Fãs de Kurosawa, o grande mestre do cinema japonês, cuja obra inspirou o cinema western e o próprio George Lucas, têm motivos para suspeitar dos games. De uma maneira geral, o meio não foi lá muito grato ao diretor. Seven Samurai 20XX, adaptação de Os Sete Samurais ao PS2, tem em comum com o material de origem apenas o título e os detalhes mais básicos. Isso sem contar o estilo hack-and-slash, fora de esquadro a um cineasta que prezava por filmes lentos, com lutas curtas, longos diálogos e longuíssimas cenas de contemplação.
Pessoalmente, não acredito em uma incompatibilidade. Esses desenvolvedores estão apenas olhando o criador de Yojimbo de um jeito errado. Apesar de ter coreografado algumas das cenas de batalhas mais icônicas do cinema, Kurosawa nunca foi um diretor de “ação”.
O forte de seus filmes são seus enredos cheios de reviravoltas, suas personagens problemáticas e seu mundo exótico e cruel. Grande admirador de Shakespeare, o mestre japonês adaptou várias de suas peças ao Japão da Sengoku Jidai ou Era do País em Guerra (1467-1603).
Kurosawa não viveu tempo suficiente para produzir um videogame de seus próprios filmes, como fez Steven Spielberg com Medal of Honor. Felizmente, há vários jogos que chegam bem perto. Para o gamer que sonha em entrar nos roteiros de seu diretor predileto, vão algumas sugestões:
Nobunaga’s Ambition não é um nome que diz muita coisa ao fã ocidental de estratégia, mas é uma das séries mais famosas e premiadas da história do Japão. O primeiro game da franquia foi lançado em 1983, e o sucesso mereceu 13 sequels ao longo de mais de 30 anos. A fama é tão grande que levou até a um crossover improvável com Pokémon em 2012.
A maior parte da franquia não foi localizada fora do Japão. Para os gamers que não lêem japonês, a boa notícia é que o último jogo da série, Sphere of Influence, foi lançado no ocidente semana passada.
Como o título já diz, o game segue os feitos de Oda Nobunaga, daimyo que chegou perto de unificar o Japão sob seu mando até ser encurralado e forçado a cometer seppuku por seus inimigos. Jogadores podem escolher entre uma série de datas inicias, seja acompanhando o clã Oda rumo à sua glória, seja controlando qualquer um dos outros daimyos da época.
O jogo é surpreendentemente leve em combate. Antes, o principal da experiência é a dança de intrigas, alianças, casamentos e traições que podem fazer ou desfazer um líder ambicioso. Não é de se espantar, portanto, que o game carregue tanto nas tintas dos relacionamentos pessoais. As mecânicas de estratégia são acompanhadas por fartos diálogos no melhor estilo JRPG.
Nobunaga’s Ambition é um jogo japonês, e seu estilo inconfundivelmente nipônico pode causar estranhamento ao fã de estratégia. Para começar, Sphere of Influence foi também lançado para PS3 e PS4, o que se nota nos comandos simplificados, sem dúvida mirando os consoles. Veteranos de Total War talvez sintam falta de certa complexidade, mas não precisam ficar incomodados. O game é difícil o suficiente para garantir horas arrancando os cabelos na frente do monitor. Desde que, é claro, o jogador se adapte à estética bishounen das personagens.
Sengoku é um título pouco conhecido da Paradox, gigante criativo por trás de Crusader Kings, Europa Universalis e Hearts of Iron. Quem conhece essas franquias já deve ter sentido o frio na espinha, seja de ódio ou excitação. A Paradox é um caso “ame-o ou odeie-o” do mundo dos games. Seus jogos, de longe as simulações mais complexas do mercado, são demorados de aprender e mais demorados ainda de se largar.
Sengoku usa a mesma engine de Crusader Kings 2, mas leva a guerra ao Japão do século XVI. Tal como em Nobunaga’s Ambition, o jogador pode escolher qualquer clã japonês do período e levá-lo à glória. Novamente igual ao game japonês, a ênfase está não no combate, mas nos jogos de intriga, assassinatos políticos e missões diplomáticas.
Talvez sua característica mais importante seja a importância que dá aos relacionamentos pessoais. Praticamente tudo o que pode ser feito no jogo – da escolha de seus assessores às declarações de guerra aos inimigos – é influenciado pela opinião pessoal que personagens têm das outras.
Isso faz do game um verdadeiro simulador de controvérsias palacianas para dar inveja a qualquer peça de teatro kabuki. Se você acaba de assistir a Trono Manchado de Sangue e está sentindo faltas de planos maquiavélicos e facadas nas costas, esse é o jogo para você.
Confesso que estou roubando nesse item, mas não resisti. Nova Monumenta Iaponiae Historica não é um jogo em si. Entusiasmados com Sengoku, alguns fãs de Crusader Kings 2 fizeram um mod de seu jogo favorito adaptando-o à Sengoku Jidai.
O título é uma referência ao Monumenta Germaniae Historica (registros históricos da Alemanha, em latim), uma enorme coleção de documentos sobre a Europa medieval. Fiel à proposta, ele não desanima. MIH é, de longe, o jogo mais complexo já feito sobre o Japão do século XVI.
O mod ainda está na versão alpha, mas se você já jogou tudo o que existe no mercado e está em abstinência por novos games sobre a Era do País em Guerra, pode conferi-lo no Steam Workshop. Além de Crusader Kings 2, para rodá-lo é necessário o DLC Rajas of India, que introduz o budismo.
Por mais que eu tente me enganar, não dá para fugir do óbvio. Total War: Shogun 2 não é apenas um dos melhores Total War, mas o jogo mais “Kurosawano” que existe. Esta é uma das experiências que fariam o velho diretor, caso vivo, cair para trás em êxtase.
Se Nobunaga’s Ambition e Sengoku primam pelas intrigas, Shogun 2 é o rei das batalhas. Esse é o “simulador de Kurosawa” de sua fase tardia, de Kagemusha e Ran, seus épicos dos anos 1980, já produzidos com toda a pompa, valores de produção e abundância de cores que marcariam o cinema da década.
Para sentir todo o efeito, só vendo em ação. Eis, portanto, um trailer fan-made de Ran e sua recriação usando a engine do jogo:
A despeito da fartura visual, Shogun 2 não é só aparências. O jogo contém um mapa estratégico menos detalhado do que os outros mostrados acima, mas que nem por isso deixa a desejar. Pelo contrário, o game é um dos mais desafiadores TBS (turn-based strategy) dos últimos anos e facilmente tomará centenas de horas da vida de qualquer fã do gênero.
Esse é o momento em que o leitor acha que estou ficando maluco. O que diabos Mass Effect tem a ver com Kurosawa?
Diretamente, nada. Mas o segundo capítulo da saga de Shepard é uma coletânea de inovações narrativas saídas das películas de Kurosawa.
Os Sete Samurais não se tornou um filme famoso pelo seu conteúdo, mas – tal como a obra-prima da Bioware – pela forma como o apresentou. Lançado em 1954, ele foi talvez um dos primeiros longas a adotar um enredo que mais tarde o cinema western tornaria clássico: um líder badass reunindo um grupo de pessoas aparentemente incompatíveis para uma missão que só eles podem realizar.
Ao longo de suas mais de 3 horas, Os Sete Samurais cativa não só pelas cenas de batalha, mas pelos conflitos pessoais de sete ronins com absolutamente nada em comum. Entre o fanfarrão Kikuchiyo, o austero Kyuzo e o inexperiente Katsushiro, logo percebemos que a verdadeira missão de seu líder, Kambei, não é apenas derrotar os bandidos que atormentam o vilarejo, mas lidar com os conflitos trazidos pelo choque de personalidades.
Qualquer semelhança com o título da Bioware não é mera coincidência. Mass Effect 2 foi um dos jogos a ter adaptado com maior sucesso a fórmula de Os Sete Samurais. Diante de uma ameaça desconhecida, Shepard deve percorrer a galáxia em busca dos melhores soldados, cientistas, atiradores e técnicos que possa encontrar. Tal como no filme de Kurosawa, a maior parte do jogo é dedicada aos conflitos pessoais dos companheiros improváveis e da lábia de seu líder para mantê-los na linha.
Mass Effect 2 não foi o primeiro nem o último jogo a fazer isso. O próprio Seven Samurai 20XX, à sua maneira, mostrou coisa parecida. Além da execução primorosa, a diferença aqui é a capacidade, tão típica de Kurosawa, de ser sério sem ser chato.
Ao final do filme, os sete samurais são apenas três. O game da Bioware permite um desfecho melhor, desde que o jogador preste atenção aos detalhes. Tal como Kambei, Shepard eventualmente tem o seu momento de tudo-ou-nada contra seus inimigos. Dependendo de suas escolhas, pode voltar para casa com seu esquadrão inteiro… ou não voltar.
Talvez, para um jogo tão preocupado com a qualidade do enredo, aproximar-se do clássico fosse inevitável. Afinal, como disse o crítico Roger Ebert, é a Kurosawa que todos os herois dos últimos 50 anos devem seus empregos.
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Poucos games abordaram de forma tão didática a mitologia grega. A trama leva o protagonista, Nikandreos, a desbravar o Olimpo em busca de um acerto de conta com Zeus, a quem deve o sofrimento pelo qual passa sua aldeia. O jogo é uma viagem pelo panteão clássico, e seus meandros, de tão tradicionais, são até inesperados: em vez de diálogos expositivos ou verbetes de “códices” virtuais, as introduções são feitas por citações do cânone grego, em estelas salpicadas pelas fases. Por outro lado, o conjunto é de uma superficialidade um tanto incômoda. O roteiro é funcional, sucinto mesmo em comparação com outros jogos. As citações de Homero são apenas ilustrativas, porém mesmo assim parecem um excesso: enquanto outros games do gênero se salvam pela falta de pretensão, aqui o material de origem parece puxá-lo para baixo.
Os puristas talvez se incomodem. Já para os fãs do cinema épico essa contradição é fácil de entender. Filmes “históricos” ou “mitológicos” (se há um meio em que é difícil de separar os dois é sem dúvida o cinema) dificilmente se prendem a detalhes. Pelo contrário – argumentariam alguns – um excesso de detalhes seria inclusive prejudicial para o resultado final. Na linguagem blockbuster o importante é a “sensação” de se estar na história: as batalhas grandiloquentes, a trilha bombástica, a narração em off, o recurso quase simbólico a textos de autoridade, mapas antigos, fotos em sépia e outros elementos do “passado”. A rapidez com que videogames seguiram o caminho das pedras é evidente em gigantes AAA como Dragon Age e Total War. Não que a comparação seja necessária: basta constatar o abuso do adjetivo “épico” por gamers, jornalistas e produtores para averiguar o quão arraigada no meio está a “mentalidade Hollywood.”
Apotheon é peculiar porque, de uma certa forma, é só sensação. O jogo carrega pouquíssimo de cinematográfico, uma escolha não mais criativa do que pragmática. O encarecimento de jogos fotorrealistas levou vários designers a buscarem alternativas no velho mundo do 2D. A experimentação culminou num estilo de arte distintivo, com exemplos de grande sucesso como o Child of Light, no ano passado. Acrescenta-se à isso um level design clássico, comparável a jogos de plataforma dos anos 1990, que atiça a nostalgia dos que cresceram com eles na infância ou adolescência. Apotheon é um tributo a tradições; à tradição literária antiga, sem dúvida, mas também à tradição do videogame. É, de maneira bem lúdica, o encontro do que há de fundador em ambas.
O resultado é uma experiência não só “artificial” e “gamística”, mas que chama a atenção para sua própria artificialidade enquanto game. Ninguém joga Apotheon imaginando estar na Grécia antiga, ou em seja lá qual dimensão alternativa em que mitologia se mistura com realidade. Tal como ninguém interage com os falsos pergaminhos de RPGs de fantasia imaginando estar na Idade Média, ou confunde os ícones de jogos de estratégia com os muitos períodos que representam.
Esse é um ponto importante. Muito do que se escreve sobre videogames foca na confusão entre “realidade” e “fantasia”. Esta não é a chave. O que está em jogo não é o “mundo real”, mas aquilo que jaz além: um universo paralelo, em que barras de vida se misturam a figurinos de época, e reconstruções históricas disputam espaço com planilhas de atributo e atalhos de teclado. Aqui, os pop-ups da Ilíada e a pseudo cerâmica de Apotheon cumprem um papel fundamental. Eles provam que, por mais modernos e virtuais que nos tornemos, guardamos uma centelha em comum com aqueles que nos precederam. Podemos não saber direito qual é nosso passado, mas sabemos que temos um passado, e isso nos conforta. Às vezes, nada mais é necessário.
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