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The Witcher – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Sun, 24 Nov 2019 16:49:25 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 The Witcher – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 É possível fazer games sem objetivos? https://www.finisgeekis.com/2016/08/08/e-possivel-fazer-games-sem-objetivos/ https://www.finisgeekis.com/2016/08/08/e-possivel-fazer-games-sem-objetivos/#comments Mon, 08 Aug 2016 22:35:58 +0000 http://finisgeekis.com/?p=8860

Gamers estão desculpados por se sentirem inseguros com No Man’s Sky. O jogo da Hello Games mal foi lançado, mas já se tornou um dos títulos mais esperados, ambiciosos e polêmicos dos últimos tempos.

Anunciado como um game de exploração e sobrevivência em um universo “infinito” no qual é possível fazer quase tudo, o game atiçou a esperança de fãs, mas também a desconfiança de uma geração pós-Peter Molyneux.

Para quem já se decepcionou e perdeu dinheiro com jogos hypados no passado, No Man’s Sky parece bom demais para ser verdade.

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Era de se esperar, tratando-se de um lançamento que prometeu 18 quintilhões de planetas exploráveis, em uma jornada que leva 5 bilhões de anos para ser terminada. Ou de um estúdio que recebeu ameaças de morte após atrasar o lançamento do jogo. De fato, há quem considere o game como um case para os riscos de se hypar demais um produto.

De todas as polêmicas, uma das mais contundentes foi a acusação de que No Man’s Sky, para além de seu visual impressionante, seria um jogo para não se fazer nada. Sem objetivos, sem quests ou missões, sem railroading ou finais pré-estabelecidos. Um verdadeiro Minecraft no espaço, se Minecraft tivesse o preço de lançamento de um blockbuster.

Independente do que No Man’s Sky venha a entregar, a controvérsia nos leva a uma pergunta interessante:  É possível fazer um jogo realmente sem objetivos?

Os limites da “liberdade”

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A resposta curta, obviamente, é não.

Jogos precisam de alguma capacidade, por mais sutil que seja, de nos dar incentivos. Sem desafio, recompensas ou mesmo uma lógica básica, games se tornam apenas um amontoado de CGs bonitas – ou um checklist de quests terminadas.

Mesmo que desenvolvedores se esforcem para retirar qualquer forma de interferência autoral do jogo, é muito difícil que consigam. Como eu já disse em outra ocasião, cumprir objetivos é uma atividade que traz prazer ao nosso cérebro. Quando objetivos acabam, nossa própria mente logo cria outros para nos manter estimulados.

É a razão pela qual sandboxes como Minecraft fazem tanto sucesso. E pela qual algumas (muitas) pessoas preferem a liberdade de um Elder Scrolls ou GTA à cabeleira não customizável de um herói de JRPG, preso em uma aventura linear intercalada por cutscenes intermináveis. Por melhor que seja seu enredo.

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Não que deixar a tarefa na mão dos jogadores seja a única solução (nem, necessariamente, a mais apropriada). Games, afinal de contas, são feitos para nos enganar. E há uma série de recursos que designers espertos podem usar para manter um jogador interessado sem objetivos claros – ou quando todos eles já tiverem sido cumpridos.

Alison Gazzard, uma pesquisadora que já trabalhou com o assunto, trouxe alguns exemplos desses truques.

Recompensas ilusórias

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Quem nunca, em um RPG, já preferiu vestir uma armadura inferior por ser a mais bonita? Ou já não gastou horas atrás de colecionáveis? Ou então perdeu um tempo considerável explorando áreas vazias do cenário, só para apagar a névoa de guerra do mini-mapa?

Hissing-Wastes dragon age

Como assim não posso conhecer as áreas pretas?

Essas atividades não são necessárias, não desenvolvem o enredo e nem nos beneficiam dentro do jogo. Na maioria das vezes, sequer são exigidas por quests. Porém, como todos que já perderam dias da vida em um mundo aberto sabem, são tão engajantes como qualquer boss fight.

Recompensas ilusórias é o nome dado aos incentivos que dão ao jogador a satisfação de cumpri-los, mas que, em termos do jogo, têm muito pouca utilidade. Antes, seu valor está na realização pessoal, no sentimento de “glória” que nos provoca.

Em The Witcher 3: Blood and Wine, por exemplo, é possível comprar 5 selas diferentes para a égua de Geralt. Selas são importantes porque determinam a velocidade da cavalgada, e seus apetrechos (cabresto, sacolas) influenciam o tamanho do inventário e a chance de perder o controle da montaria em combate.

witcher blood wine horse gear

A pegadinha é que são todas idênticas. Embora tenham diferenças cosméticas, equipar uma em vez da outra não influencia em nada o jogo, nem provoca reações especiais de Geralt ou de outros NPCs.  Não há absolutamente nada a se ganhar, do ponto em vista prático, em comprar todas as selas.

Porém, o desejo complecionista de obter todos os itens do jogo, ou a vontade fashionista de mudar de sela quando der vontade, pode levar o jogador a transformar isso em uma prioridade. Como as selas são caras, isto requer que o jogador acumule ouro – realizando outras quests ou explorando tesouros.

O que antes era uma atividade potencialmente sem objetivo (acumular dinheiro no final do jogo) se torna uma tarefa com uma diretriz clara. A mera repetição de itens, se bem escondida, nos faz criar um propósito onde antes não havia nenhum.

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Quem sabe isso não me anima a pescar todos esses tesouros subaquáticos

Recompensas ilusórias ou de “glória”, como Gazzard as chama, são ferramentes extremamente úteis para fazem com que jogadores levem mais tempo para se cansar de um game.

Em alguns casos, elas atendem a objetivos exteriores aos jogos propriamente ditos. É o caso de se platinar achievements, filmar uma speedrun para um canal de YouTube ou de dar uma volta pelo bairro e perder uns quilinhos caçando pokémons.

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Você está fazendo isso errado.

É possível que os 18 quintilhões de planetas de No Man’s Sky sejam apenas mais-do-mesmo, em diferentes paletas de cor.

No entanto, se a Hello Games conseguir fazer com que pareçam únicos (mesmo que na superfície), ou nos recompense o suficiente para explorá-los por horas a fio, ter um objetivo se tornará redundante. Nós, cedo ou tarde, encontraremos o nosso próprio.


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Recompensas sociais

play of the game overwatch

Como o próprio nome já diz, recompensas sociais são as gratificações que tiramos ao comentar, compartilhar e (por que não?) ostentar nossas conquistas para outras pessoas.

Humanos são seres sociais por natureza. Mais do que isso, são orgulhosos. Em tese, não precisam de nenhum incentivo para exibir seus feitos para os outros. Mesmo assim, designers interessados em atiçar a comunicabilidade de seus jogadores frequentemente lhes dão um empurrãozinho.

Leaderboards, achievements e rankings em FPSs multiplayer são exemplos clássicos. Animações como o play of the game de Overwatch são variações mais sofisticadas, porém que seguem a mesma lógica: esbanjar aos outros o que você fez.

Em fóruns de games de estratégia, AARs, diários de campanha com uma síntese dos acontecimentos da jogatina, já se tornaram uma tradição. E basta navegar pela comunidade da Paradox para encontrar centenas de threads com coleções de pérolas vindas de jogos como Crusader Kings e Hearts of Iron.

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Há fortes indícios de que No Man’s Sky está contando com recompensas sociais, a ponto de terem sido incluídas em uma lista de motivos para se acreditar no sucesso do jogo. Embora não se apresente como um game “multiplayer” stritu sensu, No Man’s Sky estimula as pessoas a trocarem experiências umas com as outras.

Seu universo procedural é compartilhado, embora os gamers comecem tão distante uns dos outros que dificilmente se encontrarão (18 quintilhões de planetas, afinal, é coisa para caramba).

No entanto, ações decisivas tomadas por um jogador (como a extinção de toda uma espécie) são comunicadas aos demais. E exploradores que descobrirem um planeta pela primeira vez têm o direito de lhe dar um nome, o qual será visto pelos outros que seguirem em seus passos.

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Até que ponto isso vai promover um playground para todos se divertirem ou uma hecatombe de trollagem, só o tempo dirá. Para o bem de No Man’s Sky, é bom que a Hello Games torça pela primeira opção. Comunidades tóxicas, afinal, são o beijo da morte para qualquer jogo.

Recompensas falsas

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Para aqueles que desprezam contato alheio e precisam de algum senso de progresso dentro do próprio jogo, há ainda uma terceira alternativa. Em vez de estimular a comunicação ou prometer apenas a realização pessoal, uma solução é montar as tarefas de forma que pareçam quests em tudo… menos no conteúdo.

Chamadas de recompensas falsas, essas estratégias consistem em propor atividades que não atrapalhem o jogador, mas que também influenciem muito pouco seu progresso no game.

Na maioria dos casos, o jogo constrói seus níveis de forma que sigam o “script” de quests, mesmo que não haja quests a serem feitas, ou quando elas já tenham acabado.

Em Skyrim, certos dungeons ganham inimigos específicos durante certas quests. Se nós os visitarmos depois, no entanto, os encontraremos populados por outras criaturas, geralmente bem parecidas, mas cujas ações, pertences e mortes não têm qualquer importância para o restante do jogo.

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A estrutura dos dungeons continua a mesma. Um boss ainda espera o jogador no final, geralmente protegendo o mesmo baú de tesouro com o item raro que ele veio buscar da primeira vez. Entretanto, é um boss genérico e o tesouro, proceduralmente gerado.

Esse sistema permite que repitamos a mesma ação infinitas vezes, sentindo como se estivéssemos cumprindo objetivos. Porém, se formos parar para pensar, tudo o que fazemos é patinar no molhado.

O truque pode parecer enfadonho, mas funciona como milagre. Quando bem implementadas, recompensas falsas podem fazer até mesmo um jogo curto permanecer interessante por toda uma vida.

Aqui, não há exemplo melhor do que os clássicos Zeldas de N64. Gamers que cresceram com Ocarina do Tempo Majora’s Mask talvez se surpreendam ao saber que os jogos nos quais investiram tanto tempo de suas infâncias não têm mais de 30 e poucas horas de duração, mesmo em playthroughs complecionistas.

Se esses jogos pareciam durar uma eternidade é porque estavam repletos de recompensas falsas. Muito embora alguns elementos mudassem com o fim da quest principal, seus cenários continuavam praticamente os mesmos. Seus desafios – inimigos, dungeons e quebra-cabeças – continuavam lá para serem enfrentados quantas vezes quiséssemos.

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Pensando bem, esse dungeon eu dispenso.

Os prêmios, claros, eram “falsos”. Pedaços de coração, garrafas e itens únicos como o longshot podiam ser obtidos apenas uma vez. Porém, o percurso que havíamos tomado para obtê-los continuava aberto, muitas vezes com rúpias ou outros pequenos mimos como recompensa.

O resultado foram jogos que, como descreveu um amigo meu na época, “podiam ser jogados para sempre”. Voltar a dungeons que já havíamos visitado, seja para lembrar as emoções da primeira batalha, seja para testar nossos novos itens e máscaras, era quase mais divertido do que completar o jogo em si.

No Man’s Sky não é Zelda, e não dá para saber se conseguirá repetir a façanha do clássico da Nintendo. Contudo, é um desafio que a Hello Games está disposta a encarar.

Um jogador que recebeu uma cópia antecipada disse que achou o jogo tão imersivo que continuou a jogar mesmo depois de platiná-lo. Para um game com 18 quintilhões de planetas, esse é um super elogio.

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No Man’s Sky não é um game para todos. Se você é do tipo que não dispensa uma experiência coesa, mesmo que curta o eventual mundo aberto, é muito provável que o lançamento o desagrade, não importa quantas recompensas falsas ele espalhar por sua galáxia de faz de conta.

Se nada mais, no entanto, podemos ter uma certeza. Mesmo que o pior aconteça e o jogo se prove um Minecraft no espaço, ainda há muito que pode fazer de certo para nos divertir.

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4 curiosidades sobre ‘Blood and Wine’ para se despedir de ‘The Witcher’ https://www.finisgeekis.com/2016/06/14/4-curiosidades-sobre-blood-and-wine-para-se-despedir-de-the-witcher/ https://www.finisgeekis.com/2016/06/14/4-curiosidades-sobre-blood-and-wine-para-se-despedir-de-the-witcher/#comments Tue, 14 Jun 2016 11:30:33 +0000 http://finisgeekis.com/?p=6612 É o momento que todos esperávamos e temíamos. The Witcher 3: Blood and Wine, a segunda expansão do jogo do ano de 2015, finalmente foi lançada. Infelizmente, é também a nossa última aventura com o Lobo Branco de Rivia.

Como a CD Projekt RED anunciou, não haverá um Witcher 4. Salvo alguma mudança brusca de política editorial, essa será a última aventura do witcher Geralt pelo mundo dos games.

Nem tudo, porém, é motivo para tristeza. Blood and Wine é uma aventura primorosa. Com mais de 30h de duração (tão longa quanto Witcher 2), a expansão é um verdadeiro tributo à franquia, unindo elementos dos primeiros jogos a um dos mais pitorescos cenários dos romances:

O ducado de Toussaint.

Protetorado de Nilfgaard renomado pelos seus vinhos e cavaleiros errantes, Toussaint é a imagem perfeita da Idade Média utópica dos dragões, princesas e feitos de bravura.

Obviamente,  ele também é muito mais do que isso. Como já era de se esperar de The Witcher, ele também está recheado de referências históricas, mitológicas e tributos  a Andrzej Sapkowski.

A Haley MacLean do Gameinformer fez a sua própria lista sobre o folclore por trás de Blood and Wine. Aqui, faço eu a minha contribuição. Abaixo seguem 4 curiosidades para aqueles que desejam curtir o “canto do cisne” de Geralt de Rivia em tudo o que tem a oferecer.

(Aviso: contém SPOILERS para The Witcher 3: Blood and Wine)

1- O “ducado dos vinhos” realmente existiu.

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Como diz a duquesa Anna Henrietta, o vinho em Toussaint é sagrado. As melhores garrafas do mundo são importadas do ducado. Em sua jornada para encontrar a Besta de Beauclair, Geralt não consegue dar um passo sem topar com um enólogo pedindo para matar os monstros em sua adega. E, na hora de recompensá-lo pelo serviço, a duquesa não pensa duas vezes e lhe presenteia com um vinhedo.

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Se nomes como “Sansretour”ou “Beauclair” não forem dicas suficientes, o ducado de Blood and Wine é inspirado na França. O que talvez seja menos óbvio é que Toussaint não é uma terra de fantasia genérica, mas um lugar baseado em uma província real.

Trata-se do antigo Ducado da Aquitânia, que em termos de beleza não perdia em nada para as CGs da CD Projekt RED:

witcher beauclair

dorddogne

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Além dos castelos e das planícies verdejantes, a região produzia os vinhos mais famosos da Idade Média. A partir do século XIII, quando o ducado se tornou uma província inglesa, os seus vinhos se tornaram a bebida mais requisitada dos nobres europeus, presença garantida nas principais cortes do Ocidente.

Infelizmente, o tempo não foi tão bondoso com os vinhedos medievais. Com a popularidade dos vinhos modernos de Bordeaux, o interior da Aquitânia (a ‘Toussaint’ do mundo real) caiu no esquecimento. Hoje, é uma das regiões menos badaladas da França.

Felizmente, para aqueles que se apaixonaram por Beauclair e sonham em provar um Erveluce, algumas denominações são produzidas até hoje.

É o caso do Clairet, considerado um dos melhores vinhos da Idade Média. Ou então o Jurançon, que ganhou fama como “vinho de batismo” do rei Henrique IV (1553-1610).

Se há uma diferença entre Toussaint e a Aquitânia, contudo, é que a última foi uma terra estupidamente mais violenta que a primeira. Os vinhedos do ducado foram motivo de diversas guerras entre ingleses e franceses, loucos para lucrar com seu comércio. Não é por acaso que a região foi o epicentro da Guerra dos Cem Anos.

A duquesa Henrietta pode se queixar da Besta de Beauclair, mas deve concordar que seu trabalho poderia ser muito mais difícil.

2- Syanna é a Branca de Neve

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The Witcher começou com uma série de releituras de contos-de fada. Nada mais cabível para o final da trilogia, portanto, que nos levar de volta aonde tudo começou.

Na sua jornada para salvar Beauclair, Geralt eventualmente se depara com a Terra das Mil Fábulas, um mundo paralelo que parece saído da mente dos Irmãos Grimm.

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Lá, ele precisa buscar ajuda (ou enfrentar) algumas das histórias mais queridas de nossas infâncias. Há apenas um problema: com o passar do tempo, a magia que sustenta o mundo paralelo começou a se deteriorar, e os contos-de-fada adquiriram um lado mais… sombrio.

Alguns são bem fáceis de identificar. É o caso da Rapunzel. Após ver o príncipe cair e morrer durante a escalada para salvá-la, ela decide se libertar do cativeiro de um jeito mais radical:

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Ou então o da vendedora de fósforos de Hans Andersen, que descobre que o tráfico de drogas é muito mais lucrativo.

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Outros contos, no entanto, aparecem de forma mais sutil. Aqui, o melhor exemplo é o da própria Syanna. Irmã mais nova da duquesa Anna Henrietta, ela nasceu em um dia de mau augúrio e foi deserdada pelos pais. Expulsa de Toussaint, tornou-se uma fora-da-lei buscando fazer a família pagar pela sua humilhação.

renfri witcher

Renfri no seriado polonês Wiedzmin (2002)

Como o próprio Geralt percebe, a sua história é quase idêntica à da mulher por trás de um de seus primeiros contratos: Renfri de Creyden. Trata-se da personagem principal do conto Um Mal Menor, inspirada em ninguém menos que a Branca de Neve.

Amaldiçoada ao nascer, Renfri também foi deserdada pelos país. Com medo de que se transformasse em um monstro quando crescesse, sua madrasta mandou matá-la. Renfri, no entanto, sobreviveu, tornou-se líder de uma gangue de gnomos e perambulou mundo afora atrás de sua vingança.

Com a ajuda de seus “sete anões”, ela quase teve sucesso nos seus planos. Ao descobrir que o mago que a “diagnosticara” estava escondido na pequena cidade de Blaviken, ela partiu para matá-lo.

Infelizmente, tal como a Branca de Neve, Renfri também encontrou um caçador. Um “caçador” que, daquele dia em diante, seria conhecido como  o Açougueiro de Blaviken.

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3- “Intepretar” cavaleiros errantes já foi um costume popular

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Toussaint não é um ducado como outro qualquer. Em vez de exércitos, guerrilheiros ou milicianos, a província conta com a bravura de cavaleiros errantes dispostos a enfrentar vilões pela honra de suas donzelas.

Tanto nos livros de Sapkowski como em Blood and Wine, os cavaleiros de Toussaint são retratados mais como fanfarrões do que como guerreiros sérios. Eles falam pomposamente,  têm mais pose do que habilidade em armas e insistem em “servir” donzelas que só querem ser deixadas em paz.

Há muitas referências históricas em The Witcher, mas é fácil concluir que seus “cavaleiros errantes” não são uma delas. Não é por acaso que, ao chegar em Toussaint, Geralt é recepcionado por um jovem atacando um moinho de vento. O ducado de Anna Henrietta parece saído direto da imaginação de Dom Quixote.

Sim… e não. Embora as novelas de cavalaria sejam ficção, elas foram escritas na Idade Média e lidas avidamente por aristocratas. Alguns, tal como os guerreiros de Toussaint, sentiram-se inspirados para fazer um pequeno “role-play”.

Embora nunca tenha existido uma “ordem universal” da cavalaria, vários monarcas decidiram criar suas próprias irmandades baseadas nas tradições de seus países.

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Rainha Elizabeth II com o traje cerimonial da Ordem do Garter

Algumas, como a Ordem do Garter e a Ordem do Tosão de Ouro, existem até hoje e viraram condecorações de monarquias contemporâneas.

Para quem sabe procurar, Blood and Wine faz referência direta a essas ordens. Como recompensa por salvar Beauclair, a duquesa  de Toussaint promete a Geralt a Ordem da Vitis Vinifera (por acaso, o nome científico da uva)

Ordens não precisavam ser coisas pomposas, no entanto. A maioria eram simples “parcerias” entre cavaleiros, como as de Milton Peyrac-Peyran, de la Croix e  tantos outros cavaleiros que Geralt encontra em sua visita à Toussaint.

O historiador D’Arcy Boulton resolveu investigar o tema e encontrou centenas de irmandades desse tipo.

Algumas eram criadas de propósito para imitar novelas de cavalaria e duravam apenas alguns dias. Por exemplo: não era incomum que um grupo de cavaleiros bloqueasse uma ponte e só permitisse a passagem daqueles que o desafiassem em combate… ou se prestassem a alguma jura.

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Isso não vai acabar bem

Como é possível de imaginar, nem todo mundo encarava essas fantasias com bons olhos. Para o cavaleiro e escritor Philippe de Mezières, esse culto estúpido à cavalaria era o culpado pela mortandade da Guerra dos Cem Anos:

“Ouçam, vocês que semearam esse derramamento de sangue humano tão terrível. Por causa de sua guerra malévola, elevados por orgulho e pela luxúria por aquilo que não passa de uma terra minúscula, toda a Cristandade por cinquenta anos foi virada de ponta-cabeça (…) e o que é pior: aquilo que vocês foram empoderados por Deus para fazer para a punição dos pecados dos franceses e escoceses vocês atribuem a sua própria coragem e cavalaria, embriagados como estão com orgulho e atiçados pelas histórias de Lancelot e Gawain.”

(Citado aqui)

A vontade de imitar os heróis das lendas não parava por aí. Nas cortes europeias, eram populares festas da Távola Redonda em que nobres se vestiam e interpretavam heróis arturianos. Para todos os fins, era quase um LARPG feito na própria Idade Média.

Alguns chegavam ao ponto de construir suas próprias távolas redondas para manter a imersão. É o caso de Eduardo III, rei da Inglaterra, que organizou uma enorme festa arturiana no Palácio de Windsor em 1344. O “LARPG” foi tão monumental que deixou vestígios: em 2006, uma expedição arqueológica encontrou sua Távola Redonda no antigo pátio do castelo.

4- Os vampiros irão herdar a terra

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Força sobrehumana. Imunidade a magias de detecção. Capacidade de se transformar em fumaça. Nunca houve dúvidas de que os vampiros de The Witcher eram criaturas poderosas. Blood and Wine, no entanto, eleva o brilho dos dentuços imortais à última potência.

Emiel Regis Rohellec Terzieff-Godefroy, o fiel companheiro de Geralt dado como morto no romance A Dama do Lago, reaparece com uma novidade bombástica. Apenas um vampiro pode matar permanentemente outro vampiro.

Não importa quanto eles sejam feridos, nem se forem desintegrados ou transformados em poeira. Eles sempre podem se regenerar.

Todos os vampiros mortos pelos witchers aos longo dos séculos? Vivos. Humbert, o vampiro que tentou matar Priscilla em Novigrad? Vivíssimo, esperando sua vingança.

E isso é só o começo. Em Blood and Wine, vampiros deixam de ser caçadores solitários e são apresentados como toda uma sociedade à parte, com direito a clãs, castelos e “líderes regionais”. Com a capacidade para transformar o mundo dos humanos em um inferno na terra, se ficarem contrariados.beauclair under attack.jpg

Na franquia The Witcher, os jogos da CD Projekt RED não são canônicos. Felizmente (ou infelizmente, dependendo de quanto o leitor curtir Anne Rice), a “vampiromania” de Blood and Wine não encontra paralelos nos livros de Sapkowski.

Mesmo assim , a expansão foi fiel a um dos detalhes mais peculiares nos romances de Geralt. Neles, vampiros não são apenas superiores. Eles também herdarão o mundo.

A razão, por incrível que pareça, tem menos a ver com Bram Stoker do que com Charles Darwin. Como Regis explica a Geralt no romance Batismo de Fogo:

“Há razão para crer que a luz solar é mortal no longo prazo. Há teorias que dizem que, em cinco mil anos, calculando de forma modesta, esse mundo será habitado apenas por criaturas noturnas.”

Se os monstros, a guerra entre Nilfgaard e os Reinos do Norte e a Caçada Selvagem não fossem o suficiente, os habitantes do universo de The Witcher têm de se preocupar com uma calamidade a mais: seu mundo está, literalmente, morrendo.

Nenneke, a sacerdotisa de Melitele que socorre Geralt em O Último Desejoexplica com todas as letras:

“- Metade das plantas que você tem aqui não crescem em nenhum outro lugar (…) Por quê?

(…)

– Você vê, Geralt, esse nosso sol claro ainda está brilhando, mas não do mesmo jeito como brilhava antes. (…) [Esse] teto de cristal age como um filtro. Ele elimina os raios letais que podem ser encontrados com maior e maior frequência na luz solar. É por isso que plantas que você não vê em lugar nenhum do mundo crescem aqui.

– Eu entendo – assentiu o witcher – E nós, Nenneke? O que acontecerá conosco? O sol brilha sobre nós, também. Nós não deveríamos nos abrigar sob um teto como esse?

– Em princípio, sim – suspirou a sacerdotisa – Mas…

– Mas o quê?

– É tarde demais.”

Reparem como essa “mudança climática” não tem nada a ver com a White Frost que Ciri luta para dissipar em Witcher 3. Mesmo que tudo dê certo, que a profecia de Ithlinne não se cumpra e que todos saiam vivos e contentes da luta contra a Caçada Selvagem, o mundo vai acabar de qualquer forma.

mass effect ending

E depois dizem que o final de Mass Effect 3 é triste

Se por um lado isso soa depressivo, por outro não deve espantar fãs de literatura fantástica. A escatologia – a crença de que o mundo está em decadência e que o futuro trará apenas a destruição – é um dos elementos mais recorrentes no gênero.

Enquanto que alguns escritores abraçaram a ficção científica para imaginar futuros impossíveis (muitas vezes ideais), outros, receosos com o progresso, resolveram se voltar para o passado – e para a tristeza de um mundo que se acaba.

É o grande lamento de O Senhor dos Anéis e seu mundo mágico que fenece para dar espaço à era dos homens. É, também, o lamento dos próprios witchers, uma casta de caçadores de monstros que vivem em ruínas, não treinam novos membros e não são mais vistos como necessários.

Não é exatamente um desfecho para nos abrir um sorriso no rosto. Porém, como a fantasia já nos provou várias vezes, nem toda história precisa de um final feliz.

Nada mais apropriado (e nostálgico), para celebrar a despedida de Geralt no mundo dos games.

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Entrevista: escrevendo as quests de ‘Witcher 3’ https://www.finisgeekis.com/2016/05/06/entrevista-escrevendo-as-quests-de-witcher-3/ https://www.finisgeekis.com/2016/05/06/entrevista-escrevendo-as-quests-de-witcher-3/#respond Fri, 06 May 2016 18:56:27 +0000 http://finisgeekis.com/?p=4918

Não há dúvidas de que The Witcher 3: The Wild Hunt é um dos jogos mais impressionantes de memória recente. O blockbuster da CD Projekt RED, baseado em um dos maiores sucessos da fantasia europeia, conseguiu a façanha de combinar um open world imersivo, gráficos de ponta, ação e um dos melhores enredos da história dos games.

The Wild Hunt é um chute no estômago dos que dizem que jogos não conseguem contar boas histórias, ou que narrativas são inimigas do gameplay. Para alguns, o jogo entrega tanto em tantos quesitos que até merece a pergunta: como ele pôde ser feito?

Felizmente, não precisamos mais adivinhar. Pawel Sasko e Mateusz Tomaszkiewicz, quest designers da CD Projekt RED, recentemente fizeram um Q&A em que respondem todas as questões.

Fãs da saga de Geralt de Rivia ou entusiastas de game design interessados em conhecer o processo criativo por trás do game podem ler o artigo na íntegra nos fórums do estúdio.

Abaixo, vão alguns dos destaques da entrevista.

(Cuidado: SPOILERS de Witcher 3)

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Pawel Sasko e Mateusz Tomaszkiewicz

Como uma quest começa? Quais são os estágios do processo de design? Quão complexo é o processo de coordenar todos os componentes que integram uma quest?

Mateusz Tomaszkiewicz (MT): Sempre começa com uma ideia, mas as origens podem ser variadas. Muitas vezes a ideia de base vem da equipe de redação, especialmente quando se trata das quests da história principal, mas às vezes elas vêm direto dos quest designers, como foi o caso da maioria das side quests de Witcher 3.

Claro, nem toda ideia entra no jogo – designers listam suas ideias em pitches de uma ou duas linhas, então nós escolhemos aquelas que têm potencial para ser desenvolvidas.

Depois que nós escolhemos um pitch, ele é reescrito pelo quest designer em um cenário completo. O designer providencia a fundamentação por trás do evento, ideias específicas de cenas, o que deve acontecer em que lugar, etc. Então ele passa por várias iterações – recebe comentários do lead quest designer e dos escritores, é melhorado ou completamente reescrito e, em alguns casos, nós até descartamos tudo neste estágio.

Uma vez aprovado, o quest designer prepara uma lista de assets necessários para implementar aquela quest na engine do jogo – personagens, locais, itens, música, etc. Enquanto os outros departamentos trabalham nesses assets, o quest designer implementa a primeira versão usando assets temporários.

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Foi um desafio equilibrar gameplay cutscenes, de forma que o jogador pudesse ser um participante ativo, e não se sentisse apenas observando um “filme”?

Pawel Sasko (PS): Em todo jogo que gira em torno de um enredo, encontrar um equilíbrio entre exposição da história por meio de diálogos e gameplay é um desafio. No nosso caso, nós sempre tentamos eliminar todas as sequências de gameplay que não têm sentido e quebram o ritmo da narração. É por isso que todas as atividades estão amarradas no enredo, mesmo quando isto significa que nós temos que criar uma sequência customizada para fazer a história mais interativa. (…)

Encontrar um andamento bom para a narração não é fácil. Toda a informação precisa ser dada ao jogador de uma forma clara e concisa, assuntos não podem ser mudados com muita frequência e nós temos que arrumar espaço para a sutileza nas conversas. Isto pode facilmente acabar em uma sequência longa e entediante, então precisamos de atenção. Não é incomum que alguns diálogos tomem literalmente horas de brainstorming para que descubramos a forma mais impactante de apresentar fatos na cena para o jogador.

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Já que The Wild Hunt trouxe a série para o open world, onde o jogador é relativamente livre para  perseguir seu próprio caminho não-linear, como isto afetou o  quest design? Algum desafio em particular? Alguma lição aprendida?

PS: (…) O mundo aberto dita um approach de design bem específico: desde o começo nós precisamos pensar em todos os possíveis caminhos e formas pouco usuais de terminar a quest e ter isso assegurado e funcionando de maneira lógica. É inacreditavelmente fácil estragar as coisas neste ponto – qualquer mudança de asset, localização ou cena pode causar efeitos inesperados na quest (por exemplo: de repente aparecer um novo caminho que permita ao jogar chegar a um local fechado mergulhando ou escalando). Nestes casos, nosso approach foi sempre focado em dar suporte a mais caminhos em vez de bloqueá-los, mas isso consome tanto tempo quanto assets, então temos de ser bem precisos.

Nosso mundo aberto também afetou tremendamenhte nossos cinematic designers- nós tínhamos que prever por quais ângulos certos NPCs poderiam ser abordados, de maneira que a cutscene encaixasse bem com o gameplay. O mesmo se aplica ao clima, animais andando ou horas estranhas do dia em que jogador decidir aparecer e falar com a personagem – todas estas pequenas coisas tiveram de ser levadas em consideração. Nossa equipa de QA nos ajudou tremendamente nisto, encontrando todos os pequenos problemas e consertando-os. Atualmente, nós temos uma ideia bem clara de como fazer estas coisas, mas levamos anos para descobrir.

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Qual foi a quest mais difícil para desenvolver, seja em termos narrativos, seja em termos técnicos? Vocês ficaram felizes com o produto final?


MT: Eu diria que de um ponto de vista técnico foi a Battle for Kaer Morhen. De um ponto de vista narrativo, a quest do Bloody Baron, na qual gastamos um tempo absurdo. Na verdade, Pawel trabalhou nas duas, então ele pode negar ou confirmar minha impressão.

PS: Eu preciso concordar com tudo o que o Mateusz disse. Em 11 anos de carreira como quest designer, eu nunca implementei uma quest tão desafiadora do ponto de vista técnico como a Battle for Kaer Morhen. Desde os primeiros rascunhos no papel nós já sabíamos que seria uma quest gigantesca e complicada, e no final acabou sendo ainda pior do que esperávamos. Os jogadores podiam ter entre 9 e 16 personagens ajudando-os, dependendo de todas as outras coisas que eles haviam feito até lá – e estes personagens podiam aparecer em qualquer combinação. Mais: alguns deles precisavam ter cenas adicionais separadas (por exemplo: o diálogo com Roche e Ves confrontando Letho). Eu precisava me assegurar de que qualquer jogador que trouxesse um grupo único de personagens teria uma experiência de qualidade que ficaria com eles por um longo tempo.(…)

Em termos de escrita, a história do Bloody Baron levou muito tempo para ficar legal. O assunto que nós decidimos abordar era difícil e ambicioso e requeria atenção especial. Karolina Stachya, que a escreveu sozinha, passou muito tempo comigo cuidando das nuances. Tanto Mateusz Tomaszkiewicz quanto Marcin Blacha ofereceram muito feedback e ideias para melhorar a escrita – nós queríamos apresentar a atmosfera de Velen por meio da personagem do Barão e delinear a similaridades entre dois pais que haviam perdido suas filhas (Geralt e o Barão). Todo este esforço acabou valendo a pena, pois a quest ganhou o Golden Joystick Award de melhor momento em um game em 2015.

Para ler o Q&A na íntegra, clique aqui.

]]> https://www.finisgeekis.com/2016/05/06/entrevista-escrevendo-as-quests-de-witcher-3/feed/ 0 4918 Quando os games questionam o progresso https://www.finisgeekis.com/2016/02/15/quando-os-games-questionam-o-progresso/ https://www.finisgeekis.com/2016/02/15/quando-os-games-questionam-o-progresso/#comments Mon, 15 Feb 2016 23:07:29 +0000 http://finisgeekis.com/?p=2125

Parece óbvio que mídias tão contemporâneas como os videogames sejam otimistas em relação ao futuro. Por mais que Deus Ex ou Fallout nos lembrem de consequências nefastas da tecnologia, a ideia de que “progresso” – em alguma forma –  é algo bom não precisa de justificativas.

Mais ou menos, dirão alguns. E estarão certos. Embora não haja falta de árvores tecnológicas e sistemas de promoção para nos lembrar de que “é para frente que se anda”, de quando em quando surge um jogo que nos sugere o contrário.

Thea: The Awakening, um game independente que passou despercebido em meio a tantos lançamentos no ano passado, é um deles. Nele, o objetivo não é dominar o mundo ou obter glória, mas restaurar o que foi perdido.

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No início, o universo vivia em harmonia, e os deuses orientavam os seus seguidores. Um dia, contudo, os humanos destruiram a Árvore Cósmica, o pilar que unia o mundo dos mortais ao plano divino. O resultado foi a Escuridão, uma longa era das trevas que tolheu os poderes dos deuses e jogou o mundo às forças malignas.

Em Thea, o jogador encarna um grupo de devotos de um dos antigos deuses, que buscam restaurar o mundo ao que era antes. Guiando um grupo de seguidores que sobrevivem a duras custas em uma aldeia isolada, ele deve encontrar um meio para dissipar a Escuridão.

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Thea é uma daquelas pérolas de que nós não sabemos que precisamos – até, é claro, jogá-las. O jogo mistura uma base de estratégia 4x (na linha de Civilization e Endless Legend) com mecânicas de RPG e elementos de roguelites.

Por mais implausível que pareça, a aposta entrega. Os cenários e eventos são gerados proceduralmente, fazendo com que cada jogo seja diferente do anterior. Desafios podem ser resolvidos não só pelo combate, mas pela diplomacia ou perspicácia. Escolhas têm consequências, muitas vezes severas.

Mais interessante, no entanto, é o seu cenário. Thea possui uma identidade visual bem característica, e  seu mundo fantástico é inspirado na mitologia eslava. Na jornada para garantir a sobrevivência de sua aldeia, o jogador encontrará Baba Yagas, Rusalkas, Utopiecs e todo um bestiário de criaturas inéditas.

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Qualquer semelhança com a saga de Geralt de Rivia não é mera coincidência. O jogo é uma co-produção anglo-polonesa, e tem em sua equipe vários veteranos da série The Witcher.

Para quem foi introduzido ao leste europeu pelas espadas do caçador de monstros, Thea é um contraponto imperdível. Em contraste com o estilo agressivo do hit da CD Projekt Red, a atmosfera de Thea é mais sutil e amigável – ao menos à primeira vista.

Os drowners – ou Utopiec, como são chamados – parecem sereias. Já os leshys, que em The Witcher bem caberiam em qualquer game de terror, mais se parecem com os ents em O Senhor dos Anéis.

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Separados no berço

Veles, Zorya, Svarog e Perun, os nomes das runas que Geralt grava em suas espadas, por sua vez, aparecem aqui como o que realmente são:  deuses do panteão eslavo.

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O fim da magia e a era dos homens

Por mais exótico que seja seu mundo, a premissa de Thea está longe de ser única. Pelo contrário, os dramas de uma humanidade vivendo em um mundo desmistificado são alguns dos elementos mais antigos e cativantes da fantasia.

Mesmo no universo dos games esses cenários já contam com uma tradição. The Banner Saga, uma criação de ex-membros da Bioware, toca no mesmíssimo ponto, desta vez em um mundo inspirado na mitologia nórdica. Nele, nós acompanhamos o drama de migrantes tentando sobreviver em um mundo hostil, congelado e abandonado pelos deuses.

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Tal como Thea, The Banner Saga é um misto de estratégia e RPG. Tal como Thea, sua história melancólica lida não com vitória, conquistas ou finais felizes, mas com a sobrevivência em uma sociedade em ruínas.

Suas personagens estão em crise não só porque temem pelas suas vidas, mas porque o mundo que conhecem está desaparecendo. E elas não fazem ideia do que as aguarda do outro lado.

Mesmo The Witcher, a despeito de seu foco pessoal, se passa em um mundo com data para acabar. Os witchers são uma casta em extinção; suas fortalezas estão destruídas e suas guildas não treinam mais guerreiros.

Os witchers pertencem a um outro universo, em que as pessoas viviam cercadas pelo desconhecido e temiam os monstros que espreitavam em seu meio. Mas a humanidade venceu: as cidades estão crescendo, os monstros estão acabando e os witchers perderam a sua função.

 Os “monstros” do presente não são leshens, drowners ou chorts, mas estadistas, burocratas, soldados. Eles não matam com garras e dentes, mas com decretos e protocolos.

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Para o fã do gênero, não há nada de novo sob o sol. Afinal de contas, histórias similares estão presentes na obra de ninguém menos que J.R.R. Tolkien. A saga de um mundo em decadência, em que a magia desaparece para dar origem a uma nova “era dos homens” é um dos temas centrais na obra do pai da fantasia.

E não por acaso. Tolkien foi forçado a lutar na Primeira Guerra Mundial e participou da Batalha do Somme, um dos embates mais sangrentos da história. Tal como outros que vivenciaram o conflito, ele não conseguia afastar a ideia de que algo havia dado terrivelmente errado com a humanidade.

Ele não foi o único. O criador de Nárnia C.S. Lewis e quase todos os Inklings – um grupo de intelectuais do qual os dois participavam – passaram por experiências semelhantes.

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Hoje em dia, pode parecer estranho que elfos e orcs tenham sido escolhidos para lidar com os traumas do presente. Todavia, para eles – e tantos outros que vieram depois – conceber um universo paralelo foi a melhor saída para encarar o mundo real.

Ainda mais quando seu “mundo real” já não parecia mais o mesmo.

A imagem do mundo

HeiddegerNos anos 1930, o filósofo Martin Heidegger disse que a era moderna mudou a forma como o ser humano enxergava o mundo. Antes, a humanidade era vista como parte de uma criação. As pessoas eram peças dentro de uma ordem, e suas vidas tinham um sentido que não dependia delas. Outras forças – os deuses, a natureza, um poder superior – eram as donas da verdade e da mudança.

Com a modernidade, tudo mudou. O ser humano, de objeto, tornou-se protagonista. O mundo passou a ser visto como algo a ser domado, conhecido, transformado. A vida deixou de ter um “sentido” profundo além daquele que cada um de nós dá a ela. A arte se tornou subjetiva, uma expressão da experiência de cada um. Os deuses morreram. O mundo virou uma imagem, desenhada pelos humanos.

A impressão, que só se tornou mais forte com o passar dos séculos, era a de que tudo era possível. Sem os desmandos de uma inteligência superior, estávamos autorizados a viver da forma que queríamos. Nada era impossível, pois tudo dependia de nós. A realidade virou uma construção – e, como toda construção, podia ser derrubada e reconstruída caso o resultado não nos agradasse.

Essa liberação foi agradável, mas teve o seu preço. Se tudo depende de nós, então só podemos culpar a nós mesmos quando as coisas dão errado. Se não existe um sentido para a vida, viver se torna um passatempo inútil, uma longa espera entre o nascimento e a morte. Se tudo o que fazemos “dá na mesma”, não há razão para cada um não criar o inferno na terra.

Como pergunta Alette, personagem de The Banner Saga, se até os deuses estão mortos, por que nós precisamos continuar vivos?

Porque nós escolhemos viver

Tudo isso depende, claro, de estarmos certos sobre as coisas. Mas e se nós estivéssemos errados?

E se nosso controle sobre o mundo não fosse lá tão completo? E se, por mais que insistíssemos em ser donos do nosso próprio destino, nós ainda lutássemos contra o acaso, forças superiores, a natureza humana?

Quem pergunta é Yarpen Zigrin, amigo de Geralt de Rivia. No último livro da série The Witcher, ele nos diz:

“O progresso … irá iluminar a escuridão, pois é isso que o progresso faz … Cada vez mais haverá mais luz, e nós teremos cada vez menos medo do escuro e do mal que espreita nele. Talvez o dia chegará em que nós simplesmente pararemos de acreditar que alguma coisa está escondida na escuridão e nós daremos risada desse tipo de medo. Ele parecerá infantil, e nos trará vergonha! Mas sempre, sempre haverá escuridão. E o mal sempre estará esperando na escuridão com suas garras, presas e sangue. E os witchers sempre serão necessários.”

Thea é um jogo curioso, pois coloca a escolha nas nossas mãos. Em sua missão para restaurar o poder dos antigos deuses, o jogador é visitado por um velho misterioso. Segundo ele, talvez seja melhor deixá-los morrer.

thea old man

O ser humano – ele nos conta – não precisa de divindades, de magia e de criaturas fantásticas. Ele é inteligente, e pode criar suas próprias soluções. O que para os deuses é a escuridão, para nós pode ser a luz de uma nova era.

Viver submisso à certeza do passado, ou arriscar tudo construindo um futuro? É uma escolha difícil. Uma escolha, talvez, que todos nós tomamos em algum momento das nossas vidas. Por essa e por outras a fantasia é um gênero tão atemporal.

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A ‘Wild Hunt’ na música clássica https://www.finisgeekis.com/2015/09/24/a-wild-hunt-na-musica-classica/ https://www.finisgeekis.com/2015/09/24/a-wild-hunt-na-musica-classica/#respond Thu, 24 Sep 2015 18:37:30 +0000 http://finisgeekis.com/?p=740 no meu primeiro post nesse blog eu disse que o mais sensacional do universo geek é sua capacidade de agregar aquilo que está do lado de fora. Para a surpresa dos que rotulavam todos os videogames como “baixa cultura”, isso inclui as maiores obras-primas da humanidade.

No meu artigo sobre The Witcher, eu mencionei que a série é baseada na mitologia eslava, e que algumas de suas lendas já haviam servido de inspiração a compositores. A ‘Caçada Selvagem’, tropa de cavaleiros fantasmagóricos que Geralt enfrenta no homônimo The Wild Hunt, não é exceção. Há algo de muito badass em guerreiros voadores que roubam as almas das pessoas em tempos de guerra, e isto não escapou à atenção dos grandes mestres da música.

Se você já jogou ou pretende jogar The Wild Hunt e precisa de uma trilha sonora para entrar no clima (ou só quer relembrar a luta sensacional contra Imlerith), vai aqui uma pequena seleção.

Gurre Lieder, de Arnold Schoenberg

Gurre Lieder é uma peça monumental para coro e orquestra sobre uma história trágica de amor. O texto acompanha a paixão do rei Valdemar IV da Dinarmarca por Tove, a qual é eventualmente assassinada. Dramática como é, a história não podia deixar de chamar a atenção dos cavaleiros espectrais. Uma das canções da 3a parte soará familiar a todos os fãs do game da CD Projekt Red:

Salve, ó rei, na praia de Gurre!

Agora nós caçamos ao longo da ilha!

Holla!

Atirando flechas de arcos sem corda,

com olhos vazios e mãos esqueléticas,

Atingindo a imagem espectral do cervo,

De forma que o orvalho do bosque brote da ferida.

Holla! Os corvos do cadafalso nos seguem,

Sobre as copas das árvores trotam os cavalos,

Holla!

Então nós caçamos como era dito,

toda noite até o juízo final.

Estudo Trancendental N.8, ‘A Caçada Selvagem’, de Franz Liszt

Liszt é conhecido como um dos maiores pianistas de todos os tempos e adaptador de vários clássicos à música, de Fausto à Divina Comédia. Húngaro de nascença, ele também pagou seu tributo ao famoso mito eslavo. Um de seus Estudos Trancedentais é dedicado à Caçada Selvagem.

De minha parte, não sei o que é mais assustador: a força e velocidade da peça ou o rosto do intérprete, que parece ter feito um pacto com Eredin e seus tenentes.

O Franco Atirador, de Carl Maria von Weber

A ópera O Franco Atirador não é exatamente sobre a Caçada Selvagem, mas sobre um caçador que faz um pacto com o demônio para conseguir balas que nunca errassem o alvo. No entanto, seria uma heresia deixar o terror dos cavaleiros fantasmagóricos de fora de uma história macabra como essa.

Maria von Weber deve ter concordado, pois incluiu a aparição da Caçada em sua cena mais tensa. Em dado momento, o protagonista visita o Caçador Selvagem (na história, um disfarce para o demônio), e testemunha uma série de horrores, incluindo a tropa voadora.

Cenário de

Cenário de “O Franco Atirador” usado em uma apresentação de 1822

Maria von Weber tinha uma afinidade com a Caçada Selvagem, pois escreveu ainda outra peça sobre ela. A música, com seu forte tom marcial, acabou virando canção de marcha para os soldados prussianos nas Guerras Napoleônicas. Nada melhor para afugentar um inimigo que se comparar a um exército de mortos-vivos.

]]> https://www.finisgeekis.com/2015/09/24/a-wild-hunt-na-musica-classica/feed/ 0 740 ‘Liberdade de escolha’, ou como os video games nos enganam https://www.finisgeekis.com/2015/09/21/liberdade-de-escolha-ou-como-os-video-games-nos-enganam/ https://www.finisgeekis.com/2015/09/21/liberdade-de-escolha-ou-como-os-video-games-nos-enganam/#comments Mon, 21 Sep 2015 21:04:59 +0000 http://finisgeekis.com/?p=699 O mundo dos games é repleto de chavões. Dentre eles, pouco são mais usuais (e controversos) do que “liberdade de escolha”. Fãs de RPG, em particular, terão dificuldade em encontrar qualquer análise aprofundada de seu jogos favoritos que não esbarre na expressão ou em suas parceiras: “escolhas significativas”, “histórias customizáveis”, “narrativas ramificantes”, “agência”.

À primeira vista, parece que há uma demanda para que games se tornem playgrounds virtuais, ferramentas para que os jogadores brinquem de faz-de-conta e inventem as próprias histórias. Eu mesmo já me deparei com isso. Ano passado, após dar uma palestra sobre video games, ouvi um membro da plateia dizer que jogava para “ser ele mesmo”, com todas as opções e nuances do mundo real. Jogos que chegavam perto disto eram jogos bons.

Isso, é claro, à primeira vista. Basta estourar uma pipoca e observar as trocas de farpas entre profissionais da indústria para ver que nem entre desenvolvedores há um consenso sobre o que significa ser “livre” e “entrar na pele” das personagens. Pior: nem se essas duas coisas, ou qualquer outro dos chavões do primeiro parágrafo, têm necessariamente a ver um com o outro.

Em 2010, Daniel Erickson, diretor de roteiro da Bioware, soltou os cachorros sobre Final Fantasy XIII. Segundo ele, o game não era um RPG, e colocar um “J” na frente não enganaria ninguém:

Você não faz escolhas, você não cria uma personagem, você não vive a sua personagem… Eu não sei o que eles são – adventure games, talvez? Mas eles não são RPGs.

Não bastou nem dois anos para que o feitiço voltasse contra o feiticeiro. Em 2011, Dragon Age II, sequel da IP de sucesso da Bioware, foi malhada por incluir um protagonista não customizável e ter um enredo pouco reativo.

No ano seguinte, Mass Effect 3 acendeu a internet em chamas com uma das sequências finais mais controversas da história. A polêmica foi tão grande que uma versão “consertada”, ajustada aos interesses do público, foi lançada no mesmo ano. O episódio foi impactante a ponto de alguns terem sugerido que Half Life 3 custa a sair porque os desenvolvedores estariam com medo de uma reação similar por parte dos fãs.

Talvez haja algum fundo de verdade nos comentários de Erickson. Mesmo assim, ele deveria, nos dizeres de Bill Gates, ter arrumado o próprio quarto antes de tentar mudar o mundo. É verdade que JRPGs não oferecem o mesmo tipo de “liberdade” de que a Bioware se gaba. Mas até que ponto o modelo “ocidental”, “sem o J” de Erickson vive às suas próprias expectativas?

Para responder a essa pergunta, é necessário voltar  no tempo.

‘Interatividade’…. até quando interessa

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Nos anos 1980, quando computadores eram uma novidade e a maioria das pessoas sequer sabia o que eram videogames, Brenda Laurel propôs uma ideia pioneira. Segundo ela, softwares tinham muito em comum com o teatro. Tal como as peças, eles eram compostos por uma série de elementos que deveriam funcionar em conjunto, do código à interface. Para que tudo opere como esperado, é necessário que esses elementos estejam orientados por um projeto geral do autor, e que esse projeto seja traduzido para a dimensão material da obra. Se o criador pesar a barra em seu plano, a ideia parecerá inacabada ou forçada. Se, por outro lado, ele estiver escondido demais, o público encarará o que se passa sem fazer ideia do que significa.

Deve haver uma obra de arte escondida aí...

Deve haver uma obra de arte escondida aí…

Brenda Laurel influenciou teóricos e designers, que se basearam nesses princípios para criar experiências em que as ações dos jogadores tivessem maior impacto. O que eles perceberam foi que games com escolhas relevantes são justamente aqueles em que essa balança está em equilíbrio.

Se ela pende para o lado do autor, chegamos no famoso railroading: a sensação de sermos “carregados” para finais que não necessariamente desejamos. Se ela pende para o lado material, temos conteúdo filler, que parece estar no jogo apenas para gerar volume.

Em Dragon Age II, templários e magos entram em guerra e destroem Kirkwall, independente dos esforços do protagonista para impedi-los. A vontade dos autores de contar sua história e preparar terreno para o jogo seguinte falou mais alto que seu desejo de deixar as rédeas nas mãos dos jogadores.  Em Mass Effect 3, o plano de Casey Hudson e Mark Walters de autorar uma ficção científica “cabeça” pesou além da conta sobre uma série que se propunha a ser a versão digital de um livro de “escolha sua aventura”.

choose your own

Por outro lado, as caças aos shards, mosaicos, garrafas e quebra-cabeças de Dragon Age: Inquisition parecem filler porque não conseguimos ver um sentido geral por trás delas. O problema não está na natureza das quests. Os audio diaries de Bioshock são essenciais à narrativa, e nos trazem enorme satisfação ao serem encontrados. Ambas são “caças ao tesouro”: uma pecou pelo excesso; a outra achou a medida certa.

Isso mostra que, contrário à sabedoria popular, mais nem sempre é melhor. Se não está claro como as decisões se relacionam com a ideia central,  há alguma coisa de errado com estas decisões, e a impressão que elas passarão com certeza não será de liberdade.

Eu insisto em “impressão’. Folheiem um guia de estratégia de um jogo que gostam e verão que, na maioria das vezes, o potencial de escolha é muito pequeno. Se os desenvolvedores são generosos, vocês terão alguns finais diferentes. Na maioria das vezes, uma dezena de variações dos mesmos finais, ou um punhado de escolhas significativas ao longo de 50h de aventuras. Levante a mão quem nunca jogou um grande RPG, voltou do começo para fazer uma aventura completamente nova e descobriu que certas coisas não mudariam.

A questão, portanto, não é de prometer liberdade infinita, mas de fazer a pouca liberdade de que os jogadores dispõem parecer aceitável. Há uma série de truques para isso, alguns dos quais são mais antigos que os próprios games. Abaixo vão três dos meus favoritos.

Esconder o plano geral dos jogadores

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Esse é um ponto que mestres de RPG já conhecem de cor e salteado. Os jogadores não precisam saber que a Cidade A que eles visitaram é exatamente igual à Cidade B que eles decidiram não conhecer. Tampouco precisam, após perderem os cabelos derrotando um boss, saber que você os deixaria ganhar de qualquer jeito.

Isso é possível porque há dados que são escondidos dos jogadores. Sem ter mapas ou descrições das cidades, eles não têm como saber se o mestre os está conduzindo com uma guia. Sem informações sobre pontos de vida, habilidade ou classe de armadura dos montros, eles não fazem a menor ideia do tamanho dos desafios que encontram.

Um mestre astuto consegue engambelar seu grupo por sessões a fio sem que ninguém perceba. O resultado é uma história em que as regras estão lá apenas como referência e em que o mestre decide, como o “líder” de um faz-de-conta entre crianças, quem viveu e quem morreu.

Antes que vocês abram aquele sorrisinho maldoso e enviem esse texto para aquele seu colega que faz isso, saibam que essa tática é tão eficiente, popular e desejada que virou dica oficial no Livro do Mestre da 4a edição de D&D:

Se você ver que as personagens estão obviamente dominadas em um encontro, você pode:

  • Dar às personagens uma rota de fuga
  • Fazer escolhas ruins de propósito para os monstros
  • “Esquecer” de rolar o dado para ver se monstros recarregam seus poderes
  • Inventar um motivo dentro da história para os monstros abandonarem a luta
  • Deixar os monstros ganharem, mas deixar as personagens vivas por algum motivo.

(…)

[Se um encontro estiver fácil demais], você pode aumentar a dificuldade na medida em que as coisas andam. Traga reforços. Dê ao vilão uma habilidade nova da qual os jogadores não sabiam. 

Em videogames isso é ainda mais crucial do que em jogos de tabuleiro. Nenhum software, por mais complexo que seja, conseguirá ser tão rico quanto a imaginação.

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Não, nem Daggerfall

A diferença entre um jogo bom e ruim muitas vezes jaz em uma coisa tão simples como saber o que esconder e por quanto tempo. Em Heavy Rain, escolhas erradas em alguns momentos-chave levam à morte das personagens. Porém, ao anunciar que “ninguém está à salvo” e que suas decisões podem condenar quase todo mundo, os desenvolvedores criam um véu de tensão que faz até os quicktime events mais banais parecerem significativos.

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Caro David Cage: só não exagere na dose. ALGUMAS decisões reais são necessárias, caso contrário perde a graça

Na maioria das vezes, isso é feito de forma sutil. Vários jogos, a exemplo do mestre de RPG que citei, escondem informações cruciais dos inimigos, de fraquezas a pontos de vida. Quando bem feito, isso torna o jogo muito mais difícil e imprevisível, exigindo que pensemos duas vezes antes de chutar o menor dos goblins.

É o famoso “tigre de papel”. Após alguns playthroughs, pode até ser que deduzamos a lógica da coisa e encontremos um “caminho ótimo” para chegar ao final. Com o tempo, nós logo veremos que a maior parte das ameaças é pífia se encarada do jeito certo ou no nível ideal. Na primeira vez, no entanto, cada mísera escolha será tomada com o suor a escorrer da testa.

Trilhas de migalhas

Fonte

Entregar a história de mão beijada, seja via cutscenes ou diálogos expositivos, não é a coisa mais excitante do mundo. Para contornar este problema, designers muitas vezes “quebram” as informações relevantes da história e as espalham pelo mundo do jogo.

Esses resquícios podem ser qualquer coisa: ruínas, campos de batalha, livros ou mensagens escritas, cadáveres, rumores sussurados por NPCs, gravações ou mesmo visões fantasmagóricas. Nenhum conta uma história completa, apenas uma “peça” que, juntada as outras, ganha um sentido.

Se a diferença parece minúscula, na prática ela é gritante. Aqui, por mais linear que o enredo seja, é sempre do jogador o papel de colocar as coisas em ordem. Rondar cada centímetro de Columbia em busca de voxophones nos dá um sentimento muito maior de agência do que escutar uma narração em off por vinte minutos.

Para aqueles de vocês que curtem um palavreado técnico, o nome disso é paradigma indiciário. O termo foi cunhado pelo historiador Carlo Guinzburg para denotar a capacidade de reconstruir um todo a partir de traços. É o princípio do romance policial. A diferença é que é o jogador, implicita ou explicitamente, que veste a boina do Sherlock Holmes.

Para Guinzburg, trata-se de uma habilidade cultivada desde os caçadores da idade da pedra. Na perseguição por pegadas, sangue e outros rastros de animais, aprendemos a narrar o que havia acontecido com eles e para onde eles iriam. De uma atividade de sobrevivência surgiu nosso dom de contar histórias.

Geralt, o romancista

Geralt, o prosador

Justamente por ser tão básica e fácil de usar essa técnica pode ser encontrada em praticamente todo game narrativo. Ela está presente no prólogo de The Last of Us, em que exploramos a casa de Joel e descobrimos quem ele é, que tipo de relação tem com a filha e o que está acontecendo com o mundo. Ela é o elemento crucial em Bioshock e em adventure games como Gone Home, cujas histórias dependem da interação com objetos. Ela aparece de maneira literal nos contratos de monstros de Witcher 3 e em todos os jogos de investigação. Não que precisemos ir tão longe: nós a vemos em virtualmente todos os dungeons de Skyrim, por meio de notas, cadáveres estrategicamente posicionados e NPCs tagarelas.

Shavari's_Note

Aquela hora em que nos damos conta de que Skyrim tem um índice de analfabetismo menor do que o do Brasil

Mundos dinâmicos

 

Em 2011, Witcher 2 fez os queixos da crítica caírem ao incluir uma decisão tão, mas tão relevante que mudava completamente o segundo ato do jogo. Para ver tudo o que o game tinha a oferecer, não havia saída a não ser jogá-lo (quase) inteiramente uma segunda vez.

A verdadeira narrativa ramificante é um sonho de muitos gamers, mas quem já tentou colocar a ideia no papel– ou apenas já brincou no Aurora Toolset de Neverwinter Nights – sabe o pesadelo que é pô-la em prática.

aurora toolset

Meus olhos doem…

Se cada escolha “mudasse para sempre o universo”, como prometem as contracapas de vários games, jogos seriam infinitos e impagáveis. E isso sem contar as pressões editoriais. Como o escritor da Bioware Patrick Weekes disse num depoimento três anos atrás, o railroading às vezes é uma exigência do escritório de cima. Em um mundo de gamers que só jogam um título uma única vez ou nem chegam até o final e de empresas como a EA que vivem de nivelar por baixo, impedir o jogador de acessar conteúdo (como vez Witcher 2) nem sempre é aceitável.

Quem acompanha a série Elder Scrolls há mais de uma década sabe a pena que isso é. Em Morrowind, as diferentes facções do jogo têm suas rivais, e para prosseguir em suas quests é necessário destrui-las. Deseja se tornar grão-mestre da Guilda dos Magos? Prepara-se para caçar agentes Telvanni. Quer liderar a Guilda dos Guerreiros? Para tanto, é necessário ou eliminar a Guilda dos Ladrões ou organizar um motim e tornar-se mestre à força. Seja como for, o resultado é dramático: personagens-chave morrerão e, com elas, quests, diálogos e oportunidades específicas. Compare isso com Skyrim, em que um único personagem pode se unir a todas as facções, quest-givers são imortais e os impactos de suas ações na postura de NPCs são quase imperceptíveis.

A solução é contar com pequenas escolhas espalhadas ao longo do jogo. Elas não precisam ser relevantes ou mesmo associadas à trama principal. Pelo mero fato de estarem lá – e em grande número – passam a sensação de que o protagonista causou uma diferença no mundo à sua volta. Jogos não são apenas histórias, mas lugares virtuais que habitamos por algum tempo. Deixar nossas marcas nesses lugares muitas vezes é mais importante do que ver um slideshow diferente no epílogo da jornada.

Isso é o que Mass Effect, para a infelicidade de seus criadores, fez bem demais. O terceiro jogo da série contou com mais de 1000 pontos de variação com base em decisões feitas nos dois anteriores. A maioria dizia respeito a side quests formulaicas, easter eggs ou fanservice, mas não importa. O jogo passou a sensação de que as ações de Shepard, por menores que fossem, mudariam a vida das pessoas a sua volta. Quando o mesmo não aconteceu com as “grandes” decisões – e, nestas dimensões, não tinha mesmo como acontecer – a internet pegou fogo.

Para alguns, o que separa um grande criador de um medíocre é a capacidade de se virar com pouco. Dê a um chef tomate, azeite, farinha, água e sal e ele fará um banquete a ser lembrado. Coloque um leigo em uma cozinha industrial e ele queimará sua torta do mesmo jeito. Não se trata de inspiração divina ou talento nato, mas da ideia de que bons criadores conhecem seus limites e sabem fazer o melhor sem pisar fora deles.

Se isso é verdade, sem dúvida se aplica aos games também. Os recursos e possibilidades para criar um jogo dos sonhos sempre serão limitados. A marca da experiência inesquecível é a lábia de seus criadores em  “mascararem” as costuras de seus universos de faz-de-conta.

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5 motivos para você ler os livros de ‘The Witcher’ https://www.finisgeekis.com/2015/08/17/5-motivos-para-voce-ler-os-livros-de-the-witcher/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/17/5-motivos-para-voce-ler-os-livros-de-the-witcher/#comments Mon, 17 Aug 2015 20:07:14 +0000 http://finisgeekis.com/?p=562

The Witcher 3: The Wild Hunt colocou a saga de Geralt de Rivia no mapa de um jeito que seus dois predecessores na franquia nunca imaginaram. O game é um dos campeões de vendas do ano e um sério candidato aos prêmios de Game of the Year. Como geralmente acontece, o sucesso também deu visibilidade para seu material de origem: a premiada série de livros de Andrzej Sapkowski.

Para a maioria dos gamers, essa é uma informação para ouvir e esquecer. No senso comum, games e literatura não combinam um com outro, e o resultado da mistura geralmente é sofrível. A vida é curta demais para perder tempo com romances mal escritos.

Abaixo, faço minha tentativa para mudar o senso comum e convencê-los de que The Witcher é uma leitura de tirar o fôlego.

1- Os livros NÃO SÃO spin-offs dos jogos

Acho que não dá para falar sobre os livros do Witcher sem começar por isso. Já há algum tempo jogos e séries de fantasia têm faturado com romances baseados em seus universos. Estas histórias vão do divertido ao completamente ilegível. Às vezes, elas são escritas pelos próprios roteiristas dos games. Às vezes, são obra de uma legião de ghost writerssob um nome fantasia. Nos piores casos, são tão horríveis que mesmo fãs desse tipo de literatura queimam exemplares e colocam o vídeo no YouTube.

De qualquer forma, são aqueles livros impressos em papel jornal com capas coloridas quase idênticas, que a maioria das livrarias segrega em um lugar ‘especial’. Há um juízo de que eles não são livros ‘de verdade’; apenas manobras de marketing para “ordenhar a vaca”: tirar mais dinheiro de uma franquia de sucesso.

The Witcher não é um desses livros.

Aqui, acho que temos um exemplo raro do caso de obras que acabam prejudicadas pela fama. The Witcher começou com uma série de contos, originalmente publicados pela revista polonesa Fantastyka em 1986. A primeira edição saiu em 1992, dando início a uma franquia de sucesso que hoje conta com oito volumes, muitos já traduzidos ao português. Andrzej Sapkoswki não joga nem tem interesse algum em jogar videogames. Isto nunca fez parte de seu mundo.

Sapkowski também não é apenas um escritor de fantasia. O autor, que hoje está com 67 anos (a mesma idade de George R.R. Martin), já escreveu uma série de romances históricos, incluindo um ciclo sobre as Guerras Hussitas no século XV e mesmo um romance sobre a invasão soviética do Afeganistão.

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Para nós, do extremo ocidente, esse velhinho criativo é apenas um nome na tela dos créditos do game da CD Projekt Red. No leste europeu, no entanto, ele figura entre os best-sellers mais elogiados pela crítica. Umarevista russa chegou inclusive a comparar seu mais famoso personagem, Geralt de Rivia, com Pierre Bezhukov, protagonista de Guerra e Paz

2- Eles são uma low fantasy para dar inveja a Game of Thrones

Game of Thrones tomou o mundo de assalto graças a seu enredo complexo de intrigas, cliffhangers e muita violência. Atualmente, a obra de George R.R. Martin é sem dúvida o exemplo mais influente de low fantasy, um estilo mais sóbrio e menos colorido da fantasia medieval popularizada por Dungeons & Dragons. Nela, o mágico é apenas um “tempero” para adoçar uma trama que, para todos os fins, poderia facilmente se passar no mundo real.

Martin não é o único a dominar o estilo. Sapkowski, seu conterrâneo polonês, buscou um efeito semelhante com a série The Witcher. Os livros têm um ritmo elegante, que não perde tempo com diálogo expositivo e descrições intermináveis de lugares exóticos. Seu foco não são monstros, sortilégios e guerreiros com espada, mas os elementos fundamentais que os envolvem: medo, intolerância, incerteza, sofrimento. Para além de seu verniz eslavo fantástico, The Witcher nos conta o que acontece com indivíduos em tempos de fanatismo, guerra e perda.

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O estilo de Sapkowski é um pouco diferente do de Martin. Ele é menos cínico (ou talvez só mais contemplativo) em relação à crueldade do mundo. Em suas histórias não há personagens morrendo às dúzias ou execuções chocantes. Sua prosa é seca e direta ao ponto, e seus personagens mantém um forte senso de justiça.

O mundo de The Witcher é sombrio, mas Sapkowski nos introduz a pessoas que se fiam a todo custo à esperança. Geralt, Yennefer, Triss e Ciri são almas boas, cuja ambição, no fundo, é a de encontrar um lugar para chamar de seu.

Nisso, Sapkowski é um contraponto interessante a George R.R. Martin e uma lufada de ar fresco àqueles que já leram e releram Game of Thronese não sabem mais o que fazer da vida. Intrigas da corte, assassinatos políticos, estupros e massacres estão presentes no mundo do Witcher, mas de forma apenas secundária. Geralt e seus companheiros não têm o menor respeito por tronos e jogos de poder. Para eles, guerras são estúpidas, sangrentas e arbitrárias; desculpas usadas por poderosos para matar inocentes por causas inúteis.

Não há fim que justifique os meios, nem “males menores” que perdoem os “males maiores”. O mal é sempre o mal e precisa ser evitado. Como o witcher conseguirá fazer isso num mundo que é maldade incarnada é um mais sensacionais triunfos dos livros.

3- Eles dialogam com mitologias e contos de fada como Neil Gaiman em sua melhor forma

Rusalka, por Ivan Bilibin (1934)
Rusalka, por Ivan Bilibin (1934)

Criar uma história requer talento, mas criar uma história reconhecendo toda uma tradição literária é trabalho de um mestre. Para muitos, esse é o diferencial do britânico Neil Gaiman. Em livros modernos e acessíveis, ele nos leva de volta a milênios de literatura e narrativas orais, da mitologia egípcia às lendas urbanas dos nossos dias, das histórias de Heródoto aos contos de fada.

A prosa de Sapkowski é menos exuberante do que a de Gaiman, e sua intenção está menos em seduzir o leitor com exotismo do que em salpicar o terreno com assombrações e monstros horríveis. Aqueles que leram Entes Queridos sabem do que estou falando. Por mais assutadoras que as Fúrias de Sandman sejam, elas mal se comparam ao terror das Crones de Crookback Bog em The Wild Hunt.

Crones

Apesar disso, é impossível não notar as semelhanças. Tal como a obra de Gaiman, o leitor astuto logo notará que os livros de Sapkowski são uma colcha de retalhos de histórias clássicas – em especial, contos de fada.

Como eu disse acima, The Witcher começou não como um romance, mas como uma série de histórias curtas. Embora sua fórmula variasse, elas sempre envolviam algum epísodio sobrenatural, que cedo ou tarde atraía o famoso Geralt de Rivia. Na maioria das vezes, ele age como um árbitro, não um caçador de monstros, como seu título sugere.

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“Let it go!”

Um Fragmento de Gelo é baseado no conto A Rainha do Gelo de Hans Andersen, a inspiração para Frozen. A “rainha”, no entanto, não é Elsa, mas Yennefer de Vengerberg, e o “gelo” é a destruição da Wild Hunt, a tropa de cavaleiros fantasmagóricos que assola o mundo em tempos de guerra.

O Mal Menor reconta a história de Branca de Neve, aqui uma bandida  perseguida por um “caçador” que é ninguém menos que o witcher em pessoa. Um Pequeno Sacrifício, por sua vez, é uma das poucas obras modernas que conheço a fazer referência à versão original de A Pequena Sereia. Nela, Ariel se transformará em espuma caso não consiga conquistar o coração de seu príncipe.

Seu tributo à mitologia não é menos impressionante, e aqui não há Neil Gaiman que aguente o tranco. Pois…

 

4- Você conhecerá uma mitologia completamente nova. 

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The Witcher pode contar com elfos e anões aqui e acolá, mas seu cenário está longe de ser mais um derivado de O Senhor dos Anéis. Antes, sua principal fonte de inspiração é a mitologia eslava.

A Wild Hunt, a tropa de cavaleiros-fantasma que persegue Geralt? Trata-se de uma história comum ao folclore de vários países do centro e nordeste europeu. Eis uma pintura do século XIX, do norueguês Peter Nicolai Aibo:

wild hunt

E uma gravura da mesma época, dessa vez da Alemanha:

Wodan's_wilde_Jagd_by_F._W._Heine

Os monstros não ficam para traz. Leshys (nos games, Leshens) são criaturas da floresta que comandavam animais e sequestravam crianças. Chort é um nome popular para o demônio em países eslavos. E a noonwraith, também chamada de “senhora do meio-dia”, é um popular espírito que rondava os campos no calor infernal, atacando quem encontrasse (para alguns, uma explicação primitiva para os desmaios por insolação).

Poludnitsa

A noonwraith é uma personagem folclórica tão famosa que até serviu de base para o poema sinfônico “A Bruxa do Meio-Dia” do compositor checho Antonín Dvorák:

Dvorák não parou por aí e também compôs uma canção sobre a rusalka, ninfa d’água que é citada a torto e a direito nos livros de Sapkowski.

Música clássica não é a primeira coisa que vem à mente da maioria ao pensar em fantasia e caçadores de monstros. Mas obras como essa mostram há quanto tempo essas imagens estão presentes no imaginário e como The Witcher é um sopro de criatividade em uma mídia atolada em pastiches de Tolkien.

 

5- Os games estão lotados de referências aos livros.

Você já se perguntou quem é Esterad Thyssen? Eithné? Francesca Findabair?

Se você jogou The Wild Hunt, deve ter encontrado esses nomes entre as cartas de gwent, o “Magic the Gathering” virtual jogado no game. Eles, e tantos outros, são personagens dos livros de Sapkowski.

gwent cards

Essas pequenas menções não são as únicas. A trilogia da CD Projekt Red pode ser perfeitamente apreciada sozinha, mas a familiaridade com os livros eleva as coisas a um novo patamar. Várias quests e achievements (Lilac and Gooseberries, Something More, Something Ends, Something Begins) têm seus nomes inspirados em contos ou capítulos dos romances de Sapkowski. Outras são do começo ao fim recriações de episódios narrados nos livros. Outras, ainda, são desfechos, conclusões elaboradas para conflitos deixados em aberto pelo material de origem.

Não se trata apenas de uma “adaptação”. Os games de The Witcher são um tributo, uma homenagem a um escritor feito por um grupo de poloneses que, quando jovens, cresceram com seus personagens. Ver tal paixão expressa no jogo é simplesmente sensacional e vai ao encontro do TOC de gamers complecionistas, que precisam esgotar tudo o que um título tem a oferecer para se sentirem satisfeitos.

Eu (e creio que falo pela maioria dos brasileiros) não tive o privilégio de crescer com Geralt de Rivia. Porém, mesmo olhando de fora, apreciando o resultado quase vinte anos depois, não posso deixar de concordar. The Witcher é uma série digna de tal homenagem.

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4 dicas para você perder o medo de jogos muito longos https://www.finisgeekis.com/2015/07/20/4-dicas-para-voce-perder-o-medo-de-jogos-muito-longos/ https://www.finisgeekis.com/2015/07/20/4-dicas-para-voce-perder-o-medo-de-jogos-muito-longos/#respond Mon, 20 Jul 2015 23:57:02 +0000 http://finisgeekis.com/?p=487 Todo mundo conhece a história.  O sujeito passou a infância ou a adolescência vidrado em games. Virava noites com Zelda, Final Fantasy ou Baldur’s Gate. Chegou a todos os finais dos Fallout 1 e 2. Lembra de Ald’ruhn e Balmora, cidades de Morrowind, mais do que da casa em que passou a infância. Aí perguntamos: “E hoje, o que você anda jogando?” E a resposta: “Não dá mais. Hoje, só jogos curtos”.

Comigo foi assim semana passada. Em uma conversa recente, ouvi um colega dizer que investiu U$ 260,00 no kickstarter do Shenmue 3. Disse que chorou ao ver o anúncio na E3. Perguntei em que plataforma ele iria jogar; ele disse o PS4. Perguntei se ele tinha um PS4; ele disse que compraria só para jogar Shenmue. Eis que meu radar de gamer hardcore começou a apitar.

Lancei então a pergunta: e o Final Fantasy VII? O que achavam do remake?

Nesse ponto, o tom mudou. Outro colega disse: “Jogava quando era moleque. Hoje em dia é impossível.” Parou de jogar videogames? Não, jogava ainda, só não mais jogos longos.

Quando os tempos eram outros

Quando os tempos eram outros

A situação é compreensível. Segundo o HowLongtoBeat, site que cataloga médias de tempo que os gamers levam para terminar seus jogos, FFVII demanda alguma coisa entre 30h e 70h para ser terminado. E isso contanto apenas a quest principal: um complecionista pode rodar de 60h a absurdas 300h dependendo de qual for seu ritmo de jogo.

O game não é um ponto fora da curva. Zelda: Ocarina do Tempo podia chegar a 50h (supondo que você não ficasse travado em um dungeon por dias a fio, como acontecia comigo o tempo todo). Secret of Mana, o clássico de SNES, girava em torno de 30h a 70h caso você quisesse esgotá-lo. A dobradinha Baldur’s Gate 1 e 2 dificilmente saía por menos de 80h para a quest principal ou 200h contando missões secundárias. Se quiser colocar algum Elder Scrolls na lista, prepare-se: explorar tudo o que estes games têm a oferecer pode levar mais de 1000h.

Por jogo

Por jogo

Não é à toa que muitos abriram mão desse tipo de game em troca de títulos multiplayer, de pequeno porte ou vazios do ponto de vista narrativo. Aqueles que criticam FIFA e GTA como “diversão de ignorantes” cometem uma grande injustiça. Nos dias de hoje, quem tem 100h para gastar num jogo?

Por incrível que pareça, muita gente. É questão de saber usar bem o tempo, preparar-se para o desafio e – é claro – estar disposto a embarcar em jornadas virtuais que durem meses.

Abaixo, passarei algumas dicas para aqueles que sentem saudades das experiências digitais da juventude, estão dispostos a encarar o desafio, mas sentem dificuldade em voltar à forma.

1. Separe o relaxante do cansativo e organize sua agenda de acordo

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O que sempre me espanta na maioria dos gamers “enferrujados” é que, ao mesmo tempo em que dizem que não têm tempo para jogos longos, eu os vejo a torto e a direito fazendo maratonas de séries de TV, virando a noite com reality shows ou passando horas no vaso navegando no 9gag. Por algum motivo, videogames parecem “pesar” mais do que todas essas outras atividades.

Por quê?

Games são vistos (não sem razão, diga-se de passagem) como entretenimento que exercita o cérebro. Enquanto que a reprise de um programa favorito nos permite deixar a cabeça no “automático”, a concentração, multi-tasking e perícia exigida pelos jogos nos obriga a ficar alertas. Depois de um dia cansativo, ninguém quer desperdicár as horas de descanso com mais trabalho.  Correto?

Em parte. Desenvolvedores também são gente, e sabem que às vezes não queremos nada além de cair no sofá e ligar o protetor de tela da vida por algumas horas. Por esta exata razão, muitos games são feitos com isso em mente. Por mais “adulto”, “sério” e “complexo” que um título seja, ele quase sempre vai ter um zilhão de atividades meniais, pensadas sob medida para esses momentos do dia em que queremos ‘desligar’.

Mass Effect ganhou os louros da crítica por sua história comovente. Mas é bom lembrar que a maior parte do jogo, quantitativamente falando, se passa viajando à toa pela galáxia, coletando minerais ou escaneando planetas. Os jogos da Rockstar têm momentos de grande tensão, mas nada nos impede de dirigir à esmo ouvindo o rádio de nosso carro virtual. E em Skyrim, para cada dragão que matamos há quilômetros de montanhas arborizadas com florzinhas para coletarmos.

Essas são atividades relaxantes, prazeirosas e que exigem pouco do cérebro. Podem ser muito mais legais (e esteticamente mais agradáveis) do que rever o mesmo gif de gato pela octagésima vez. Como cereja do bolo, elas cumprem uma função prática.  Fetch quests, por exemplo, existem em quase todos os jogos e geralmente dão algum benefício (seja em experiência, itens ou recursos) que pode fazer a diferença mais para a frente.

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Não fosse o bastante, essas atividades simples “treinam” o jogador para os momentos mais importantes do jogo, ajudando em outro grande porém: a dificuldade. Dirigir à esmo em GTA nos faz, com o tempo, memorizar o mapa das cidades, algo essencial para perseguições. O minigame de pugilismo do Witcher 3, muito mais difícil que as batalhas “normais”, diga-se de passagem, treina reflexos que fazem do combate bem mais tranquilo.

Mais: jogos podem ter 70h de duração, mas boa parte das quests têm começo, meio e fim e podem ser completadas em menos de uma hora. No tempo que leva para assistir a um episódio de CSI: Miami dá para liberar uma ruína Dwemer em Skyrim ou pegar o troféu de uma arachas no Witcher.

Morre logo que tenho de tomar banho em 20min

Caia dura que eu tenho que preparar o jantar

E quanto às missões principais? Os momentos de decisões sem volta, de perícia e estratégia? As boss fights? Estes deixamos para os fim de semana livres, férias e feriados; para os momentos em que realmente temos horas à fio livres para fazer o que quisermos e curtir a experiência sem culpa. Main quests de games geralmente fluem bem e são, no conjunto,  mais curtas que o total das atividades secundárias. Cuidando do conteúdo de “enchimento” ao longo da “semana útil”, o que resta da experiência pode ser terminado em poucos dias.

2. Crie um diário de campanha

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Essa é uma dica que eu dava para os meus jogadores quando mestrava RPG de mesa. Na adolescência, quando não fazemos nada da vida, é fácil jogar com frequência. Já depois de envelhecermos não é incomum passarmos semanas sem tocar no console ou PC.

A consequência mais óbvia é “enferrujarmos” e perdemos a familiaridade com o sistema ou com os controles. Jogos complexos, que requerem reflexos ou memorização, são os mais afetados.  Nisso, a rotina do item anterior ajuda em muito. Combinada com uma dificuldade mais baixa (ao menos para o período de “aclimatação”) isto deixa de ser um problema.

No entanto, é muito provável que perdamos também qualquer ideia do que acontecia no jogo até aquele momento. Era o que acontecia nos meus encontros de RPG: apesar das pessoas guardarem uma noção básica da história, os detalhes, sutilezas e atmosfera eram esquecidos. Um jogo narrativo, destilado deste jeito, perde toda a graça.

É aqui que entram os diários de campanha. Como todo diário, a ideia é que seja uma récita do que aconteceu de importante até aquele momento. Ele pode ser feito dia após dia, semana após semana, ou antes de qualquer pausa significativa. Tudo é válido: o nome e identidade das personagens, os itens mais utilizados, os controles para as manobras de maior sucesso, desabafos. Para ficar mais interessante, ele pode ser “multimídia”, incluíndo imagens, screenshots, achievements e outras coisas mais.

Diários de campanha podem virar passatempos em si. Eles são muito populares em games de estratégia. Alguns fórums têm inclusive sessões específicas para os AARs (After Action Reports), em que um jogador narra sua jornada e os demais comentam.

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Independente do nível de envolvimento, a estratégia funciona. Um bom diário de campanha é capaz de localizá-lo na história que deixou para traz em uma única lida. Ele não precisa ser feito enquanto jogamos; antes, é útil deixá-lo para as horas perdidas do dia, para as filas de banco e para os chamados da natureza. Aplicativos como o Evernote permitem que você exporte o documento para o computador, caso queira retrabalhá-lo depois.

3. Você não é obrigado a jogar até o fim, mas vale a pena se esforçar para chegar lá

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No final das contas, quando falamos de “jogos longos” single player estamos falando de dois tipos de experiência. De um lado, temos os títulos abertos, expansivos, que prezam pelo gameplay emergente e trocam profundidade por quantidade. Elder Scrolls, e as dezenas de séries que chupinharam seu sucesso, são os maiores exemplos.

Esses jogos, quando bem feitos, são lindos, viciantes e repetitivos. A ideia não é vender uma história, mas a sensação de se estar em outro lugar. Se fôssemos fazer um paralelo com o mundo analógico, eles seriam os passeios no parque ou no museu. Você não precisa (e nem deve) fazer ou ver tudo. Foque nas coisas que lhe agradam e, quando cansar, vá embora.

Acho que por hoje já deu

Acho que por hoje já deu

Do outro lado, no entanto, há os jogos que são grandes por que realmente são uma montanha-russa de emoções e esperam se tornar parte de sua vida. São os JRPGs à la Final Fantasy, os jogos da Bioware, com suas quase 100.000 palavras de diálogo, as sandboxes da Rockstar, que têm de enredo quase tanto quanto oferecem de filler, e com qualidade semelhante.

Oh, but you will. You will be responsible

“Oh, but you will. You will be responsible”

Para esses jogos, não adianta fazer um piquenique e ir embora. Eles nos encorajam a comprar o desafio de Clarice Lispector, em seu conto Felicidade Clandestina. Nele, uma garota fica encantada ao ganhar um livro do Monteiro Lobato porque ele é enorme: ela sente que, mais do que lê-lo, vai viver parte da sua vida com ele. Aqueles que já passaram manhãs preguiçosas na escola imaginando as aventuras digitais que viveriam quando chegassem em casa, ou que sofreram no trabalho pensando se destruir o genophage foi mesmo a escolha certa sabem do que estou falando. Jogos longos vivem conosco por um tempo.

Se os primeiros, no mundo real, seriam uma caminhada, esses jogos são as séries de TV. Seus enredos são rebuscados, episódicos e cativantes, com muitos altos e baixos e suspense. Se você for parar para pensar, o tempo que gastamos nelas é mais ou menos o mesmo. Game of Thrones, de cabo a rabo, toma dos espectadores 50h; Breaking Bad, pouco mais de 60h. The Sopranos chega a 86h, e Mad Men passa da marca das 90h. Já se você quiser assistir Grey’s Anatomy em uma tacada, tenho más notícias: a série tem mais de 240h e ainda não acabou.

Ao contrário de sitcons e procedurais de polícia, essas séries não foram feitas para serem vistas “em migalhas”. É a especulação, a ânsia pelo final, a empatia a longo prazo com os personagens que fazem a alma do negócio. Longos games narrativos são a mesma coisa. Terminá-los não é fácil, mas o prêmio, como diria Jacob Taylor, vale cada gota de suor.

Jonas Mattson, um dos criadores de Witcher 3, disse isso com todas as letras em uma entrevista anos atrás:

Eu sou um fã de Skyrim, vários de nós amam Skyrim. Mas enquanto eles estão fazendo a coisa deles, como mundo aberto, pular e correr pelos cantos casualmente, nós estamos fazendo um pouco diferente. Nós estamos investidos pesado em narrativa e mundo aberto. Isto não foi realmente feito antes e nós queremos provar que pode ser feito.”

Agora, se mesmo com toda a boa vontade e organização do mundo terminar um aventura de 100h estiver ainda impossível, acalme-se. Afinal de contas, lembre-se de que…

4. Chegar ao final não é sinônimo de “complecionismo”

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Na minha infância, jogo era algo que se “zerava”. A gíria vem das máquinas de pinball, cujos marcadores de ponto tinham 6 ou 7 dígitos e voltavam para o zero quando chegavam a um número muito grande. Hoje, fala-se em “platinar”, oriundo dos achievements de nível platina, obtidos ao cumprir todos os outros de um dado título. O sentido é o mesmo: há um limite de coisas para se fazer em um jogo. Para “terminá-lo”, é preciso deixar tudo devidamente feito.

Assim pensa o “complecionista”. É uma forma incrível e desafiadora de se encarar o game, desde que se tenha muita paciência e tempo de sobra. Exatamente o contrário do que a maioria dos adultos pode dizer que têm. E não há nada de errado nisso.

Então né...

Agora volte ao mapa do começo desse post

Se você é daqueles que se desanima ao saber que está deixando coisas para trás, saiba que não é preciso ser um complecionista para curtir um jogo longo até o fim. Não porque “somos humanos e ninguém é perfeito” ou qualquer outra bobagem do tipo. Mas porque boa parte do conteúdo em jogos está lá só para dar volume.

Mass Effect tem missões para se coletar minerais e relíquias na superfície de planetas, mas o número destes recursos no jogo é muito maior do que o necessário para que as completemos. Na maioria dos RPGs, o ganho monetário é tão grande que se torna redundante após certo ponto: as recompensas, tesouros e jóias encantadas perdem todo o sentido. Já certos jogos têm o level cap tão baixo que pode ser atingido antes do final da experiência. Após isto, completar missões vira ‘esporte’: não há mais nenhum ganho concreto.

Não perca seu tempo. São todos hidden caches

Não perca seu tempo. São todos hidden caches

Desenvolvedores estufam seus jogos com essas prendas porque sabem que consumidores priorizam entretenimento que vai agradá-los por mais tempo. Porém, em excesso, isso torna a experiência enjoativa. Dragon Age: Inquisition tem cerca de 30h de jogo de alta qualidade dramática espaçadas em um cenário inchado por tarefas meniais e repetitivas. Tentar platiná-lo é um exercício de masoquismo. Pode agradar aos gamers mais devotos, mas de maneira nenhuma vale o esforço.

Onde 8/10 gamers desistem do jogo

Onde 8/10 gamers desistem do jogo

Há claro, outros problemas que tornam jogos longos complicados depois de uma etapa da vida. Infelizmente, nem todos têm solução. No entanto, em uma boa medida um pouco de organização e planejamento fazem toda a diferença. Tal como tricotar, fazer maquetes, cozinhar, tocar um instrumento ou praticar um esporte, jogar no final da contas não é uma questão de talento, mas de disciplina. E muita paciência.

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O que “The Witcher 3” nos ensina sobre afeto https://www.finisgeekis.com/2015/06/29/o-que-the-witcher-3-nos-ensina-sobre-afeto/ https://www.finisgeekis.com/2015/06/29/o-que-the-witcher-3-nos-ensina-sobre-afeto/#respond Mon, 29 Jun 2015 20:54:06 +0000 http://finisgeekis.com/?p=421

Qual foi a última vez que você se pegou pensando em uma personagem de videogame como uma pessoa real? Que passou o dia agonizando após um criatura de pixels e voz pré-gravada lhe dar as costas, ou “morrer” graças às suas ações?

Para fãs de CRPG a pergunta é quase retórica. O gênero veio de histórias coletivas criadas em rodas entre amigos e levou a mesma vibe aos computadores e consoles. Se fãs de estratégia esperam nações e territórios e fãs de tiro olham para balas e alvos, RPGistas estão atrás de pessoas.

E espadas e muito sangue. Claro, uma coisa não exclui a outra

E espadas e muito sangue. Claro, uma coisa não exclui a outra

Jogos de interpretação… ou jogos de afeto?

Se você não é um recém-chegado ao gênero, sabe que o afeto não é uma firula, mas a lógica que dá sentido a tudo.  Com os orçamentos multimilionários, efeitos especiais e cenas de ação, é tentador tornar as experiências cada vez “maiores”, mais “decisivas” e “épicas”.  No entanto, maior não é sempre melhor. A morte de Obi-Wan nos toca muito mais do que a explosão de Alderaan. “Salvar o mundo das forças do mal” é uma premissa muito mais maçante do que encontrar a pessoa amada, ganhar reconhecimento ou apenas sobreviver.

Jogadores de Dark Souls sabem do que estou falando

Jogadores de Dark Souls sabem do que estou falando

Na série Mass Effect, as decisões que mudam o destino da galáxia são importantes porque dizem respeito aos companheiros que reunimos ao longo da jornada. Impedir a guerra entre os Quarians e os Geth é vital não pelos seus motivos estratégicos, mas para salvar a vida de Tali, confidente de Shepard desde o primeiro jogo. Curar o genophage é uma decisão difícil porque envolve Wrex, um dos amigos mais queridos do comandante.

Games de outros gêneros também focados em narrativa seguem o mesmo caminho. John Marston é um excelente protagonista porque Red Dead Redemption não é um jogo sobre a conquista do Oeste, mas o drama pessoal de um homem arruinado em busca de sua mulher e filho. Do enredo meia-boca de Beyond: Two Souls o que se salva é o belo capítulo em que a protagonista é adotada por um grupo de mendigos, que logo se torna sua família adotiva. E, com o devido SPOILER WARNING, no final de The Last of Us Joel deixa claro que entre Ellie e o futuro da humanidade, ele prefere sua jovem companheira.

Isso para ficar só nas últimas gerações

Isso para ficar só nas últimas gerações

The Witcher III: The Wild Hunt não é muito diferente. Um dos muitos (e justíssimos) elogios que o game recebeu é quão “pequeno” é seu foco. Geralt de Rivia ronda uma terra devastada em busca de sua filha adotiva, recolhendo, no caminho, os cacos de vidas destruídas pela guerra. Da guerra em si, das “forças do mal” e do destino do universo ele não sabe nada. Os protagonistas das outras batalhas não lhe dizem respeito.

Entretanto,  por mais popular que tais histórias sejam, há um sentimento de que suas protagonistas sejam fúteis, cafonas. Em parte, isso se justifica pelas inúmeras tentativas horríveis de se contar esse tipo de história. (Watch Dogs, estou olhando para você). Em parte, porém, a crítica tem outra fonte: a obsessão pela “força” das personagens e seu potencial como role models.

A tirania das personagens fortes.

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Existe uma tendência (que suspeito que Star Wars tenha tornado popular) de achar que herois estão acima dos reles mortais. Tal como um mestre Jedi, o protagonista não tem vínculos fortes e se dedica integralmente à sua causa.  Ele precisa servir de exemplo aos outros, não se rebaixar às suas paixões. Para alguns, esse modelo de Jedi é a marca que faz de uma personagem “forte e independente”.

É engraçado, no entanto, que ter “força” signifique muitas vezes ser avesso aos outros. A personagem “forte” não tem amigos; tem aliados, pessoas que servem para alguma coisa e que ela pode largar sem prestar satisfações. A personagem “forte” não tem compromissos amorosos, apenas cobaias para saciar suas vontades. A fidelidade, em um mote que poderia sair direto da boca de um Sith, é uma fraqueza a ser zombada. A personagem “forte”, por fim, não depende de ninguém: ela prefere a si mesma àqueles à sua volta, sua carreira à companhia dos entes amados, seu escritório à família e amigos.  A personagem “forte” só pensa em si e só deve a si própria sua felicidade. Os outros podem partilhar da sua alegria se ela deixar, mas não devem roubar a cena.

À primeira vista, Geralt parece ser o “forte” por excelência: um cavaleiro solitário sem comprometimentos, com poder para matar qualquer vilão, vencer qualquer disputa, conhecer qualquer monarca e ir para a cama com qualquer mulher. Porém, bastam algumas dezenas de horas no mundo dos witchers para conferir que a verdade não é bem assim.

Como eu já disse em outra ocasião, o mundo de The Witcher é um universo de monstros e Geralt de Rivia é um monstro à sua própria maneira. Pessoas cospem no chão quando o vêem e o xingam de “mutante”, “freak” e “bastardo desalmado”.  Ele não gosta do que faz, mas tem poucas alternativas. As mutações que lhe deram seus poderes lhe deixaram estéril e incapaz de mostrar emoções. Mesmo que ele desejasse mudar, ele está simplesmente excluído do mundo normal.

O que não significa que por trás do cabelo branco e dos olhos de gato não exista, de fato, uma pessoa normal.

Nesse sentido, seu momento mais tocante acontece quando visita a cidade de Novigrad. Geralt viu sua filha adotiva pela última vez na adolescência. Num mundo sem Facebook ou câmeras fotográficas, isto significa que a única imagem que ele tem dela vem de suas lembranças. Eis, então, que surge uma possibilidade de ver como ela se tornou, adulta. A reação do nosso caçador de monstros fala por si só:

Nada de diálogo explicativo. Nada de berros, lágrimas ou abraços. Reparem que quase não há trilha sonora. Apenas a expressão de dor de um homem que não é capaz de chorar, mas que acaba de ver que a criança que mais ama cresceu sem que ele estivesse lá para ver. A dor que muitos pais já sentiram ao perderem a infância de seus filhos; a mesma, provavelmente, que tomou conta de Solomon Northup em 12 anos de Escravidão, quando retorna para casa vê que sua filha está casada e já é mãe.

Quem acha que The Witcher é mais uma história do heroi durão derrotando meio mundo para salvar a pessoa X está perdendo o mais importante. Do triângulo amoroso com Triss e Yennefer à camaradagem de Zoltan e Dandelion, passando pela “amizade” conturbada de Lambert, Drijska e Roche, Geralt deve tudo àqueles à sua volta. O universo dos witchers, como o de outras séries do gênero, é um mundo cruel, em que pessoas procuram a companhia alheia para tentar afastar as trevas. Na maioria das vezes, sem sucesso.

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A insustentável leveza do ser

Mais de trinta anos atrás, o escritor tcheco Milan Kundera escreveu sobre essa “força”. Em seu livro, ele nos dá um cirurgião “forte”, “independente” e “realizado” com sua carreria, vida social e prazeres carnais. Uma pessoa, enfim, que ticaria todos os quadrados da cartilha do individualismo gamístico.  Entretanto, um belo dia ele larga tudo para viver ao lado daquela que jurou passar a vida ao seu lado.

Ao contrário dos role models celebrados a torto e a direito, as personagens de Kundera não vêem sentido nessa vida dos sonhos. O que para outros é “liberdade”, para eles é a insustentável leveza do ser. O ser humano – ou ao menos estes seres humanos não foram feitos para existir sozinhos. Daí que eles se mudam da Suíça para a Tchecoslováquia comunista, da cidade grande para o campo, de carreiras brilhantes e bem remuneradas a bicos no meio do nada, da vida “realizada” a uma morte sem sentido, num acidente de carro numa estrada de terra qualquer.

Por quê? Eu não sei. Talvez ninguém saiba. Na vida real (e nas melhores ficções) algumas coisas não fazem sentido. Mesmo assim, eu não consigo deixar de pensar que a obsessão pelos role models pode nos levar a um lugar perverso, tão apavorante, talvez, como o mundo dos witchers.

Em Cardcaptor Sakura, Kero-chan diz que o apocalipse é algo muito pior do que a explosão da terra: é a perda do afeto por todos aqueles que amamos. Que os justiceiros, na cruzada para impedir a primeira, tomem cuidado para não provocar a segunda. A insustentável leveza do ser pode ser um fim em si mesma. E por “fim” não digo propósito, mas game over. Ponto final.

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Aquele que luta contra monstros deve ter cautela para que ele também não se transforme em um monstro.

A frase é de Nietzsche, embora tenha se popularizado (um tiquinho modificada) na voz de Idris Elba no filme Pacific Rim. No que diz respeito aos nossos medos, a afirmação vai direto ao ponto. Monstros apavoram, mas o medo é muito maior quando sabemos que eles têm uma casca de humanidade. Dos lobisomens aos serial killers, do vampirismo à loucura, poucas coisas fazem homens tremerem nas bases mais do que saberem que podem sucumbir à selvageria.

Ainda assim, há uma pequena nuance na frase que a torna ainda mais interessante. E se fosse o ato mesmo de caçar monstros que os faz surgir em primeiro lugar? E se a distância entre caçadores e criaturas for pequena – pequena demais, talvez, para que a maioria das pessoas a perceba? E se eles – tanto monstros quanto herois – não pertencerem ao mundo “normal”, mas fizerem parte de um outro: um jogo de gato e rato mortal em que inocentes estão à mercê de sua violência?

“Herois” que assustam

Games e animes, pela sua própria riqueza visual, têm um carinho especial por coisas de outro mundo. Para alguns, estas mídias chegaram a virar sinônimo do fantástico, ao ponto de estranharam quando um Noir ou Heavy Rain da vida nos apresenta uma história “comum”, sem os fogos de artifício do faz-de-conta.  Em muitos trabalhos, este “segundo mundo” é tão mundano quanto calça jeans e pão com manteiga. Não existe “sobrenatural”: o universo é colorido e povoado por seres estranhos, sejam eles os Gorons, Dekus e Zoras de Zelda ou os Totoros do Miyazaki. Adolescentes encontram bichinhos fantásticos e se tornam garotas mágicas. Aventureiros tomam uma poção vermelha e curam todos os ferimentos. Para a audiência, só resta sorrir e aceitar: até desligarem a TV estarão em um planeta com outras regras, e não há nada de errado com ele.

No entanto, outras obras vão por um caminho diferente. Nelas, o mundo é “normal”, ou ao menos deveria ser. Suas personagens são pessoas como nós, com limitações e expectativas como as nossas, vivendo em bairros como os nossos. Se surge alguma coisa fantástica, ela é sempre estranha, inexplicável… aterrorizante. O “sobrenatural”, como o próprio nome já diz, não se encaixa nas expectativas dessas pessoas. Ele faz com que questionem o que sabem, fujam para a segurança e busquem ajuda. Ele é monstruoso, e onde existem monstros existem caçadores para abatê-los.

Acontece que esses mundos são mais complicados. Aqui, não basta girar uma varinha e ganhar um uniforme escolar encantado. Tal como o caçador precisa viver com a caça para entendê-la, o predador de monstros precisa viver com os monstros. Eis a pergunta que não quer se calar: quando eles finalmente lutarem e um sair vitorioso, será que as pessoas normais vão saber reconhecer quem é quem?

Uma barganha infernal

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Talvez o exemplo mais surpreendente nos últimos anos tenha sido Puella Magi Madoka Magica. Que a abundância da cor rosa e a semelhança da protagonista com Sakura Kinomoto não dê margem para dúvidas. A série mais se aproxima do sombrio Kara no Kyoukai¸ o qual também teve a trilha assinada pela Yuki Kajiura e músicas de crédito do Kalafina. (Às vezes, não é preciso de mais nada para falar do monstruoso. Escutem isso e me digam que não imaginaram bonecas amaldiçoadas ganhando vida).

Ao contrário do que alguns dizem, Madoka Magica não é exatamente uma subversão do gênero. Todos os elementos clássicos da fórmula da garota mágica estão presentes sem o menor pingo de ironia. Um familiar fofinho com cara de bichinho de pelúcia. Uma menina tímica, porém cheia de amigas. Uma garota que aposta tudo pelo bem de seu amado. Uma heroína que usa o “poder do amor” para salvar o mundo das trevas. A diferença é o sentido nefasto que as coisas ganham. De início, tanto as personagens quanto os espectadores são seduzidos pelo mundinho cor de rosa que esperamos de garotas mágicas. Com o tempo, porém, as protagonistas percebem que venderam sua alma a uma causa horrenda. Conduzidas por um primo do Kero-chan que mais parece uma pelúcia do MothmanMadoka e suas amigas fazem um pacto com forças obscuras e descobrem, episódio após episódio, o preço exorbitante que terão de pagar.

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Se acha que isso é um personagem do Yellow Submarine, você terá a surpresa da sua vida

Geralmente ocupadas em alegrar as manhãs de sábado e vender brinquedo, é difícil ver séries de garota mágica empenhadas em tornar macabro o próprio glamour que o gênero ostenta. Na fantasia medieval, estas releituras são mais comuns, em parte pela popularidade da low fantasy (recentemente, Game of Thrones), em parte pela sua associação popular com o folclore, ele mesmo bastante sombrio.

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Isto não significa, obviamente, que não haja grandes destaques. Em Claymore, o mundo é assolado por criaturas chamadas youma. A solução arranjada para os massacres é uma casta de guerreiras cujos corpos foram fundidos aos de monstros na infância. O resultado são seres com mente e fisionomia humanas, mas com a força sobrenatural e os poderes de youma. A “aparência”, entretanto, é apenas aparência. Claymores são monstros com máscaras de gente, e caso usem suas habilidades para além de seu limite elas se transformam em youmas elas próprias.

Clare_Partial_AwakenedCom o tempo, a organização que as produz se tornou um negócio extremamente rentável e eficiente. As “voluntárias” a se tornarem guerreiras são sempre do sexo feminino – segundo a lore, a natureza agressiva dos homens faz com que sejam instáveis e mais propensos a se transformar. Eventualmente, descobrimos que órfãs e crianças traumatizadas são as candidatas prediletas. A força das claymores está relacionada com seu psicológico antes da operação, e vítimas de violência tornam-se criaturas mais monstruosas. Quando uma guerreira cede aos seus instintos inumanos, um esquadrão é enviado para abatê-la. Quando um vilarejo sofre o ataque de um monstro, os habitantes contratam a organização mediante um gordo pagamento. Quando a ameaça é eliminada, um funcionário passa para receber o pagamento – e recrutar as meninas cujas familiares foram devoradas pelo youma. Tudo funciona muito bem. Até – o espectador começa a suspeitar-  bem demais.

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É difícil não ver semelhança com The Witcher,  série de Andrzej Sapkowski, adaptada a uma trilogia de games premiadíssima pela CD Projekt Red. Entre cabelos acinzentados, olhos dourados, e o amor por uma filha adotiva, Geralt de Rivia, nosso protagonista, é uma versão polonesa e barbada de Teresa, a guerreira mais poderosa da organização em Claymore. Tal como as caçadoras de youma, witchers são humanos que sofrem horríveis mutações para caçar monstros. A transformação (que fãs de Dragon Age acharão familiar) lhes confere agilidade e força sobre-humanas, sentidos apurados e capacidade de usar magia. Até então, rol normal de habilidades de um herói de RPG. A diferença está no preço.

O que Madoka Magica faz com a garota mágica, The Witcher faz com o aventureiro dos mundos de fantasia. Geralt pode beber as poções de cura que levantam até defunto, mas a contrapartida é uma transformação irreversível. Fórmulas miraculosas, afinal de contas, pertencem ao sobrenatural. Para usá-las, é preciso deixar de ser humano. O efeito colateral? Witchers são estéreis, incapazes de chorar ou de mostrar grandes emoções. Por onde eles andam pessoas cospem, xingam e se afastam. Ao longo da trilogia de games, Geralt se relaciona com o resto do mundo com sua voz rouca e seu senso de humor seco. As pessoas rosnam e o chamam de “bastardo sem coração”. Da cadeira, diante do computador, é impossível não sentir uma pontada de tristeza. Tal como Madoka e suas amigas, ele deu um passo em direção à escuridão e pagou um preço grande. Que ele seja um dos últimos de sua casta fala por si só: poucos têm desejo de seguir em seus passos.

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Ainda assim, se há algo diferente na monstruosidade dos witchers é porque eles são apenas o lado mais evidente de uma mudança maior. Na série, o mundo já foi um dia um lugar normal, “calmo” e previsível como a realidade. Um fenômeno estranho, a Conjunção das Esferas, fez com que se transformasse num pesadelo vindo direto de True Detective (ou do livro que o inspirou). Todos os universos precisam de seus faxineiros. Quando a sujeira é a encarnação das perversões humanas, é preciso um profissional com uma espada de prata.

Bem vindo à Carcosa

Bem vindo à Carcosa

Talvez o mais interessante nessas histórias seja justamente seu esforço em esconder o terror – e nossa surpresa quando finalmente o encontramos. Ao longo do artigo, tive de me policiar várias vezes para não incluir spoilers. Todas essas séries, e as mais de centenas que seguem sua fórmula, têm um twist muito parecido. Como que ele ainda funciona, depois de tanto tempo? Por que nos assustamos tanto ao ver o lado monstruoso das coisas, se assistimos (e jogamos) esse mesmo drama há anos? Talvez seja menos uma questão de medo do que de vontade de sermos contrariados; de olharmos para Madoka, Clare e Geralt e torcermos para que mantenham sua humanidade, por mais difícil que pareça perdê-la. E nos assegurarmos de que nós também temos uma chance de não virarmos monstros, em nossas lutas pessoais contra a monstruosidade da vida.

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