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Studio Ghibli – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Mon, 25 Feb 2019 18:22:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Studio Ghibli – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Anime x livro: “As Memórias de Marnie” https://www.finisgeekis.com/2018/10/10/anime-x-livro-as-memorias-de-marnie/ https://www.finisgeekis.com/2018/10/10/anime-x-livro-as-memorias-de-marnie/#comments Thu, 11 Oct 2018 00:58:08 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20576 Anime x Livro tem como objetivo comparar romances da literatura com suas adaptações na telinha japonesa. A proposta é sair do fla-flu e esmiuçar essas séries (e livros) em detalhe. 

Nos idos de 2014, o Studio Ghibli se despediu de seus fãs com um filme um tanto diferente: As Memórias de Marnie. O longa chamou a atenção pelo seu estilo low key, pela estética um tanto ocidental e pelo seu diretor, Hiromasa Yonebayashi, menos conhecido que os decanos Miyazaki e Takahata.

Fãs do estúdio talvez não saibam que o filme foi baseado em um antigo clássico da literatura britânica. Que o próprio Miyazaki elegeu como um dos melhores romances já escritos para jovens.

Quão parecido ficou a adaptação do original? Vamos juntos descobrir.

Clique nos títulos para ir direto às seções. Ou então só continue abaixo, se estiver com tempo. AVISO (DESNECESSÁRIO): Contém SPOILERS para As Memórias de Marnie)

 


As Memórias de Marnie não é um romance tão conhecido fora do Reino Unido. Mesmo assim, foi um grande sucesso da literatura britânica, rendendo uma indicação à Medalha Carnegie.

Ele conta a história de Anna, uma garota solitária que não consegue de forma alguma se encaixar. Órfã, ela descobre certo dia que sua mãe adotiva recebe dinheiro para criá-la.

Subsídios do governo a pais de órfãos são coisa super normal. Anna, porém, não sabe disso. A seus olhos de criança, aquele cheque significa que sua “tia” (como a chama) não a ama de verdade. E que ela é, no final das contas, apenas uma despesa.

Aflita com a melancolia de Anna, sua mãe adotiva a leva à casa de um casal de amigos na praia, esperando que a mudança de ares ajude a garota a se encontrar.

Na pequena cidade portuária, Anna encontra um misterioso casarão beirando a areia que parece esconder um mistério ainda maior: uma linda garota loira que aparece em suas janelas.

Ela diz se chamar Marnie e logo se torna a melhor amiga de Anna. Mas algo não parece muito certo.

Por que Marnie se veste com roupas antigas, como se viesse do passado? Por que sua casa parece ora abandonada, ora polvilhada de aristocratas, camareiras e mordomos?

Seria Marnie uma garota de verdade? Um delírio, uma amiga imaginária… um fantasma?


Marnie não é uma história estranha ao mestres do Ghibli, e provavelmente deve sua longevidade ao estúdio japonês.

Como mencionei na introdução, o livro aparece em quarto lugar em uma lista de 50 melhores livros-infanto juvenis elaborada por Hayao Miyazaki. Mesmo assim, não foi o criador de Totoro, e sim Hiromasa Yonebayashi (Arriety, Mary to Majo no Hana) quem o levou à telona.

O longa foi o último filme do Studio Ghibli antes de seu hiato em 2014. O encerramento das atividades levou uma série de criadores (entre os quais o próprio Yonebayashi) a fundar uma empresa sucessora, o Studio Ponoc, pela qual lançariam outros filmes.

Tudo isso fez com que Marnie fosse lançado em um clima de certa melancolia, ofuscado pela sombra de Princesa Kaguya, contra o qual sua atmosfera pacata e ambientação simples custou a competir.

Se Marnie não foi um arrasa-quarteirões para os padrões ghiblianos, o mesmo não pode ser dito de seu material de origem. O anime renovou o interesse no livro original, tornando-o um sucesso mundial de público décadas depois da morte da autora.

Será que alguma coisa se perdeu na tradução? Ou teriam os ares japoneses até mesmo melhorado essa história?

Para responder, vamos por partes.


A diferença mais óbvia entre livro e filme é o lugar onde sua história se passa. Marnie, o livro, é ambientado em Norfolk, na Inglaterra, província em que a própria Robinson viveu.

Que Yonebayashi a transportaria ao Japão era inevitável. Porém, há uma peculiaridade do condado que vale a pena comentar.

Para aqueles que não conhecem muito a Inglaterra, Norfolk é aquela “bundinha” da região de East Anglia, virada para o Mar do Norte:

Como o mapa deixa claro, não é apenas um condado interiorano. É um lugar que está completamente fora das grandes rotas ligando cidades importantes como Londres, Manchester, Birmingham ou York. Se você foi parar em Norfolk, é porque quis ir para Norfolk.

Como escreveu Kazuo Ishiguro no seu belíssimo Não me Abandone Jamais: 

“Vocês vêem, porque está saltado para fora aqui no leste, nessa corcunda saindo para o mar, [Norfolk] não está no caminho de nada. Pessoas indo para o norte ou para o sul” ela mexia a varinha para cima e para baixo “elas o evitam completamente. Por essa razão, é um canto pacato da Inglaterra, bastante agradável. Mas é também um canto perdido.” (p. 60)

É nesse “canto perdido” que Anna, uma garota da cidade, se vê exilada durante sua crise de solidão.

Yonebayashi teve uma tarefa ingrata ao transpor esse cenário ao Japão. Felizmente, a Ilha do Sol Nascente possui sua cota de condados pacatos.

O local escolhido foi um vilarejo próximo a Kushino, na ilha de Hokkaido no extremo norte do Japão.

A cidade de Kushiro em Hokkaido, onde se passa o filme.

Província rural, isolada do “meião” urbano de Kanto e Kansai, é de fato o mais próximo de um “canto perdido” que o país tem a oferecer.


Marian (aka Marnie)

Ela olhava diretamente à frente conforme remava, seus olhos abertos jamais piscando, esforçando-se para absorver cada detalhe de sua nova amiga através da escuridão. Ela viu que seu cabelo liso e loiro estava preso naquela noite, pendurado sobre seus ombros em duas longas tranças que balançavam para frente e para trás cada vez que ela se debruçava. Debaixo de seu cardigã ela usava novamente um vestido longo e branco que se estendia quase até seus pés. Teria ficado estranho em qualquer outra pessoa, mas Anna o aceitava sem titubear. Parecia certo que aquela garota parecesse uma personagem de um conto de fada. (p. 77)

O trecho acima diz tudo o que há de ser dito sobre Marnie: ela é uma personagem saída de um conto de fadas.

Com cachos loiros que parecem feitos de ouro, olhos penetrantes e roupas anacrônicas, ela arrebata a atenção de Anna (e de nós, leitores) quase de imediato.

Yonebayashi não fez qualquer mudança à caracterização de Robinson. Pelo contrário, adaptou o seu próprio cenário para que Marnie se mantivesse exatamente a mesma, a despeito de ser transportada a outro país e época.

Para que preservasse seus traços caucasianos, o anime deu a ela um pai estrangeiro. Tanto ela quanto Anna (que, descobrimos, é sua neta) herdaram seus olhos azuis, coisa inusitada para japonesas que contribui para que a protagonista se sinta ainda mais deslocada.

Princesa europeia perdida no interior do Japão, Marnie ganha assim uma aura mais etérea e fantasmagórica do que contava no livro. Mais do que uma garota de outra época, ela parece uma figura de outro mundo, habitado por dignatários estrangeiros e mansões ocidentais.

Exatamente como os ricos japonesas da Era Meiji (1867-1912), que construíram casarões muito parecidos com a casa em que Marnie vive:

Casarão em estilo ocidental na cidade de Fukuoka. Fonte

Os Pegg/Oiwa

Claro, a moçoila podia vir e seria bem vinda. Ela e o Sam adorariam recebê-la, embora a gente não fosse mais tão jovem e o Sam sofresse daquele reumatismo sei lá o quê crônico desde o inverno passado. Mas vendo que ela é uma coisinha mansa que não curtia muito aprontar eles torciam para que ela ficasse feliz. “Como você se lembra” escreveu a Sra. Pegg “Somos gente simples e de casa aqui na nossa, mas as camas são confortáveis e não carecemos de nada agora com a tevê  (p.12)

O Sr. e Sra. Pegg (em japonês, os Oiwa) são os amigos da Sra. Preston, mãe adotiva de Anna, que a recebem durante sua estada em Kushino.

Casal simpático, de modos simples e jeito caloroso, eles ficam aflitos com a dificuldade de Anna em se enturmar. Ao longo do livro, suas personalidades conflitantes trarão algumas faíscas.

Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, e isso sem dúvida é verdade para os Oiwa. A produção luxuosa do Studio Ghibli deu vida ao casal de forma que supera a própria prosa de Robinson. Seja dirigindo seu carro minúsculo, seja esculpindo corujas de madeira, o casal parece saído de Memórias de Ontem, um dos melhores animes sobre o Japão rural.

Se nada mais, é possível que Yonebayashi tenha gostado dos Oiwa até demais. No livro, eles são retratados de maneira cordial, porém distante; dispostos a ajudar Anna, mas incapazes (de um jeito quase grosseiro) de entender o que a aflige.

No filme, pelo contrário, eles são incrivelmente compreensíveis, mesmo quando Anna perde a compostura de forma indesculpável.

Após xingar uma menina da vizinhança (vide “Sandra”, abaixo), os Oiwa são emboscados pela mãe revoltada. Ao saber do ocorrido, eles tentam colocar panos quentes, e em momento algum se irritam com a garota. Ao descobrir que ela os estava escutando, escondida, dizem apenas que ela foi “um pouco dura demais” com suas palavras.

No livro, pelo contrário, brigar com sua vizinha deixa Anna apavorada. Ela passa capítulos a fio temendo a reação da Sra. Pegg, e quando ela chega, é tão dura quanto ela – e os leitores – estavam esperando.

O episódio é importante porque ressalta o distanciamento de Anna para com as outras pessoas. A garota foge para a companhia de Marnie porque está legitimamente apavorada com a perspectiva de uma bronca. E, de uma forma geral, de ser apenas um fardo na vida dos adultos, seja dos Pegg, seja de sua mãe adotiva.

Sem esse contraponto, a separação entre os dois mundos no anime se torna muito mais sutil. De onde os muitos palpites errados que apostavam em um romance entre Anna e Marnie.

Afinal, o que faria uma garota se obcecar tanto por outra se não o amor?

Wuntermenny/Toichi

Sim, claro que Anna podia descer até a angra. Se a maré estivesse baixa ela podia andar pelo charco até a praia e se estivesse alta ela sempre podia descer no barco de Wuntermenny. “Desde que você não se incomode em não ter companhia” ela disse. (p. 32)

O barqueiro rabugento com que Anna faz amizade é uma personagem secundária na história. Mesmo assim, ele é um dos motivos que fazem de Marnie um conto fora de série.

No livro, ele recebe seu nome peculiar por ser o décimo primeiro (!) filho de uma família muito pobre. Cansado dos frequentes partos, sua mãe nem tem mais energia para batizá-lo. “Deus me livre” ela diz “esse já é demais da conta”.

O “nome” colou, e ele passou a ser conhecido por Wuntermenny (pronúncia fonética de “one-too-many”, “um demais da conta” em inglês).

O trecho original é uma das passagens mais primorosas do livro, que mostra o cuidado de Robinson em reproduzir o sotaque caipira de Norfolk:

“Ah! I’ll tell you how it was, then, since you’re asking,” said Sam. “Wuntermenny’s ma – old Mrs West, that was – she had ten already when he was born. ‘What’re you going to call him, mam?’ they all says, and she says, tired-like, ‘Lord knows! He’m one-too-many and that’s a fact.’ So that’s how it was!” he said, laughing and spluttering into his mug of tea. “And Wuntermenny West he’s been ever since.” (pp. 32-33)

Caçula de uma família paupérrima, Wuntermenny sofria bullying frequente das crianças da aldeia. Coisa que não escapou a Marnie, que escrevia sobre o garoto em seu diário.

Nada disso aparece no filme, mas Yonebayashi conseguiu colocar a porção certa de referências na forma de Easter Eggs.

Seu Wuntermenny se chama Toichi (十一), literalmente “onze”, uma referência a seus dez irmãos mais velhos. Para a surpresa de Anna, que o julgava mudo, ele também tem recordações de Marnie, que compartilha ao final do anime. Sua primeira – e única – fala no filme.

Para aqueles que leram o livro, a cena tem um quê de poesia. A Marnie do romance observava Wuntermenny com pena, aflita por não poder ajudá-lo. O Toichi de Yonebayashi a responde, confessando que ele, também, sofria com a separação.

Sandra/Nobuko

Sandra era loira e maciça. Seu vestido era curto demais, e seus joelhos, gordos demais, e ela não tinha nada a dizer. Anna passou uma tarde insuportável jogando cartas com ela na mesa da cozinha enquanto a Sra. Pegg e a mãe de Sandra se sentavam e conversavam na sala. Sandra e Anna conheciam versões diferentes de todos os jogos, Sandra trapaceava, e elas não tinham nada a dizer. (p.40)

Desesperados com a apatia de Anna, os Pegg decidem lhe dar uma amiguinha. A escolhida é Sandra (em japonês Nobuko), filha de uma vizinha.

Sandra é uma garota que não tem, a princípio, nada de errado. Mesmo assim, Anna não consegue sentir afeto por ela. Tudo na menina lhe inspira antipatia, de seu corpo roliço ao seu jeito espevitado.

É um (de tantos) problemas que apenas crianças entendem e que contribuem para piorar cada vez mais a solidão da protagonista.

No anime, Sandra é retratada com uma fidelidade que chega a ser cruel. Yonebayashi a imagina como uma espécie de “dona da rua”, metendo-se na vida das outras crianças e liderando-as em trabalho voluntário.

A “gota d’água” acontece durante um festival de verão, cerimônia tipicamente japonesa que obviamente não está no livro original. Pressionada por Nobuko a se entrosar, Anna estoura e a xinga. É o estopim de um mal-estar que só será resolvido no final do filme.

O episódio é um exemplo curioso de adaptação. Seu diálogo foi puxado quase que diretamente do livro, mas ele ganhou uma conotação toda diferente.

Anna diz que Sandra parece uma “porca gorda”. Ultrajada, a garota responde que Anna parece “exatamente o que ela é”. Tanto no original como na adaptação a frase mexe com a protagonista, mas não pelos mesmos motivos.

No livro, ela alimenta as inseguranças de Anna de que ela seria uma garota completamente normal, sem graça. Uma menina, nas suas próprias palavras, com um “rosto de madeira”.

No anime, pelo contrário, Anna se aflige porque tem medo de não ser normal. Em vez de mostrá-la direto na plataforma de trem, Yonebayashi abre seu filme com uma tomada da garota em um trabalho da escola, sentindo-se excluída pelos demais alunos.

A Anna de Robinson sofre porque desaparece na multidão. A Anna de Yonebayashi, porque é incapaz de fazê-lo.

É uma diferença sutil, mas que revela bem as diferentes pressões sociais que acometem os jovens na Inglaterra dos anos 1960 e no Japão dos dias de hoje.

Scilla/Sayaka

“A Priscilla viu você primeiro” disse a garota com as tranças. “Ela é aquela ali”. Ela apontou para uma menina de cabelos castanhos que estava olhando para a frente, em silêncio, com os olhos arregalados. (p. 184)

Scilla (apelido de Priscilla) é a garota que faz Anna entender que Marnie não é apenas uma obra da sua imaginação.

Depois de um tempo sem ver sua amiga, Anna se surpreende ao encontrar a casa do pântano em reformas. Uma nova família – bem mais moderna e “comum” – passa a habitar as janelas onde antes via Marnie e suas governantas.

Anna começa a pensar que estivera delirando, até que uma das crianças a chama de “Marnie”. É a deixa para que entenda que mais alguém além dela fez contato com a menina de cabelos loiros.

Batizada de Sayaka no anime de Yonebayashi, Scilla se manteve relativamente fiel à sua origem. Se no livro de Robinson ela era londrina, o filme a transformou em uma nativa de Tóquio, preservando a pompa de uma garota da cidade grande.

Infelizmente, as pouco menos de 2h do anime não foram suficientes para reproduzir todos os detalhes do romance. E Scilla, personagem secundária, acabou vítima da sala de edição.

Embora o conteúdo da sua participação não tenha mudado, a forma como é contada sofreu algumas das mudanças mais expressivas.

No filme, Anna conhece Sayaka quando esta grita o nome de “Marnie” da janela. No livro, o encontro é a conclusão de uma perseguição de dias, em que ambas as garotas pensam que estão atrás de um fantasma.

Quando a revelação de fato aparece, é de uma forma tão doce que nos faz sentir pena de não ter sido adaptada às telas:

A maré já havia virado quando ela alcançou a praia. O céu estava encoberto e parecia cinza e solitário, muito diferente do local ensolarado onde eles tinham jogado críquete naquela tarde. Tinha sido estúpido fazer todo aquele caminho até ali só para ver alguma coisa escrita na areia por uma garotinha, ela pensou. Mas ela desejara vir. Ela gostava de Scilla e estava feliz em saber que ela desejava compartilhar um segredo com ela, mesmo se fosse um segredo infantil.

Ela andou até a beira da água e o viu. Conchas e tiras de algas tinham sido usadas para fazer o padrão detalhado de cada letra, e o nome MARNIE estava escrito na areia. (p. 201)

 

A vendedora de flores

A amizade entre Marnie e Anna começa de forma tímida. Ciente das suas visitas, a habitante do casarão passa a deixar um barco para que Anna possa visitá-la. Sua casa, afinal, fica de frente a um pântano, inacessível a pé na maré alta.

É apenas ao tomar os remos e surpreender a amiga durante uma festa que sua estrepolia de verão se transforma em uma aventura para nunca mais esquecer. Em vez da amiga, Anna encontra uma festa de arromba povoada por ricaços e mordomos saídos de Downtown Abbey:

“Homens e mulheres em uniformes negros e vestidos brilhantes moviam-se de um lado para o outro. Anna viu o cintilar de jóias, o lustro de correntes de ouro, a luz reluzindo em taças de vinho, vasos de rosas vermelhas e brancas e um fundo de cortinas carmesins. O corredor foi subitamente preenchido pelo som de vozes e gargalhadas e música. (p. 99)

Anna tenta fugir, mas Marnie lhe dá uma ideia melhor. Emprestando-lhe um xale e um cesto de flores, ela disfarça a amiga de “cigana” e pede que se intrometa no baile fingindo ser uma mendiga.

O plano, surpreendentemente, dá certo. Anna se torna uma sensação, bebe vinho pela primeira vez e dança bêbada nos braços de Marnie sob a luz do luar.

A cena é tão perfeita ao espírito e à letra do livro de Robinson que mal deixa o que comentar. Os animadores chegaram até a reproduzir a mesmíssima flor que Anna colhe no livro: a lavanda do mar, gênero nativo de Norfolk.

A realidade começa a se dissolver

A festa leva Anna a pensar que seus dias com Marnie são bons demais para serem verdade. Em tempo, ela descobre que de fato são.

Depois daquela noite, Marnie convida Anna para participar de um jogo. Cada uma responderá a três perguntas sobre sua vida.

Tudo parece normal até que Marnie lhe pergunta como é morar na casa dos Pegg:

Anna abriu sua boca para responder e descobriu, para sua surpresa, que ela não conseguia se lembrar. Talvez fosse porque ela estivesse pensando na resposta de Marnie e se perguntando se era Pluto quem ela às vezes escutava latindo de noite. Como era estar na casa dos Pegg? Nem um mísero detalhe ela conseguia lembrar. Tudo havia saído de sua cabeça tão completamente como se alguém tivesse apagado uma lousa com uma esponja. Marnie, que até então só parecia meio real, tinha agora se tornado mais real que os Pegg. (p. 81)

Anna sente como se estivesse habitando duas realidades diferentes que não se misturam. Quando está com Marnie, o mundo “normal” parece desaparecer. Quando está na cidade na companhia dos outros, a amiga desaparece, e seu casarão volta a ser uma ruína.

A dualidade começa a afetar sua própria mente. Com o tempo, ela se vê repetindo a Marnie coisas que a amiga disse a ela – e escutando, em troca, frases que um dia saíram de sua boca:

“Isso é o que eu disse a você – da última vez em que nós estávamos aqui.”

“Foi mesmo?”

“Sim, você não lembra? Oh, pobre Marnie! Eu amo você. Eu amo você mais do que qualquer garota que eu já conheci”. Ela estendeu a mão para tocar os cabelos de Marnie, então parou a meio caminho. “E foi isso que você disse para mim” ela disse devagar, com um olhar surpreso em seu rosto. “Que engraçado. Até parece que estamos trocando de lugar.” (p. 145)

Yonebayashi não se contentou em reproduzir a cena nos seus mínimos detalhes.  Ele usou toda a bagagem visual do Studio Ghibli para contrastar (e misturar) a realidade com o mundo dos sonhos.  Repetindo uma técnica usada por Miyazaki em Vidas ao Vento, o diretor acrescentou uma cena deliberadamente fantástica à sua história realista.

Em dado momento, próximo ao fim do longa, Anna se vê perdida em um dilúvio, que envolve toda a praia até deixar apenas um pequeno morro.

Ao subir à segurança, uma onda de cor varre a paisagem, transformando o casarão em ruínas na mansão iluminada de seus sonhos.

A cena não aparece no livro – pelo menos, não desse jeito. Apontar isso, contudo,  é perder o mais importante de vista. Sem as longas descrições e o discurso indireto do romance, Yonabayashi precisou de outros recursos para ilustrar a catarse de Anna. A solução que arranjou conseguiu ser mais emocionante que seu material de origem.

O diário de Marnie

A confusão de Anna começa a ser elucidada quando Scilla (Sayaka) entra na história.

A revelação vem de um diário que a colega encontra no antigo quarto da garota, narrando em detalhes as aventuras que ela e Anna viveram juntas. O texto não deixa dúvidas de que Marnie foi uma garota de verdade, não apenas obra da sua imaginação.

Só há um pequeno problema: o diário tem mais de cinquenta anos. Como ela pode se lembrar de coisas que aconteceram há tanto tempo?

No filme, o pequeno caderno tem uma participação mais expressiva do que no romance original. Encontrado com folhas arrancadas, Sayaka eventualmente o complementa com outras páginas achadas pelo casarão. O resultado são duas cenas de revelação, completando o quebra-cabeças ao longo do terço final do longa.

No livro, pelo contrário, o diário dá apenas as pistas iniciais às garotas. O verdadeiro mistério só seria complementado depois (vide “A História de Gillie” abaixo) em uma escolha narrativa que tirou muito do protagonismo de Anna e Scilla.

O fundamental, no entanto, se manteve o mesmo. O diário lhes conta que Marnie sofria de um terrível medo. Disposta a ajudar a amiga (e, no processo ,entendê-la), Anna decide enfrentá-lo.

O moinho

Na cidadezinha costeira havia um antigo moinho, que rumores diziam ser assombrado. Marnie morria de medo do edifício – por motivos um tanto menos óbvios.

Apesar de parecer viver uma vida de princesa, Marnie era maltratada pelas governantas. Quanto seus pais saíam para viajar (o que acontecia com bastante frequência), as criadas da mansão aproveitavam para maltratá-la.

As punições incluíam trancá-la no quarto, machucá-la de propósito (penteando seus cabelos com pentes duros) e algo ainda pior: arrastá-la até o moinho, ameaçando trancá-la dentro da torre apodrecida.

Certo dia a tortura foi longe demais, e uma tempestade inesperada acabou trancando a pobre Marnie no moinho. A garota só foi salva por seu primo Edward (no filme, Kazuhiko) que depois tornar-se-ia seu marido.

Com a intenção de fazê-la confrontar seu medo, Anna leva Marnie de volta ao moinho para mostrar como não a nada a temer. As duas são surpreendidas por outra tempestade, que termina deixando Anna apavorada, ensopada e delirante de febre.

Moinho de Burham Overy Sthaithe, que inspirou o local do livro.

O moinho (que existe de verdade) também ganhou espaço na adaptação. Entretanto, o sentido do episódio variou um pouco de uma mídia para outra.

Primeiro por conta da postura da própria Marnie. Se no livro ela é retratada como uma vítima de um staff tirano, no filme ela é uma garota simplesmente infernal.

No seu pior momento, chega a prender sua governanta debaixo de um cobertor e a tranca dentro do quarto para que não atrapalhe sua travessura com Anna.

Somando a isso a diferença de classe entre Marnie e a governanta, não é de se espantar que as criadas nutrissem rancor. Embora nada justifique as crueldades que infligiam à menina, é possível ver como, ao seus olhos, ela teve o que merecia.

A diferença mais importante, porém, diz respeito à própria Anna. No livro, já febril e delirante, a garota escuta Marnie sendo salva por Edward. Ao vê-los ir embora sem resgatá-la, ela fica desolada. Depois de tudo o que tinha feito por Marnie como ela ousava abandoná-la?

A crise em sua amizade aparece nas telas, mas nem de longe com a intensidade com que foi trabalhada no romance. Na história de Robinson é justamente fazer as pazes com aquela traição que move Anna a desvendar o mistério até o fim.

De certa forma, toda a sua amizade é apresentada como uma rivalidade não declarada entre ela e Edward. Considerando que o rapaz é na verdade seu avô e que Marnie a criou como mãe (vide abaixo), a sub-trama tem um sentido simbólico mais profundo.

Anna, afinal de contas, foi abandonada diversas vezes durante sua vida: pela sua mãe que morreu, pela sua avó; que faleceu logo depois; por Sra. Preston, sua mãe adotiva, que cuida dela (ao seu ver) apenas por dinheiro.

Apavorada pelo espectro do abandono materno, ela o projeta sobre a garota misteriosa.

Nada é por acaso. Como Anna logo descobre, Marnie é muito mais que uma “amiga”.

A história de Gillie

No final, a verdade chega de onde Anna menos espera. Gillie, uma artista da cidade, visita a família de Scilla pouco depois de se mudarem. Ao escutar a história das garotas, ela revela o twist que fez amantes de yuri do mundo todo espumarem de desapontamento.

Marnie, no final das contas, não é uma paixonice imaginária de Anna. É uma amiga de infância de Gillie, que viveu naquela mesma casa cinquenta anos atrás.

Mais: ela é a avo da própria Anna, que a criou quando bebê.  Se Anna tem memórias tão vívidas dela – mesmo de episódios que não estão em seu diário – é porque Marnie usava essas histórias para embalá-la no berço.

As memórias foram embora, mas alguns fiapos permaneceram. Como uma foto antiga da casa do pântano, assinada por Marnie, que Anna segurava em sua mão no dia em que foi adotada.

No livro, quem une os pontos é sua mãe adotiva, Sra. Preston, que viaja para encontrá-la e bate um papo com a mãe de Scilla. A decisão resulta em uma série de capítulos expositivos, em um encerramento que já foi criticado por ser óbvio demais.

Gillie (em japonês, Hisako) também aparece no filme do Studio Ghibli. Feliz – e surpreendentemente – sua participação é muito mais sutil do que no romance.

No longa, ela é introduzida desde cedo como uma artista local, uma arma de Chechov que disparará em uma das cenas finais, depois de ter reconhecido Marnie a partir do desenhos que Anna esboça.

Infelizmente, é aqui que a “modernização” da história feita por Yonebayashi tem suas consequências mais drásticas.

No filme, os pais de Marnie são bon vivants que esquecem Marnie nas mãos da governanta enquanto curtem festas dignas do Grande Gatsby.

No livro, eles também estão ausentes, mas devido a uma obrigação de outra natureza: A Guerra para Acabar com Todas as Guerras.

Navio afundando durante a Batalha da Jutlândia, 1916

Marnie viveu cinquenta anos antes de Anna. Como a história se passa nos anos 1960, isso significa que ela viveu durante a Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918.

Seu próprio pai morreu em um navio afundado, deixando a mãe, sozinha, para administrar casa, negócios e família. Não é à toa que Marnie terminou largada nas mãos de suas governantas.

O próprio fato de Marnie ter uma governanta – três, na falta de uma! – já diz muito sobre ela. A avó de Anna não era uma garota qualquer. Era uma aristocrata britânica, vivendo em uma época em que divisões de classe eram mais intransponíveis que as trincheiras do Somme.

Marnie não era trancada em seu quarto porque era bagunceira. A mansão do pântano era uma gaiola dourada feita para separá-la de outro perigo: as crianças da “plebe” – como Wuntermenny – com quem era proibida de se relacionar.

Nascida ela própria em 1910, Joan Robinson conhecia muito bem esse mundo. E a sinceridade com que o explica às crianças em seu livro é tão inocente que chega a ser cruel:

“Ela estava sempre muito animada – uma companheira maravilhosa – e sempre parecia alegre em brincar comigo. Aquilo era uma surpresa para mim, porque eu não era uma criança muito excitante, isso eu posso lhes dizer! Eu era careta e sem-graça. Mas eu não acho que ela tinha muitos outros amigos.

“Por que não?” perguntou Scilla

“Era diferente naquela época.” Gillie explicou. “Crianças não faziam amizade umas com as outras casualmente, como elas fazem hoje” ela disse “Nós sempre tínhamos de pedir às nossas mães primeiro” (p. 253)

As tragédias não param por aí. No anime, Marnie manda sua própria filha, mãe de Anna, a um colégio interno depois da morte de seu marido. A Marnie do livro é forçada a coisa parecida, mas por motivos muito mais terríveis:

Eles caíram em silêncio, desapontados e um pouco tristes. Então Jane perguntou:  “O que aconteceu com o bebê de Marnie?”

Aquela tinha sido uma história triste, disse Gillie. Ela tinha apenas cinco ou seis anos quando a Segunda Guerra Mundial chegou e ela foi mandada para os Estados Unidos para se proteger dos bombardeios. Quando ela voltou já tinha quase treze anos e parecia outra criança, sua mãe disse – tão crescida, tão cheia de vontade e independente. E ela sempre pareceu ter rancor da mãe por tê-la mandado para longe, muito embora tenha sido para sua própria segurança (p. 263)

Londres em ruínas após os bombardeios nazistas

Ao trazer sua história para o presente, Yonebayashi jogou toda essa bagagem pelo ralo. Se isso deixou sua história mais acessível aos jovens contemporâneos, também mudou radicalmente seu sentido.

Marnie, o livro, não é apenas um coming of age. É um romance geracional sobre duas garotas de épocas diferentes confinadas por prisões invisíveis: a gaiola dourada da aristocracia pré-guerra e a solidão de um presente que força todos a serem felizes.

É um retrato de uma geração de britânicos marcados pelo turbilhão da guerra – e pelas transformações sociais drásticas, libertadoras, mas também violentas trazidas pelo conflito.

Por que Yonebayashi não decidiu unir o útil ao agradável, como fez Miyazaki em Vidas ao Vento ou o não-Ghibli Sunao Katabuchi em Nesse Canto do Mundo – é difícil de entender.
O Japão afinal de contas, não é um estranho ao trauma da guerra. A morte do pai de Marnie na Batalha da Jutlandia faria o mesmo sentido no Estreito de Tsushima. E o espectro  da Blitz de Londres não é mais poderoso que o da bomba de Hiroshima.
Seja como for, não tenho como afastar a impressão de que isso fez de Marnie uma entrada menor do cânone ghibliesco, sem o poder e relevância de Princesa Kaguya ou  Túmulo dos Vagalumes.


Marnie, de Yonebayashi, é fidelíssimo ao romance original de uma forma que raramente se vê no cinema. Nenhum detalhe se perdeu na adaptação, nem mesmo seus personagens secundários e peculiaridades do cenário.

Se o filme não supera o livro, no entanto,  é porque falha em capturar o que estava além das palavras. Sem o DNA britânico que Robinson deu à sua história – do passado da Guerra ao sotaque de suas personagens –  o longa perde aquilo que fazia dela única.

A escritora Linn Ulmann certa vez disse que histórias precisam de um “senso de um lugar”. Ao arrancar Marnie de sua Norfolk do pós-Guerra, o filme do Studio Ghibli se tornou inofensivo, até um tanto genérico: mais um (de tantos) contos de angústias adolescentes.

Nada de errado com isso. Mas, até aí, também nada de novo sobre o sol.

Gostou do artigo? Gostaria de ver outras adaptações destrinchadas? Deixe-me saber nos comentários!

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Os animes são uma mídia para adultos? (Parte 1) https://www.finisgeekis.com/2016/07/06/os-animes-sao-uma-midia-para-adultos-parte-1/ https://www.finisgeekis.com/2016/07/06/os-animes-sao-uma-midia-para-adultos-parte-1/#comments Wed, 06 Jul 2016 19:29:55 +0000 http://finisgeekis.com/?p=7891 Para nós, otakus ocidentais, a pergunta parece absurda. Não é raro encontrar comentários de que a animação japonesa é o território para “mentes maduras”, uma luz no fim do túnel em meio à infantilidade grudenta de Hollywood.

De fato, do nosso lado do Pacífico os animes não apenas conquistaram um público devoto entre os maiores de idade. Eles se consagraram como a animação “para adultos” por excelência.

Por incrível que pareça, nem todos concordam com isso. E não falo de desafetos da animação japonesa, mas de alguns de seus maiores fãs e divulgadores.

Justin Sevakis, do Anime News Network, é um dos que têm atacado o senso-comum. Segundo ele, mesmo no Japão a animação é encarada como um passatempo infanto-juvenil – ou, na melhor das hipóteses, como um entretenimento “para toda a família”.

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Com a exceção dos filmes do Studio Ghibli e das grandes franquias para o público jovem, animes são um entretenimento de nicho. Emissoras de TV só aceitam transmiti-los porque são pagas pelos produtores.

Para Sevakis, não haveria, no Japão inteiro, mais do que algumas centenas de milhares de otakus. Para o japonês comum, “anime” é sinônimo de infantilidade. Ou, o que é ainda pior, de adultos que se recusam a crescer, hikikomoris e pervertidos fascinados por dakimakuras e jogos eroges.

otaku bedroom

E que habitam quartos como esse

Há razões para crer que Sevakis possa estar exagerando. Uma pesquisa online feita pela agência DoHouse em 2010 concluiu que cerca de metade dos japoneses assiste a animes na TV.

Se números por si só não forem reveladores, a oferta de animes na última temporada com certeza é. Embora a maior parte dos lançamentos corresponda a gêneros com grande apelo entre o público juvenil, algumas séries distoam – e muito – da imagem da mídia como um “hobby de crianças”.

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Showa Genroku Rakugo Shinju, que ganhará em breve uma segunda temporada, nos trouxe um drama lento e pés-no-chão sobre uma das artes mais tradicionais do Japão. Já Joker Game pisou em todos os calos e arriscou abordar um dos períodos mais polêmicos da história japonesa.

Seriam esses animes prova de uma mudança de demografia? Ou, pelo menos, de que há um nicho de otakus adultos, interessados em algo mais além de battle shounens e slice of lifes escolares? Ou estaria o Justin Sevakis certo, e não seria isso tudo apenas nossa impressão?

Essa não é uma pergunta simples. Felizmente, não preciso encará-la sozinho. Fábio Godoy do Anime21, Diego Gonçalves do É Só um Desenho e Vitor Seta do Otaku Pós-Moderno  se juntaram a mim para tentar respondê-la.

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Diego: Antes de mais nada, eu acho… não exatamente “pertinente”, mas interessante apontar que no último Festival de Annecy, Guillermo del Toro fez um comentário sobre como ele acha que a animação é uma arte adulta.

Acho que no mundo inteiro temos essa noção de que “desenhos são para crianças”, e com a quantia brutalmente maior de obras em animação saindo para esse público do que para qualquer outro, acho que é difícil não haver, nas pessoas, pelo menos uma noção de que a maioria das animações é mesmo para crianças.

Isso dito, eu acho que não podemos tratar os animes da mesma forma que tratamos, digamos, os desenhos americanos. Porque a animação japonesa é quase que uma mídia própria, por assim dizer. E dentro dessa mídia você vai, sim, ter os animes mais voltados para crianças e adolescentes, como Naruto, Dragon Ball, One Piece, Death Note e por ai vai.

Mas ao mesmo tempo você tem obras que eu duvido que fossem entreter alguém muito jovem. E eu nem me refiro a coisas como Showa ou Joker Game, embora possa incluir, mas penso em coisas como Kino no Tabi, Mushishi, ou mesmo animes que são ridiculamente complexos e intrincados, como Ghost In The Shell Stand Alone Complex, ou Mawaru Penguindrum, são obras que se você der pra uma criança ver, mesmo pra um adolescente (digamos, até uns 15, 16 anos), a criança não vai entender nada.

Mawaru Penguindrum - 01 - Large 34.jpg

Na minha opinião, anime não “é” de faixa etária alguma, temos obras para todas as idades, desde criancinhas na pré escola (Hamtaro), passando por adolescentes (Naruto, Dragon Ball), jovens adultos (digamos, Joker Game), até mesmo adultos para lá dos 30 anos (Master Keaton, por exemplo).

Isso dito, eu vou encerrar com uma pequena provocação, que é a seguinte: que fosse, então, algo de criança, haveria ai algum problema? Por que temos essa noção que o que é “para crianças” é, de alguma forma, inferior aos demais? Ser “para adultos” é algum tipo de “atestado de qualidade” ou de respeito?

Fábio: O próprio Vinicius, ao abrir essa conversa, e o Diego depois, trouxeram vários dados, entre estatísticos e factuais, que mostram sem muito espaço para dúvidas que pelo menos parte da produção de animes, inclusive da produção mainstream (ou seja, o anime para TV, ou se preferirem, os “animes de temporada”), tem como público alvo pessoas adultas.

Se elas são apenas hikikomoris e outros rejeitos sociais contados em centenas de milhares (um número pequeno para o tamanho da população japonesa) eu não vou debater por enquanto, mas ainda assim que se note: hikikomoris e qualquer um que por qualquer razão desvie do padrão da sociedade, vivendo ora dentro dela em posição desconfortável, ora como um pária à sua margem, continuam sendo adultos.

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Antes de qualificarmos os adultos que assistem anime precisamos primeiro chegar a um acordo sobre eles existirem ou não. E eles existem. E existem animes de conteúdo adulto que portanto só podem ser produzidos para eles. O que veio primeiro: adultos consumindo anime ou animes produzidos para consumo adulto?

Essa questão é relevante mas não tratarei dela nessa introdução. Se e quando a discussão chegar nesse ponto vamos argumentar e pesquisar sobre isso.

Sendo isso apenas uma introdução, introduzir-me-ei: como muitos brasileiros, meu primeiro anime foi Cavaleiros do Zodíaco. Eu ainda não sabia o que era anime e portanto não sabia que Cavaleiros era isso. Juro, eu não tinha consciência de que aquilo vinha do Japão.

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Claro, devo ter notado isso em alguns momentos, como quando parava para pensar nos nomes deles ou no fato da base de operações dos heróis ser no Japão, mas não é como se nosso país tivesse uma tradição em animações mesmo e eu cresci assistindo-as de toda parte do mundo. Bom, basicamente dos EUA com Hanna Barbera, Looney Tunes, Ducktales, Tom & Jerry e Pica-Pau, principalmente, mas como também sempre fui fã da TV Cultura assistia com alguma frequência desenhos de origem europeia.

Bom, a maioria era chato, pensando bem, mas o ponto não é esse: animação, “desenho”, era algo necessariamente estrangeiro, poderia vir de qualquer lugar do mundo, então mesmo quando eu percebia a, er, “japonicidade” de Cavaleiros do Zodíaco, isso simplesmente não me dizia nada.

Eu já era adolescente quando assisti Cavaleiros do Zodíaco. Só fui ter consciência da indústria de animação japonesa como algo especial anos depois, assistindo anime em VHS pirata de famosa loja de animes piratas que já sustentou sozinha eventos de anime no bairro da Liberdade por alguns anos.

Saber Marionette J e Love Hina, foram esses os primeiros animes que assisti. Em japonês com legendas em português, com plena consciência de que eram animes (“e não desenhos”, o que levei uns anos para desaprender) e de que isso fazia deles algo especial, diferente das animações com as quais eu estava acostumado até então.

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E eram bem diferentes mesmo! Diferentes inclusive do tal Cavaleiros do Zodíaco. Não são obras adultas não importa como se olhe para elas, mas eu já era um adulto quando assisti, e assisti junto com outros adultos, e ainda que fossem produtos adolescentes (não infantis, e mesmo isso já os diferenciava de tudo o que eu havia conhecido até então – inclusive Cavaleiros) eventualmente tocavam em temas mais sérios (não complexos, apenas mais sérios mesmo), coisas com as quais eu podia me identificar ou me emocionar sinceramente.

Acho que até hoje eu vou chorar assistindo os episódios finais de Saber Marionette J – mesmo hoje em dia não é qualquer anime que acerta o timing emotivo como aquele, quem assistiu sabe do que estou falando e quem não assistiu, por favor acredite nas minhas palavras.

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Depois disso, conheci muito mais animes. Na verdade, conheci só mais alguns e estagnei por anos apenas lendo mangás, mas as duas indústrias são contíguas, então nunca estive muito afastado.

Quando retornei aos animes, os conheci aos montes. Animes novos, antigos. Filmes animados, animes para TV, especiais direto para o vídeo. Os mais diferentes tipos de traço, narrativa, gênero. E para diversos públicos-alvos distintos. Animes para crianças. Animes para adultos. Eles com certeza existem. Mesmo se não existissem acredito que eu continuaria assistindo animes – eu sou um pouco pária social, como as centenas de milhares de japoneses que o Sevakis apontou, hehe.

Mas não acredito que seria só eu, nem acredito que apenas párias como eu assistiriam. E é porque todos nós, párias ou não, assistem animes, e os produtores japoneses sabem disso, em um país com uma população cada vez mais velha, que animes para adultos são produzidos.

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Eu sou adulto e assisto animes. Mais do que isso: eu só comecei a assistir animes porque animes depois de adulto. E embora nem japonês seja, embora não exista um só engravatado japonês pensando especificamente em mim (meia-verdade: supostamente a recente onda de mais produtos da franquia Cavaleiros do Zodíaco tem sim muito a ver com os fãs ocidentais), eu sei que, em que pese a diferença de valores entre japoneses e ocidentais, muita coisa do que eu assisto definitivamente só pode estar sendo produzida tendo o espectador adulto como paradigma necessário.

Vitor: Na minha visão, a noção do público-alvo como indicador de audiência recomendada é algo extremamente duvidoso em uma obra de animação.

E isso não se restringe às animações japonesas. Em 2004, o estúdio Pixar abordava temas como vigilantismo, desestruturação familiar e frustração pessoal e profissional em um dos seus maiores sucessos, Os Incríveis.

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Aqui vai uma sinopse básica desse filme: uma família de (ex)super-heróis tem que resolver suas diferenças para enfrentar um novo vilão. Perfeito para levar as crianças para o cinema, certo?

Pois é, animações infantis não são idealizadas por mentes infantis. No Oriente, quem faz esse papel, até há mais tempo e com mais intensidade, nos cinemas, é o Studio Ghibli, com filmes carregados de críticas sociais, simbolismos e levantamento de bandeiras, que mesmo assim funcionam com o público infantil.

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Essa pequena divagação me leva ao ponto principal: em animações, público-alvo é uma noção puramente comercial, uma orientação mercadológica de quem investe nesses produtos.

Poderíamos mergulhar numa discussão ainda mais ampla que remete à origem da animação e a práticas culturais nas sociedades orientais e ocidentais, o que nos ajudaria a entender por que o publico infantil é, na esmagadora maioria das vezes e nos dois polos do globo, o associado às animações.

Entretanto, meu ponto aqui, por enquanto, é separar o comercial do artístico. É plenamente possível abordar temáticas adultas em obras direcionadas para o publico infantil, ainda que essas temáticas estejam “mastigadas” para uma mais fácil compreensão e absorção do seu publico-alvo, assim como deixar as mensagens lá, de forma que só a mamãe ou o papai que levaram os filhos para assistir Princesa Mononoke ou Os Incríveis, captarão.

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O que tudo isso tem a ver com o mercado de animes?É o fato dessas temáticas sempre estarem lá, há anos e aos montes, estigmatizadas pela tal noção comercial de público-alvo. O que acarreta em um bizarro sentimento de “perda” de maturidade ao consumir esse tipo de material, especialmente em uma sociedade estrita na questão da relevância social, como a japonesa.A pesquisa da DoHouse e o sucesso recente de obras com essa temática, citadas no começo da discussão, só reforçam isso. Há públicos dispostos a consumir essas obras, dentro e fora do nicho, mas como quebrar a barreira de uma mídia negativamente marcada?

 

Confiram semana que vem a segunda parte dessa discussão

 

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Existe anime fora do Japão? https://www.finisgeekis.com/2015/11/09/existe-anime-fora-do-japao/ https://www.finisgeekis.com/2015/11/09/existe-anime-fora-do-japao/#comments Mon, 09 Nov 2015 19:12:39 +0000 http://finisgeekis.com/?p=844

Da lista de perguntas que causam flamewars com maior frequência, essa com certeza está no Top 10. Os animes conquistaram o mundo faz já algum tempo, e de lá para cá são vários os artistas que se inspiraram no estilo para criar seus próprios trabalhos. Mas seriam essas obras “animes”, também?

Se trocássemos “anime” por “mangá”, creio que poucos discordariam. Muitos cartunistas ocidentais já se puseram a escrever seus próprios mangás. Apenas no Brasil, a Editora JBC já realizou concursos brasileiros, cujos ganhadores foram publicados pela revista Henshin. E isso sem mencionar todo o mercado de fanzines.

Mesmo na animação, há quem argumente que o nome “anime” pode ser aplicado a animações ocidentais que emprestam fórmulas e visuais dos desenhos japoneses. Elas incluiriam séries como Avatar, A Lenda de KorraTeen Titans, Samurai Jack e mesmo Meninas Super Poderosas.

Encontre o anime

Encontre o anime

Problema encerrado? Nem de longe. Muita gente discorda dessa posição. O Anime News Network, maior portal de anime e mangá em língua inglesa, define “anime” exclusivamente como animação produzida no Japão. Com o mangá é a mesma coisa. Criações ocidentais inspiradas na estética nipônica são chamadas pelo site de “mangás do mundo.”  O nome é inspirado na categoria dos “mangás globais”, criada pela editora Tokyopop para a sua linha de “mangás” ocidentais.

Quem estaria com razão? Haveria alguma razão, ou seria esse um assunto melhor deixado às flamewars da vida?

Eu acredito que haja pontos bons de ambos os lados. Porém, para chegarmos até eles, precisamos desbravam as opiniões mais a fundo.

Anime: uma denominação de origem.

Chris O’Brien, em uma coluna para o Escapist, fez uma das defesas mais apaixonadas da universalidade do anime. Ele aponta A Lenda de Korra como um perfeito exemplo da mídia, e justifica seu ponto com um paralelo com o mundo das bebidas. Em especial, com o conceito de denominação de origem controlada, ou DOC.

docUma DOC é uma categoria de bebidas padronizadas, cuja produção precisa cumprir uma série de requisitos para garantir o selo. Elas podem ser mais ou menos rígidas – nos casos mais famosos, controlam até mesmo como os produtores devem plantar a matéria prima. Se uma bebida não respeitar as regras, não pode levar o nome da DOC.

A característica mais marcante de uma DOC é a necessidade de ser produzida em uma determinada região. Assim, só espumantes da região de Champagne podem se chamar champagne, só os portugueses podem fazer vinho do porto, só os americanos podem fazer Bourbon e só os brasileiros têm direito a produzir cachaça.

O’Brien muito libertariamente diz que isso é tudo um grande conchavo de políticos para estufar os bolsos de dinheiro e acabar com a livre-concorrência. Para ele, o consumidor não está nem aí para a origem da bebida ou para o jeito como ela é feita. Ele só deseja beber e se divertir.

Com a animação seria a mesma coisa. O rótulo “anime”, tal como DOC, estaria aí apenas para evocar um falso senso de purismo e depreciar as excelentes animações em estilo japonês produzidas fora da Terra do Sol Nascente.

Eu tenho simpatia por alguns pontos de O’Brien. No entanto, se existisse um prêmio de comparação mais descabida da internet, ele com certeza o levaria. Em primeiro lugar, DOCs não são decretos de cima para baixo, mas fruto da pressão dos próprios produtores para valorizar aquilo que fazem. Na maioria das vezes, elas servem para oficializar práticas tradicionais que, em alguns lugares, têm sido feitas informalmente há séculos.

Elas cumprem sim, a função de proteção, mas não a proteção dos consumidores contra os “imitadores” de meia tigela. Antes, elas servem para proteger os próprios estilos frente à popularidade de novas formas de se fazer bebida que surgiram no Novo Mundo. Elas não só não “reduzem a criatividade” como são, elas mesmas, resultados de um mundo globalizado em que todo mundo têm direito de fazer o que quer e vender para quem quiser.

Mais: nenhum produtor é “forçado” a produzir dentro da DOC, mesmo se viver na zona de origem. Um exemplo são os supertoscanos, vinhos  “rebeldes” da região de Chianti que se tornaram alguns dos melhores da Itália.

Dizer que anime é um rótulo como a DOC é dizer que os japoneses estão com medo de serem “ocidentalizados” pela animação gringa e criaram um rótulo para proteger sua produção nacional, forçando seus profissionais a desenharem sempre do mesmo jeito. Dada a imensa popularidade da estética anime no mundo e a receptividade dos japoneses às influências estrangeiras, a explicação não tem pé nem cabeça. Ainda mais se considerarmos que a própria “cultura otaku” que os animes promovem foi feita com base em elementos ocidentais.

O’Brien também parece esquecer uma coisa muito importante. Ao contrário do que ele diz…

As pessoas não pagam apenas pelo produto

figures

Há um motivo que leva as pessoas a pagarem R$350,00 numa garrafa de Veuve Clicquot em vez de beber um espumante do Vale do São Francisco por R$20,00. E não é a qualidade (a título de curiosidade, os espumantes brasileiros são referência mundial).

O champagne é uma bebida histórica, estilosa, que “agrega no camarote”, como disse um certo meme-humano. Quem paga uma pequena fortuna em um champagne não o faz apenas pelas bolinhas. Eles querem algo mais.

E não digo isso apenas pela “ostentação”. Criações tradicionais atraem pessoas porque o público já sabe o que esperar delas. Elas têm uma fama e um propósito que vai além da experiência.

Animes – tais como outras “escolas” de animação – tem suas próprias convenções, o seu próprio “banco de dados” de personagens, cenários e histórias que atiça a memória do fã. Isso sem contar toda a fascinação com a cultura japonesa, que normalmente leva jovens e estudantes de língua a tornaram-se espectadores assíduos.

Quem busca esse tipo de entretenimento pode muito bem se divertir com outros tipos de animação – afinal de contas, ver uma coisa não nos proíbe de assistir outra também. No entanto, o que ele busca no momento em que deseja assistir ao anime é algo que acha que só o anime é capaz de dar.

Ou, ao menos, é o que certos fãs dizem. Na prática, a coisa é um pouco mais complicada, pois…

Não há, no Japão, um consenso sobre o que seja “anime”

Logo do Studio Ghibli. A palavra

Logo do Studio Ghibli. A palavra “anime” (アニメ) não aparece.

Aqui quem nos ilumina é Brian Ashcraft, o correspondente da Kotaku no Japão. Segundo ele, os japoneses nunca tiveram uma única palavra para definir a arte que faziam. Mesmo o termo “anime” só se tornou popular a partir dos anos 1970. Ou seja: os clássicos do Osamu Tezuka dos anos 1960, tidos por alguns como a origem do anime, só ganharem esse nome depois de terem sido produzidos.

Para complicar, se o termo “anime” acabou se tornando uma marca para a animação japonesa no exterior, no Japão isto não aconteceu. O nome é usado para se referir a Sailor Moon e Samurai X  tanto quanto para animações ocidentais como os Looney Toons:

anime antique collection

Não fosse o bastante, muitos animadores japoneses não utilizam o termo “anime” para suas próprias obras. O próprio Studio Ghibli, talvez a maior referência em animação japonesa, muitas vezes opta apenas pelo termo sakuhin (“obra”), o mesmo usado pela Disney em seus lançamentos no Japão. E, se a estética do Ghibli está indiscutivelmente dentro do que chamamos de “anime”, o mesmo não pode ser dito de muitas outras séries que não obstante levam o nome do estilo:

shin chan

Se nem mesmo os japoneses estão preocupados em preservar sua “marca”, haveria sentido em definir anime como uma produção exclusivamente oriental? Em um mundo cosmopolita em que todos se influenciam mutuamente, não seria melhor nos guiarmos apenas pela estética?

O que dizem os contrários

O blog Animenation acha que não, e apresenta um argumento compartilhado pelo Anime News Network, que citei acima. Segundo seu autor, é justamente por vivermos em ambiente interconectado em que todos se influenciam que é necessário definir com precisão o que significa “anime”.

Hoje em dia, a estética da animação japonesa já está tão difundida que é possível encontrar referências em filmes e séries que nada têm a ver um com o outro. Mais: o próprio estilo exagerado do anime, com seus olhos gigantescos e gestos extravagantes, não foi criado no Japão, mas “importado” por Osamu Tezuka e seus contemporâneos de personagens famosas dos Estados Unidos, como a Betty Boop.

betty boop

Se fôssemos, seguindo O’Brien, levar apenas o estilo em consideração, logo  “anime” se tornaria quase sinônimo de “animação”. E, se é verdade que animadores de toda parte têm seus pontos em comum, às vezes queremos nos referir especificamente à mídia popularizada no Japão. Para fins analíticos – dizem essas páginas – não há alternativa melhor do que definir anime pelo seu país de origem.

E quando ao uso casual? Neste caso, tanto o Animenation quanto o Anime News Network acreditam que não haja diferença em adotar o nome “anime” para tudo. Afinal de contas, se não estamos escrevendo um artigo acadêmico ou calculando uma estatística de mercado, por que isso seria importante?

Por que, como tudo na vida, mesmo as coisas complicadas podem ficar ainda mais complicadas.

O anime é uma expressão da cultura japonesa

Space-Battleship-Yamato

Para a maioria dos otakus ocidentais, a frase acima é suficiente para fazê-los revirar os olhos. Aqueles que fazem cosplay talvez se lembrem das peças raras na internet que dizem que apenas japoneses podem encarnar personagens de anime, já que eles foram “feitos para japoneses.”

Acreditem em mim, no entanto, quando digo que essa frase não tem a ver com nenhum discurso do tipo. Mais do que isso: ela não foi dita por um troll nos fóruns do Crunchyroll, mas por dois dos maiores gênios do meio: Satoshi Kon e Mamoru Oshii.

Exatos dez anos atrás, os dois diretores integraram um número de profissionais da indústria entrevistados pela Tokyo Foundation. Os textos originais já saíram do ar, mas felizmente as páginas foram preservadas no archive.org.

Para os dois diretores, o anime não é qualquer animação – mesmo que o termo, casualmente, seja usado desta forma. Também não é uma estética, um grupo de convenções ou uma fanbase. É uma expressão autêntica da mente japonesa, que nenhuma outra cultura é capaz de imitar.

Sobre os empréstimos entre Hollywood e o cinema japonês e a possibilidade de uma arte universal, Satoshi Kon foi bastante categórico:

– Você acredita que a arte ou o estilo são universais? Que as linhas que separam a animação norte americana da japonesa estão se apagando?

Satoshi Kon: Não. Eu acho que não. A estética americana, não importa de que lado você olhe, é americana. Por exemplo, a Disney ou a Dreamworks poderiam usar técnicas da animação japonesa para fazer um fime. Mas não há como alguém dizer que o resultado é “animação japonesa”.

(…)

Mas Hollywood ainda tenta – e com teimosia, alguns diriam.

Satoshi Kon: A cultura da animação e dos quadrinhos japoneses é e foi construída sobre a experiência, mentalidade e nuances do povo japonês, então alguém que não tenha essa mentalidade não consegue criar a mesma coisa. Ela se torna apenas uma imitação. É a mesma coisa com os japoneses. Se nós tentarmos fazer algo “ocidental”, ele se tornará só uma imitação. Claro que nós podemos nos influenciar, mas apenas imitar não saudável e não é bom.

Mamoru Oshii,  tem uma opinião semelhante, muito embora (como em toda a sua obra) ele a coloque de forma bem mais dramática:

– (…) Como você se sente em relação à popularidade do anime e do mangá no exterior?

Mamoru Oshii: Eu não acho que a animação pode ser descrita de forma tão simples. Animação japonesa, animação americana, animação europeia, elas têm suas diferenças. O formato é similar. Mas, por exemplo, quanto que uma pessoa japonesa pode entender da Guerra do Vietnã? Quanto que nós podemos transmitir sobre a guerra em um filme, de qualquer maneira? Se nós tivermos um impacto no público, isto é ótimo. Na América do Norte e na Europa, meus filmes podem ser uma forma de entretenimento, mesmo que haja partes com que eles possam se relacionar porque nossas histórias estão entrelaçadas. Mas no Oriente Médio ou em outros lugares no mundo islâmico, eu não acho que o público responderia bem aos meus filmes porque eles são muito diferentes. Há uma barreira que precisamos ultrapassar. Eu não acho que exista uma cultura global. Há culturas diferentes com crenças diferentes, e isto nós não podemos esquecer. A [Guerra do] Iraque está acontecendo porque as pessoas não entendem isso.

mamoru oshii

Oshii toca num ponto interessante, e no qual geralmente não pensamos. Para ele, o que define uma “arte” não é só seu estilo, mas sua escolha de conteúdo. Não há animação como a japonesa porque apenas os japoneses falam das coisas de que falam do jeito como falam.

Há, obviamente, exceções. O Studio Ghibli, com seu universalismo, está muito mais próximo da Disney da velha guarda do que de muito do que se produz no âmbito do anime. Mesmo sim, é difícil olhar para os animes e não ver reflexões de uma sociedade que não é a nossa.

Sky Crawlersdo próprio Oshii, já foi interpretado como um ataque aos otakus japoneses, que preferem permanecer eternas crianças a se tornarem cidadãos produtivos. Paranoia Agent fala sobre o ritmo alucinado dos trabalhadores no Japão e como muitos descambam para a loucura e o suicídio. Mawaru Penguindrum é um drama sobre o ataque de gás sarin no metrô de Tóquio em 1995, um atentado terrorista completamente diferente daqueles com o qual o ocidente está acostumado. E eu já falei diversas vezes de como o trauma da Segunda Guerra e as questões sem resposta daquele época são um tema recorrente em vários animes e mangás.

paranoiaagent

E isso para citar apenas os títulos “cabeça”. Mesmo nos lançamentos comerciais nós vemos sinais inconfundíveis de que estamos lidando com algo feito em outro país. Os uniformes escolares que adolescentes usam o tempo todo, não importa se estejam em aula ou pilotando um mecha no espaço. A reverência ao senpai. As personagens que falam de costas umas para as outras para efeito dramático. As vending machines que vendem pocky e kit kats de sabores estranhos. Os baito dos jovens adultos. Os apartamentos minúsculos de um quarto só, com chão de tatame e um kotatsu para os dias frios.

kotatsu

É possível separar o anime de toda essa carga cultural? Para Mamoru Oshii, não. É possível para um criador ocidental fazer uma obra que lide com tudo isso? Possível é, mas como disse Satoshi Kon, isso seria uma imitação, e quem deseja uma imitação? Os gaikokujin têm suas próprias histórias para contar. Eles não precisam copiar as japonesas.

Independente do lado que cada um tome, há um ponto com o qual todos concordam. A boa animação pode vir de qualquer lugar, não importa o nome que damos a ela.

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Um Ano “sem” Studio Ghibli: O que Miyazaki e Companhia nos Deixaram https://www.finisgeekis.com/2015/07/06/um-ano-sem-studio-ghibli-o-que-miyazaki-e-companhia-nos-deixaram/ https://www.finisgeekis.com/2015/07/06/um-ano-sem-studio-ghibli-o-que-miyazaki-e-companhia-nos-deixaram/#comments Mon, 06 Jul 2015 21:57:00 +0000 http://finisgeekis.com/?p=454 O aviso foi feito em 2014: o Studio Ghibli não faria novos filmes, ao menos por um tempo. O fã de longa data, que escuta Miyazaki anunciar a aposentadoria desde 1997, deve ter ficado incrédulo. Porém, um ano depois, parece que seu produtor, Toshio Suzuki, falava sério. Quando Estava com Marnie, lançado no Japão ano passado e em Blu Ray esse ano no ocidente, foi o último coelho a sair da cartola. A companhia que nos deu Totoro e Nausicaa está sem planos imediatos para novos lançamentos.

Aos abalados, um consolo. Suzuki garante que o estúdio voltará, mas deve passar por uma reformulação. Será que as coisas voltarão a ser como antes? Ou teria a era dos filmes clássicos de Miyazaki e Takahata chegado, finalmente, ao seu fim?

Como o Ghibli, só o Ghibli

Se há algo que podemos dizer sobre o estúdio é que ele nunca fez anime como os outros – daí, afinal, a razão de sua justa fama. Mas há algo peculiar – para não dizer esquisito – em seus três últimos filmes. Vidas ao Vento de Miyazaki, Kaguya Hime de Takahata e Quando Estava com Marnie de Hiromasa Yonebayashi são filmes sérios, de temas pesados e andamento lento. Muito lento.

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Hans Castorp, protagonista do livro de Mann, até fez uma ponta

Está certo que dizer que o Studio Ghibli fazia filmes “para criança”  nunca agradou seus fãs, mas algo nesses últimos lançamentos diverge bem da fórmula do “filme família” – mesmo para os padrões Ghibli. Kaguya Hime arranca suspiros com uma estética inédita e uma discussão filosófica que não é para poucos. Vidas ao Vento é a versão anime do clássico A Montanha Mágica, do Prêmio Nobel Thomas Mann. E Marnie, com sua cara mundana e adolescentes em crise, ora se aproxima da melancolia de  Makoto Shinkai, ora da severidade de Colorful.

Comparado com o anime mainstream, a diferença é gritante.  O Studio Ghibli seguiu a sua própria estrada, e parece ter soltado os freios na ladeira. Pode ser que isso seja o que levou seus criadores a repensar as coisas. Ou pode ser que essa receita que só eles sabem preparar seja o que os salvará daqui para a frente.

Os detalhes são tudo

Muito tempo atrás, uma amiga americana me levou para conhecer um casal próximo à família. Eles moravam em uma enorme casa de lago no estado mais-do-que-remoto de New Hampshire. Para o paulistano que sou, acostumado desde sempre a prédios, casas pré-fabricadas e móveis comprados nas melhores do ramo, o choque foi total.

O edifício parecia ter sido contruído pelos colegas em um fim de semana, acompanhados por alguns engradados de cerveja. As vigas, tábuas e pilares eram todas irregulares, como se eles houvessem simplesmente cortado as árvores e removido as folhas. Não era uma casa desagradável, pelo contrário: combinava como nenhuma outra coisa com a paisagem de florestas e estradas de terra. Mas eu nunca havia visto nada do tipo.

Em Quando Estava com Marnie, a adolescente Anna, melancólica e perdida com a vida, passa o verão em uma cidade interiorana. Quando o filme nos mostra a casa onde a garota passa a viver, o clique na memória foi quase imediato:

arnie house 3 marnie house 2

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Yonebayashi não reproduziu uma casa no campo qualquer, tirada do manual de desenho. Ele nos recriou uma casa nos seus mínimos detalhes, coisa que passaria batido para qualquer um que não tivesse visto algo parecido.

Miyazaki já disse que para retratar o mundo é preciso conhecê-lo. Ficar trancado em um estúdio na frente de uma mesa de desenho não faz de ninguém um artista. Daí sua tristeza com muitos de seus colegas, que vivem e respiram no mundo do anime e não têm ideia do que se passa além dele. Em Marnie, seu companheiro de estúdio Yonebayashi segue isso à risca. Talvez pela exigência do enredo, talvez pelo andamento devagar, o filme nos traz um detalhismo que deixa até mesmo os outros títulos do Studio Ghibli com inveja. Um tomate sendo cortado sem fazer sujeira. A mistura de pessoas à paisana e de yukata no festival de verão. O sacolejar de um carro pequeno lotado de tranqueiras de viagem. O jeito certo de se comer ovo frito com hashi.

marnie egg

a referência, para os curiosos

Há quem diga que vivemos em tempos tão cibernéticos que ninguém mais se interessa por coisas reais. A popularidade dos filmes do Studio Ghibli me faz questionar o palpite. Não se trata apenas de “realismo”, mas de honestidade com o mundo de verdade. Poucas coisas nos tocam como aquelas que, como a casa de vigas irregulares, nos fazem lembrar de que dividimos o mesmo mundo. Como entregar esse tipo de obra é tudo menos fácil, e os animadores do Ghibli são tudo menos comuns, esse pode ser o caminho para o futuro do estúdio.

O diferencial é a alma do negócio

Em sua queixa contra o excesso de hype na E3, a colunista de games Liana Kerzner disse (com muita razão, diga-se de passagem) que trailers cinemáticos não servem para nada. Nos dias de hoje, “ser bonito” não é suficiente. Todos os jogos são bonitos.

A colocação também vale para o anime. Foi-se o tempo em que a diferença entre uma série “comum” e uma superprodução à la Nausicaa  nos fazia pensar que se tratavam de mídias diferentes. A animação japonesa mainstream melhorou e muito. Computação gráfica se tornou um recurso comum. O outsourcing para a China e Coreia reduziu os custos de produção. Tirando os efeitos de luz e água dos filmes do Shinkai, é bem difícil encontrar algo que faça nosso queixo cair.

Adicione a isso o fato de que o Studio Ghibli dificilmente continuará o rei de bilheterias. Princesa Mononoke foi o filme mais visto da história do Japão, perdendo apenas para Titanic. Mesmo o pouco ortodoxo Vidas ao Vento faturou US$ 120 milhões de dólares. Já Marnie, sem a assinatura de Miyazaki, não lucrou sequer um quarto disso. O criador de Totoro não é só um grande artista; ele é uma marca pela qual as pessoas pagam mais. O estúdio se recusa a fazer outsourcing, então é pouco provável que os custos diminuam se continuarem do jeito que estão. E Miyazaki em pessoa disse achar que a “era do lápis, papel e filme está chegando ao fim“.

As coisas precisam mudar, mas é importante que os dirigentes do estúdio mantenham aquilo que os distingue dos outros. Em tempos de filmes grandes, épicos e impressionantes, são os pequenos detalhes que farão a diferença. Nunca antes a animação de uma garota comendo um ovo, caindo na água ou cortando um tomate foi tão importante.

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A guerra que enlouquece os homens https://www.finisgeekis.com/2015/03/23/a-guerra-que-enlouquece-os-homens/ https://www.finisgeekis.com/2015/03/23/a-guerra-que-enlouquece-os-homens/#respond Mon, 23 Mar 2015 11:33:02 +0000 http://finisgeekis.com/?p=124 Na semana passada eu falei sobre guerra e coisas que as pessoas preferem esquecer. Como tudo na vida, há sempre um contrário. Se animes como Shingeki no Kyojin simplificam o conflito aos seus ingredientes mais básicos, outros parecem batalhar desesperadamente para que nada se perca. Alguns acontecimentos são dolorosos demais para ser lembrados. Outros, ainda piores, são dolorosos demais para serem esquecidos.

Na animação japonesa, trabalhos assim aparecem de quando em quando. O recente Giovanni no Shima é um exemplo. Porém, a maior referência continua sem sombra de dúvidas O Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata. O filme se tornou um marco do Studio Ghibli, do mundo do anime e da animação de uma forma geral, a ponto de ter eclipsado um pouco o diretor, cuja obra inclui o Kaguya Hime de que falei há tempos (e é aqui que o leitor começa a ver um padrão nas coisas de que escrevo).

A dor de pessoas comuns

A trama abre com o narrador, o garoto Seita, anunciando a data de sua morte. Em um flashback, somos levados ao Japão de alguns anos antes, em que Seita, junto à sua irmã, Setsuko, se tornam órfãos depois de sua cidade ser destruída por um bombardeio incendiário. A história então nos mostra a luta dos irmãos para sobreviver sozinhos num país devastado pela guerra, com um pequeno (e terrível) detalhe: sabemos que nenhum dos dois sobreviveu, e que em algum momento do filme nós presenciaremos seu último suspiro.

grave-firefliesO filme é de uma tristeza visceral, e seu poder está não apenas no sentimento de impotência que atiça em nós, mas na escolha de temas. Este não é o lugar para a discussão de estratégias, cenas de batalha ou personagens famosas. A guerra é mostrada vista “de baixo”, sem julgamento quanto a seus motivos ou causas. É a força das imagens, pura e simplesmente, que faz o truque: Seita tentando distrair a irmã após sua cidade, bombardeada, ter virado pó. Corpos desfigurados pelo fogo jogados em valas comuns. Setsuko sucumbindo à inanição.

Um crítico insensível talvez apontasse que, no final, O Túmulo dos Vagalumes não é lá tão diferente de Attack on Titan. Afinal, ele foca na parte “conveniente” da guerra (o sofrimento aos japoneses) ignorando as decisões nefastas que levaram o Japão à guerra em primeiro lugar. Contudo, a mera força dramática do filme derruba tais argumentos. Trata-se de um lamento sobre o sofrimento humano, que de tão forte e sincero é capaz de comover qualquer um, em qualquer época e contexto.

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O lúdico e o trágico

Videogames têm mais dificuldade em falar de guerra, e não por acaso. Não é à toa que o primeiro grande livro sobre jogos tenha sido publicado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, com a conclusão de que o lúdico é incompatível com a guerra total. Não importa quão perspicaz, forte ou capaz com uma arma um soldado seja: nada o salvará de uma bala perdida, de uma bomba atômica, da gripe espanhola ou de um campo de concentração. A sobrevivência depende do acaso e de força maior, e “vitória” é algo que poucos encontram (ou mesmo buscam em primeiro lugar). Para uma mídia naturalmente competitiva e dependente de recompensas, traduzir esses dramas não é fácil. Tirar o poder do jogador frequentemente leva a jogos chatos, mas é justamente a falta de poder (sobre as balas inimigas, a liberdade de ir e vir, a própria declaração da guerra) que marca a angústia de um soldado. O resultado são batalhas horrendas mas nem tanto, em que é possível “vencer” fazendo as coisas certas na hora certa.

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Os que se lembram dessa batalha em Call of Duty 2 sabem do que estou falando

Há claro, quem tenha tentado mesmo assim. This War of Mine retrata a guerra do ponto de vista de civis, usando elementos de randomização (parecidos com os de Sunless Sea) e mecânicas de sobrevivência já vistas em games de zumbi. No entanto, ele é abstrato, retratando um conflito fictício em um país genérico (e vagamente eslavo). Mais próximo de O Túmulo dos Vagalumes é o francês Soldats Inconnus, ou Valiant Hearts. O título da Ubisoft Montpellier não esconde suas intenções. Lançado em julho do ano passado, no mesmo mês e exatos cem anos depois do começo da Primeira Guerra Mundial, é um esforço para que novas gerações não se esqueçam do grande confronto. O apelo é compreensível.

Se é impossível chegar à idade escolar sem ouvir da Segunda Guerra, a Primeira é condenada às notas de rodapé (já ouvi de um professor que ela teria sido “insignificante”). Sua representação no entretenimento é também mínima, e apesar de ter sido tema de uma geração de escritores e artistas variados, é difícil ver qualquer referência a essa produção fora de um jogo do Ken Levine (o mesmo professor me confessou nunca ter ouvido falar de seus escritores). Não há dúvidas, portanto, de que Valiant Hearts começou bem se queria impressionar.

valiant hearts annaSeu maior acerto, porém, é ter optado por um traço inocente de desenho animado. Como mostraram os quadrinhos de heróis dos anos 1990 (e, à sua maneira, o último Batman de Christopher Nolan), a estética “séria e sombria” está sempre a um passo do ridículo – ou, o que é pior, da lição de moral. Por outro lado, como prova o sucesso do pacifismo até caricato de Miyazaki, uma paleta de cor mais rica e um pouco de fofura fazem milagres na hora de passar uma mensagem.

Karl WaltValiant Hearts segue a história de quatro pessoas dos dois lados do conflito. Não há “inimigos” propriamente ditos: todos, PCs e NPCs,  são de algum modo inocentes, forçados a se matar por razões que nem eles nem (eu suspeito) os desenvolvedores do jogo entendem muito bem. O enredo consegue escapar do bocó, e não é difícil entender por quê. Por um lado, o game passa longe dos clichés pacifistas de crítica à “maldade humana”. Não há ninguém puxando as cordinhas: é o próprio maquinário da guerra que move, quase que sozinho, as coisas rumo a sua destruição.

Ao mesmo tempo, ele não nos poupa de nenhum detalhe. Ao longo das 4 horas de jogos vemos soldados metralhados e envenenados por bombas de gás, pilhas de corpos usadas como escudo humano, cidades arrasadas e mais. A estética “cute” não oferece nenhum consolo – pelo contrário, só torna o horror mais horripilante. Nas missões finais, os quicktime events e quebra-cabeças que compõem o gameplay passam uma sensação de urgência raramente vista no gênero. Modelar um campo de batalha é fácil. Fazer o jogador se sentir em um (com uma jogabilidade que se limita a andar para os lados e clicar em coisas) merece um aplauso de pé.

valiant hearts chemin des dames

É uma pena, pois, que a narrativa  insista pelo batido. Para um jogo com tanta ênfase no acaso e na complexidade da guerra, Valiant Hearts nos faz perseguir um vilão de desenho animado, com direito a um chapéu de caveira, risadas maléficas e um cientista de estimação responsável por todas as invenções da época, do gás cloro ao tanque de guerra. Heróis que socam vilões na boca e gênios malucos que descobrem a fusão nuclear enquanto cantam no chuveiro funcionam em um gibi do Capitão América, mas aqui são destoantes. É como ver Totoro voando com sua folha ao lado dos aviões Zero de Vidas ao Vento.

História errada, Freddie

História errada, Freddie

Apesar dos pesares, as dúzias de vídeos de YouTube de marmanjões chorando com o final da trama provam que o jogo funciona. Não é qualquer coisa que sensibiliza um gamer. Mas se há algo que O Túmulo dos Vagalumes e Valiant Hearts nos ensinam é que a guerra não é qualquer coisa.

De minha parte, confesso que não caí em prantos com o final. Mas não pude deixar de pensar nos meus dois bisavôs que lutaram na Grande Guerra, conquanto do lado da Itália e contra os austríacos. Eles sobreviveram, mas, infelizmente para eles, no game da vida real houve uma sequel. Seus filhos serviram em uma outra guerra: uns foram poupados, outros viraram soldats inconnus.gaetano

]]> https://www.finisgeekis.com/2015/03/23/a-guerra-que-enlouquece-os-homens/feed/ 0 124 “Kaguya Hime”: em busca do presente https://www.finisgeekis.com/2015/02/14/kaguya-hime-em-busca-do-presente/ https://www.finisgeekis.com/2015/02/14/kaguya-hime-em-busca-do-presente/#comments Sat, 14 Feb 2015 11:00:00 +0000 http://finisgeekis.com/?p=44 Fãs do Studio Ghibli têm um motivo especial para assistir à cerimônia do Oscar. O anime Kaguya Hime, do diretor Isao Takahata (famoso por Túmulo dos Vagalumes), faturou uma indicação para o prêmio de melhor animação. Se levará ou não a estatueta é outra história. Eu tenho minhas dúvidas, mas milagres acontecem (e, dada a ausência de Lego Movie na categoria, minha cota de surpresas se esgotou há muito tempo). Em todo o caso, das muitas possíveis explicações para uma suposta hostilidade da academia ao anime (é japonês, é profundo, é difícil de entender, não é da Pixar), uma estará incorreta: a de que ele é “antigo” e, por isso, “distante”. De fato, Kaguya Hime é baseado em uma obra tradicional, retrata uma época tradicional e emana tradicionalidade de cada traço. A despeito de tudo, o filme não é apenas atual como, mais do que qualquer outra animação das recentes levas, é desesperadamente contemporâneo.

O filme

O enredo conta a lenda de uma garota mágica encontrada por um camponês dentro de um talo de bambu. Adotada pela família, ela passa a viver uma vida simples junto à natureza e aos outros aldeões. Todavia, com o passar dos anos, seu pai encontra outros presentes dentro de bambus: pepitas de ouro e roupas elaboradas, dignas de uma princesa. Para o camponês, não há dúvidas. Quem trouxe a menina à terra não o fizera para que fosse uma camponesa. Seu destino era se tornar uma nobre.

Com o ouro do bambu, o camponês compra uma mansão na capital, um nome aristocrático e os serviços de uma tutora em etiqueta. A garota, rebatizada de Princesa Kaguya, é forçada a abandonar seus amigos e aprender a se comportar como uma dama da corte. O problema é que a nova vida não lhe desperta o menor interesse. O silêncio do palácio é entediante. As roupas e penteados ultracomplicados não permitem que brinque. Os rituais são arbitrários e medonhos: deve arrancar as sobrancelhas e pintar os dentes de preto; não pode rir em voz alta nem ser vista por estranhos. Comparada com sua vida no campo, o mundo da cidade é uma antivida: insossa, amedrontadora e sem sentido.

Até aí, nada de novo. Fantasias sobre a beleza da vida simples e críticas aos excessos do luxo são quase tão antigas quanto a própria arte. Porém, há aqui uma pequena diferença. Os nobres de Kaguya Hime não são apenas decadentes; eles são ruins. Ao serem informados da beleza da princesa, cinco pretendentes viajam até o palácio para conhecê-la. Para tal, eles cavalgam pelo meio da cidade, atropelando sem remorso os cidadãos que encontram pela frente. O pai da princesa, confortável com a nova posição, recusa-se a deixá-la encontrar o velho povo da aldeia, pois nobres não devem se misturar ao populacho. Em uma cena particularmente tocante, a princesa, de dentro de sua carruagem, reconhece um antigo amigo de seus dias no campo, reduzido a um ladrão de galinhas por não ter o que comer.

O que separa a criação de Takahata de seu material de origem é sua hostilidade à aristocracia. Não, é certo, uma aristocracia “real”, que tenha existido em algum momento do passado. Ele é contra sua ideia, contra os princípios que nela identifica. A inibição dos prazeres da infância. O abuso aos mais fracos. A falta de livre arbítrio. A falsidade. A obediência cega. O casamento arranjado. Hiroki Azuma diz que o anime não é uma arte autenticamente japonesa, mas uma recriação ocidental feita com elementos nipônicos. Em certa medida, Kaguya Hime parece confirmar isso. A adaptação de Takahata tem mais em comum com críticas à aristocracia europeia, como os romances de Charles Dickens e Thomas Hardy, do que com a tradição do Japão antigo que produziu a lenda. No cinema, ressoa com alegorias encenadas no Antigo Regime, como A Duquesa e Maria Antonieta. Nós nos reconhecemos na rebeldia da protagonista porque o mundo que ela despreza não é só errado, mas anticontemporâneo.

 

kaguya eyebrow

Fuga do presente, nostalgia pelo futuro

Essa busca pelo presente – ou pelo que o presente deveria ser – não é incomum. Nossos valores são importantes para nós. Eles definem nossas ações, caminhos de vida, nossa forma de ver o mundo; são, enfim, aquilo que somos. Mas a história, infelizmente, nos ensina que as coisas mudam. E se é assustador acordar num futuro cheio de tecnologias, pessoas e idiomas desconhecidos, muito mais assustador é se deparar com um amanhã no qual os próprios valores são irreconhecíveis. De ‘atual’, passarmos a ‘relíquia’; de ‘certos’, tornarmo-nos ‘errados’; de ‘corretores’ dos outros, sermos rebaixados a ‘corrigíveis’. O passado de Kaguya Hime tem função de alívio. Ao criticarmos uma era que já foi, temos a ilusão que nossos problemas são relíquias do passado. A culpa não é nossa, mas dos valores antigos, que custam a desaparecer. Ao nos depararmos com essa sociedade tão errada, nos convencemos de quão certos nós (ainda) somos.

Isso funciona para os que têm confiança nos próprios valores. Já para os incertos, a coisa é diferente. Compare o anime de Takahata com o filme O Último Samurai, de Edward Zwick. O Capitão Algren, protagonizado por Tom Cruise, é um homem ‘contemporâneo’ – para os padrões de seu século XIX – que, no entanto, viu a pior face da sua modernidade: o extermínio dos ‘pele-vermelhas’ no massacre de Wounded Knee. De volta à civilização, vende armas para que outros se matem em causas ainda mais fúteis e desperdiça o salário em bebida. Ele não se preocupa em “olhar para a frente”, pois não há nada para se ver: se o presente já é assim, para quê um futuro? Daí a revelação de seu cativeiro no Japão. No final do filme, o imperador Meiji nos diz em um discurso que é importante ser moderno, mas não muito moderno. Algren, no mesmo espírito, abandona o ocidente para obter ‘um pouco de paz’ na vila dos samurais. A etiqueta arbitrária e a rigidez da tradição, que a Princesa Kaguya repudiava, têm para ele um sentido que a contemporaneidade e o seu ‘progresso’ nunca lhe mostraram. Em Kaguya Hime, o passado é um oposto que deve ser lembrado e evitado. Aqui, é uma parte de nossa humanidade, sem a qual não valemos nada.

Uma cena, duas visões de mundo

A lição não está no passado ser ou não importante, mas no fato de que, queiramos ou não, nós sempre o buscamos. A diferença é o motivo. Para alguns, é uma maneira de se convencer das próprias certezas—que, se certezas de fato fossem, dispensariam o exercício. Para outros, tal como para Dom Quixote, é um sonho impossível para reencontrar a si mesmos.

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Miyazaki e Oshii na mesma página? https://www.finisgeekis.com/2015/01/31/miyazaki-e-oshii-na-mesma-pagina/ https://www.finisgeekis.com/2015/01/31/miyazaki-e-oshii-na-mesma-pagina/#respond Sat, 31 Jan 2015 21:45:05 +0000 http://finisgeekis.com/?p=15

Hayao Miyazaki, a grande lenda viva do mundo do anime, deu recentemente uma declaração bombástica: a indústria de animação japonesa vai mal porque está “cheia de otakus”. Aos fãs de plantão: não se assustem. O mestre do Studio Ghibli não os odeia. A sua queixa, na verdade, é bem específica, e sem dúvida é partilhada por uma boa fatia de seu público alvo.

Miyazaki critica criadores que não sabem como humanos de verdade funcionam. Obcecados pela cultura interna do mundo otaku, não passam tempo suficiente “observando pessoas reais”, e vivem a vida “interessados apenas em si mesmos”. O problema é o excesso de auto referência; uma indústria com olhos apenas para si mesma e que, por consequência, reduz mais e mais o rol de coisas que sabe representar. Daí as hordas de garotas moe, heróis shounen estereotipados e a oferta infindável de personagens idênticos em histórias idênticas em revistas e séries de alta circulação.

Válido ou não, não pude deixar de sorrir com o comentário do diretor. Primeiro porque as diferenças de Miyazaki com a animação de seu país não são de hoje. Desde os longínquos anos 1980 ele nunca hesitou em olhar para fora, para a fartura visual de estúdios como a Disney, em vez de improvisar uma linguagem com poucos recursos e baixo orçamento, como fizeram, por exemplo, os visionários do gênero mecha. Mas, sobretudo, porque seu resmungo é quase idêntico à alfinetada que recebeu anos atrás de seu antigo colaborador, Mamoru Oshii.

Sky Crawlers e os adultos-criança

Criador de Ghost in the Shell, inspiração de Matrix (na minha opinião, um melhor contraponto para Blade Runner), Oshii é quase tão famoso quanto o criador de Viagem de Chihiro. A diferença, óbvia para os familiares com sua obra, é o tom mais adulto, sério e socialmente crítico que adota em seus filmes.

Em uma entrevista de 2008, quando seu filme Sky Crawlers foi indicado para o festival de Veneza, Oshii deixou isso bem claro. Os filmes de Miyazaki são ótimos de se ver, ele disse, mas são maravilhosos, otimistas, bonitos. O problema é que nem só de beleza é feito o mundo. A fantasia glamorosa de Miyazaki, conquanto um “doce para os olhos”, não é real o suficiente.

A crítica não poderia ter vindo em momento melhor. Sky Crawlers é uma metáfora da infantilização na era contemporânea, do mito do “adolescente eterno” e da cultura otaku, especificamente. O argumento é o de uma sociedade que produz adolescentes que não crescem, e que os emprega como bucha de canhão em batalhas aéreas encenadas. Os jovens (chamados Kildren) vivem vidas ocas, com muito álcool, sexo e violência, até o momento em que são abatidos em frente às câmeras às custas de uma boa audiência. Quando mortos, são substituídos por outros jovens idênticos em aparência e comportamento: nesta sociedade, tal como na nossa, o importante não é ser criativo, mas se misturar à tribo.

Em seus reality shows aéreos, há apenas um piloto que jamais foi derrubado. Ele é, sugestivamente, um adulto. Mais sugestivamente ainda, seu codinome é Teacher. Os Kildren são livres para curtir uma breve vida de libertinagem, mas sabem que, cedo ou tarde, seu destino é morrer nas mãos do Teacher. A trama acompanha o drama de um casal, Kusanagi e Yuuichi, que se desesperam com o vazio da adolescência e desejam crescer. Kusanagi tornou-se mãe e se angustia com o fato de que, em alguns anos, suas filhas serão adultas e ela continuará uma criança. Em um final que só poderia ser mais didático se Oshii nos explicasse com um quadro negro, Yuuichi larga tudo e parte para um duelo com Teacher, argumentando que, para se libertar de sua prisão adolescente, precisa “matar o seu pai.”

Sky Crawlers é um soco no estômago para adolescentes e jovens adultos, e sua mensagem só ficou mais forte pelo fato do filme ter sido lançado junto ao levíssimo Ponyo. Mas eu me pergunto se Miyazaki, ou pelo menos o Miyazaki de 73 anos, que se aposentou com uma reflexão sobre o complexo militar-industrial japonês da Segunda Guerra, discordaria da conclusão. Mais do que nunca, os dois gênios parecem estar na mesma página.

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