Poderia, se o título em questão não fosse Mahoutsukai no Yome. Sucesso editorial que lhe rendeu a fama no estrangeiro, a história de afeto entre um mago monstruoso e sua aprendiz repete a magia como um dos destaques da temporada.
Não é difícil entender o apelo. The Ancient Magus’ Bride, como a série chegou ao Ocidente, é uma das adições mais peculiares ao gênero de fantasia.
Não apenas por trazer um mundo original e efervescente, com referências que vão de xxxHolic aos contos de H.P. Lovecraft; de Harry Potter ao Judeu Errante. Yamazaki também consegue, com uma facilidade que parece bruxesca, confundir nossos termômetros morais.
O mangá conta a história de Chise, uma garota depressiva que resolve se vender como escrava. Quem a compra é um mago chamado Elias Ainsworth. Seu motivo? Fazer dela a sua aprendiz – e noiva.
O argumento em si já eriça os cabelos de muitos leitores. A surpresa só não é maior do que a de constatar que Chise não deseja abandonar Elias, mesmo depois de conhecer sua verdadeira natureza e de encontrar aqueles que a ajudariam na fuga.
A decisão de Chise, de fato, é o maior mistério de Mahoutsukai no Yome, superando em muito suas referências ao folclore a à magia.
Um mistério, no entanto, que se torna mais claro ao explorarmos as outras obras escritas pela autora.
A vida de Chise em Mahoutsukai no Yome é difícil. Abandonada pelos pais, sem um lar para chamar de seu, Chise deseja apenas alguma segurança. Se a liberdade for o preço para obtê-la, é uma quantia que ela está disposta a pagar.
Sua trajetória é espinhosa. Comparada com outras heroínas de Yamazaki, no entanto, é tudo menos incomum.
Frau Faust, também lançado no Ocidente, nos traz uma versão livre da lenda de Fausto, com referências suficientes à demonologia e ocultismo para não fazer feio à fábula de Chise e Elias.
O mangá acompanha uma versão feminina do diabólico doutor – Johanna – que se torna professora de um garoto. A heroína fez um pacto com o demônio Mefistófeles e entrou na mira da Inquisição. Tal como a Chise de Mahoutsukai, no entanto, sua relação com o “mestre” vai bem além do contratual.
Johanna é a Chise para o Elias de Mefisto, mas desempenha também o papel de mestre. Marion, o garoto que aceita tutelar, é um jovem desiludido, criado por uma família à beira da falência. Na sua devoção à professora, vemos ecos de Alice, aprendiz de Renfred, rival de Elias em Mahoutsukai no Yome.
Toumei Hakubutsukan (“O Museu Transparente”) one-shot lançado como extra de Frau Faust, repete no conto o que o mangá faz na série. Ele nos conta a história de Asaki, uma garota que arranja um emprego em um museu muito particular. Os objetos exibidos, cansados dos olhares dos visitantes, decidem “desaparecer”.
Numa trama que se passaria por pastiche de Uma Noite no Museu, Asaki precisa encontrar as “obras” e convencê-las a voltar a seus expositores.
Não é preciso muito para entendermos que o “museu” do título é tudo menos literal. A partir de uma premissa fantástica, Yamazaki constrói uma fábula sobre empatia, solidão e pressão social.
Asaki, logo percebemos, está procurando um emprego porque seus pais enfrentam um divórcio. Para isto, cai nas garras de um diretor de museu que a trata como uma cobaia e a manuseia como uma boneca.
Esse desejo de subserviência que aparece até em suas obras não fantásticas. Futari no Renai Shoka é uma história de amor entre Kanako, uma vendedora de livros, e Akio, um leitor adolescente que compartilha seu gosto por literatura.
O romance não envolve leilões de escravos ou bofes monstruosos, mas traz afetos torturados que nos arrepiam da mesma forma.
Kanako é uma adulta que parece não ter fugido da adolescência. Vive sozinha e é incapaz de lidar com as tarefas domésticas. Sua mãe faleceu tragicamente. Seu pai, em luto, tornou-se distante e negligente.
Aiko, muito embora seja um estudante, torna-se a figura paterna que a vida lhe tolheu. O garoto, no entanto, também arrasta seus próprios demônios. Seus pais estão sempre ausentes a “trabalho”, uma daquelas coincidências inverossímeis de animes que exigem de seus heróis que cresçam mais rápido do que a vida lhes quer.
É inegável que Yamazaki conta suas histórias com sensibilidade. É inegável, também, que elas provocam um grande desconforto.
Há um limite de vezes que podemos evocar uma mensagem até que a descrição se confunda com a apologia. Para a autora de Mahoutsukai no Yome, tal fetiche parece estar em uma postura masoquista e conformista.
Ou seria mesmo?
Lendo suas histórias com atenção, percebemos que a realidade é um tanto mais complicada.
Embora algumas de suas personagens estejam em posição de poder e outras buscam a submissão, é difícil apontar, no final das contas, quem de fato está no comando de quem.
Chise de Mahoutsukai no Yome é a aprendiz por excelência: a “estranha em uma terra estranha” amparada em um mestre inumano. Para ela, a obediência não é uma escolha. É a diferença entre a vida e a morte.
Ao longo dos capítulos, no entanto, percebemos que também Elias é uma espécie de aprendiz. Dividido entre o mundo das fadas e dos humanos, o mago “desperta” para suas emoções na mesma medida em que Chise descobre seus próprios poderes mágicos.
Chise não é uma cria que “cultiva” do zero, mas alguém que encontra na encruzilhada de jornadas opostas. A garota deseja abrir mão de sua humanidade; o mago, tornar-se uma pessoa.
Para tanto, precisa tomar a discípula de muleta para conhecer a si mesmo. Um aprendizado que se torna cruel quando Chise faz nascer suas próprias asas, e Elias precisa enfrentar, sozinho, a dor do ciúmes e da solidão.
Como disse Yamazaki em uma entrevista:
“Para mim, o mais importante é mostrar que dois seres, mesmo que sejam muito diferentes (já que uma é humana e outro uma espécie de besta, ou ao menos um não-humano) podem compartilhar as coisas.
Embora eles pareçam completos opostos, algo os força a se aproximar; talvez não completamente, mas há sempre uma margem. Dois seres que no início não se compreendem, não se apreciam, que são estranhos um ao outro podem se aproximar em um dado momento. Esta é uma das mensagens principais que eu gostaria de passar com esse mangá.”
É o mesmo dilema de Johanna, dividida entre a “educação” que recebe de Mefistófeles e a “educação” que ela mesmo confere àqueles que vieram a depender dela.
É o dilema dos jovens amantes de Futari no Renai Shoka. Entre Aiko, a vítima de negligência, e Kanako, o resultado do abandono após anos de indiferença.
Se obras como Umibe na Onnanoko e The Gods Lie nos mostram como feridas podem surgir, Yamazaki nos sugere como podem ser fechadas.
Para a maior parte dos críticos, a primeira obra que vem à mente quando falamos de Mahoutsukai no Yome é A Bela e a Fera.
Não para mim. De minha parte, não consigo pensar em outra que não Leon, história de amor entre um assassino de aluguel e uma órfã (interpretada por uma Natalie Portman então com 11 anos).
Mathilda, a órfã, teve os pais assassinatos pela polícia. Deseja tornar-se uma atiradora para poder vingá-los. Léon, o assassino, sabe melhor. Sua estreia no crime foi movida por um trauma similar, cuja dor nunca deixou de sentir. Até encontrar Mathilda.
Na medida em que ensina à garota sua profissão, “mestre” e “discípulo” se invertem. Enfrentar o mundo aos 11 anos, descobrimos, requer muito mais força que matar alguém a sangue-frio.
“Eu já cresci tudo o que tinha que crescer” ela nos diz. “Agora, só fico mais velha”.
“Comigo, é o contrário” ele responde “Já estou velho o suficiente. Está na hora de crescer”. Uma confissão que não seria estranha nas bocas de Elias, Kanako ou Johanna.
“Não se pode amar apenas a si mesma”; Ruth, o familiar de Chise, lhe diz em certo momento. Não se pode viver, tampouco, amando apenas aos outros. Sem amor próprio, pouco resta da vida além da espera pela morte.
Encontrar o equilíbrio entre os dois talvez seja o grande segredo. A essência, tão elusiva, do que significa afirmar-se como indivíduo.
]]>O Finisgeekis, Dissidência Pop, É Só um Desenho e Anime21 compraram um desafio. Toda a semana, até o final da temporada, teremos um novo quadro a vocês.
Depois das agruras do dia, cheio de escrita, pesquisa e trabalho, nós nos sentaremos para um bom café, uma poltrona confortável – e um bate papo sobre o melhor da temporada.
Peça uma xícara você também, e bons animes para as semanas que virão!
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Quem tem o hábito de acompanhar mangás e animes já deve ter reparado que esse meio tem um pé no esotérico. Ao lado de mechas, uniformes escolares e doces baratos – muitas vezes, ao mesmo tempo – a cultura pop japonesa parece ter uma queda por magia e ocultismo.
Não qualquer magia, mas uma bastante específica – e distintamente ocidental. Cartas de tarot, círculos mágicos, símbolos do zodíaco, palavras em latim, referências bíblicas, nomes ingleses ou germânicos, sociedades secretas, trajes e apetrechos inspirados na maçonaria. Certos animes pagam tanto tributo ao ocultismo estrangeiro que poderiam se passar por um museu esotérico. De preferência, em algum lugar de Londres, ou na antiga “pequena Inglaterra” da Ásia: Hong Kong.
Em alguns casos, o misticismo está lá em doses homeopáticas, para dar aquele twist de estranheza. Madoka, por exemplo, criou uma meta-lore em latim – o que inclui até seu próprio título. Em outros, é acompanhado por toda uma elocubração filosófica, com direito a rituais, protocolos e menções a personagens históricas.
Dessas últimas, poucas séries apelaram mais para o exotismo do que Mahou Tsukai no Yome, ou The Ancient Magus’ Bride, um mangá despretensioso que conquistou a crítica e será adaptado em anime a partir desse ano. A obra não é só uma coleção do que há de mais peculiar na “magia de anime”, mas uma verdadeira jornada aonde tudo começou.
Se uma personagem com um crânio de boi no lugar da cabeça não for suficiente para adivinhar, o mangá, escrito e desenhado por Kore Yamazaki, mergulha de cabeça no que há de mais diferente, bizarro e indecifrável no mundo do ocultismo.
A história segue Chise Hatori, uma garota abandonada que é feita escrava e vendida em um leilão. Quem a compra é Elias Ainsworth, um “mago” de aparência inumana (para dizer o mínimo). Ele revela à Chise que deseja transformá-la em sua aprendiz… e em sua esposa.
O que poderia dar pano para um terror exploitation dos mais macabros se desenrola, pelo contrário, em uma história surpreendentemente doce. Chise, que sempre viveu à deriva, vê em Elias a família que nunca teve. O mago revela, para a surpresa de ninguém, que não é humano, e usa a amizade com a garota para tentar compreender o mundo de uma espécie que lhe parece tão estranha.
O que se segue é uma jornada surreal pelo folclore europeu para esgotar qualquer enciclopédia de mitologia. O que xxxHolic fez com o terror japonês, The Ancient Magus’ Bride entrega com o ocultismo ocidental.
Seu mundo paranormal é surpreendente vasto, e inclui de “clássicos” como dragões e fadas a personagens mais obscuros: reimaginações kawaii das selkies (mulheres-foca da mitologia irlandesa) e will-o-wisps (luzes fantasmas),
Titania e Oberon, reis das fadas em Sonhos de Uma Noite de Verão, e personagens recorrentes nos quadrinhos de Neil Gaiman,
o Cão Negro, ou barghest, aparição do folclore inglês que inspirou O Cão Dos Baskervilles e que até já fez ponta em The Witcher,
e, como não podia deixar de ser, uma lore extremamente rebuscada, em que “magia” não é apenas truque, mas um sistema filosófico e espiritual próprio, quase uma ciência para um mundo além da razão.
The Ancient Magus Bride não inventou esse fascínio com o conhecimento místico. Pelo contrário, ele pode ser visto em obras das mais variadas, de X/1999 e Cardcaptor Sakura a Fullmetal Alchemist e Fate/Stay Night. O site TVtropes.com chegou a afirmar que a magia hermética – como ela foi chamada, em razão de sua proximidade com um movimento de mesmo nome – é hoje mais popular em animes do que em obras ocidentais, a despeito de seu flair inconfundivelmente europeu.
A princípio, é estranho que o país do xintoísmo, dos youkai e de um dos imaginários mais populares da cultura pop atual fosse dar tanta atenção ao folclore de outros lugares. Porém, em um olhar mais atento é possível ver que esses dois mundos aparentemente tão distantes têm muita coisa em comum.
Para entender como o ocultismo ocidental chegou ao Japão, é preciso primeiro entender de onde ele veio.
Como eu já mencionei em uma outra coluna, quando a ciência e tecnologia começaram a mudar o mundo, nem todos gostaram do que viram. Para alguns, o universo misterioso dos mitos e lendas era mais interessante do que as teorias científicas; a vida no campo mais suportável que nas grandes metrópoles, e o respeito à “voz da natureza” era mais digno do que a rotina endiabrada da nova era.
Alguns viram nisso inspiração para produzir arte, poesia e música. Outros, mais radicais, tentaram ressuscitar religiões do passado. Muitos, horrorizados com as barbaridades do mundo moderno, buscaram um sentido para a vida em outro lugar. Assim, o apelo do ocultismo, em suas mais variadas formas, começou a crescer.
Alguns se satisfizeram com filosofias alternativas. Por exemplo, a teosofia, doutrina mística que buscava entender a natureza e o lugar do ser humano para além do mundo aparente. O movimento ganhou vários adeptos no começo do século XX, inclusive o famoso pintor Piet Mondrian.
Já outros foram mais além, e preferiram grupos com mais pompa e circunstância. Ao mesmo tempo em que a sociedade se industrializava e as grandes teorias científicas começavam a dar frutos, algumas pessoas começaram a se organizar em seitas ou irmandades, com uniformes e rituais elaborados e um entendimento enciclopédico de magia e sobrenatural.
Foi dessa fonte que o universo estranho, complexo e minuciosamente catalogado da magia nos animes bebeu. Em alguns casos, a inspiração é declarada. Aleister Crowley, um dos mais famosos ocultistas da época, apareceu de nome próprio em Toaru Majutsu no Index, além de ter sido base para Clow Reed, criador das cartas Clow de Sakura.
A fascinação com a magia hermética foi tão forte na Europa – em especial na Inglaterra – que pelo menos um livro a considerou como o terceiro componente mais importante da cultura ocidental, ao lado da tradição bíblica e dos saberes greco-romanos.
Mas o que tudo isso tem a ver com o Japão? Acontece que, do outro lado do mundo, outras pessoas tiveram ideias bastante parecidas.
O escritor japonês Junichiro Tanizaki certa vez disse que a diferença entre japoneses e ocidentais estava na sua relação com as sombras. Enquanto que o Ocidente busca a luz, a claridade e o “progresso” acima de todas as coisas, os japoneses aprenderam a aceitar a penumbra.
Isso se dava não só de uma forma literal – ambientes pouco iluminados, o gosto pelo escuro na arte – como em um sentido figurado. Para Tanizaki, a cultura japonesa preferia o misterioso ao revelado, o sutil ao direto, o despojado ao luxuoso, o imperfeito ao milimetricamente pensado.
Os ocidentais tratam a escuridão como inimiga; os japoneses viviam em harmonia com ela. Os ocidentais se preocupam em modificar o mundo, em torná-lo mais claro e explicável. Os japoneses, por outro lado, viam beleza no misterioso e irregular.
Se esse lamento lembra o misticismo europeu, não é por acaso. Quando o Japão abriu as portas para o resto do globo, as mesmas seitas, movimentos e filosofias que haviam chachoalhado o velho mundo repetiram o seu sucesso. Pouco a pouco, ao mesmo tempo em que a Terra do Sol Nascente se tornava um país do futuro, cartas de tarô, símbolos alquímicos e palavras em latim ganharam seu espaço na cultura popular.
Não foi só no entretenimento que o ocultismo ganhou adeptos. Mesmo autoridades tradicionais em filosofia oriental se renderam ao seu apelo.
D.T. Suzuki, um dos maiores divulgadores do budismo no Ocidente, não poupou palavras para apontar semelhanças entre o pensamento asiático e essa “contracultura” espiritual europeia. Ele se casou com uma adepta da teosofia e se tornou um ávido leitor de místicos europeus. Em especial, Emanuel Swedenborg, criador de uma seita mística derivada do pensamento cristão.
Na cultura pop japonesa, essas leituras alternativas (quando não conspiratórias) da doutrina da Igreja eventualmente se tornaram inseparáveis à imagem da magia ocidental. Vide a frequência com que padres e freiras, geralmente com poderes ou armas badass, dão as caras em séries do gênero.
Esse sincretismo pode ser visto a todo momento nos animes. Em X/1999, os Sete Anjos e Selos – em si próprios uma referência ao livro do Apocalipse – combinam poderes inspirados por escolas orientais de ocultismo (como o Onmyoudou) com magia ocidental.
Já em Kara no Kyoukai, os ex-colegas da feiticeira Touko são Cornelius Alba, descendente do ocultista alemão Henrich Cornelius Agrippa – famoso a ponto de ganhar menção em Harry Potter – e Soren Araya, um monge budista.
A adoração de animes e mangás por essas correntes do ocultismo são uma das facetas mais divertidas da subcultura que criaram.
Muita gente defende que cultura “otaku” não é cultura japonesa, apenas uma releitura ocidentalizada das tradições do Japão. Com a magia hermética, no entanto, diretores e mangakás fizeram o percurso contrário. Ao se apropriarem de uma convenção importada do ocidente, eles criaram um estilo inconfundivelmente japonês.
De que tiveram sucesso, não há dúvida. Já duas vezes na minha vida, ao falar sobre Paraíso Perdido a amigos otakus, recebi a mesma resposta: “Parece legal. Tem OVA?”
Faça o teste você também. Da próxima vez que ver um círculo mágico, veja qual é a primeira torre que vem à mente: a de Londres ou a de Tóquio.
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