das próprias personagens, como a canção de Leliana em Dragon Age: Origins ou o dueto de Booker e Elizabeth em Bioshock: Infinite.

Troy Baker e Courtnee Draper, dubladores de Booker e Elizabeth, praticam o dueto de seus personagens em “Bioshock: Infinite”

Seja qual for a melodia que nos faça arrepiar, é inegável que os games não seriam os mesmos sem elas. O que muitos fãs não imaginam é que existe toda uma ciência – quando não  feitiçaria – por trás das trilhas que tanto amamosQue afeta não apenas o que ouvimos, mas também o que vemos, sentimos – e até pensamos. 

Quem conta é Winnifred Phillips, compositora das trilhas para franquias como God of War, Assassin’s CreedLittle Big Planet, que coleciona prêmios por suas músicas e escritos. No livro A Composer’s Guide to Game Musicela destrincha o que faz de instrumentos e joysticks parceiros tão perfeitos um para o outro:

1) A música pode fazer o tempo “passar” mais rápido… ou mais devagar

Sayonara Wild Hearts

Você já teve a impressão de gastar horas em uma jogatina para descobrir que apenas 20 minutos haviam se passado? Ou, pelo contrário, ligar o console para completar algumas side-quests e descobrir, alguns níveis depois, que a noite já caiu?

Para a surpresa de ninguém que já sentiu as horas voarem durante um show, a música afeta nossa percepção de tempo.

Segundo um estudo, músicas escritas em tons maiores fazem ouvintes perceberem a passagem do tempo de forma mais lenta, enquanto que as escritas em tons menores dão a impressão de que os minutos passam mais rápido. Outros estudos encontraram efeitos parecidos relacionados ao volume, andamento e complexidade das músicas. `

Essa propriedade é fundamental para um game como Sayonara Wild Hearts, “álbum interativo” lançado para consoles que coleciona elogios desde o seu lançamento em outubro.

Com apenas 1h de duração, o game precisa convencer as pessoas de que vale a pena comprá-lo em vez de um jogo mais longo. Para alguns críticos, pelo menos, seu híbrido de música e gameplay foi tão efetivo que transformou essa hora em  uma das melhores de suas vidas.

Opinião similar têm os fãs de GRISgame singelo com pouco mais de 3h de duração, que compensa a simplicidade de seus quebra-cabeças com uma trilha de arrancar lágrimas.

O inverso vale para jogos muito longos, que podem afugentar quem tem pouca paciência para atividades repetidas. Ter de revirar cada pedra em uma sandbox da Ubisoft, ou morrer trocentas vezes diante de um chefão num roguelite não é o programa de fim de semana mais agradável para quem é adulto e tem horas limitadas de tempo livre. Uma trilha sonora eficiente, porém, nos faz mergulhar nas tarefas mais meniais sem que percebamos o tempo passar.

Quem já perdeu dezenas de horas mineirando irídio em Mass Effect 2 pelo puro prazer de escutar a música do Galaxy Map sabe bem do que estou falando.

2) A música afeta a forma como enxergamos

Que a música mude nossa percepção do tempo é fácil de entender. Música, afinal, nada mais é que notas e pausas espalhadas pelo tempo.

Menos óbvio é saber que ela muda também o que nossos olhos são capazes de ver.

Um estudo da Universidade de Groningen, citado por Phillips, colocou pessoas diante de imagens de rostos escondidas por ruído e pediu a elas que identificassem o que viam. Parte das pessoas cumpriu a tarefa ouvindo música triste; a outra metade, música alegre.

Os pesquisadores descobriram que aqueles que escutavam música triste identificaram rostos tristes com mais facilidade. Música alegre, por outro lado, tinha um efeito parecido com rostos felizes. Alguns dos participantes foram tocados de tal forma pela música que disseram ver rostos felizes ou tristes mesmo onde não existiam rostos!

Nier: Automata, possuidor de uma das trilhas mais marcantes dos últimos tempos, é um exemplo do que games são capazes quando colocam isso em prática.

Logo de início, o jogo nos lança em uma cidade em ruínas, sem uma alma sapiente exceto inimigos que querem nos matar. É nosso primeiro contato com o que restou da Terra no futuro apocalíptico do jogo. Fiel à imagem de desolação, a trilha que nos embala é melancólica e sutil. Contudo, assim que descobrimos o acampamento da Anemone – nossos primeiros aliados vivos no planeta – a música se torna mais vigorosa e bombástica, até explodir em um vocal esperançoso.

O que era o esqueleto de uma cidade morta se torna o primeiro estágio de uma jornada épica.

Independente da emoção que um jogo quer despertar, a música também afeta o quanto do jogo nós somos capazes de ver ao mesmo tempo.

Outro estudo citado por Phillips revelou que estar de bom humor  aumenta o campo de visão de uma pessoa, enquanto que emoções negativas tornam nossa vista mais restrita.

É uma estratégia usada com frequência em jogos de terror. Ao nos bombardear com música tensa, estes games nos deixam estressados, o que reduz nossa visão periférica. E nos deixa mais vulneráveis a  todo tipo de monstro, zumbi ou cachorro assassino prestes a nos emboscar.

A infame cena dos cachorros do primeiro Resident Evil, um dos jumpscares mais famosos da história dos games, é a prova viva de que essa ideia funciona.

3) A música afeta que mensagem tiramos das histórias

De todas as coisas que a música poderia influenciar, histórias contadas não parecem estar muito altas na lista. Livros, afinal de contas, não precisam de trilha sonora. Romeu e Julieta não se torna menos trágico se o lermos escutando Kpop (possivelmente, torna-se  ainda mais trágico, se bem que não pelos mesmos motivos). 

Phillips discorda. E traz argumentos para provar seu ponto.

A compositora cita um estudo da Universidade Hildesheim, na Alemanha que sugere que a música muda a forma como interpretamos o enredo de uma obra. 

Os pesquisadores gravaram um curta que acabava em um cliffhanger e o combinaram com cinco trilhas sonoras de estilos e humores diferentes. Cada participante teve de assistir apenas a uma das versões e dar sua opinião sobre a motivação das personagens e o que aconteceria depois.

Ao compararem as respostas dos diferentes grupos, os pesquisadores descobrirem que elas eram “batiam” com o humor da música. Ouvir um ou outro tipo de trilha sonora fez com que as pessoas avaliassem as motivações das personagens de forma distinta. Não só isto, a música também afetou suas previsões sobre o provável final do filme.

Até que ponto a trilha de um determinado jogo não nos faz entender a história de uma forma ou de outra? Nos faz tomar essa personagem como heroína ou aquela outra como vilã? É difícil responder a essa questão, pois raramente temos a oportunidade de jogar uma mesma cena com várias trilhas diferentes.

Philips, porém, dá alguns exemplos de como essa “manipulação musical” geralmente acontece. O mais comum é dar temas específicos a personagens ou lugares e repeti-los ao longo dos jogo. Isto permite que sua atenção seja “guiada” ao que os autores querem dizer.

Em Mass Effect 3, por exemplo, o reencontro de Shepard e sua ex-companheira, Miranda Lawson, é embalado pela faixa Reflections, trilha da cena de romance de Mass Effect 2. Associar a personagem a esta música tem o efeito de provocar uma sensação de carinho e nostalgia, independente do jogador ter ou não feito perseguido um romance com Miranda no jogo anterior – ou mesmo gostar dela para início de conversa.

Witcher 3 faz algo similar com o tema Kaer Morhenouvido pela primeira vez no tutorial, ambientado na fortaleza ancestral dos witchers. Esta fortaleza reaparece mais à frente, não mais como um castelo imponente, mas uma triste ruína. O tema também retorna em uma versão alternativa, tão dilapidada quanto as paredes de Kaer Morhen.

Se rever a casa de Geralt neste estado já seria triste por si só, a música faz da visita uma experiência devastadora, preparando-nos para um episódio trágico que, logo descobrimos, terá na fortaleza o seu palco.

4) Músicas despertam empatia como se fossem pessoas de verdade.

Quase todos nós temos uma música do peito. Nem por isso diríamos que gostamos dela da mesma forma como gostamos do nosso namorado ou de nossa mãe. Coisas inanimadas são uma coisa;  pessoas são outra, completamente diferente.

Para Phillips, contudo, a diferença pode ser mais sutil do que imaginamos.

Um estudo publicado na revista Music Perception descobriu que a música emociona mesmo pessoas que têm dificuldade em expressar ou reconhecer sentimentos, como os que fazem parte do espectro autista. A hipótese dos autores é que, ao ouvir uma música, nós subconscientemente a imaginamos como uma “persona” por quem sentimentos empatia, como se fosse outro ser humano.

Isso é importante para games porque empatia, junto com atmosfera, é um dos requisitos para se chegar à presença virtual, um estado de completa imersão em que o mundo exterior parece sumir, e sentimos-nos, literalmente, transportados ao jogo.

Se você já chegou nesse estágio na sua experiência com algum game, é muito provável que tenha sido embalado por alguma música.  Sejam os temas icônicos de Chrono Trigger ou a canção de Mordin em Mass Effect 3, prestes a dar a vida para destruir o genophage.

E talvez os gráficos, nomes e mesmo tramas por trás desses momentos um dia sumam de nossa memória. Mas a música, provavelmente, continuará. E nós trará calafrios cada vez que a escutarmos por acidente.

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3 coisas que games de estratégia erram sobre o passado – e 3 formas de consertá-las. https://www.finisgeekis.com/2019/10/01/3-coisas-que-games-de-estrategia-erram-sobre-o-passado-e-3-formas-de-conserta-las/ https://www.finisgeekis.com/2019/10/01/3-coisas-que-games-de-estrategia-erram-sobre-o-passado-e-3-formas-de-conserta-las/#respond Tue, 01 Oct 2019 20:20:04 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21996 Levante a mão quem nunca usou uma ovelha para explorar o mundo em Age of Empires 2. Ou “venceu” uma batalha em qualquer jogo Total War fugindo de seu inimigo até o tempo acabar.

Jogos de estratégia podem representar o passado, mas é óbvio que não podem acertar tudo. E nem precisam.

Como dizia Bruce Shelley, um dos criadores de AoE, a principal função de um game não é educar, mas divertir. Se isso significa derrubar muralhas com golpes de lança ou conquistar a Inglaterra e convertê-la ao Zoroastrismo, muito que bem.

E nem vamos falar do Cobra

O que significa que, de vez em quanto, eles erram algumas coisas em que realmente poderiam ter acertado. E não falo de coisas pequenas, como um ou outro modelo de armadura que não bate com o registro histórico. Mas de escolhas grandes, enraizadas no gênero, que distorcem completamente como nossa sociedade de fato funciona.

Felizmente, para tudo há uma alternativa.

1) O mundo não é um tabuleiro de War

Total War: Three Kingdoms

Jogos de grande estratégia vêm em todos os tipos, formatos, cores e sabores. Mas boa parte deles, independente da proposta, incluem um mapa como esse de cima.

Seja o mundo nosso próprio planeta, ou um universo alienígena, em jogos de grande estratégia ele está quase sempre dividido em províncias. Algumas são regiões administrativas. Outras, países inteiros.

Vença uma ou duas batalhas, porém, e elas se tornam inteiramente suas. De um turno para o outro cada cidade, vilarejo, estrada, montanha e pessoa daquele território se torna seu, num piscar de olhos.

Conquistadores, da antiguidade ao presente, adorariam que as coisas fossem assim. Infelizmente para eles, a realidade é um tanto mais complicada.

Hoje, na era dos controles de passaporte e alfândegas, é fácil entender que fronteiras políticas significam alguma coisa. Tente cruzar uma divisa, onde quer que seja, e cedo ou tarde encontrá alguém para pará-lo. Nem que o que tenha do outro lado seja apenas uma terra de ninguém.

Fronteira entre Polônia e Rússia

No passado, contudo, as coisas eram diferentes.  Segundo o cientista político James C. Scott, a maioria das pessoas sequer sabia (ou se importava com) qual era o império que as reivindicava como “súditas”.

Aqueles que pretendiam conquistar o mundo conquistavam, na melhor das hipóteses, pólos nas regiões de fácil acesso, ao lado de rios ou litorais. Daí que o império egípcio se limitava às margens do Nilo. O Romano, ao Mediterrâneo e a sua rede de estradas. Os tantos impérios da Era Moderna, a entrepostos comerciais construídos ao longo de rotas conhecidas.

Não seria um exagero dizer que os “impérios” eram, em si, essas rotas de comunicação, não as linhas imaginárias que traçamos num mapa moderno. Aquilo que ficava de fora – montanhas, pântanos, florestas, desertos – era tão difícil de se conquistar que a maioria dos governantes sequer tentava.

Em vez de gastar recursos correndo atrás de rebeldes escondidos, era mais barato fazer algum tipo de acordo com seus líderes e cobrar um tributo periódico. Durante boa parte da história humana, governantes não “governavam” terras, mas pessoas. E raramente em perigo integral.

O resultado fala por si só: a maior parte do planeta permaneceu inexplorada por estes impérios até muito recentemente.

Detalhe do mapa da África de John Cary (1805). Notem o descompasso entre a terra conhecida e o tamanho do continente

Jogos de estratégia raramente abordam essa nuance. Seus mundos são como um velho tabuleiro de War, como se a divisão política moderna tivesse surgido junto com a Terra, 4,5 bilhões de anos atrás. E estivesse destinada a permanecer a mesma, não importe quantos povos surjam e deixem de existir.

Solução: foque em comunicações e recursos, não fronteiras

Uma alternativa manda abraços do passado. Age of Empires 2e toda a geração de RTS que inspirou – mostram que é possível largar mão das fronteiras duras. Basta apenas pensar fora da caixa.

Como aqueles que se lembram do clássico sabem, o jogo não traz fronteiras de qualquer espécie. Seu “império” numa dada partida é tão somente a soma das pessoas e edifícios que você coloca no mapa.

Apesar de ser possível cercar tudo o que você controla com uma muralha, isto nem sempre é necessário – ou preferível. Basta controlar os pontos de travessia – e os principais recursos do mapa – que seus inimigos não terão como machucá-lo.

Boa sorte para minerar esse ouro

Suas sequels, como Age of Mythology Age of Empires III levaram esse princípio ainda mais além. Para explorar recursos, são necessários aldeões. Para treinar aldeões, precisamos de um centro da cidade, que só pode ser construído em um assentamento.  Ao estabelecerem pontos específicos em que é possível construir esse tipo de edifício, o controle do espaço se torna ainda mais crítico. Ocupe estes pontos, e seu inimigo não terá como expandir.

2) “Conquistar o mundo” é fácil na teoria. Na prática, nem tanto

A maioria de nós leva vidas bastante monótonas. Quando chegamos em casa para jogar, não queremos encarnar um avatar que, como nós, passa seus dias sentado no escritório. Buscamos experiências excitantes, protagonizadas por heróis poderosos.

Nenhum gênero leva isso mais a sério do que jogos de estratégia. Dependendo da franquia, estes games nos colocam no controle de um rei, imperador, quando não até mesmo de um Deus em controle de toda uma sociedade.

Por um motivo ou por outro, esse “poder” quase sempre se manifesta como violência. “Vencer” nesses jogos significa “pintar o mapa” com as nossas cores. Com tantas batalhas, cercos e mortes quanto necessário.

A fórmula até possui um nome: 4X, sigla para explorar (explore), expandir, explorar (exploit) e exterminar. Não importa se o líder de sua facção é um dos ícones mundiais do pacifismo, famoso por suas táticas de não-violência. Se as regras do jogo exigirem, até ele não pensará suas vezes em fritar seus inimigos com mísseis balísticos.

A fórmula 4X se tornou conhecida com a série Civilization, mas já criou raízes por todo tipo de jogo. Não obstante as críticas de que seria uma apologia ao imperialismo, justificando o percurso das grandes potências do Ocidente como o “normal” que todos os povos devem seguir.

Mesmo jogos que não abraçam esse modelo geralmente os incorpora de alguma maneira. Em games de estratégia, ser maior quase sempre é uma vantagem. Mesmo que tudo o que você decida fazer com seu tamanho seja sentar sobre um tesouro, como um Smaug à espera da tela de vitória.

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Como explica o historiador Robert Houghton, o nível de poder que exercemos em jogos de estratégia é completamente absurdo para um líder do passado.

Esses líderes, que mal conseguiam mapear seus territórios, jamais conseguiriam exterminar um povo inteiro, ou converter cada súdito de seu império a outra cultura ou religião. Mesmo que pudessem, isso jamais passaria pela suas cabeças. 

Um rei do passado que gastasse suas forças para “conquistar o mundo” cedo ou tarde veria seu povo morrer de fome, seu império sucumbir à anarquia e sua própria cabeça numa estaca – quando não num manicônimo.

“Uma estratégia vencedora em Medieval: Total War”ele escreve “produziria um rei imensamente ineficaz na Idade Média”. O mesmo vale para literalmente qualquer personagem histórico que não seja um Cecil Rhodes no auge do Império Britânico. E olhe lá.

O colonizador inglês Cecil Rhodes em charge da Punch de 1892

Solução: Crie objetivos que fariam sentido às pessoas do passado

É difícil forçar um gamer a não jogar um jogo de uma certa maneira. Mesmo assim, há uma série de truques que podem ser usadas para incentivar jogadores a não serem genocidas.

A solução de Houghton é fazer objetivos que correspondam ao que um líder daquela época tentaria de fato alcançar.

Para um clã de guerreiros, pode ser algo tão simples quanto vencer uma batalha. Para um rei medieval, construir um mosteiro e tramar para que seus parentes virem abades.  Para um líder corrupto de uma república das bananas, encher uma mala de dinheiro e dar o fora antes que a Interpol coloque uma algema no seu braço.

Tal como jogadores podem ganhar novos objetivos, também as facções do jogo podem ser programadas para batalhar por coisas diferentes. Uma república de mercadores desejará se manter longe de guerras e fazer negócios com todo mundo. Fanáticos religiosos quererão matar infiéis a todo custo – mesmo que isso acabe por condená-los no longo prazo.

Além de tornar os jogos mais desafiadores, experimentar com esse tipo de objetivo pode ajudar gamers a entender decisões de personagens históricas que não parecem fazer sentido às sensibilidades contemporâneas .Por exemplo, por que líderes da Idade Média se importavam tanto em agradar ao Vaticano. Ou por que alguns rei dividiam seus títulos entre seus filhos em vez de manter suas posses intactas.

É bem mais fácil assistir ao fim de seu império quando não temos um AAR de dominação mundial para escrever nos fórums da Paradox.

3) “Progresso”, na história, é bem mais lento do que imaginamos. E nem sempre desejável

A história humana, diz a sabedoria dos nossos tempos, é uma história de progresso. Cada era traz suas próprias conquistas e invenções, aproximando-nos de uma sociedade utópica à la Star Trek.

Jogos de estratégia reproduzem esse juízo com um de seus elementos mais clássicos: a árvore tecnológica. É praticamente uma certeza, ao encontrarmos um sistema desses, que nossa civilização, ao final do jogo, não terá nada de parecido com a do seu começo.

Alguns jogos levam isso aos limites do absurdo. Em Napoleon: Total War, ambientado nas Guerras Napoleônicas (1796-1815), o jogador que se empenhe pode construir couraçados a vapor, inventados nos anos 1850. Se você jogar com os prussianos, pode ainda construir a Coluna da Vitória, monumento que, na vida real, seria completado em 1873 e nada tinha a ver com Napoleão.

Outro Total War, Thrones of Britannia, foi ainda mais longe. Para contornar o fato de que a guerra do século IX era uma grande mesmice, o jogo misturou mil anos de história (e lenda) em uma mesma tela de recrutamento.

Se você jogar com os irlandeses, três dos soldados disponíveis no seu roster são os fianna, kerns e gallowglass. Na realidade, fianna eram bandos de mercenários contratados pelos reinos irlandeses no começo da Idade Média. Kerns eram tropas inspiradas nos fianna, desenvolvidas tempos depois quando a sociedade irlandesa começou a se militarizar em larga escala. Gallowglass, por sua vez, eram mercenários escoceses que só deram as caras a partir de 1259 e espalharam-se por toda a Irlanda apenas na Renascença.

A chance desses três tipos de soldado terem dividido um campo de batalha é a mesma de ver um bandeirante lutar ao lado de um dragão da independência e um soldado contemporâneo do exército brasileiro.

Esse sim é o dream team

Historiadores podem arreganhar os dentes, mas decisões como essa fazem muito sentido. Games, como os jogos de azar em que são inspirados, são criados para nos fazer querer sempre mais. Mais dinheiro, mas recursos, mais pontos, mais poder.

Quando jogamos, não queremos apenas chegar ao fim. Precisamos sentir que evoluímos de alguma forma. Queremos saber que a nossa cidade é melhor, mais forte e mais bonita que a aldeiazinha de onde começamos. Queremos novas habilidades, mais impressionantes e poderosas, não apenas uma versão colorida de alguma coisa que já temos.

É fácil conciliar esses objetivos com uma sociedade moderna, materialista e dinâmica, que busca sempre o crescimento e o progresso. Menos fácil quando a sociedade em questão não mede esforços para permanecer igual.

Família sámi, minoria étnica nativa da Lapônia, em foto de 1900

Se é verdade que algumas épocas foram marcadas por grandes avanços, em outras o mesmo status quo perdurou por séculos, quando não milênios. E mesmo em épocas de grandes mudanças há aqueles que fazem de tudo para freá-las, seja porque colocam em risco seu modo de vida, seja porque seu próprio ambiente começa a dizer chega.

Navios encalhados no Mar de Aral. Obras de irrigação empreendidas na era soviética fizeram o corpo d’água literalmente secar.

Solução: explore o dinamismo do ambiente, não só da tecnologia.

A tecnologia humana nem sempre avançou no passo acelerado dos dias de hoje. O ambiente em que vivemos, porém, muitas vezes mudou. E bastante.

Mudança climática é um tema do momento, mas seria ingenuidade acreditar que esta é a primeira vez que o planeta nos passa uma rasteira.

No ano de 535, por exemplo,  estudos de anéis de árvores indicam que a Terra passou por um longo período de escuridão. Ninguém ter certeza do que aconteceu. Segundo alguns, a erupção de um supervulcão cobriu a atmosfera com uma nuvem de poeira. Para outro, fomos atingidos por um meteoro. Os resultados, porém, são inequívocos: catástrofe agrícola e falta de alimentos.

A partir do século XIV, o planeta passou por um esfriamento global conhecido como a Pequena Era do Gelo. A mudança no clima devastou as colheitas, provocando uma crise conhecida como a Grande Fome de 1315-1322.

Mesmo variações ambientais pequenas podem se tornar belos desafios em jogos de estratégia.  É difícil imaginar, mas antes do surgimento do asfalto poucas estradas funcionavam durante o ano inteiro. Estações chuvosas podiam deixar regiões inteiras ilhadas. Às vezes, por meses a fio.

Navio preso no gelo no Porto de Toronto

Mesmo nos dias de hoje, certos mares e rios congelam no inverno, impedindo o tráfego marítimo. Tempestades e nevoeiros frequentemente obrigam barcos a mudarem de curso e aeroportos a cancelarem vôos

Um jogo que incorpore essa dinâmica não precisa de avanços tecnológicos para manter o jogador interessado. O simples desafio de manter uma sociedade funcionante em um meio-ambiente cada mais vez hostil fará com que nenhuma missão seja igual a outra.

Banished

Aqui, jogos de grande estratégia têm muito a aprender com os city builders, que brincam com esses princípios desde seus primórdios.

É o caso de Pharaoh, ambientado no Antigo Egito. Suas missões contam com uma série de fenômenos naturais e acidentes humanos, como tempestades de areia, secas, inundações e pestes.

Uma cidade enriquecida pelo comércio pode empobrecer da noite para o dia se as estradas forem bloqueadas por um deslizamento de pedra. Uma população que dependa da agricultura pode morrer de fome se o Nilo resolver não inundar.

O jogo se desdobra por um período de mais de dois mil anos, mas reproduz pouquíssimas inovações tecnológicas. Com algumas exceções, os edifícios e unidades ao nosso dispor no Novo Império são os mesmos do Período Pré-Dinástico.

Mesmo assim, nunca temos a impressão de estar pisando no molhado. Seu ambiente é tão diversificado – e desafiador – que nos mantém grudados ao botão de pause da primeira à última missão.

Pharaoh

Vários jogos recentes do gênero exibem alguma variação desse princípio. Banished possui tornados, incêndios, pestes e epidemias de animais. Cities: Skyline ganhou uma expansão dedicada a desastres naturais. Frostpunk é ambientado em uma distopia congelada, e o resultado foi um dos games de estratégia mais criativos dos últimos anos.

Não é tão romântico quanto guiar um civilização da Idade da Pedra à Corrida Espacial. Mas nos ajuda a entender o que acontecerá conosco se continuarmos a acreditar que os recursos do nosso planeta não têm limite.

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Os donos do jogo: a guerra (nem tão fria) entre criadores e produtores https://www.finisgeekis.com/2018/12/17/os-donos-do-jogo-a-guerra-nem-tao-fria-entre-criadores-e-produtores/ https://www.finisgeekis.com/2018/12/17/os-donos-do-jogo-a-guerra-nem-tao-fria-entre-criadores-e-produtores/#respond Mon, 17 Dec 2018 20:58:08 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20737 Obsidian e Bethesda têm uma relação tempestuosa.

Em 2010, a equipe da primeira, chefiada por Chris Avellone, lançou Fallout: New Vegas, um dos mais celebrados jogos da franquia. Seu publisher, a Bethesda, prometeu um bônus aos criadores se o jogo ultrapassasse a nota 85 no Metacritic.

New Vegas obteve 84. O bônus foi negado. Pelo contrato com a Bethesda, a Obsidian também foi excluída dos royalties. Dos cerca de US$ 300 milhões que o game arrecadou, nenhum centavo parou nos bolsos da companhia.

Oito anos depois, a produtora parece ter sido atingida por um karma guiado à laser.

Fallout 4, lançado em 2015 sem qualquer participação da Obsidian, vendeu bem, mas foi atacado por fãs por desrespeitar a lore da franquia. E Fallout 76, o MMO que glamoriza o genocídio nuclear, foi chamado de “maior mico dos games nos últimos tempos”.

Foi a Obsidian, porém, que disparou o tiro de misericórdia. Anunciado no começo no mês, The Outer Worlds é um Fallout em tudo menos no nome, cujo trailer faturou aplausos na mesma medida em que 76 atraiu vaias.

Parceria entre a equipe de New Vegas e os criadores originais da franquia Fallout, o lançamento parece a vingança de autores que perderam, por um motivo ou outro, o controle sobre sua própria obra.

O próprio tom jocoso do trailer, com sua caricatura de corporações gananciosas e insensíveis, soa como um comentário do atual estado da indústria AAA.

“Bem vindo à fronteira da Galáxia” diz uma personagem. “Bem, pelo menos era até as corporações a comprarem, darem-lhe uma marca e começarem a vendê-la a preços estapafurdiamente inchados”.

“Enfrentar a corporação nos deixou com duas escolhas” diz outra “Ruim e pior”.

“Mas tudo bem, eu acho. O importante é que você continue a ser você”.

Chris Avellone e os criadores da Obsidian não foram os primeiros a sentirem o lado áspero do carinho corporativo. Pelo contrário, essa guerra fria – às vezes, não tão fria – entre artistas e os donos do jogo é tão característica dos games quanto seus pixels e leaderboards.

Uma mídia sem autores

Warren Robinett, designer do game Adventure, foi quem disparou um dos primeiros salvos. Em 1978, era política da Atari dissociar os nomes dos criadores dos jogos que faziam. Autoria, para a empresa, deveria ficar com a marca, não com as pessoas que a compunham.

Impedido de chamar o game de seu, Robinett escondeu seu nome em uma fase secreta. A brincadeira, homenageada em Jogador No 1, se tornou um dos primeiros easter eggs da história dos games.

Parzival joga Adventure em Jogador No 1

O protesto de Robinett inspirou um grupo de programadores a abandonar a Atari e criar sua própria publisher– a Activision. Embora sua empresa tenha vingado (e como!), a filosofia contra que se rebelou estava longe de morrer.

Ao contrário de filmes (vistos como a obra de um diretor) ou seriados (a obra de um showrunner ou roteirista), games, sobretudo os AAA, são encarados como obras de corporações.

É verdade que certos criadores, como Sid Meier e Hideo Kojima, cresceram o suficiente para estamparem seus nomes em franquias. Mesmo assim, é nos estúdios (quando não nas produtoras) que a maioria dos gamers pensa quando têm de enumerar seus favoritos.

Pillars of Eternity, assim, seria um “game Obsidian”; Assassin’s Creed, um “game Ubisoft”; Mass Effect, um “game Bioware”. Mesmo que cada título na franquia tenha, às vezes, uma equipe diferente – ou, no caso de Mass Effect: Andromeda, um estúdio completamente distinto.

A demissão de Hideo Kojima anos atrás mostra que nenhuma estrela é grande demais para ter o tapete puxado sob os pés. E – o que é pior – que essas companhias estão dispostas a percorrer longas distâncias para apagá-los de suas obras.

No divórcio com o criador de Metal Gear, a Konami fechou a subsidiária com seu nome – Kojima Productions LA – cancelou um de seus projetos pessoais e removeu seu nome das artes da capa.

Capa de MGS V: The Phantom Pain. O nome de Kojima (sobre o título, na imagem à direita) foi removido das caixas.

A Konami não foi a única empresa japonesa a colocar criadores em seu lugar. John Szczepaniak, autor de The Untold History of Japanese Developers (“A História Não Contada dos Desenvolvedores Japoneses”), contou que estúdios adotam a linha dura contra qualquer arroubo de individualismo.

Segundo ele, algumas produtoras proíbem que nomes de staff sejam divulgados no Japão. Isto fez com que o Castlevania original permanecesse um jogo anônimo até 2013, quando Szczepaniak identificou seu possível criador como um certo Hitoshi Akamatsu, do qual quase nada se sabe.

Caso ainda mais intrigante é o da TOSE. Com escritórios em vários países e mais de 1000 lançamentos em 40 anos de carreira, a empresa é uma das mais prolíficas do mundo dos games. Mas ninguém sabe quem trabalha para ela, ou que jogos, exatamente, fizeram.

A empresa “ninja” – nas palavras de Koichi Sawada, seu representante nos EUA – é focada quase que exclusivamente em outsourcing e evita tomar crédito pelo que faz. “Nossa política é não ter uma visão” disse ele em uma entrevista à Gamasutra.

Embora seus desenvolvedores sejam listados nos créditos de seus games, muitos deles usam pseudônimos, continuando uma prática comum na indústria desde a era dos fliperamas.

Encontrar um criador no palheiro do anonimato, como o exemplo do Castlevania mostra, é mais difícil do que parece.

Toru Iwakuni, criador de Pac Man

É difícil não ver nessas decisões a ética corporativista de muitas empresas japonesas, que punem estrelismos e premiam a conformidade.

“A relação entre criadores e jogos” diz Yusaku Yamamoto, jornalista japonês, no prefácio do livro Untold Story, “é como a relação entre os átomos e as moléculas que compreendem toda a matéria na Terra”.

Um átomo – não um indivíduo, um artista, muito menos um gênio – é, de fato, como foi tratado Toru Iwatani, criador do lendário Pac Man. Em uma entrevista de 2007, ele diz que não recebeu nenhum prêmio ou honraria pela sua contribuição aos games. “Eu era apenas um funcionário”.

Crunch, créditos e lágrimas

Mas não é só corporativismo que leva criadores a cair das graças de seus publishers. E seria ingênuo achar que esse é um problema apenas do Japão.

No Ocidente, o caso mais revoltante talvez seja o da Rockstar e Team Bondi, desenvolvedora australiana responsável por L.A. Noire. Cerca de 100 criadores foram sumariamente cortados dos créditos, ou listados apenas na sessão “Agradecimentos Especiais”.

Segundo ex-membros da Team Bondi, integrantes da equipe que foram desligados do estúdio durante o desenvolvimento não tiveram seu trabalho reconhecido.

A acusação é preocupante quando levamos em conta a terrível cultura de crunch promovida pela Rockstar sobre seus funcionários e estúdios parceiros. Criadores indispostos a aceitar condições insanas de trabalho – que, em Red Dead Redemption 2 contou com jornadas de até 100 horas semanais – poderiam se ver podados dos créditos.

Red Dead Redemption 2 Easter Egg

Referência ao “crunch” dos funcionários da Rockstar em Easter Egg de Red Dead Redemption 2

Como tantas outras coisas nos games, a prática não tem nada de novo. Já em 1984 Arthur Abraham, criador de King’s Quest e da engine AGI, foi omitido dos créditos após ter sido demitido da Sierra, responsável pelo game. Richard Moss encontrou casos parecidos entre desenvolvedores de Assassin’s Creed Starcraft.

Bem vindos ao futuro… tentem não quebrá-lo

Fonte: Eurogamer

Estariam as coisas prestes a mudar? Em alguns sentidos, elas já mudaram.

Bastante – e para o bem.

A própria trajetória da Obsidian nos seus anos pós-New Vegas é uma prova dos novos tempos. Com Pillars of Eternity – e seu 77 mil backers no Kickstarter- o estúdio provou o mérito do crowdfunding para colher os frutos de seu prestígio.

O mercado indie, de fato, deu a muitos criadores o poder de lidar com suas obras – e interagir com seus fãs – nos seus próprios termos. E ferramentas intuitivas, como Construct 2, RPG Maker ou a engine Unity permitiram que qualquer um se tornasse um desenvolvedor, com relativamente pouco custo e conhecimento prévio.

Porém, como que mora sozinho bem sabe, a faca da independência tem dois gumes. Com a democratização dos games, o mercado nunca foi tão concorrido – e a chance de ser notado, tão pequena.

Em 2016, o número de jogos lançados no Steam foi tão grande que representou 40% de todos os games já lançados na plataformaMesmo esses números empalidecem em comparação com os de 2017, que contou com quase o dobro de lançamentos.

Tal como aconteceu com a literatura e a música, o mercado independente de games virou um mar vermelho de shovelware. A utopia, como bem disse Eric Kain, virou um Velho Oeste.

Número de games lançados no Steam entre 2004 e 2017

E a equipe da Obsidian, de novo, parece ter levado uma bala perdida. Após Pillars, o desempenho de seus games não foi lá o esperado.

Tyranny, lançado em 2016, teve uma recepção morna e gerou faíscas entre os desenvolvedores e a publisher Paradox, universalmente amada como a defensora dos underdogs. O motivo teria sido “diferenças culturais” sobre processos de trabalho entre a californiana Obsidian e seus produtores suecos.

Num golpe de ironia, considerando a maneira como nós, ocidentais, criticamos a hierarquia nipônica, a empresa sueca pareceu horizontal demais aos desenvolvedores americanos.

Agora, a Obsidian está prestes a ser comprada por ninguém menos que a Microsoft, o maior sinônimo de impessoalidade corporativa que não veste orelhas de rato. A gigante anunciou que comprará também a inXile, fundada pelo lendário Brian Fargo, que trouxe Wasteland e Planescape: Torment  atualizados ao século XXI.

A fantasia de uma Terra do Nunca independente, em que Avellone, Fargo e seus pares poderiam compensar com juros o que sofreram na grande indústria, parece ter acabado.

Torçamos, para o bem deles – e tantos outros na sua situação – que a “corporação”  de que se tornarão uma engrenagem não se mostre tão patética como a que satirizam em The Outer Worlds.

Ou, pelo menos, para que dessa vez recebam seu bônus.

 

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4 lições de game design de “Cultist Simulator” https://www.finisgeekis.com/2018/11/06/4-licoes-de-game-design-de-cultist-simulator/ https://www.finisgeekis.com/2018/11/06/4-licoes-de-game-design-de-cultist-simulator/#respond Tue, 06 Nov 2018 18:39:20 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20639 Fallen London (né Echo Bazaar), criado pela Failbetter Games,  é o melhor game de browser que já joguei na vida. Com ecos de Neverwhere, o jogo nos leva a uma Londres alternativa enterrada no centro da Terra, onde beefeaters londrinos dividem espaço com traficantes de almas, embaixadores demoníacos e aberrações lovecraftianas.

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Contanto com nada além de mecânicas simples de card game, o jogo se tornou uma das experiências mais ousadas (e bem-sucedidas) de storytelling na mídia.

O sucesso levou a um spin-off, Sunless Seas, sobre um grupo de exploradores fazendo fortuna nos oceanos do submundo. E uma sequel (ainda em early access) que leva a fórmula ao espaço sideral.

Mesmo assim, havia algo de mágico em Fallen London que escapou a seus sucessores mais tradicionais. Infelizmente, a estrutura engessada dos jogos de browser, com seus limites de ação e microtransações, impediam que o game alçasse vôo.

Com Cultist Simulator, projeto pessoal de Alexis Kennedy, ex-CEO da Failbetter, o obstáculo finalmente foi removido.  

Mas, afinal, o que é Cultist Simulator?

Como seu título entrega, ele é um de tantos simuladores que nos permitem brincar de outras profissões. Nesse caso, porém, de uma profissão inusitada: o líder de uma seita na virada do século XX.

Como fizeram Aleister Crowley, criador da Thelema, ou Gerald Gardner, fundador da Wicca, o jogador deve escolher princípios fundadores, visitar bibliotecas obscuras e recrutar devotos. Tudo sob os olhos da Secretaria de Supressão, que pode a qualquer momento prendê-lo por subversão.

Ao contrário da vida real, no entanto, o mundo de Cultist Simulator é de fato místico – e suas forças sinistras exigem oferendas não-metafóricas. Para conduzir nossa seita a um dos muitos cenários de vitória pode ser necessário sacrificar pessoas, invocar seres de outras dimensões e viajar pelos labirintos do sonho.

Cultist simulator impressiona não só pela sua originalidade, mas pelo quão bem ele funciona como um card game. Com um visual ainda mais minimalista que Fallen London, ele se mostra não só um excelente RPG, mas uma verdadeira aula de game design.

Em especial, em como evitar defeitos que estão presentes desde os primórdios da mídia, mas que poucos criadores conseguem contornar:

1) Vendor trash não é um mal necessário

Muito tempo atrás, jogos nos davam pouquíssimas pistas sobre a importância de certos itens. Qualquer coisa – de um amuleto incrustado a um alfinete no chão – podia ser um quest item imprescindível para avançar na história. Se o largássemos ou o vendêssemos podiam ser obrigados a começar tudo de novo.

Para atender a um público cada vez mais impaciente, quest items passaram a ser “protegidos” da desatenção dos jogadores. Nos piores casos, itens comuns foram relegados a uma categoria “lixo”, com nada além dos nomes para diferenciá-los.

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O resultado é o vendor trash (“lixo de vendedor”), itens que servem apenas para serem vendidos – e que tiram quase completamente a diversão da loot. Afinal, quando a única diferença entre uma recompensa e outra é o valor em moedas, explorar se reduz a uma aula de aritmética.

Com um enredo baseado nas políticas de um bazar subterrâneo, Fallen London foi um marco na subversão do vendor trash. Cultist Simulator repete a dose, efetivamente eliminando a maldita categoria.

O jogo soluciona o dilema de uma forma inusitada. Nele, todos os itens são vitais. Pois tudo, da identidade do protagonista aos caminhos do próprio enredo, são itens de uma forma ou outra.

Cultist simulator possui uma moeda, que pode ser usada para adquirir certos itens e pagar despesas. Serviços ocultos, porém, são pagos e comprados em spintrias, o dinheiro do submundo. Visões oníricas podem consumir sentimentos e inspirações; rituais podem exigir “pagamento” na forma de pessoas ou conhecimento.

Alguns dos muitos “itens” de Cultist Simulator

Mesmo os atributos básicos do protagonista (saúde, razão e paixão) são uma espécie de moeda, em um sistema que remete ao sistema Cypher do RPG Numenera. E o próprio ato de “trabalhar” envolve bens imateriais.

Um quadro pode ser “pintado” com “pavor”, “desassossego” ou “satisfação”, tornando-o mais inspirado – e valioso ao mercado de arte. E um trabalho braçal além de fundos gera “vitalidade”, que pode ser usada para se recuperar de ferimentos.

Para piorar, a maior parte dos itens expira depois de alguns minutos. Alguns simplesmente desaparecem; outros se transformam em outras coisas – que podem ser letais. Um prisioneiro, por exemplo, se “transforma” em um cadáver após certo tempo de cativeiro, colocando o jogador na mira direta da polícia.

Esse esquema faz com que o jogador nunca caia numa zona de conforto, já que nada que do que possui pode ser facilmente descartado. Pior: como cada atividade requer um recurso diferente, não é possível sequer saber se estamos “ricos” ou “pobres”. De nada adianta uma fortuna incalculável em dinheiro se a ação que buscamos exige, por exemplo, um “lampejo”.

Com um conceito tão diferente de recompensa, era inevitável que outro grande defeito dos games acabasse também por ir abaixo:

2) O grinding não precisa ser maçante

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Como bom game de browser,  Fallen London sofria do calcanhar de Aquiles tradicional do gênero: o grinding.

Para atiçar nosso interesse, o jogo nos recompensava por ações repetitivas em um esquema de caixa de Skinner.

A mecânica funcionava para dar algum desafio ao jogo (e para servir de desculpa às microtransações). Infelizmente, fazia muito pouco à qualidade de sua narrativa.

Cultist simulator não se livra completamente do grinding. De dinheiro a itens mágicos, passando por seguidores, pergaminhos secretos e contratos, há todo tipo de recompensa que pode ser “farmada” pela repetição.

Mesmo assim, ele contorna seus excessos com uma solução ao mesmo tempo óbvia e inusitada: a ameaça (imprevisível) da derrota.

Se o atributo “saúde” chegar a zero, morremos. Para tanto, é preciso se alimentar regulamente, o que implica em acumular dinheiro. Para obter dinheiro, é necessário trabalhar ou completar contratos de ocultistas.

Nem todas as tarefas, porém, são seguras: atividades sobrenaturais geram “fascinação”, que em quantidade suficiente fazem o protagonista se perder em visões. Visões podem ser combatidas com “pavor”. “Pavor” demais, no entanto, levam à paranoia – e ao jogador terminando seus dias em um hospício.

Mesmo tarefas simples podem ter consequências inesperadas. Trabalhos braçais consomem saúde para serem realizados, o que pode colocar o jogador em maus lençóis se ele adoecer logo após o início de uma jornada.

Trabalhar como artista, por sua vez, gera “mística”, um atributo que chega a atenção das autoridades. Se o protagonista possuir algum esqueleto no armário (como um prisioneiro amarrado à espera do Homem de Palha), a carta pode levar tudo a perder.

Apostar em derrota é uma decisão arriscada, que faz de Cultist Simulator uma experiência (muitas vezes frustrante) de tentativa e erro. Se isto não nos faz desinstalar o jogo em fúria é porque “vitória” e “derrota”, no fundo, não são lá tão diferentes:

3) Fail states não precisam ser punições

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Fail states – condições de “fracasso” dentro de um jogo – são uma discussão quente entre designers de games.

Há quem tente evitá-los de toda forma, dizendo serem uma forma de gatekeeping a gamers casuais. Por outro lado, há quem acredita que jogos não são jogos sem eles.

Como eu disse em um outro artigo, a derrota é um elemento inevitável nos games. Tanto é que toda a mídia pode ser encarada como a arte do fracasso.

É ao saber transformar o game over em algo agradável – ou, pelo menos, não humilhante – que um designer mostra a que veio.

Existem várias maneiras de se fazer isso: reduzir a punição da perda (para incentivar a tentativa e erro), criar fail states que pareçam vitórias (ou vice-versa), recompensar jogadores por perderem, criando conteúdo que só pode ser acessado depois da “morte”.

Cultist Simulator consegue fazer de tudo um pouco. O jogo está recheado de fail states, dos mais convencionais (morrer, ser internado em um hospício, ser preso) a alguns que podem até ser considerados uma vitória.

No início do game, o jogador pode decidir ganhar seu sustento com um trabalho menial na firma Glover & Glover. Porém, caso se dedique muito a ele, pode concluir que a vida de escritório não é lá tão ruim e deixar toda sua seita para trás.

Em outros casos, livrar-nos de um fail state pode abrir nosso flanco a ameaças de outra natureza.

Na medida em que nossa seita cresce, somos perseguidos por “caçadores” a mando da Secretaria de Supressão. No início, detetives comuns. Depois, investigadores com poderes místicos que fariam inveja a John Constantine.

Há várias formas de se eliminar um caçador. Uma delas, na melhor vibe Lovecraft, consiste em mostrar a ele uma sabedoria eldritch que humano nenhum é capaz de absorver. Se as palavras forem fortes o suficiente, ele pode enlouquecer de imediato.

Porém, há sempre a chance do caçador reagir àquilo de outra forma. E, em vez de loucura, ser tocado pelo fascínio. Caçadores podem assim se tornar rivais, seguindo seu próprio caminho no underground da magia – e “vencendo” o jogo no lugar no jogador.

O game não para por aí. Seja qual o for o fim que nosso protagonista levar, sua história não precisa terminar com ele.

O jogo conta com um sistema de legado, que nos permite começar uma nova história de um novo ponto. Uma personagem que morra, por exemplo, abre o caminho “médico”, colocando-nos nos pés do doutor que nos atendeu no hospital.

O vínculo entre as histórias é sutil. Mas é justamente essa sutileza que faz do forte de Cultist Simulator – a narrativa – algo tão eficiente.

4) História longa não é sinônimo de história boa

Com recursos visuais mínimos, Cultist Simulator conta apenas com palavras para construir sua atmosfera. É surpreendente, portanto, que estas palavras sejam tão poucas.

A maior parte dos cards possui não mais que uma ou duas linhas de texto. Sua lore é destilada em pequenos snippets, deixando o melhor a cargo da imaginação.

Em tempos em que RPGs parecem fazer competição de verborragia,  o caminho de Cultist Simulator é mais que incomum. Isso acontece porque Alexis Kennedy tem ideias um tanto controversa sobre o papel da história em jogos.

Como ele mesmo disse em um depoimento:

“Palavras são como água para a história de um jogo. Você precisa garantir que você terá o suficiente ou a história morrerá, mas coloque palavras demais e a história se afoga. Quando você está escrevendo para um jogo a atenção do jogador é uma dádiva de momento a momento. Assim que o jogador achar que o texto é opcional – ou, pior, lição de casa – eles pararão de prestar atenção e esperarão o resto do jogo começar de novo. A partir daquele momento, palavras são piores que inúteis.”

Quem curte games há um certo tempo sabe exatamente do que ele está falando. Não são poucos os jogos que metralham jogadores com infodumps, cutscenes desvinculadas da ação e tutoriais que ninguém pediu.

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E, quando isso acontece, é difícil voltar atrás.

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Para Alexis, o problema vem em parte do costume de criadores de pagarem de escritores “sérios” fazendo seus jogos parecerem livros. Um costume que é incentivado pela própria mídia, que vende o “tamanho” de histórias como critério de qualidade.

Acontece que, como escritores sabem muito bem, tamanho não é documento. Pelo contrário: é justamente na capacidade de síntese que o verdadeiro artista mostra sua habilidade.

Pecar pela modéstia cumpre ainda outro objetivo, há tempos perseguido por criadores de RPG: incentivar que jogadores se reconheçam e expressem-se. 

Com a exceção da informação de nosso “legado” e um nome (opcional) no canto da tela, Cultist Simulator não nos dá informação nenhuma sobre quem nossa personagem deveria ser.

Tudo, de suas motivações a suas origens, gênero e aparência física ficam a cargo da imaginação.

É uma decisão arriscada, que nas mãos de um autor menos capaz seria uma receita para o desastre. De fato, houve quem criticasse sua criação como o “esqueleto de um jogo sem nada de carne“.

Mesmo assim, ela oferece uma lição valiosa para criadores de games – e, de certa forma, para toda uma geração obcecada em ter cada obra de arte transformada em seu espelho: a mente funciona melhor quando tem espaço para criar.

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Vício em games: verdade ou ficção? https://www.finisgeekis.com/2018/02/06/vicio-em-games-verdade-ou-ficcao/ https://www.finisgeekis.com/2018/02/06/vicio-em-games-verdade-ou-ficcao/#comments Tue, 06 Feb 2018 20:58:05 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=19973 A indústria de games adora uma polêmica. De pânicos sobre violência em jogos a acusações de alienação, gamers já estão acostumados a serem maltratados pela mídia.

Recentemente, porém, o burburinho parece ter vindo de outro lugar. Pela primeira vez na história, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considerará vício em games como um distúrbio mental.

A notícia provocou reações acaloradas nas redes sociais. Muitos não perderam tempo para defender o hobby, lembrando que é possível curtir uma jogatina sem prejuízo para a saúde.

De fato, é tentador ver na resolução o mesmo pânico moral que levou às ondas de censura depois do Atentado de Columbine em 2001. Ou ainda as histerias contemporâneas e suas caricaturas de gamers como abusadores tóxicos e chauvinistas.

Como “veterano” de ambas as polêmicas, nunca tive simpatia por aqueles que tentavam instigar pânico moral. A indústria de quadrinhos já deixou bem claro o perigo de entregar nossa liberdade aos gritos de moralistas.

A decisão da OMS, no entanto, não é nenhuma dessas coisas.

Videogames são coisas recentes. Pesquisas sobre vícios relacionados a eles, mais ainda. Ainda resta muito a se explorar para que possamos entender direito esses problemas.

No entanto, eles nos mostram que é de fato o momento de conversarmos a sério sobre alguns assuntos:

1) Sim, vício em games existe

Vira e mexe lemos em tabloides sobre uma garota na China que morreu de tanto jogar videogame, ou um hikikomori no Japão que largou o emprego para jogar Monster Hunter. À primeira vista, é fácil diminuir a decisão da OMS como uma reação exagerada a casos como esse.

Infelizmente, o vício em games é um problema muito mais disseminado. Quão disseminado, obviamente, não é lá tão fácil de saber.

Tudo depende do que nós chamados de “vício”. A OMS fala de sintomas como a dificuldade de controlar o desejo de jogar e a frequência excessiva, que chega a trazer prejuízos para a vida do jogador.

Alguns pesquisadores criticaram esse tipo de critério por ser subjetivo ou inconclusivo demais. Como, por exemplo, determinar que a frequência com que jogamos é “doentia”? Como ter certeza de que os “prejuízos” foram de fato causados pelos games?

Pesquisas feitas com imagens cerebrais, no entanto, efeitos que vão muito além disso. Alguns estudos mostraram que o vício em games provoca implicações comparáveis à dependência em substâncias.

Entre elas, estão a redução de atividade dopaminérgica (relacionada à dopamina, estimulante responsável pela sensação de recompensa) e mudanças estruturais nos padrões de circuitos neurais.

Há inclusive indícios de que remédios utilizados para tratar esses vícios também funcionem com viciados em games. Estudos preliminares com bupropiona, um supressor de dopamina usado contra a dependência em nicotina, tiveram resultados promissores.

À primeira vista, pode parecer chocante que um hobby como os games mereçam um paralelo tão extremo. No entanto, a comparação se torna menos estranha se nos lembrarmos que, séculos antes de existirem games, pessoas já se arruinavam e morriam por causa de outro tipo de jogo:

2) Games são inspirados de jogos de azar.

Esse é um ponto que eu já mencionei em outro artigo do Finisgeekis, mas que acho importante retomar.

Alguma vez na vida você já sentiu que o tempo voava quando estava com um controle nas mãos? Não é por acaso. Desenvolvedores de games tiveram ótimos professores para aprender a capturar nossa atenção. Máquinas como essas:

E não falo só de games que colocaram, literalmente, caça-níqueis dentro dos consoles. Como as loot boxes de Star Wars: Battlefront II, que já estão sendo investigadas como jogos de azar.

Ao contrário do que diz o senso comum, máquinas de aposta não funcionam na base da sorte. Cada aparelho tem uma “rotina” de vitórias e derrotas programada pelo dono do cassino ou do estabelecimento.

Se não está na sua “vez” de ganhar, não adianta apelar para o jeitinho, para a habilidade ou para uma força superior: você não irá ganhar.

Sim, você foi enganado

Videogames fazem grande uso dessas rotinas de recompensa nos seus sistemas de level-up. No início, ganhamos níveis fáceis, convencendo a nós mesmos de que a vitória está ao alcance dos nossos dedos. Conforme o jogo avança, a rotina se torna mais inclemente, até o ponto em que passamos horas a fio grudados na tela para uma tarefa que antes levava minutos.

MMORPGs e jogos pay to win levam isso ao seu pior, com rotinas insanas criadas para nos incentivar a gastar dinheiro (ou milhares de horas das nossas vidas). Em Star Wars: Battlefront II, por exemplo, são necessários 60000 créditos ou 40 horas de jogo (o tempo para se zerar Mass Effect 2 e suas DLCs), para destravar um único herói.

Se você acha que isso é um fenômeno recente, pense de novo. Talvez você conheça o Penny Arcade, aquele site de tiras sobre games. O que você talvez não saiba é que seu nome foi tirado de máquinas como essas:

Esses (também) são penny arcades, bugigangas analógicas populares em parques de diversão nos anos 1910, 1920 e 1930. Elas eram operadas por moedas e podiam trazer todo tipo de atração: de versões primitivas do pinball a joguinhos de luta:

Penny arcades deram origem aos aparelhos modernos de cassinos. Porém, eles também foram os pais dos arcades, nossos queridos fliperamas, de onde vieram os consoles contemporâneos.

Um fenômeno paralelo aconteceu no Japão, com as máquinas de pachinko:

Que hoje se proliferaram em palácios de fliperamas e apostas espalhadas por cada quarteirão.

Obviamente, isso não significa que todo gamer é um viciado em potencial. É plenamente possível curtir games sem se endividar comprando loot boxes, tal como é possível jogar pôquer ou roleta sem vender os rins para a máfia. (Eu mesmo, quando estive no Japão, ia em lojas de fliperamas quase todo dia).

Contudo, isso mostra que videogames são não uma atividade como outra qualquer, como querem alguns defensores da mídia. Jogos eletrônicos são feitos para nos fissurar. Para curti-los com saúde, todos nós precisamos estar atentos.

3) As maiores vítimas são os homens

Tanto homens quanto mulheres sofrem de vício em games. Porém, alguns estudos apontaram uma prevalência do distúrbio em pessoas do sexo masculino.

Contrário ao senso comum, a causa parece ser biológica, não social.

Um estudo feito pela Universidade de Stanford analisou a atividade cerebral de 22 alunos (11 homens e 11 mulheres) acostumados a jogar games com a mesma regularidade. A pesquisa encontrou maior atividade cerebral no circuito mesocorticolímbico dos homens, responsável pela sensação de prazer. Para os pesquisadores, isto aponta que homens têm uma maior predisposição a ficarem “vidrados” quando jogam games.

Os participantes do estudo não eram viciados, mas as conclusões corroboram uma série de pesquisas que aponta uma disparidade de gênero entre os afligidos pelo distúrbio.

No entanto, como os pesquisadores de Stanford reconhecem, é possível que o motivo da diferença esteja na existência de padrões motivacionais distintos (que, como outros trabalhos sugeriram, pode variar entre homens e mulheres). Ou seja: dependendo da natureza do jogo (ou da atividade desempenhada dentro dele), é possível que mulheres fiquem tão ou mais fissuradas que homens.

4) Todo tipo de game pode viciar, mas pouquíssima gente se vicia

Ao contrário do que muitos gamers imaginam, o interesse em pesquisas sobre vício em jogos não veio necessariamente de um pânico sobre os games. Segundo alguns estudos, a preocupação era outra:

Para esses autores, o grande problema da nossa geração é o vício em internet. Games, nesse sentido, seriam apenas um entre tantas de suas manifestações, ao lado de fissura em redes sociais e sexo virtual.

Mark D. Griffiths e Halley M. Pontes são dois dos autores que se rebelaram contra essa visão. Ela ignora, por exemplo, que games offline possam provocar vício, muito embora o distúrbio vá muito além dos MMORPGs.

Tal como o jogo de azar, viciante na mesa de pôquer tanto quanto num site de apostas, também os games podem viciar independente de como nós os jogamos.

Felizmente, gamers estão certos em um quesito: a parcela de pessoas que sofre desse tipo de male é pequena. Uma revisão de literatura encontrou resultados na casa do primeiro dígito, subindo a 12% em estudos com critérios mais amplos.

Não fosse o bastante, vício em games apresenta uma grande comorbidade com outros distúrbios psiquiátricos. Isto é, pessoas que sofrem de vícios em games muitas vezes também sofrem de problemas como depressão, transtorno bipolar, transtornos de ansiedade, dependência em substâncias e déficit de atenção.

Ainda é cedo para bater o martelo sobre quem de fato causa quem. Por um lado, viver à mercê do monitor pode deixar os afetados vulneráveis a outros distúrbios.

Por outro lado, é possível que tenham se refugiado no mundo dos games por conta de problemas maiores.

Muita pesquisa deve ser feita para entendermos isso melhor. Para isso, de toda forma, a decisão da OMS de dar visibilidade ao tema foi um grande acerto.

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