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Tomihiko Morimi – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 22 Sep 2021 23:54:36 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Tomihiko Morimi – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Tatami Galaxy”, ou por que devo desculpas a Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/#comments Wed, 22 Sep 2021 23:54:33 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23027 Aconteceu no meu primeiro ano da faculdade.

Foi a melhor época da minha vida até o momento, mas também a mais estressante. Farto até a medula de simulados e aulas de decoreba, decidi que tinha chegado a hora de aproveitar minha vida ao máximo. Tudo o que sentia vontade de fazer fiz questão de levar a cabo. Ao mesmo tempo.

Toquei violino em uma orquestra de câmara amadora. Comecei minha iniciação científica. Entrei em turmas de latim e japonês. Nas horas vagas, saía com minha namorada ou meus dois círculos de amigos: os novos, da faculdade, e os antigos da escola.

Minha rotina era uma montanha-russa entre o sentimento de realização e a iminência de um burnout. Nunca me sentira tão completo e, ao mesmo tempo, tão cansado.

Foi então que escutei de um colega da aula de japonês:

“Quer dizer que você não vai em festas? Você não tem medo de deixar essa oportunidade passar e viver com remorso pelo resto da vida?”

Eu travei. Menos, imagino, por ter visto sabedoria em suas palavras que por ter escutado uma frase tão absurda de alguém que, para todos os fins, era até então um desconhecido. Tirando os “bons dias” e os exercícios de diálogo que fazíamos na aula, aquela era a conversa mais longa que já tínhamos tido.

Senti vontade de responder que estudava na FFLCH-USP, que pouco tinha a ver com o campus cor-de-rosa das comédias românticas americanas. E que meus colegas eram menos conhecidos por festas que por ocuparem a reitoria durante greves e se vestirem de mendigo em tempo integral. (Era um clichê, obviamente, mas todo clichê tem uma ponta de verdade).

Mas apenas desconversei com uma desculpa qualquer, chocado pela minha própria fraqueza diante de um comentário tão estúpido. Eu já estava dando tudo de mim. Não havia mais horas no dia para fazer qualquer outra coisa. Será que mesmo assim estava desperdiçando meus anos de juventude?

Se você curte animes deve reconhecer meu drama no protagonista de The Tatami Galaxy, anime de Masaaki Yuasa baseado no romance de Tomihiko Morimi. Assistindo a série pela primeira vez no esquenta para uma sequência já anunciada, me dei conta de uma coisa.

Quando resenhei Night is Short, Walk on Girl, livro anterior de Morimi que serve de prequel a Tatami Galaxy, teci comentários um tanto duros. Decepção que atribuí ao próprio Morimi, cujo infanto-juvenil Penguin Highway me deixou com um gosto ainda mais amargo na boca.

Assistindo a Tatami Galaxy, percebo que cometi um erro de julgamento. E está na hora de retificá-lo.

Por uma vida cor-de-rosa

Antes de mais nada, uma introdução. Tatami Galaxy – para o caso, não improvável, de você nunca ter ouvido falar desse nome – é a história de um rapaz em um alojamento estudantil de uma universidade de Kyoto. Seu sonho, como o de tantos outros de sua idade, é curtir a “vida cor-de-rosa” dos anos de faculdade o mais intensamente que pode. O destino, porém, tem outros planos. Cada tentativa de dar sentido a sua graduação termina da mesma forma: largando-o sozinho em seu quarto, frustrado, perguntando-se como conseguiu deixar o melhor da juventude escapar pelos dedos.

“Tentativas”, no plural. Cada episódio termina com a tomada de um relógio girando em reverso. O episódio seguinte nos devolve a um momento anterior, mostrando um contrafatual do que aconteceria se tivesse aproveitado uma oportunidade diferente. A “galáxia de tatami” de seu título não é uma referência apenas ao seu alojamento (tatami, além daquele tipo de piso japonês, é uma medida de tamanho usado em residências). É também o leque das suas próprias experiências universitárias, que ele é forçado a reviver como em um Dia da Marmota.

Em temas, não só em estilo visual, o anime é uma versão expandida de Night is Short, Walk On Girl, história sobre a falta de sorte de um universitário tentando se aproximar de sua garota dos sonhos em uma noite fantástica quando tudo acontece.

O fato de que nenhum de seus protagonistas tenha nome diz mais que todas as elucubrações que eles de fato fazem, metralhadas em um ritmo tão alucinante que obriga espectadores a pausar o vídeo para entendê-las. O narrador de ambas as histórias é um everyman representando todos os jovens homens com hormônios nas alturas que já experimentaram em desespero por não encontrarem o prazer que mereciam. Prazer esse que envolve, invariavelmente, uma bela moça de cabelos negros.

Como Virgens Suicidas, em uma versão ainda mais pop e millennial, são histórias sobre o olhar masculino: sobre a necessidade de homens de ter seus prazeres atendidos e a indignação com que reagem quando esse privilégio lhes é negado.

Mas se Virgens Suicidas se tornou um clássico contemporâneo por questionar, criticamente, o que significa ser um “objeto” do olhar de outrem. Night is Short, Walk on Girl é frenético demais para colocar seu protagonista debaixo de uma lupa. Saímos do livro incertos se devemos tirar sarro do protagonista ou simpatizar com sua cruzada fracassada, por mais repreensível que ela seja. Problema este que incomoda ainda mais em Penguin Highway, outro livro de Morimi com um enredo duas vezes menos interessante e um protagonista triplamente mais chauvinista.

Quando seu “herói” se orgulha de desenhar os peitos de mulheres que conhece, você sabe que tem um problema).

Tatami Galaxy, porém, vira a falta de simpatia de sua personagem central de ponta cabeça. E de uma maneira que me fez entender que essas obras tem mais sabedoria do que aparentam à primeira vista.

Parte desse mérito vem da maneira como equilibra os impulsos sexuais de seu narrador com um enredo mais vago sobre a dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Parte, também, vem do fato de que esse narrador não é o verdadeiro protagonista de sua história.

Ao longo dos onze episódios, sua história é entrecruzada com a de outras pessoas com suas próprias agendas: Jougasakai, galã da turma que esconde um romance com uma boneca sexual; Ozu, colega que insiste em levá-lo para o mau caminho; Akashi, a “garota de seus olhos” – mas também uma mulher que não hesita em lhe pregar peças quando lhe convém; Higuchi, mistura de youkai e Grande Lebowski que parece puxar as cordas de seu destino, mas também viver um dia por vez, sem dar satisfações a qualquer um.

Na medida em que vemos as relações entre essas personagens evoluírem, fica difícil saber se estamos de fato assistindo à história do narrador ou as suas histórias, pelos olhos dele. Ironia que não escapa ao próprio narrador, que sofre para entender como pessoas tão imperfeitas, tão distantes de seu ideal de masculinidade, conseguem ter a vida cor-de-rosa que tanto persegue.

É impossível não lembrar de um trecho de Norwegian Wood, o belíssimo e melancólico romance de Haruki Murakami:

“Da direção do prédio do centro estudantil vinha o som de uma voz grossa praticando escalas. Aqui e ali estavam grupos de quatro ou cinco estudantes expressando quaisquer opiniões eles vinham a ter, rindo e gritando um ao outro. No estacionamento, um punhado de rapazes andavam de skate. Um professor com uma maleta de couro cruzou o estacionamento, evitando os skatistas. No pátio, uma estudante de capacete se ajoelhava, pintando grandes caracteres em um cartaz com algo sobre o imperialismo americano invadindo a Ásia. Era uma típica cena da universidade na hora do almoço, mas na medida em que me sentei assistindo-a com atenção redobrada, eu me dei conta de um certo fato. Cada pessoa que eu enxergava diante de mim estava feliz na sua própria maneira. Se eles estavam realmente felizes ou simplesmente pareciam estar eu não podia dizer. Mas eles pareciam alegres nesse agradável começo de tarde no final de setembro, e por conta disso eu senti um tipo de solidão que me era novo, como se eu fosse o único ali que não pertencesse de fato à cena.

Em minha resenha de Night is Short, Walk on Girl, critiquei seu “compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada”.

“Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.”

Tatami Galaxy nos ensina que “curtir o momento”, muitas vezes, é a melhor forma de questionar a realidade. Ensinamento valioso em qualquer instante da vida, mas que adquire uma importância fundamental em tempos de crise como estes em que vivemos.

Ao contrário do narrador do anime de Yuasa, o relógio de nossas próprias vidas jamais voltará para nos dar uma segunda chance.

Meu antigo colega de japonês – de cujo nome, confesso, nem mais me lembro – talvez tenha custado a entender essa verdade. Gosto de pensar que a alfinetada que me deu naquele dia foi, em alguma medida, um recado a si próprio. Quem é esse sujeito que joga fora das minhas regras, mas esbanja a mesma alegria que suo tanto para obter?

Não posso dizer que nunca mais pensei no que ele me disse, sobretudo nessa fase da vida, em que estou mais próximo a voltar à faculdade como professor do que como aluno. Mas de uma coisa não tenho a menor dúvida: meus anos de campus não poderiam ter sido mais rosados.

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“The Night is Short, Walk on Girl”: O gênio eufórico (e aéreo) de Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2019/08/26/the-night-is-short-walk-on-girl-o-genio-euforico-e-aereo-de-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2019/08/26/the-night-is-short-walk-on-girl-o-genio-euforico-e-aereo-de-tomihiko-morimi/#respond Mon, 26 Aug 2019 19:35:31 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21956 Primeiras impressões, diz o ditado, são as que ficam. E meu primeiro contato com Tomihiko Morimi, um dos “mais populares escritores contemporâneos do Japão” segundo quem entende do mercado, não foi positivo.

Penguin Highway, sobre o qual escrevi aqui, passou longe de me impressionar. Sua prosa era insossa; sua história, soterrada sob a voz de um protagonista antipático. Para o autor de não um, mas dois romances adaptados pelo celebrado Masaaki Yuasa, ver sua estreia em águas ocidentais na forma de um romance tão insípido não foi o melhor cartão de visita.

Aparentemente, o Deus dos Livros deve ter ouvido minhas preces. Yoru wa Mijikashi Aruke Yo Otome (The Night is Short, Walk on Girl) uma de suas parceirias com Yuasa, acaba de ser publicada em inglês. Ansioso pela oportunidade de dar ao escritor uma segunda chance, só pude interpretar o lançamento como um sinal do destino.

Quão irônico, portanto, que o romance verse justamente sobre Deuses dos Livros e preces e sinais do destino.  E quão feliz que sua prosa, ágil, criativa e cheia de coração, tenha subvertido completamente meus preconceitos.

A trama

“O Senhor Todou é um homem de meia-idade, o astuto gerente do Centro de Carpas Todou em Rokujiro e um filósofo sobre o sentido da vida. Quando, no final de maio, eu saí em busca de um drinque, o Sr. Todou foi a primeira pessoa que encontrei. Se eu não tivesse trombado com ele, eu não teria terminado em um certo bar em Kiyamachi, eu não teria sido bolinada, eu não teria sido resgatada pela Srta. Hanuki, eu não teria conhecido o admirável Sr. Higuchi, eu não teria conhecido o Sr. Rihaku, ou o presidente, ou qualquer um dos outros, e meu mundo continuaria tão pequeno quanto a testa de um gato.”

Sabemos que estamos diante de um livro singular quando não conseguimos sequer resumir seu enredo. Eufórica e hilária, a trama de The Night is Short parece fugir de uma definição simples com o mesmo empenho que suas personagens fogem da normalidade para viver a melhor noite de suas vidas.

Isso não significa que o romance não tenha foco. Pelo contrário, sua história é estruturada com um esmero quase acadêmico, dividida em quatro partes que representam quatro episódios memoráveis na vida de duas pessoas: uma estudante universitária e seu veterano.

A garota tem uma personalidade inconfundível, um otimismo contagiante e uma resistência sobrenatural à bebida.   “Num mundo cheio de atores tentando […] se manejar até o papel principal”, o veterano escreve, “ela era estrela da noite sem ao menos tentar”.  O rapaz, como seu tom não deixa mentir, está apaixonado por ela. Ao longo de um ano, em aventuras cada vez mais absurdas, ele fará de tudo para ganhar seu coração.

Em um romance menos inspirado, poderia ser apenas o pretexto da cruzada de um homem em busca de sua musa. Morimi, porém, dá a voz a ambos, transformando-os em narradores – e protagonistas – de suas vidas.

Os cortes não seguem uma periodicidade clara, e Morimi dá pouca indicação de quem estamos ouvindo. São as próprias personagens, disputando nossa atenção como numa roda de conversa, que se revezam para nos contar as proezas de uma noite inesquecível.

E que noite! De uma festa de casamento que degringola em um pub crawl em Ponto-Cho, tradicional bar boêmio de Kyoto, os encontros e desencontros dessas duas personagens eventualmente tomam proporções épicas. Suas confusões nos levam a feiras de livros, tornados repentinos, pimentas alucinógenas; à companhia de um “agiota tão inumano que não derramava nem sangue nem lágrimas”, mas confiscava livros de valor sentimental;  de um clone endiabrado do Conte do Monte Cristo e até mesmo de um Deus dos Resfriados que ameaça adoecer toda a humanidade.

Bairro de Ponto-Cho, em Quioto. Fonte

“Como um tofu de amêndoas”

Dizer que sua prosa é visual é quase um desserviço para a imaginação e bom-humor que saltam de cada página. Morimi pinta não apenas com cores, mas também com gostos, cheiros, texturas e ruídos. Encontrar um lugar comum em seu texto é tão difícil quanto achar as chaves de casa após uma noite de bebedeira. E, tal como em uma madrugada bem curtida, nem sempre temos certeza do que estamos experimentando.

“Sábios leitores” diz o veterano no capítulo de abertura “saboreiem a fofura [da garota] e a minha estupidez; desfrutem  o sabor sutil e requintado da vida, não muito diferente daquele de um tofu de amêndoas.”

Annin tofu ou tofu de amêndoas. Espécie de manjar típico da culinária chinesa

Todou, um quarentão pervertido, sorria como “um pedaço de papel amassado”. Seu rosto “tinha uma notável semelhança com a ponta de um pepino coberta de limalhas de ferro.”

A garota acha sua mão feia como “uma massa no formato de uma folha de maple”. O “amuleto” que recebe de um colecionador de arte erótica “não era nem um canhão nem uma carpa, mas inconfundivelmente o monstro do desenho – isto é, por mais que eu hesitasse em dizer, um espécime da assim chamada masculinidade”.

Um gênio eufórico… e aéreo

Como categorizar um escritor desses? Sua prosa é mais rebuscada que uma light novel, mais despretensiosa que o politizado realismo mágico, mais deliberadamente “japonesa” que a fantasia urbana, despatriada de seu conterrâneo Haruki Murakami.

Uma de suas personagens cria carpas ornamentais, que em vários momentos chovem sobre as personagens em cenas dignas de Kafka à Beira Mar. Outra, uma jovem cujo passatempo é invadir festas e lamber desesperadamente quem encontra pela frente, é descrita como uma “mulher-peixe”.

O boêmio Higuchi, amigo de Hanuki,  tinha “a pose de um grande Buda reclinado” e sorria com a “expressão enrugada de uma máscara de teatro Noh”. Ele diz que sua profissão é ser um tengu. Vendo suas façanhas ao longo do livro, — que incluem conjurar carpas da boca e maneki nekos de seus ouvidos – começamos a nos perguntar se não pode ser verdade.

Várias sub-tramas dizem respeito a um grupo de colecionadores de Shunga – nas palavras da heroína, “homens e mulheres entrelaçados como anéis de quebra-cabeça e algum tipo de monstro enrolado em volta das suas partes pudentas.” Boa sorte para ler esse livro em público sem cair em gargalhada.

Podemos apenas imaginar quantas outras referências e jogos de palavra não se perderam na tradução. A versão para o inglês de Emily Balistrieri é leve e fluida, mas peca pelo excesso de didatismo, acompanhando termos japoneses por seus equivalentes ocidentais:  “Eu sou um goblin tengu”; “[ele] relaxava em uma yukata, uma roupa tradicional”; “eu olhei de volta para a cara feia de um boneco Daruma – um boneco japonês redondo e vermelho de um homem ranzinza e barbado”.

Por um lado, é realmente impossível acompanhar o romance sem dominar essas referências. Por outro, é questionável até que ponto um leitor que não saiba o que é um boneco Daruma conseguirá sobreviver no Bairro da Liberdade animado que é a prosa de Morimi.

Produtos japoneses em loja do Bairro da Liberdade. Fonte

 

 

Se The Night is Short entrega menos do que promete é no seu compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada.

Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.

Sua escrita não pesa com nenhuma angústia profunda, nenhuma grande questão que precise de resposta.

Inferior como é em qualidade literária, Penguin Highway pelo menos continha uma fábula consistente sobre o fim da infância e o despertar sexual. Em comparação, The Night is Short parece levar à risca as lições de uma de suas personagens:

Eu estava voando sem preocupações sobre Ponto-Cho.

Higuchi, o tengu estudante, me ensinou de um jeito que não poderia ter sido mais vago. Ele invadiu a casa de um dono de sebo que ele conhecia, saiu pelo varal e então apontou para o céu:A questão é viver sem deixar seus pés tocarem o chão. Aí sim você consegue voar.”

Eu achei que ele estava tirando sarro de mim até que eu imaginei um futuro completamente impraticável para mim: um dia, eu vou escavar aquela montanha lá na casa dos meus pais, encontrar petróleo, nadar na grana, me tornar um trilhardário, largar a universidade e viver uma vida feliz até eu morrer. Meu corpo rapidamente se tornou mais leve, e subitamente eu estava flutuando acima da varanda.

Morimi, como Higuchi, nos ensina apenas a flutuar. Não é o romance mais profundo que você lerá na vida. Mas quão surreal é Ponto-cho visto de cima!

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Anime x Livro: “Penguin Highway” https://www.finisgeekis.com/2019/06/12/anime-x-livro-penguin-highway/ https://www.finisgeekis.com/2019/06/12/anime-x-livro-penguin-highway/#comments Wed, 12 Jun 2019 17:40:57 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21784 Anime x Livro tem como objetivo comparar romances da literatura com suas adaptações na telinha japonesa. A proposta é sair do fla-flu e esmiuçar essas séries (e livros) em detalhe. 

O Studio Colorido pode não ser um grande nome de referência na animações japonesa. Desde 2018, porém, as coisas podem ter começado a mudar.

Misturando fantasia, ficção científica e um retrato cândido do final da infância, Penguin Highway se tornou um hit da crítica e um cartão de visita a seu diretor, Hiroyasu Ishida. Com seu romance de origem finalmente lançado em águas ocidentais, temos uma oportunidade de ouro para mergulhar a fundo nos porquês desta adaptação.

Em especial porque o romance em questão veio da pena de Tomohiko Morimi, autor de algumas das histórias mais criativas a ganharem as telas nipônicas nos últimos tempos.

Seria o romance de Morimi tudo isso mesmo? E esteve Ishida à altura para reinterpretá-lo?

Vamos juntos descobrir.

Clique nos títulos para ir direto às seções. Ou então só continue abaixo, se estiver com tempo. AVISO (DESNECESSÁRIO): Contém SPOILERS para Penguin Highway)

 

Penguin Highway é um romance notável nem tanto pelo seu conteúdo, mas por quem o escreveu. Lançado originalmente em 2010, o livro é a primeira obra de Tomihiko Morimi a ser lançado em inglês – e, até onde sei, no Ocidente como um todo.

Se você não o reconhece de nome, talvez suas obras lhe dêem uma pista. Morimi é autor de Tatami Galaxy e Yoru wa Mijikashi Arukeyo Otome, cujas adaptações em anime, feitas pelo diretor Masaaki Yuasa, se tornaram hits entre fãs do gênero.

Capa japonesa de “Penguin Highway”

Penguin Highway venceu o prêmio Nihon SF Taishou – o equivalente japonês do Nebula. Rotulado de ficção científica, o romance é na verdade uma obra de fantasia, recheado com uma dose suficiente de cultura pop para parecer uma versão light de Haruki Murakami.

Sua trama acompanha Aoyama, um garoto estudioso que sonha em vencer o Nobel. Seu desejo parece próximo de realizar quando um mistério científico acontece diante de seus olhos:

Uma horda de pinguins invade sua cidade.

Ao lado de seus amigos, Ushida e Hamamoto, Aoyama se compromete a desvendar o mistério. As coisas, todavia, não são o que parecem. E quando se aproxima de solucionar o enigma, mais perto ele fica de aprender uma lição importante sobre si mesmo.

 

Penguin Highway, a animação, foi dirigida por Hiroyasu Ishida, mais conhecido pelo badalado (e nem tão bem avaliado) Typhoon no Noruda.

Misturando fenômenos naturais, fantasia e coming-of-age com uma pitada de romance, seu longa parece, de fato, uma elaboração de temas já ensaiados em Typhoon. Que ambos tenham sido produzidos pelo mesmo estúdio apenas reforça a impressão.

O material parece ter caído como uma luva à Ishida, e sua obra coleciona críticas positivas, além de ter faturado o Prêmio Satoshi Kon por Excelência em Animação no Fantasia Festival, Montreal, onde teve sua première.

Mérito do material de origem? Ou teria o dedo criativo de Ishida sido o responsável pela mágica?

Como diria Aoyama, vamos desvendar esse mistério.

  Aoyama

 

Eu sou extremamente inteligente e nunca pego leve com meus estudos.

É por isso que eu serei muito importante no futuro.

As frases de abertura do livro de Morimi dizem tudo o que é preciso para entender seu protagonista. Ele é um saco.

Aoyama é aquele tipo de criança que pensa que ser mimado pelos pais é reconhecimento, e que ler a National Geographic e montar naves de LEGO o tornam um garoto prodígio. Ele ama se achar melhor que os outros, coisa que não para de repetir – literalmente – do primeiro ao último capítulo.

Filho de cientistas, o garoto age como se ele, próprio, fosse um dos candidatos ao Nobel.

Ele chama nuvens de “cumulonimbus”, é fã de xadrez e bebe café como os adultos. Carrega um caderno diferente para cada fenômeno que estuda e tem uma obsessão por seios femininos – tudo, ele garante, em nome da ciência.

Que Aoyama não seja nem de longe tão adulto quando finge parecer é algo que Morimi nunca esconde. Pelo contrário, não demora para cair a ficha de que seu linguajar chupinhado do Discovery Channel é uma fantasia que veste para esconder suas criancices.

“Todos os pesquisadores sofrem de cáries” ele diz, ao ser confrontado por não escovar os dentes. “Você realmente não fica nervoso”, comenta um amigo “Não se eu penso sobre peitos” ele responde.

Nem sempre sua seriedade convence, e os momentos em que sua máscara cai trazem as maiores pérolas da prosa de Morimi:

Sempre que eu vejo um rastro de vapor eu não consigo evitar olhá-lo. Uchida e eu combinamos que nós assistiríamos a um lançamento de ônibus espacial algum dia, mas eu sinto que se eu visse algo assim tão incrível meu pescoço mais voltaria a sua posição original 

Infelizmente, nem a ironia de Morimi salvam seus diálogos de sucumbirem ao peso do technobabble. E após páginas e páginas narradas por um mala-sem-alça, é difícil não sentir que nosso tempo com o livro foi desperdiçado.

Os diálogos do anime são fidelíssimos aos do romance – em muitos casos, à última sílaba. Assim, é impressionante como a magia visual de Ishida conseguiu transformá-lo em um protagonista cativante. Enquanto que no romance só dispomos da versão de Aoyama, o diretor escancara a cada cena o quão distante seu discurso furado é da realidade. Seja quando está apavorado, tentando arrancar um dente

fazendo bico ao experimentar café

ou queimando de febre.

Nada mais autêntico a uma personagem infantil do que vê-la agindo como uma criança de verdade.

 A mulher do consultório

Eu deixei o apartamento e descobri que o céu sobre o morro tinha uma cor incomum. Haviam nuvens fofas cobrindo o céu e elas estavam todas pintadas de um rosa pálido. Eu nunca tinha visto um céu daqueles antes. Havia um buraco nas nuvens além das montanhas, e a luz do entardecer brilhava através dele.

Eu me virei para trás e vi a mulher acenando da sua varanda.

Ela também era rosa.

A mulher do consultório é a personagem mais importante – e, acrescento eu, intrigante dessa história. O fato de não sabermos sequer do seu nome é, em si, uma pista. Ela é um grande mistério, que o pequeno Aoyama fará sua missão desvendar.

Como nós mesmos descobrimos sem grande esforço, Penguin Highway não é apenas uma história sobre pinguins. O “experimento” que Aoyama realiza, no fundo, é apenas um: entender por que seu coração bate tão rápido quando pensa naquela mulher.

Funcionária no dentista que frequenta, a mulher conhece Aoyama durante uma consulta, quando flagra o garoto pregando uma peça no bully da escola.

Amante, ela própria, de xadrez, não demora para que ela se torne uma espécie de babá de Aoyama, passando tardes e tardes ao seu lado em uma mesa no Café à Beira Mar.

A natureza desses encontros ganha contornos diferentes no livro e no anime. Se no romance seu amor não passa de um crush por uma figura materna – vindo de um garoto que ainda tem 3888 dias para se tornar um adulto, como Aoyama mesmo nos conta – no anime de Ishida ganha contornos mais… picantes (veja abaixo, “A Descoberta da Sexualidade).

Hamamoto

Ela era como uma amante de chocolate diante de uma caixa de bombons, pairando sobre o tabuleiro como se decidindo qual peça comer primeiro.

Hamamoto é a garota com que todo menino nerd sonhou alguma vez em namorar. Inteligente, cheia de si – e, de quebra, bonita – ela é a única personagem capaz de colocar nosso protagonista em seu lugar.

Tal como Aoyama, Hamamoto é filha de um cientista – e não faz questão de escondê-lo. A garota sabe jogar xadrez, conhece a Teoria da Relatividade e passa seu tempo livre montando experimentos.

Sua versão animada não ficaria mais fiel à original se Ishida tivesse escrito o romance ele próprio. A Hamamoto das telas é uma recriação da personagem de Morimi nos seus menores detalhes.

Ao contrário de Aoyama, que passa seu tempo construindo naves e estações espaciais de LEGO, Hamamoto tem o tique de empilhar pedras em muros. Ishida não destaca este detalhe da mesma forma que Morimi, mas ele pode ser visto nas tomadas em que aparece brincando.

No livro, Hamamoto é descrita como uma garota de pele clara e cabelos castanhos, que “parecia que tinha se mudado para cá de algum lugar na Europa”. O visual caucasiano é sabidamente difícil de reproduzir em animes, em que todas as personagens possuem pele clara e cabelos coloridos.

Ishida, porém, esteve à altura do desafio. Não só ela parece ligeiramente mais pálida que seus colegas, como ganhou olhos azuis e roupas retrô, no melhor estilo Marnie.

 

Uchida

Uchida era do tipo silencioso, mas aquele era um silêncio muito mais significativo que o habitual

Para um parceiro tão recorrente em suas aventuras, Aoyama tem muito pouco a dizer sobre Uchida. Não por acaso. No romance de Morimi, o garoto é o Pink para o Cérebro de Aoyama, uma imagem inversa do protagonista que parece só existir para nos lembrar de quão excepcional nosso herói é.

Se Aoyama é corajoso, Uchida é um chorão. Se Aoyama é analítico, Uchida é emotivo. Se Aoyama é cego para os sentimentos mais óbvios daqueles ao seu redor – e, até mesmo para os seus – Uchida parece entender tudo, embora nem sempre o ponha em palavras.

Personagem-tipo, nunca escrito para ser mais do que um pedestal ao protagonista, Uchida era uma tela em braco para Ishida pintar seu próprio retrato de um garoto comum na pré-adolescência. E um bom retrato ele pintou, com todo o esmero de que a animação é capaz.

A diferença não está no conteúdo, mas nos detalhes. Com uma sensibilidade digna de Memórias de Ontem, o diretor transforma a personagem na porta-voz daquele lado ridículo, embaraçoso da infância que a maturidade fake de Aoyama tenta a todo custo esconder.

Descrever um menino chorando, apanhando de bullies, fugindo de medo é uma coisa. Ver Uchida titubeando de volta para casa, sujo de ranho e lama após ter caído enquanto brincava, é de uma honestidade tão brutal que traz flashbacks dos nossos próprios traumas de infância.

 

O “Império Suzuki”

Suzuki tinha a voz mais alta na nossa classe e era muito forte. Os meninos sob seu comando o obedeciam sem questioná-lo. Aquela estrutura era fascinante, e eu a estava estudando, fazendo anotações que eu batizei de Observações sobre o Império Suzuki.

A descrição de Aoyama dos bullies de sua escola é uma das mais brilhantes do romance de Morimi. E Suzuki, junto a Kobayashi e Nagasaki, seus fiéis escudeiros, um trio de cretinos de que todo nerd estudioso se lembrará muito bem.

O “Imperador Suzuki I”, como Aoyama o chama, é o antagonista da primeira parte de Penguin Highway. Ao descobrir que os garotos estão fazendo um “experimento”, Suzuki e seu império fazem de tudo para atrapalhá-los. O ponto baixo de sua crueldade vem em uma cena envolvendo uma vending machine – e mais fluidos corporais que esperaríamos encontrar em um anime infantil.

Como tantos outros valentões da ficção – e também da vida real – não demora para que Suzuki se mostre mais inseguro que covarde, menos violento que solitário.

Desde a primeira cena, fica claro que odeia Aoyama por ser o garoto dos olhos de Hamamoto, por quem ele próprio tem uma queda. Embora Ishida nunca chegue a ter pena do sujeito, seu filme deixa claro que muito de sua dor – e, consequentemente, sua crueldade – vem do sofrimento de achar-se burro.

O subtexto é menos forte no romance de Morimi, em que Suzuki e seu comparsas tentam impressionar Hatamoto vencendo Aoyama em seu próprio jogo. O “Império” se torna uma equipe rival de exploradores, tentando solucionar um mistério ainda maior para conquistar os olhos de Hatamoto.

Felizmente, essa trama bisonha foi eliminada quase por completo do anime de Ishida. Suzuki ainda nutre uma rixa por Aoyama, e suas tentativas de sabotar seus experimentos continuam um ponto-chave no enredo. Mas o garoto e seu “império” nunca deixam de ser o que aparentam à primeira vista: três bullies não muito espertos, intimidados pela sua inteligência.

Uma caracterização menos original que a do romance, mas ainda assim mais verossímil.

 

Aoyama começa o romance ao lado de seu fiel escudeiro Uchida, buscando mapear o trajeto de um córrego local. Eles chamam sua empreitada de “Projeto Amazonas”, uma referência aos exploradores que desbravaram os confins do rio brasileiro no passado.

Sua busca é colocada em hiato quando sua cidade é invadida por uma horda de pinguins. Não pinguins normais, mas criaturas que surgem do nada, sobrevivem a atropelamentos e desaparecem quando transportados para longe.

O mistério começa a se complicar quando ele descobre que a mulher do consultório é a responsável pelos bichinhos. Em dado momento, ele a flagra transformando uma lata de Coca-Cola em um pinguim.

O poder, contudo, não parece ser voluntário. E mudanças no seu estado de espírito tem consequências assustadoras. Em dada cena, seu dom dá lugar a uma revoada de morcegos.

Ao saber dos experimentos de Aoyama, sua colega Hamamoto lhe conta que ela, também, está pesquisando uma coisa. Uma aparição misteriosa no meio das florestas da cidade, conhecida como “a lua de prata”.

Não demora para que o garoto perceba que a lua, os pinguins e sua dentista misteriosa são partes do mesmo enigma. E que toda aquela confusão, cedo ou tarde, explodiria diante de seus olhos.

O pior acontece quando a mulher do consultório, em vez de um pinguins, começa a produzir monstros. Quando o valentão Suzuki resolve capturar um espécime, as autoridades intervém. E a pacata cidade de Aoyama e seus amigos viram o palco de um episódio de Stranger Things.

Cabe ao garoto e à mulher do consultório salvarem o dia. Surfando uma estrada (literal) de pinguins, em um clímax tão surreal que daria inveja a Satoshi Kon.

Como as imagens deixam claro, Penguin Highway, o filme, é a adaptação que todo autor que vende os direitos da sua obra amaria receber. O anime de Ishida acompanha praticamente à letra o enredo do livro. A mudança não está no quê acontece, mas em como a história é contada.

Ou, melhor dizendo, em onde Ishida e seu roteirista, Makoto Ueda, decidiram mirar sua lente.

A “perfumaria”

O texto de Morimi segue uma estrutura quase episódica, em que a trama principal se perde em digressões e episódios avulsos.

São cenas de Aoyama peitando seus bullies, de Hamamoto jogando xadrez, de conversas quase idênticas no Café à Beira Mar, onde Aoyama e a mulher do consultório se encontram. Ou simplesmente listas tediosas dos achados do garoto, como se Morimi quisesse fazer o resumo de seu livro antes mesmo de terminar de escrever.

Eu registrei essa descoberta significativa no meu caderno.

> Quando o Mar aumenta, a mulher do consultório fica melhor

> Quando o Mar diminui, a mulher do consultório fica pior

Em termos práticos, isso acaba por diluir a clássica estrutura em três atos da ficção, dando a impressão, em alguns momentos, que a história não caminha a lugar nenhum.

Isso não é um problema para romances slice of life, mais interessados em acompanhar a vida de suas personagens que em expor enredos complicados. Porém, as cenas descritas por Morimi nem sempre são interessantes – e o linguajar pseudo-acadêmico de Aoyama é, simplesmente, um saco.

O filme de Ishida se livrou dessa “gordura” narrativa condensando-a em uma belíssima montagem musicada. Ao longe de apenas 2 minutos, o clipe nos traz alguns dos quadros mais belos de todo o longa. E, junto a eles, referências a cenas que Morimi desenvolve em detalhe em seu romance.

O palavrório científico de Aoyama, por sua vez, é representado por imagens de seus cadernos, pinceladas aqui e ali ao longo do filme. O recurso liberta Ishida da chatice crônica do protagonista, permitindo-o fazer o que conhece melhor: uma boa e honesta história sobre crianças.

Esses ajustes podem parecer coisa pequena, mas são mudanças que fazem toda a diferença. Não apenas na fluidez do roteiro, mas nos próprios temas que abordam.

Os Jaguadartes

Os monstros que a mulher do consultório produz não são criaturas quaisquer. Como tanto o livro quanto o filme nos deixam claro, eles têm uma origem literária.

O jaguadarte (em inglês jabberwocky) é uma criação de Lewis Carroll para o clássico Alice Através do Espelho. A arte de época mostrada no anime nada mais é que uma ilustração original de sua primeira edição.

O aparecimento dessas criaturas é uma virada importante tanto no romance quanto no anime. Nas páginas de Morimi, porém, as referências a Lewis Carroll vão muito mais longe.

No livro, os monstros aparecem logo no início da história. “Jaguadarte” entra para o vocabulário de Aoyama e seus amigos, a ponto de batizaram a floresta em sua cidade de “Bosque dos Jaguadartes”.

A relação entre os monstros e a mulher do consultório tampouco é gratuita. Em Alice Atrás do Espelho, a protagonista do País das Maravilhas retorna a um mundo fantástico, desta vez como peça em um gigantesco jogo de xadrez. Exatamente o jogo que a musa de Aoyama o convida a jogar – e que conecta o garoto às duas mulheres da sua vida.

Não à toa, a primeira tomada do filme (repetida na sua conclusão) mostra um tapete xadrez no quarto do menino.

Mais: os jaguadartes de Morimi são descritos como baleias-azuis com pernas humanas e asas de morcego. Não por acaso, já que Aoyama é obcecado por cetáceos, e suas conversas com a mulher do consultório geralmente convergem até ele. Perto do fim do livro, um sonho do garoto o coloca frente a frente com um espécime falante:

A baleia-azul estava murmurando alguma coisa.

– Jabberwock, o que você está dizendo?

– Deus às vezes comete erros – a baleia-azul disse – É apenas natural.

– Isso é inaceitável – diz a mulher.

– Todos os pinguins concordariam comigo.

– Bem, eu não sou uma pinguim.

– O mar está vindo! O mar está vindo! – a baleia-azul disse misteriosamente.

Todos esses elementos aparecem no anime. Incluindo uma estátua de baleia no Café à Beira Mar, onde Aoyama e sua amiga se encontravam para jogar xadrez.

Sem o contexto dado por Morimi, contudo, esses detalhes são pouco mais que easter eggs de seu material de origem.

A lua de prata

O surgimento dos pinguins não é o único mistério com que Aoyama tem de lidar. Logo no início do livro, o garoto escuta rumores de uma “lua de prata” que adoecia todos que olhassem para ela.

A princípio, Aoyama faz pouco caso para a lenda. É apenas quando Hamamoto chama a atenção para um fenômeno estranho escondido entre as árvores que o mito ganha traços de realidade:

Árvores cercavam a clareira. Uma terra esquecida no coração do Bosque dos Jaguadartes. Como um prato de sopa gigante esperando para ser enchido com algum tipo de líquido. Conforme eu andava por ele eu sentia que o céu era como uma tampa colocada em cima da gente. Como se a tampa da minha cabeça fosse puxada em direção ao céu.

(…).

No meio da grama, onde Hamamoto apontava, havia uma estranha esfera translúcida. De acordo com sua distância a partir de nós, o diâmetro da esfera era aproximadamente cinco metros. Ela flutuava cerca de trinta centímetros do chão. Ela não parecia usar nenhuma espécie de motor para se manter suspensa no ar. Eu sabia disto porque ela não produzia som algum. 

Para o crédito de Morimi, o “mar” – como seria chamado pelas crianças – é o tipo de invenção que parece feita para uma tela de cinema.

O “mar” não é o único ringue em que o anime nocauteia seu material de origem. Ver uma motocicleta dissolvendo-se em pinguins é o tipo de magia visual que nos remete às obra-primas da animação.

A prosa de Morimi tem seus momentos de inspiração (“Nós cruzamos a rua como bolinhas de gude através de um tapete”; “A mulher assobiou […] e os pinguins se ajeitaram como cavalheiros britânicos”). É preciso, contudo, mais do que comparações criativas para vencer o dom de Ishida.

Ponto para o anime.

A iniciação amorosa

Penguin Highway não é apenas um conto de fantasia. Como toda história bem contada, é também uma fábula sobre relações humanas. No seu caso específico, com uma pitadinha de amor.

Ou, pelo menos, sua adaptação é.

Aoyama decidiu “investigar” a mulher do consultório porque estava apaixonado por ela. Hamamoto se convidou ao seu projeto porque, secretamente, sentia ciúmes. Suzuki o atazanava porque curtia Hamamoto e o via como um rival.

O amor é a linha mestra nos principais conflitos no anime. Obcecado por sua “ciência”, contudo, Aoyama parece incapaz até de acreditar em amor, quanto mais de enxergar seus efeitos. Quando fala sobre o assunto, é difícil não imaginar que estamos ouvindo as declarações de um robô:

– Ah. Então o Suzuki está apaixonado pela Hamamoto. Eu não fazia ideia. Se ele se sentia desse jeito, ele devia ter me contado.

– O Suzuki nunca faria isso.

– Por que não?

– Por que ele sente vergonha.

– Por que o Suzuki sentiria vergonha de estar apaixonado pela Hamamoto? Ficar apaixonado com pessoas é totalmente normal. Minha mãe e meu pai se casaram porque eles se apaixonaram. Se meu pai não tivesse se apaixonado eu nunca teria nascido.”

– Isso é verdade – Uchida disse, rindo – Mas você simplesmente não entende.

No anime, o diálogo aparece com pouquíssimas alterações. Porém, graças à linguagem visual de Ishida – e de um competente trabalho de dublagem – nós entendemos o tom professoral de Aoyama pelo que de fato é:  o papo-furado de um garoto inseguro, intimidado pelos seus próprios sentimentos.

A literatura é plenamente capaz de passar essas ideias. Infelizmente, a prosa de Morimi não dá conta, e seus diálogos depenados, com poucos (e batidos) verbos de elocução, fazem o protagonista parecer um desalmado.

Que o próprio Morimi não dê a devida atenção aos sentimentos das suas personagens não ajuda. Em nenhum lugar isto fica mais claro que no festival de verão. Um episódio presente tanto no romance quanto no filme, mas que não poderiam ter sido apresentados de maneira mais diferente.

No livro, a cena se desenrola como uma série de encontros não relacionados, conforme o elenco da história explora as atrações da noite.  Nenhuma destas trocas traz informações nova, e a sequência soa apenas repetitiva. Um meandro desnecessário em um romance que já sofre de uma falta de direção.

No anime, pelo contrário, as personagens são reunidas em uma emboscada digna de uma comédia romântica.

Aoyama encontra Hamamoto e seu pai, que ainda não conhecia – ao contrário do livro, em que já haviam sido apresentados. A mulher do consultório surge segundos depois, e Aoyama se vê espremido dentro do próprio triângulo amoroso.

Cada linha de diálogo – original do anime – é carregada de duplo sentido.

“Quer dizer que somos rivais” diz o pai, ao ouvir de Hamamoto que ela e o garoto brincam juntos. “Nós somos parceiros de pesquisa.” Uma Hamamoto enciumada diz à dentista. “Quer dizer que é por isso que você deixou de lado a nossa pesquisa?” ela diz a Aoyama com um olhar lânguido.

Atento ao que é de fato importante, o roteirista Ueda coloca a bola no campo do Aoyama. O triângulo amoroso Suzuki-Aoyama-Hamamoto dá um passo para trás, substituído por outro: Aoyama e suas duas musas.

Prova: enquanto que no livro Aoyama irrita Suzuki ao dizer que gosta de Hamamoto, no filme é o bully quem sugere que ele tem uma queda pela garota.

Não adianta se esconder atrás dos outros, Aoyama. Nesse filme, é você quem deve tomar uma decisão sobre seus próprios sentimentos.

E é, afinal, esse foco em sentimentos que nos leva à mudança mais significativa de todas:

A descoberta da sexualidade

Morimi jamais esconde que os pinguins de sua história são pretexto para algo maior.  No fundo, o romance é uma crônica de seu amor pela mulher do consultório. E de como, igual a tantos garotos de sua idade com quedas por figuras maternas, ele aprendeu a superá-la.

Penguin Highway é uma indireta, criativa e psicodélica fábula sobre o primeiro amor. Esse detalhe traz aquela lufada de frescor no texto de Morimi e o previne – assim como o anime que o inspirou – de se tornar apenas mais uma fantasia escolar.

Se no livro esse sentimento pode se passar por um amor idealizado, contudo, o filme deixa claro que estamos falando de algo um tanto mais concreto: o despertar da sexualidade.

A diferença de ênfase fica mais clara quando Aoyama é convidado a passar a noite no apartamento de sua musa. No livro, a passagem é a seguinte:

Tudo o que eu podia ouvir era a chuva caindo fora da varanda e o som da mulher respirando.

Seus olhos e lábios estavam fechados, e ela dormia profundamente. Ela não falava durante o sono como minha irmã fazia.

Enquanto eu observava seu rosto, eu me flagrei me perguntando como que ele tinha adquirido aquela forma, quem decidia esse tipo de coisa. Claro, eu sabia que são os genes que decidem como seu rosto se parece. Mas não era isto que eu queria saber. Por que eu comecei a gostar tanto de olhar seu rosto? E como que os genes tinham conseguido fazer o rosto de que eu tanto gostava tão completamente perfeito? Era isto que eu queria saber.

Eu tentei escrever sobre esse mistério no meu caderno, mas eu nunca tinha escrito nada daquele tipo nas minhas anotações, então eu não soube encontrar as palavras para isso. Eu terminei apenas escrevendo O rosto da mulher, felicidade, genes, perfeição. Então eu escrevi sobre os ingredientes no espaguete da mulher e como extremamente gostoso ele tinha sido. Então eu escrevi sobre como nós tínhamos feito a salada como dois profissionais, começando com o molho, então misturando os vegetais.

Quando eu terminei de escrever, a mulher já estava dormindo.

Ocorreu-me que se ela ficasse com frio, ela podia pegar um resfriado, então eu peguei uma toalha na sua cama e e coloquei sobre ela.

No anime, não é apenas sobre a salada que Aoyama rabisca em seu caderno:

E, antes de cobri-la, seus olhos caem num ponto bem específico de seu corpo:

Essa conotação já existe no romance de Morimi. O próprio autor a coloca nos lábios de Aoyama:

Mulheres adultas não deixam homens adultos entrarem em seus apartamentos com frequência. E elas nunca dormem na frente deles. Isto só acontece se eles forem um casal. Mas a mulher do consultório me deixou entrar no seu apartamento e dormiu na minha frente. Isto porque eu era só uma criança.

Entretanto, é uma observação que não leva a nada.  No parágrafo seguinte,  o garoto volta a falar sobre as origens do sono e a NASA e seus planos para ganhar o Nobel. No filme, por outro lado, somos deixados com a lembrança daquela barriga descoberta. E o sentimento que algo mudou dentro de Aoyama.

Não é possível dizer que Ishida modificou seu material de origem. As duas sequências, afinal, são idênticas. Mesmo assim, o mero apelo à linguagem visual é suficiente para trazer uma bagagem que parece peitar os confins da prosa.

 

Penguin Highway é um romance medíocre com uma linda metáfora sobre o amadurecimento, soterrada debaixo de uma prosa insípida, um enredo recalcitrante e um protagonista antipático. Que Hiroyasu Ishida tenha construído a partir dele um filme desse calibre é praticamente um milagre – e prova de que o diretor é um dos novos talentos do anime contemporâneo.

Como um escultor respeitando os veios da madeira, Ishida enxugou Penguin Highway aos seus elementos fundamentais, libertando os temas-chave da fábula de Morimi da encheção de linguiça  que os tornava difíceis de ver.

Filmes que superam os livros em que são baseados são coisa rara. Penguin Highway, porém, entra para o seleto clube dos que violam a regra. E o faz nos ensinando uma lição que muitos roteiristas – e não poucos fãs – deveriam ter em mente:

Mais conteúdo nem sempre é o melhor. E o bom criador trabalha não só com a caneta, mas também com a tesoura.

Um único quadro expressivo, encaixado em um filme sem um grama de gordura, pode nos tocar muito mais fundo que parágrafos e parágrafos de devaneios.


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