Warning: Use of undefined constant CONCATENATE_SCRIPTS - assumed 'CONCATENATE_SCRIPTS' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/finisgeekis/www/wp-config.php on line 98

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/feed-rss2.php on line 8
TV – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Sat, 02 Mar 2019 09:18:27 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 TV – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Afinal, qual é a graça de séries sobre comida? https://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/ https://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/#comments Tue, 25 Jul 2017 13:10:08 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17563

Um jovem e um velho estão sentados num balcão. A comida que pediram, duas tigelas de lamen, acaba de chegar.

Sensei” pergunta o jovem “O que se come primeiro? O caldo ou o macarrão? ”

“Primeiro” responde o velho “Nós observamos. Pegue o hashi e acaricie a superfície. Admire o brilho da gordura, as raízes de menma, a alga que afunda lentamente. Concentre-se nas três fatias de tyashu. E então…”

“Nós comemos?”

“Não. Nós pedimos desculpas ao porco”. Ele se aproxima tyashu e sussurra “Nós nos veremos em breve”.

Poderia ser um esquete de Isekai Shokudou, o anime gastronômico da temporada. Mas é uma cena de Tampopo, filme de 1985 e um dos clássicos do cinema japonês.

TAMPOPO.jpg

Começo mencionando essa cena porque, se não a tivesse assistido, não entenderia nada da última tendência que venho observando em séries japonesas.

Falo, aqui, de séries sobre comida. Não sobre culinária, ingredientes exóticos ou duelos gastronômicos com pratos que deixam as pessoas nuas. Sobre o simples ato de comer.

Isekai-Shokudou 2.jpg

Afinal, qual seria o ponto de um anime que se resume a personagens de RPG curtindo a hora do almoço? Em especial quando os pratos não são maravilhas da haute cuisine, mas o PF nosso de cada dia?

Onde termina a ficção e começa o food porn?

Aparentemente, na audiência. Dois desses mangás, afinal, não só foram adaptados ao live action, como ganharam espaço na grade da Netflix.

Assistir aos outros comendo parece ser tão popular na Terra do Sol Nascente que foi o entretenimento que escolherem para exportar ao mundo.

netflix food series.jpg

Gourmet mangá

Pode parecer sarcasmo, mas não é. No Japão, mangás sobre comida são tão bem estabelecidos que já conquistaram um gênero próprio

Não falo de Shokugeki no Souma, que usa a gastronomia como mera roupagem para um shounen de esporte. Nem de tantos slice of life cujas personagens cozinham ou trabalham em padarias.

Chamados de gourmet manga ou ryori manga, são histórias cujo foco não está no ato de cozinhar, mas no simples prazer da refeição.

kodoku-no-gourmet-picture2.png

Não existe ação ou reviravoltas – em alguns casos, nem mesmo um enredo. Kodoku no Gourmet, referência do gênero, nos traz a “emocionante” história de um funcionário de escritório desbravando o almoço de cada dia.

Alguns, nem mesmo isso. Ekiben Hitoritabique o ANN desenterrou do arco da velha, é uma propaganda gratuita para bentôs de estação de trem. Que se estendeu por 15 tankobons

ekiben

Isso sim é publicidade

Como que um gênero como esse pode fazer tanto sucesso? E como essas histórias, muitas vezes, acabam sendo legitimamente cativantes?

É o que eu me aventurei a descobrir.

Tóquio, a capital da gastronomia

kaiseki.jpeg

O Japão pode ser conhecido como a “terra do peixe cru”, mas sua culinária há muito já superou o bairrismo. Apenas Tóquio possui 304 estrelas do Guia Michelin, a publicação mais respeitada do ramo.

Isso é mais que o dobro de Paris (134) e o triplo de Nova York (99). Outras grandes cidades japonesas, como Kyoto e Osaka, também estão no top 10.

Se entrarmos na cozinha do dia a dia, não há sequer comparação. Em São Paulo, existem cerca de 111 restaurantes para cada 100 mil habitantes. Em Tóquio, são 1122, dez vezes mais.

Shokugeki no Souma não mentiu. O Japão é, sem sombra de dúvida, a capital mundial da gastronomia.

kobe beef.jpg

É de se esperar que um país com essa aptidão fosse projetar seu entusiasmo na cultura.

De fato, como lembra a revista Hashitag, os gourmet mangás se tornaram um apêndice importante da indústria gastronômica nipônica. A influência das séries é tamanha que chegou a influenciar o mercado culinário, ditando tendências e popularizando ingredientes.

Não é de se espantar. Afinal de contas, não há nada melhor para atiçar o apetite do que ver um bife marmorizado na nossa leitura de cada dia.

Porém, isso não responde tudo.

A “Década Perdida”

lost decade.jpeg

Os gourmet mangás, afinal de contas, não acompanham qualquer tipo de comida – nem qualquer tipo de comedor. Ao contrário do que o título indica, seus “heróis” não estão interessados em gastronomia fina, mas na comida do dia-a-dia.

Para Jason Thompson do ANN, isso tem a ver com a chamada Década Perdida, um período de recessão econômica que sacudiu o Japão nos anos 1990.

Em 1991, o estouro de uma bolha imobiliária encerrou o período de vagas gordas que o país curtiu no pós-guerra. Em 1995, com o Terremoto de Kobe e o Atentado ao Metrô de Tóquio, pairou sobre o Japão uma nuvem ainda mais densa de pessimismo, com forte influência para a cultura e os animes.

lost decade 2.jpg

Os gourmet mangás, para Thompson, foram um fruto dessa nuvem. Eles são uma ode ao “copo meio cheio”: um lembrete às pessoas de que, por mais duro que seja abandonar os luxos, é possível encontrar felicidades nas pequenas coisas.

Nobushi no Gourmet, lançado internacionalmente como Samurai Gourmet, encapsula perfeitamente essa mentalidade. Sua trama acompanha um ex-funcionário que descobre que sua vida não faz sentido.

Aos 60 anos, forçado a se aposentar, constata que seu mundo era o escritório. Impossibilitado de trabalhar, sente-se como um samurai sem mestre, à espera do seppuku.

Felizmente, é na macheza do próprio ronin que ele encontra sua redenção. Espécie de Walter White nipônico e bom caráter, o protagonista emula a fanfarronice do guerreiro para voltar a se respeitar como homem: comendo sem pressa, bebendo à vontade, repetindo sem remorso.

nobushi no gourmet.jpg

A mensagem não poderia ser mais clara. Samurai Gourmet é um retrato perfeito da ética de trabalho japonesa – sintoma de um país, como diz meu amigo Fábio do Anime21, em que é esperado que pessoas vivam para trabalhar, e não trabalhem para viver.

Mas seria apenas isso? Eu acho que não.

A gula é eterna

tampopo 2.jpg

Por mais que goste do argumento de Thompson, ele não me convence 100%.

Ele não explica Tampopo, lançado em 1985, muito antes da crise, quando o Japão ainda era visto como a próxima nova potência. Nem Oishinbo, primeiro grande sucesso do gênero, em publicação desde 1983. De fato, como bem mostra a Hashitag, os gourmet mangás remontam aos anos 1970.

oishinbo.jpg

Oshinbo, primeiro gourmet mangá de sucesso

Tampopo, aliás, talvez traga uma pista para o mistério.

O filme é uma série de esquetes cômicas, com níveis exponenciais de absurdo, sobre um caminhoneiro que busca salvar um restaurante decadente.

Há uma professora de etiqueta, que tenta a duras custas ensinar seus alunos a comer macarrão em silêncio (no Japão, fazer barulho é sinal de educação). Há um mendigo que pede esmola na rua dos restaurantes chiques, e de tanto beber restos de vinho que os clientes jogam fora, tornou-se um sommelier nato. Há uma mãe moribunda que, no lugar do último suspiro, faz um último yakimeshi para sua família.

 

Tampopo poster

O que os esquetes têm em comum é um tributo à comida, e a seu papel central nas relações humanas.

É o espírito de Shinya Shokudou, talvez o ryouri mangá que melhor se internacionalizou. A série foca no dono de um boteco da madrugada e suas relações com seus clientes: yakuza, prostitutas, atores pornôs, excêntricos em geral.

shokudou.jpg

Seus comensais podem não ter chifres ou escamas como os seres de Isekai Shokudou, mas também são de outro mundo, à sua própria maneira. Estas são pessoas que, por pressões sociais ou decisões de vida, acabaram relegadas à marginalidade, condenadas à noite.

Tal como Aletta, a garçonete-demônio de Isekai, eles são párias, salvos do ostracismo pela beleza da gastronomia.

u010.jpg

Na vida cotidiana, comer se tornou uma obrigação. Engolimos tudo o mais rápido possível. Fast food e congelados são o combustível que nos mantém vivos.

Não estou julgando, só citando os fatos. Quem, afinal, tem tempo para filetar um peixe?

Opõe-se a esse paradigma os ativistas do slow food. Inspirados pela culinária italiana e espanhola, pregam a refeição como um ritual, uma forma de agregar as pessoas e unir gerações.

É a criação que eu recebi da minha vó calabresa, e razão pela qual não abro mão de meus almoços com a família.

Os gourmet mangás parecem advogar uma terceira via. A refeição rápida, porém digna. A comida simples (e nem tão saudável), mas degustada com paixão. O ritual solitário.

takeshi1.jpg

É uma mentalidade, quiçá, tão japonesa quanto uma tigela de lamen. Porém, que toca em algo tão elementar que cumpre a função última da arte: transformar o específico em universal.

Não é preciso saber o que é um naruto ou um tonkatsu para simpatizar com um sorriso de saciedade. Cardápios vêm e vão; a gula é eterna.

 

]]>
https://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/feed/ 3 17563
“The Crown”: Por que Elizabeth II é tão importante https://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/ https://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/#respond Tue, 06 Dec 2016 21:10:01 +0000 http://finisgeekis.com/?p=13402

Algumas heroínas são óbvias. Outras, nem tanto.

Todos nós estamos acostumados a garotas mágicas e guerreiras de capa e collant. Nos últimos tempos, anti-heróinas e vilãs carismática também marcaram presença. Não parece ter sido o suficiente para a Netflix, que resolveu pensar fora da caixa.

E nos trazer uma heróina bastante diferente.

the crown queen.jpg

À primeira vista, Elizabeth II não parece ser uma pessoa muito emocionante. Para nós, que nos acostumamos a encará-la como uma velhinha simpática, é difícil imaginá-la fora das colunas sociais. Muito menos como protagonista de uma nova série, prevista para durar seis temporadas.

Apenas à primeira vista.

Como nos mostra o seriado The Crown (que contém até um brasileiro entre os produtores), Elizabeth II foi (e ainda é) uma das mulheres mais poderosas da atualidade, com um dedo em vários dos mais importantes episódios históricos do século XX.

Não deixem os vestidos, jóias e corgis enganá-los. A rainha é badass.

elizabeth rifle.jpg

Bem, não exatamente desse jeito

“Mas como?” muitos, inclusive eu próprio, já devem ter perguntado. O cargo de monarca não é apenas cerimonial? O que as fofocas sobre o Príncipe William têm a ver com grandeza e heroísmo? Porque os britânicos insistem na monarquia, enquanto que tantos outros países já a abandonaram?

Acontece que há muito mais na rainha do que coroas e palácios. A “Coroa” que dá nome ao seriado é muito mais que uma jóia. É um princípio tão importante que, sem ele, o Reino Unido não consegue funcionar.

É o que me conta meu grande amigo Rafael Andrade, que conhece o assunto melhor que ninguém.

Intrigado pela série, resolvi procurá-lo para escrever um artigo especial para o finisgeekis, nos contando porque Elizabeth II é tão importante – e porque nós, ao assistir The Crown, estamos perdoados se terminarmos de queixo caído.

Confiram abaixo:

A heroína que a Inglaterra merece

claire-foy-the-queen1.jpg

Qual, afinal, é a função da rainha? A resposta mais simples é que ela desempenha um papel constitucional na Inglaterra.

Claro, antes de comentar isso, é preciso entender o que é exatamente, a constituição britânica.

Ao contrário da maioria das monarquias constitucionais do mundo, o que torna o Reino Unido um caso ainda mais sui generis é que o país não possui uma constituição formal. Aí você pode se perguntar: mas pera aí, o tempo todo eles falam na constituição durante a série, o que isso quer dizer?

Pois bem, o que quer dizer é que, no Reino Unido, ao invés de um só documento constitucional rígido, como funciona nos Estados Unidos, no Brasil e praticamente todos os outros países do mundo, quatro fontes de entendimento constitucional são adotadas:

Elas são a common law (leis baseadas na tradição e nas decisões tomadas anteriormente por juízes e cortes de justiça), a statute law (leis estabelecidas para legislar pontos importantes que contrariem a common law ou que precisem de legislação mais rígida), convenções parlamentares (que tratam do funcionamento do parlamento) e, por fim, os works of authority (uma coleção de obras fundamentais para o entendimento da lei, incluindo “A Constituição Inglesa” de Bagehot, que é citada o tempo todo na série e que é uma das obras estudadas por todos os herdeiros do trono inglês, como também vimos na série).

the-crown-classes

Como não poderia deixar de ser, todas as quatro fontes de poder  são intimamente ligadas à figura do soberano.

A common law vem diretamente da sua autoridade como representante das tradições inglesas, chefe da Igreja Anglicana e, até 2005,  por ter a prerrogativa de apontar o chefe do sistema judiciário inglês, sob aconselhamento do primeiro ministro.

A statute law, assim como a common law, também provém da autoridade do soberano, mas de maneira diferente. Apesar de serem aprovadas em última instância pelo monarca, essas leis tradicionalmente limitam o poder que ele exerce.

Esse tem sido o caso desde a Magna Carta de 1297 até o recente ato parlamentar de 2011. Apesar disso, é a autoridade e continuidade da instituição da monarquia que permite que documentos do século XIII ou XVII sejam citados em tribunais britânicos até os dias de hoje.

As convenções do parlamento e os works of authority, apesar de não serem ligados diretamente à monarquia, também dizem respeito ao soberano, na medida em que discutem suas prerrogativas e a própria natureza do poder real.

Não é pouca coisa, e não é à toa que George VI exige que Elizabeth passe toda a sua infância estudando apenas esses fundamentos. A jovem rainha pode se incomodar por não  ter estudado conhecimentos gerais, mas tudo existe por um motivo.

Poder apenas simbólico, mas nem tanto

crown jewels.jpg

Mas como funciona o poder real? O que Elizabeth pode e não pode fazer?

Os direitos constitucionais mais importantes do soberano, aqueles que são aplicados com maior frequência, são: o direito de ser consultado, o direito de encorajar e o direito de avisar (que também foram teorizados por Bagehot).

Esses direitos representam a influência pessoal que o monarca, símbolo das instituições do Reino Unido pode ter em suas reuniões com o primeiro-ministro, chefe do governo de Sua Majestade e são vistos com clareza durante a série.

Ao longo dos episódios, Elizabeth se reúne diversas vezes com Churchill, que acaba se considerando uma espécie de professor da jovem rainha.

the-crown-audience

Quanta influência que o monarca de fato exerce no governo do país é difícil de medir. Afinal, nós, meros mortais, não temos acesso exato ao que é conversado entre as quatro paredes do Palácio de Buckingham entre o primeiro-ministro e seu soberano.

Temos, no entanto, vários indícios de um poder de influência forte, apesar de exercido com parcimônia.

Por exemplo, durante a Crise da Rodésia, quando o país africano, (atual Zimbábue) declarou-se independente da Coroa, a rainha teve uma atuação extremamente importante, cooperando com o gabinete para lidar com a ex-colônia rebelde.

É, aliás, nas relações exteriores em que o poder simbólico do monarca fica ainda mais aparente. Como Chefe de Estado e representante do poder emanado pelo governo britânico, o soberano desempenha papéis cerimoniais em vários eventos, espalhados pelo território da Commonwealth, assim como visitas de estado em vários países, como o próprio Brasil, que foi visitado pela ilustre Rainha em 1968.

Em The Crown, não é por acaso que George VI coloca tanta importância na Commonwealth Tour, a rodada oficial de visitas às colônias britânicas. Nem que Elizabeth, quando vista a sua coroa, faça o mesmo.

No episódio 8, Orgulho e Alegria, sua relação com o marido ameaça degringolar porque se recusa a encurtar a viagem. Tudo por uma boa causa: como diz um de seus assessores, os “ventos da independência” sopram pelo continente.

commonwealth tour.jpg

Além das funções cerimoniais, o poder de influência é claríssimo, como demonstrado pela própria série no episódio em que o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, é forçado a aceitar o convite da rainha para um banquete de Estado.

Apesar de não ser um mais um colosso diplomático como foi sua trisavó, a Rainha Vitória, apelidada carinhosamente de “avó da Europa”, em uma era onde as monarquias são cada vez mais raras e as oportunidade para o monarca de influenciar diretamente a diplomacia do país por via de casamentos reais são, consequentemente, cada vez mais escassas, a influência exercida pela atual Rainha é sentida e impõe um respeito intangível nos Chefes de Estados estrangeiros.

buckingham palace.png

O staff do Palácio de Buckingham que o diga

A parte mais importante do poder simbólico real, entretanto, é o senso de continuidade passada pela instituição. Ele é refletido nas cerimônias oficiais, como a coroação e a abertura do parlamento.

A série passa bem isso na cena da coroação, apesar de não entrar em todos os pormenores que os amantes da monarquia adoram discutir.

Por exemplo, você sabia que o trono de madeira simples  no qual a Rainha sentou durante sua coroação, o que foi replicado fielmente na série, é um trono comissionado pelo Rei Eduardo I (sim, ele mesmo, o “Martelo dos Escoceses”, vilão do filme Coração Valente) e contém uma pedra ancestral capturada pelo Rei durante suas guerras na Escócia e antes utilizada nas cerimônias de coroação dos reis escoceses?

Quem assistiu ao filme O Discurso do Rei deve se lembrar de uma cena engraçada envolvendo ele. No longa, o fonoaudiólogo do rei George VI se senta no trono para motivar o monarca, que é gago, a falar.

O truque dá certo, e o soberano, fulo com a insolência, consegue superar sua gaguice.

the-kings-speech-32.jpg

E essa é apenas uma de tantas relíquias utilizadas na cerimônia, que visa a acentuar ainda mais esse senso de continuidade.

Se um dia você, leitor, tiver a oportunidade de visitar a Abadia ou o Parlamento de Westminster (a sede do governo britânico), repare em como o ambiente é construído para valorizar a continuidade. Tudo foi extremamente pensado para te passar a impressão da monarquia é a mesma instituição inquebrantável da Inglaterra Anglo-Saxã medieval até os dias de hoje.

westminster-abbey-interior1215.jpg

Abadia de Westminster, em Londres

Minha cena favorita na série, inclusive, diz respeito a isso. No episódio 4, Elizabeth procura o conselho de sua avó, Mary, e as duas conversam sobre o “direito divino”. A jovem rainha acaba mencionando que, para seu marido, nas monarquias modernas há de existir uma separação entre Igreja e Estado (o que muitas vezes não cai tão bem na monarquia, mas essa é uma história para outra ocasião).

Ao ouvir isso a Rainha Mary, do alto de sua dignidade, dispara: “Sim, mas ele representa uma Família Real de aventureiros e novos-ricos que remonta o quê? 90 anos?  O que ele sabe de Alfredo, o Grande, o Cetro da Igualdade e Caridade, Eduardo, o Confessor, Guilherme o Conquistador ou Henrique VIII?”

the crown divine right.png

A noção de que uma instituição representa, e tem representado a nação durante toda sua história é extremamente poderosa.

Poder real, mas nem tanto

the crown tommy 2.jpg

Além do poder simbólico, a Coroa ainda possuí uma gama de prerrogativas que utiliza para exercer poder de fato sobre o governo.  O problema é que, como já falamos antes, a natureza da constituição britânica não é formal e escrita, o que torna muito, mas muito difícil saber até onde vão as prerrogativas.

Em 2004, o governo britânico tornou algumas delas públicas. Entre as mais importantes são a prerrogativa da misericórdia (o famoso “perdão real”), a prerrogativa de declarar guerra (na prática é sempre exercida pelo primeiro-ministro em nome do monarca, e foi objeto de polêmica quando utilizada por Tony Blair em 2002 na participação britânica na guerra do Iraque) e a prerrogativa de demissão de um primeiro ministro.

Em The Crown, vemos Elizabeth tentada a fazer uso dessa última prerrogativa para demitir Churchill durante o Grande Nevoeiro de 1952. Não é à toa que ela pensa duas vezes: ela é extremamente poderosa. Da última vez em que foi utilizada (em 1834!) resultou em desastre político.

Como os monarcas sabem muito bem, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

the_crown__discover_the_real_great_smog_that_brought_london_to_a_standstill

Há ainda a prerrogativa mais poderosa de todas: o consentimento real. Ela é importante porque é a base do poder do monarca. Basicamente, quando uma das casas do parlamento (Casa dos Lordes ou Casa dos Comuns) deseja passar uma lei, ela primeiro tem que ser votada na casa que a iniciou, depois na outra casa e, por fim, passar pelo aceite real.

act of parliament.png

O caminho da lei até ser aceita. Fonte

Por convenção, a rainha aprova todas as leis que saem do parlamento. No entanto, o direito de veto é uma das prerrogativas reais. Ou seja: em teoria, o soberano tem direito constitucional de vetar uma lei que considere contrária ao interesse nacional. Isso é absolutamente poderoso e a última vez que aconteceu no Reino Unido foi no longínquo ano de 1704.

Mesmo assim, temos um exemplo recente de uso do veto em outra monarquia constitucional: o Grão-Ducado de Luxemburgo.

Em 2008, o  Grão-Duque Henri se recusou a dar o consentimento a uma lei que legalizava a eutanásia no país, alegando que assinar uma lei dessas ia contra sua liberdade de consciência. Comprou uma briga com seu parlamento e perdeu. Depois de 60% da população se declarar contrária à sua atitude, foi aberta uma sessão para emenda constitucional no parlamento luxemburguês e o Grão-Duque perdeu seu direito de veto.

Portanto, é difícil saber se as prerrogativas conhecidas são meramente teóricas ou se teriam utilidade prática se fossem usadas à revelia do parlamento. Em todo o caso, elas são estritamente controladas e servem mais como um poder extra em caso de grave crise nacional ou guerra.

Caso um monarca faça mal uso delas, certamente enfrentará uma crise constitucional de enormes proporções e porá em risco não só sua própria posição como a própria monarquia.

the-crown-margaret

Pois é, Margaret. Não adianta chorar

Apenas em momentos de atrito entre o governo e a coroa, como o ocorrido em Luxemburgo, descobriremos se a maioria das prerrogativas realmente tem efeito no mundo moderno (além do uso como poder de exceção durante crises, que já foi comprovado).

Enquanto isso, os ingleses rezam para que esse dia nunca chegue, pois um confronto entre Sua Majestade e seu governo traria resultados catastróficos para o país – qualquer que fosse o resultado.

A protagonista de The Crown pode não usar uma capa. Mesmo assim, é evidente que, em termos de responsabilidade, não perde de nenhuma super-heroína.

The-Crown-la-serie-qui-a-rendu-accro-les-seriephiles-en-moins-de-4-jours-!_portrait_w674.png

E aqui chega ao fim esse post especial. Gostaria de fazer um agradecimento especial ao Rafael pela colaboração. E a você, leitor e fã de The Crown, por ter chegado até aqui. Até a próxima!

Ou, como diriam os britânicos, godspeed!

]]>
https://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/feed/ 0 13402
“Black Mirror”: nosso maior pesadelo é o passado, não o futuro https://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/ https://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/#respond Mon, 31 Oct 2016 20:49:50 +0000 http://finisgeekis.com/?p=12378

Se eu tivesse que apostar que uma série britânica underground como Black Mirror um dia ganharia os aplausos da multidão, perderia meu dinheiro.

É verdade que a obra, que está agora em sua terceira temporada, sempre deu sinais de que brilharia. Gigantes do entretenimento como Stephen King e Robert Downey Jr. se disseram seus fãs. Seu especial de natal contou com a participação de Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men.

Desde o princípio, Black Mirror foi uma excelente ideia à espera de alguém que a comprasse. Para sua sorte, a honra veio de ninguém menos que do Netflix.

Aos que não a conhecem, a série é uma coleção de curtas sobre a relação do homem com a tecnologia. Apesar de referências a uma cronologia comum, cada episódio é independente, dirigido por um diretor diferente, com seu próprio elenco e enredo.

Às vezes sarcásticos, quase sempre distópicos, raramente otimistas, seus contos são ficções especulativas ambientadas “15 minutos no futuro”: distantes a ponto de serem diferentes do nosso mundo, mas próximas o suficiente para nos fazer temer suas consequências.

Em The Entire History of You, por exemplo, um dispositivo permite que as pessoas gravem e assistam a todas as suas memórias. O que parece uma bênção logo se mostra uma maldição. Como as personagens de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, seu protagonista aprende que num mundo sem esquecimento nossos erros nos assombrarão para sempre.

Em White Christmas, por sua vez, pessoas podem ser “bloqueadas” na vida real como no Facebook. Uma vez que isso aconteça, não podem ser vistas ou ouvidas por aqueles que o bloquearam. Criminosos são punidos com um “bloqueio universal”, que os impede de interagir com os outros pelo resto de suas vidas.

black-mirror-blocked-9eccd.jpg

Em Nosedive, estreia da nova temporada, pessoas avaliam umas às outras no estilo do Uber. Tal como no aplicativo de caronas, uma nota muito baixa implica na perda de benefícios – neste caso, direitos civis.

O lado negro da tecnologia

O “espelho negro” que dá nome à série é uma referência às telas de smartphones. Por um lado, são uma fixação que parecemos não ser capazes de largar. Por outro, como todo espelho, nos mostram o reflexo (distorcido) de quem realmente somos.

Black-Mirror.jpg

Quem revira os olhos com imprecações contra os “males da modernidade” pode respirar aliviado. Black Mirror não é hard sci fi. Suas “profecias” tecnológicas beiram o fantasioso. Seu worldbuilding, até pela proximidade com o presente, é mínimo.

Um mundo inteiro jamais poderia ser sustentado apenas por humanos gerando energia em bicicletas ergométricas, como sugere Fitfteen Million Merits. Já Hated in the Nation, em que abelhas robóticas caçam pessoas com o poder do Twitter, parece um argumento de filme B.

BlackMirror1x02_1203-1024x576.jpg

Cena de “Fifteen Million Merits”

Criticar a série por causa disso, obviamente, é deixar de lado o mais importante. Black Mirror não é uma “profecia” tecnológica, mas uma redução ao absurdo, uma suposição do que aconteceria se os problemas da vida contemporânea fossem alargados ao extremo.

Seus contos são tão irreais quanto os pesadelos em que ficamos pelados em público, ou em que descobrimos que nossos pais são impostores. Porém, tal como estes pesadelos, é justamente por tocar em medos tão viscerais que a série nos sacode emocionalmente.

Como disse seu criador, Charlie Brooker, a ideia não foi escrever uma ode contra a tecnologia, mas avisar sobre o que ela pode nos trazer.

Brooker é otimista, ou apenas muito ingênuo. Pois, como outros já apontaram, a distopia de Black Mirror está longe de ser um palpite. Os terrores da tecnologia que a série nos apresenta são problemas com que convivemos há muito tempo.

E por “muito”, não penso em anos, mas em séculos.

A tirania da comunidade

black mirror community.jpg

Revoltados de plantão passam uma boa parte de seu tempo defendendo a liberdade de pensamento, a privacidade e o princípio da ampla defesa. Fazem bem. Essas garantias, afinal de contas, são os pilares da sociedade que conhecemos.

O que talvez os surpreenda é que o statu quo que gostam de proteger é muito mais novo do que imaginam.

Até cerca de 200 anos atrás (em alguns lugares, por muito mais tempo), pessoas viviam em comunidades minúsculas, em que todos se conheciam. O problema, como notaram pesquisadores, é que sociedades fechadas não são apenas diferentes. Elas também funcionam de uma outra forma.

Como a informação circula pouco, manter segredo se torna difícil. Fofoca é um esporte popular. O que cada um faz, com quem cada um se relaciona e mesmo o que cada um pensa logo vira assunto público.

Como a lei é fraca e o tribalismo forte, os conflitos são resolvidos entre as pessoas. O que a comunidade achar errado, nem que apenas uma desfeita após a missa de domingo, é suficiente para arruinar uma pessoa. Não importa se a punição é desumana: enquanto for o desejo da maioria, ela será merecida.

black-mirror-white-bear-e1430246904626.png

Em uma sociedade onde a vontade da turba é a que manda, é questão de tempo até que as pessoas comecem a viver pelas aparências. Afinal, é justamente por elas que serão julgadas – e condenadas. Máscaras se tornam tão importantes quanto rostos.

Daí que, para manter a “ordem” e “fazer o que é justo”, não basta exigir o troco. É preciso assassinar suas reputações, humilhá-las, desumanizá-las.

whitebear2
goya-ghost

É a filosofia de A Letra Escarlate, em que uma adúltera é obrigada a vestir uma marca para que os demais reconheçam seu pecado de longe.

É o que, entre 1692 e 1693, levou 25 pessoas à morte em Salém, Massachusetts, vítimas da fofoca de um grupo de garotas. É o que fazia com que, na Versailles do Ancien Régime, brigas, rivalidades políticas e até mesmo duelos fossem provocados pelos mais fúteis dos motivos.

black_mirror nosedive.jpg
marie antoinnette 2.png

Foi apenas com a explosão populacional e o surgimento das grandes metrópoles que outro caminho começou a se abrir. Na nova sociedade urbanizada, fria e superpovoada, pessoas se tornam estranhas. A cidade é o império do anônimo.

Na multidão, o indivíduo não precisava mais ser escravo de sua comunidade. Podia ir aonde desejasse, relacionar-se com quem quisesse, experimentar o que lhe desse na telha.

Se essa utopia parece fresca, é porque foi apropriada pela retórica da globalização e da revolução digital. O cidadão internacional não deve mais obediência à pátria: o mundo é seu playground. Comunidades virtuais, de fandoms a praticantes de fetiches sexuais, permitem que as pessoas escolham suas tribos – e se “desconectem” sempre que quiserem.

Que Black Mirror nos choque tanto é prova de que esse sonho ainda segue firme. Mesmo que a realidade, cada vez mais, conte outra história:

China Black Mirror.png

Na sanha de nos aterrorizar com o futuro,  Black Mirror nos apresenta um mundo que a humanidade conhece muito bem. De uma utopia infinita e interconectada, a sociedade ameaça se tornar tão fechada, provinciana e inclemente quanto foi durante a maior parte da história.

Infelizmente para os “pessimistas” de  Black Mirror, virar essa mesa é uma tarefa muito mais complicada do que nos livrarmos dos últimos gadgets.

O que desejamos apagar

black-mirror-liam-redo

À primeira vista, é fácil supor que a série de Brooker seja uma fábula sobre os excessos da tecnologia. Desafetos da Apple, compartilhadores de correntes nostálgicas no Facebook e metidos a politizados em luta contra a “alienação” encontraram na série um prato cheio para esbanjarem as próprias certezas.

Porém, há pouquíssimo nessa distopia futurista que não seja superado pelo que a era pré-digital, sem pompa ou circunstância, era capaz de fazer.

A “likecracia” de Nosedive pode parecer uma histeria tirânica. Porém, é inacreditavelmente mais branda do que o higienismo do século XIX, quando presídios inteiros eram construídos para prender e torturar pessoas desfavorecidas, deslocadas ou inconvenientes.

cork city gaol.jpg
Antiga prisão de Cork. No final do século XIX, uma mulher chegou a ser presa por “bebedeira” e “linguagem obscena”.

Já em Men Against Fire, soldados recebem implantes cibernéticos que fazem com que enxerguem seus inimigos como monstros. Assim, podem atirar sem sofrer com o dilema moral em matar outras pessoas.

Com o jargão típico da geração 11/09, uma colunista do The Mirror disse que o episódio fala sobre “as consequências filosóficas da guerra de alta tecnologia”.

Mas Nathan Bedford Forrest, oficial confederado e primeiro grão-mago da KKK, não precisou de implantes para chacinar prisioneiros negros no Massacre do Forte Pillow. Nem soldados japoneses para sequestrar e baionetar bebês durante a invasão da China (CUIDADO, NSFW).

Será que essas guerras eram menos “filosóficas” que as nossas?

Ironicamente, se existe algo próximo da guerra “humanizada” que o episódio parece defender, ela está justamente na matança “futurista” que tanto critica. Entre o desenvolvimento de tecnologias para reduzir danos colaterais e uma opinião pública horrorizada como nunca antes com a violência, o combate se torna cada dia menos letal.

banzai charge.jpg

Resultado de ‘Gyokusai’ ou Carga Banzai, 1942

As visões de progresso pregam que a humanidade pode sempre transcender suas barreiras. Nada está escrito na pedra. O amanhã será melhor que o ontem. Nenhum vício é inconsertável, e nenhuma virtude inatingível. Com determinação suficiente, é possível ultrapassar qualquer barreira: a política, a linguagem, o preconceito e mesmo a biologia.

O grande pavor dessas visões não é pensar que suas boas intenções possam edificar uma distopia. É imaginar que, não importa o que façamos, algumas coisas se recusarão a mudar.

É descobrir que nossas piores depravidades vão nos acompanhar até o final dos tempos. E que há, no seio de cada um, uma natureza humana que engenharia social nenhuma será capaz de apagar.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/feed/ 0 12378
Por que ‘Fargo’ é a melhor série da TV https://www.finisgeekis.com/2015/12/14/por-que-fargo-e-a-melhor-serie-da-tv/ https://www.finisgeekis.com/2015/12/14/por-que-fargo-e-a-melhor-serie-da-tv/#comments Mon, 14 Dec 2015 21:09:47 +0000 http://finisgeekis.com/?p=1219 Que o sucesso arrebatador de Demolidor, Breaking Bad, Game of Thrones, Mad Men e tantos outros não nos iluda. A série mais impressionante da “Era de Ouro” da telinha pode estar em outro castelo.

Fargo, seriado do FX que encerra sua segunda temporada essa semana, passou meio batido no radar entre tantos lançamentos de peso. Remake (ou spin-off) de um filme um tanto obscuro dos irmãos Coen ambientado no meio-oeste americano, a produção não parecia ter os quesitos para competir com heróis de aluguel, traficantes internacionais e gênios da publicidade.

Errou quem apostou no fracasso. Sua primeira temporada faturou o Globo de Ouro de melhor minissérie e melhor ator, e a segunda está no páreo para repetir a dose, com indicação a três estatuetas.

O sucesso não poderia ser mais justo. Fargo não é apenas uma ótima série; é uma compilação do melhor que a TV de alto nível tem a oferecer.

Das mãos de Noah Hawley, autor de quatro romances e roteirista de Bones, o seriado se destaca não pelo que foge das fórmulas, mas pelo quão bem se apropriada daquilo que deu de mais certo nas produções recentes.

Se há, como alguns acham, uma “nova forma” de se fazer TV, Fargo é o seu maior monumento. Poucas produções, por exemplo, já incorporaram tão bem:

1- Os “heróis” com defeitos.

Uma das maiores viradas da TV contemporânea foi o abandono dos paladinos da justiça e suas missões altruísticas. Brett Martin atribuiu a revolução à popularidade dos “Homens difíceis”: personagens em crise, com mais defeitos que virtudes, que fogem do didatismo esperado dos role models.

A mudança pode ser vista dos livros aos quadrinhos, mas foi na TV que encontrou sua expressão mais bombástica. Com o sucesso de The Sopranos e The Wire, depois Mad Men e Breaking Bad até chegar em Jessica Jones, as produtoras entenderam que anti-heróis são muito mais carismáticos do que indivíduos perfeitos.

Fargo leva isso à estratosfera. Seu elenco, surpreendentemente grande e bem desenvolvido para uma minissérie de dez episódios, traz algumas das melhores misturas de angústia, raiva, amor e confusão a terem agraciado a telinha.

Seu enredo acompanha uma família de mafiosos de Fargo –uma cidade na Dakota do Norte – tentando resistir à expansão de um grupo rival. Há uma força-tarefa de policiais lutando para evitar que a guerra vire um banho de sangue. E há um casal de civis que, tal como Buscapé em Cidade de Deus, se vê perdido na linha de tiro, com balas a voar para todos os lados.

Quem está “certo” nessa história? Isto é para o espectador determinar. A única certeza que ele pode ter é que no mundo de Noah Hawley não existem mocinhos ou vilões simples. Os Gerhardts, a máfia de Fargo, mostram respeito à família, lealdade e certa “honra entre ladrões”, mas são malfeitores truculentos – mesmo com seus subordinados. Seus rivais formam um império criminoso que não perde em nada para as redes de corrupção de True Detective, mas cujos membros, de tão frios e corporativos, nos parecem até bons profissionais.  A polícia supostamente zela pela ordem, mas está infiltrada pelo crime organizado e corroída por disputas internas. E a pobre donzela que foge do perigo ao lado de seu esposo é uma psicopata new age.

fargo peggy

2- O nonsense

 Fargo-TV-Show.png

Dois guarda-costas mudos com sobretudos de couro. Um assassino de aluguel chamado “O Agente Funerário” que trabalha de smoking e é acompanhado por dois meninos orientais. Um rei do crime de black power que recita poemas do Lewis Carroll. Um capanga que parece a fusão de Aldo Raine com o Pássaro Trovejante. Um óvni.

fargo ufo

Ser “sério”, “adulto”, e “gritty” é muito fácil. O difícil, como Christopher Nolan aprendeu do jeito mais duro, é chegar a isso sem ser ridículo.

batman-inside-out

Nem só de sofrimento, bufadas e grunhidos se faz uma pessoa. Qualquer série que se proponha a ser “realista” precisa encontrar espaço para essas outras facetas do ser humano: o humor, o inesperado, o irracional, o nonsense.

Sem as trapalhadas de Jesse Pinkman e a campainha de Tío Salamanca, Breaking Bad não passaria de um Traffic de baixo orçamento. Sem o cortador de grama e Roger Sterling vomitando na frente dos clientes, Mad Men bem serviria de novela de época.

mad-men-lawnmower-blood

Como esquecer?

Assim atestou True Detective na sua temporada 2. Com personagens unidimensionais que não abriam um sorriso nem para o dentista, a minissérie virou um episódio alongado de Law & Order.

Quem assistir Fargo com as personagens de Collin Farrell, Vince Vaughn e Rachel McAdams na mente terá um choque ao se deparar com as atuações de Patrick Wilson, Jean Smart e Kirsten Dunst. A série de Noah Hawley simplesmente explode com personalidade, e suas personagens são tão únicas e  imprevisíveis quando sua trama endiabrada.

Em uma das cenas mais marcantes, Nick Offerman, mais conhecido como o queridinho da internet Ron Swanson, interpreta um advogado, veterano da Guerra do Vietnã e teórico da conspiração que tenta impedir uma gangue de abrir fogo contra a cidade.  O problema: ele está mais bêbado que um gambá e mistura seus argumentos com citações de George Washington e slogans da campanha presidencial de Ronald Reagan de 1980.

fargo offerman

E sim, ele usa essa barba

3- Um forte senso de justiça

floyd gerhardt

Em sua resenha de Batman Returns, o grande crítico Roger Ebert disse que filmes de super heróis não deveriam tentar ser filmes noir, pois “a essência do noir é que não existem heróis”.

O conselho não parece ter intimidado os mais rebeldes, e não falo apenas do Nolan de Cavaleiro das Trevas. Como eu disse no começo, a rejeição aos “paladinos” foi uma das mudanças mais sensíveis da geração pós-Alan Moore.

O problema é quando, ao largar a armadura reluzente, as produções se esquecem do que existe por trás dela. Dizer que os “mocinhos têm nuances”, nas palavras de David Tennant, não significa dizer que o “bem” e o “mal” são relativos.

Há uma linha tênue entre a ambivalência moral e a misantropia. No primeiro caso, o herói sofre porque deseja fazer o certo, mas tem medo de provocar o mal – por exemplo, tornando-se ele mesmo um vilão. No segundo, um protagonista veste a capa de “anti-herói” como desculpa para ser um humano desprezível.

Noah Hawley, em uma entrevista à Vanity Fair, coloca o problema de forma mais clara:

noah hawley

“As histórias [de Hollywood] começaram a se tornar completamente diferentes da vida [real]. A ideia [desse] caçador de demônios torturado que é o único que pode solucionar esses casos porque ele já esteve naquela situação antes e pode se colocar no lugar do assassino que destruiu sua vida. É exaustivo.”

Uma personagem que só vive em função de si mesma dificilmente funciona. Pelo contrário, grandes anti-heróis causam – e sofrem – repercussões naqueles à sua volta.

Em Breaking Bad (SPOILERS EVERYWHERE) a transformação de Walter White em Heisenberg lhe custa tudo. De membro respeitado da comunidade, ele se torna um pária temido e odiado por todos. Em Mad Man, Don Draper, que construiu uma carreira sobre fraudes, adultérios e abuso de funcionários, vê seu sucesso ruir durante duas temporadas até encontrar sua “redenção”.

¾»ÿ

A temporada 2 de True Detective, apesar dos pesares, entendeu isso melhor do que ninguém. O mafioso é morto por outros gângsters. O policial corrupto é fuzilado pelos seus comparsas ao tentar se redimir. A policial honesta, ao peitar sozinha uma cidade de vilões, precisa se exilar para escapar com vida.

Não se trata de uma ordem cósmica de justiça. Não há um “código de conduta” que essas personagens são compelidas a seguir, um “bem maior” que vai puni-las se saírem dos trilhos. Não é questão de ter o “direito” de ser antissocial e cobrar o respeito dos outros. Trata-se, pura e simplesmente, do fato de que nossas ações têm consequências, e nós pagaremos por elas. Como diz o slogan de True Detective, nós recebemos o mundo que merecemos.

Fargo é mais otimista, mas nem por isso menos pé-no-chão em seu senso de justiça. Patrick Wilson, em seu melhor papel desde Watchmen, vive uma personagem que bem poderia dar uma história de origem ao seu Coruja. Ele é Lou Solverson, um policial que cai de cabeça em uma das mais sangrentas guerras de gangue do meio-oeste. O problema é que, além de coragem, ele tem uma filha pequena, uma mulher com câncer terminal e um sogro como colega de delegacia. Ao longo do seriado, a sanha de “fazer a coisa certa” é contraposta ao medo de que “caçar o demônio” possa resultar na morte de todos que ama.

600px-FargoS21E03_03

O heroi que Minnesota merece

Lou não é o único. Floyd Gerhardt, a matriarca da máfia de Fargo, está dividida entre o dever de preservar a gangue da família e a obrigação de impedir que todos os seus filhos morram em uma guerra que ela não tem como vencer. Já Mike Milligan e Hanzee Dent, os únicos não-brancos de suas gangues (a série se passa em 1979) perguntam-se se o “certo” é ser leal aos seus padrinhos ou se rebelar contra eles, já que são tratados como capachos.

hanzee mike fargo

Para o bem ou para o mal, as personagens de Fargo agem de acordo com seus valores e sofrem as consequências de seus atos. Infelizmente para elas, o futuro dos anti-heróis é sempre mais nebuloso do que o dos paladinos.

rorschach

“Do it!”

Se Fargo terá uma mensagem final sobre o assunto nós veremos nos próximos dias. Uma coisa, no entanto, é certa: as estranhices, incertezas e crueldades que nos fazem humanos nunca foram tão bem representadas na telinha.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2015/12/14/por-que-fargo-e-a-melhor-serie-da-tv/feed/ 2 1219
Extra: inventando as verdades de “Mad Men” https://www.finisgeekis.com/2015/05/15/extra-inventando-as-verdades-de-mad-men/ https://www.finisgeekis.com/2015/05/15/extra-inventando-as-verdades-de-mad-men/#respond Fri, 15 May 2015 14:30:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=245

Produzir uma série histórica não é fácil. Ainda mais um drama de peso como Mad Man. Criaturas do nosso tempo que somos, precisamos ter cuidado com as escolhas mais básicas: os itens de vestuário, os objetos de cena, o papel de parede, o tipo de cadarço do sapato, as linhas de diálogo. Quem se responsabiliza por essas coisas? Uma legião de artistas e auxiliares. Felizmente para nós, alguns deles resolveram compartilhar seu processo criativo.

The Complete Mad Men Companion é um guia virtual que viaja pelos bastidores do hit de Matthew Wiener. Dos ternos de Don aos penteados da Joan, da carteira da Betty às mesas da SC&P, cada escolha é comentada pelos criadores responsáveis. A galeria mostra um nível de detalhismo de cair o queixo, e é leitura recomendada para qualquer fã de Mad Men e da atual renascença da TV americana.

Alguns highlights seguem abaixo, mas façam questão de visitar o original. De minha parte, estou na torcida para que uma alma bondosa transforme isso em um art book. Se possível, a ser vendido com um álbum das músicas de créditos das sete temporadas, para escutar aos prantos após o finale da série esse domingo.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2015/05/15/extra-inventando-as-verdades-de-mad-men/feed/ 0 245
O fim de uma era… o começo de outra? https://www.finisgeekis.com/2015/04/13/o-fim-de-uma-era-o-comeco-de-outra/ https://www.finisgeekis.com/2015/04/13/o-fim-de-uma-era-o-comeco-de-outra/#comments Mon, 13 Apr 2015 12:15:01 +0000 http://finisgeekis.com/?p=160 Para o júbilo dos fãs desesperados, a premiada série Mad Men finalmente voltou para a última parte de sua última temporada. O drama de época é exemplo de tudo o que há de mais certo na geração atual da TV americana, e reflete o julgamento daqueles que consideram nossa década como a era de ouro da telinha. Mais interessante, no entanto, é o que a série faz de inesperado, para não dizer inconcebível.

mower_mad_men_400Para além do nonsense, números musicais e cortadores de grama, o verdadeiro milagre é o que faz com a época que retrata – mais ainda, com a forma com que renova a proposta dos dramas de época. Histórias ambientadas no passado são complicadas, pois sempre queremos tirar muito mais dele do que ele nos oferece. Como já disse antes, as obras pendem ou para a malhação de Judas ou para uma idealização romântica. Em ambos os casos, são mais uma crítica aos nossos tempos (ou ao que eles deveriam ser) do que qualquer outra coisa.

Nesse sentido, Mad Men faz algo que poucos tiveram capacidade (ou coragem) para tentar: ele deixa o passado falar por contra própria.

Ao leitor mais rigoroso: acalme-se. É óbvio que Mad Men é uma série contemporânea e, como tal, reflete uma visão contemporânea dos anos 1960 e 1970. É óbvio que nada é totalmente “puro” ou “neutro”. A diferença está na forma como o seriado trabalha com o que tem em mãos. Se outras séries, filmes e livros enviam ao passado um protagonista atual em tudo além do vestuário, a criação de Matthew Wiener nos entrega um grupo de personagens tão estranhamente démodés quanto os penteados rebuscados e o Cadillac 1962. A Madison Avenue de 50 anos atrás é um mundo estranho, esfumaçado pelas baforadas de uma legião de fumantes compulsivos, vestidos estapafúrdios e tratamento abusivo de funcionários. Mas seus habitantes não ditam a ladainha de como tudo é errado e defasado. Eles são, afinal de contas, tão errados e defasados como o mundo que os cerca.

RogerSterlingBlackFace1Don Draper nos brinda com um whisky a cada 15 minutos e uma amante descartável a cada 30. Sua carreira foi construída sobre um misto de charme, fraude, adultério e exploração de seus subordinados. Roger Sterling é um panfleto ambulante do que há de mais caricato em sua época, de uma performance em blackface no seu casamento ao uso de LSD. Joan, uma mulher sob a sola de homens poderosos, poderia oferecer um contraste, mas engole todos os seus sapos. Engravidada pelo chefe – que não deseja assumir a criança – ela a cria sem pestanejar como se fosse de seu marido. Ao ser obrigada a prestar favores sexuais a um cliente, manipula a oportunidade para se tornar sócia da agência. Tal como os outros, ela pertence a um outro tempo, regido por outras regras. E ela conhece todas.

A maior pergunta talvez não seja por que Mad Men optou por sua linha, mas como uma série dessas pôde ser feita nos dias de hoje. Se há algo que marca nossa geração mais do que a adoração da tecnologia e do imperativo de “progresso” é nosso enorme pavor em relação ao que veio antes. Somos cada vez mais da opinião que qualquer ideia além das nossas deve ficar enterrada no passado, ou então solta no mundo com uma placa no pescoço e um supervisor para nos afastar do “perigo”. Como então, pôde um programa em que crianças bebem vodka e dirigem, em que publicitários dopam seus funcionários e subornam clientes com prostitutas, ganhar a televisão?

Brett Martin tem um palpite. Para o autor, a nova “era de ouro” da TV americana tem um ponto em comum. De Don Draper a Walter White, de Dexter a Tony Soprano, seus dramas nos mostram personagens incorretos, problemáticos, complicados e, por isso mesmo, humanos. O “herói” televisivo do século XXI – se é que nós podemos chamá-lo assim – é atormentado, cruel e impotente diante de uma realidade absurda e sádica. Se antes sentávamos na poltrona na sala em busca de nosso final feliz diário, os seriados de hoje em dia nos oferecem emoções diferentes – e muito mais cínicas. Vivemos num mundo cão, mas podemos nos divertir com ele.

Mad Men nos mostra que, além da excitação com o novo e o medo do passado, nossa geração tem um fascínio com o disfuncional. Foi-se o tempo da lição de moral – quiçá ele nunca de fato tenha existido, ao menos não como o imaginamos. Como John Milton nos provou quatro séculos atrás, a perfeição não convence ninguém; são justamente os erros que fazem um indivíduo. Quanto mais abundantes e mais errados, mais nos reconhecemos.

Infelizmente, nossos encontros com a Sterling, Cooper & Partners estão próximo do fim, mas há algo que nós podemos aprender com eles. Role models são estátuas de cera. Canalhas são pessoas reais.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2015/04/13/o-fim-de-uma-era-o-comeco-de-outra/feed/ 1 160