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Stanislaw Lem – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Mon, 25 Feb 2019 16:55:15 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Stanislaw Lem – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Revisitando “Solaris”: como o clássico de Lem mudou a literatura https://www.finisgeekis.com/2017/04/19/revisitando-solaris-como-o-classico-de-lem-mudou-a-literatura/ https://www.finisgeekis.com/2017/04/19/revisitando-solaris-como-o-classico-de-lem-mudou-a-literatura/#respond Wed, 19 Apr 2017 21:06:00 +0000 http://finisgeekis.com/?p=16352

Existem pautas que nos pegam de surpresa, e outras que não aguentamos de vontade para colocar no papel.

O texto de hoje é do segundo tipo.

Qual foi minha surpresa ao navegar pelos canais da editora Aleph e descobrir que Solaris, clássico insuperável de Stanislaw Lem, ganharia uma nova (e linda) versão brasileira.

Por acaso, é também das minhas histórias favoritas, sobre a qual há tempos queria dedicar um post.

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Aperte os cintos, portanto, e entenda como essa história transformou a literatura.

1) Solaris foi a terceira via para a ficção científica.

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Solaris é um livro estranho.

Sua trama acompanha um grupo de cientistas em uma estação espacial na órbita de um planeta. Este “planeta”, contudo, não é um mero corpo celeste, mas lar de um “oceano” que parece ter vida própria.

Seria ele um ser sapiente? Uma inteligência superior? Um delírio de suas mentes?

Suas pesquisas são interrompidas quando descobrem que não estão sozinhos. Pessoas importantes de sua vida que deveriam estar na Terra – em alguns casos, que já morreram – começam a assombrá-los.

Não demora para que percebam que não são eles que estudam Solaris, e sim o oceano que os estuda. E que aquelas “aparições” são tentativas da criatura de compreender a mente humana.

Seria o argumento de uma ficção científica como tantas outras, não fosse a maneira como foi contada. Solaris lida com tecnologia, mas não cede ao technobabble. Traz um futuro interestelar, mas não uma lore para ancorá-lo. Aborda dilemas clássicos da ciência, mas oferece apenas mais dúvidas.

Se o livro nos parece tão original, é porque conquistou um espaço próprio em uma época em que o sci fi passava por sérias transformações.

A ficção científica que conhecemos ganhou seu nome de Hugo Gernsback, baseado nos textos clássicos de Júlio Verne e H.G. Wells (embora alguns tenham argumentado que existia desde muito antes).

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O escritor e editor Hugo Gernsback

Era um gênero não apenas sobre ciência, mas pró ciência, navegando em uma fé no poder transformador da tecnologia que marcou a era industrial.

A despeito da pompa, foi um estilo que se difundiu por caminhos alternativos, inaugurando, no processo, convenções e fanzines pulp que seriam o berço da cultura geek.

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Nos anos 1960, um grupo de artistas denominado New Wave – inspirado na Nouvelle Vague do cinema –  viraram o gênero de ponta cabeça, buscando elevá-lo ao patamar da alta literatura.

Com muito experimentalismo, o grupo criticava as revistas pulp e prezava por temas mais filosóficos e psicológicos. A ficção científica “soft” chegava para ficar.

Não à toa: a ciência que encantara Verne não era mais vista com os mesmos olhos.

Os horrores da segunda guerra e o advento da bomba H mudou a forma como as pessoas viam a tecnologia. Se antes o engenho humano era a chave para o futuro, agora era o reflexo do que tínhamos de pior.

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Solaris se encontra a meio caminho dos dois mundos. Suas páginas são recheadas de ciência, mas seus conflitos são intimistas. Sua conclusão traz ansiedade, mas não o desespero.

O livro é uma exploração conceitual da natureza da vida, mas também uma incrível história de amor. Ao ser visitado por um duplo de sua esposa morta, seu protagonista, Kelvin, não pensa em logaritmos e equações, mas em uma coisa mais primária.

Se ela é sua esposa (ou bem perto disso), o que o impede de fugir com ela e reconstruir a vida que o destino lhes tolheu?

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Lem fala de temas intelectuais sem esquecer o elemento humano; de angústia sem cair no cinismo.

Ele não comprou o utopianismo soviético, nem a histeria distópica que marcou o sci fi na Guerra Fria. Não porque não se apavorasse com o destino do planeta, mas porque o achava um tema muito importante para ser tratado de forma tão rala:

O fim do mundo, o Juízo Final atômico, a epidemia provocada pela tecnologia, o congelamento, dessecação, cristalização, incêndio, colapso, automação do mundo, etc, não têm mais qualquer sentido na ficção científica hoje. Eles perderam o sentido porque passaram pela típica inflação que transforma o terror escatológico em sustos agradáveis. (…) Eu acho um fenômeno muito triste testemunhar a execução indiferente com que tais romances são produzidos.

Solaris, assim, também é uma ode à humildade. Com uma trama diminuta, conseguiu ser mais eloquente que bibliotecas inteiras dedicadas ao apocalipse.

2) Solaris reinventou o  “alienígena”.

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A obra-prima de Lem é um livro seminal por vários motivos. De tudo o que trouxe de novo, porém, o que o alçou aos cânones da literatura foi seu retrato do alienígena.

Do início da ficção científica, habitantes de outros planetas foram retratados como pessoas, com maior ou menor nível de estranheza. Na maioria das vezes, são verdadeiras metáforas sobre o que significa (ou não) ser humano.

O romance de Lem apresentou uma das subversões mais ousadas dessa ideia, ao nos apresentar um alienígena que sequer pode ser chamado de “ser”. “Solaris” é vivo, mas também é um oceano, um planeta, uma força primordial do universo.

É um terror lovecraftiano de uma proporção que nem o pai da ficção weird foi capaz de conceber. A despeito da verborragia com que são descritos, os monstros e tentáculos do criador de Cthullu empalidecem diante de uma presença que ultrapassa o medo, o horror, a própria existência.

Lem não rompeu paradigmas apenas pelo desejo de pagar de diferente. Como tantos outros mestres do gênero, o escritor pensava como um cientista – e, como tal, sabia que a ciência não traz respostas, apenas perguntas.

Kelvin, seu protagonista em Solaris, entende isso muito bem:

Um ser humano é capaz de lidar com pouquíssimas coisas ao mesmo tempo; nós vemos apenas o que está acontecendo na nossa frente, aqui e agora. Visualizar a multiplicidade simultânea de processos, não importa como estejam interconectados, está além de nós.

Se a era clássica do sci fi era uma ode à invencionice humana, Solaris é um tributo às horas perdidas em laboratório, às teorias feitas e reformuladas, aos manuscritos rasgados e jogados ao lixo.

À parte, enfim, mais instigante do saber.

3) Stanislaw Lem odiava a ficção científica…

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É de se esperar que um dos maiores expoentes da ficção científica fosse também um fã do gênero. Afinal, escrevemos os livros que gostamos de ler. Não é mesmo?

Não exatamente. Por mais absurdo que soe, Lem foi um crítico tão mordaz do sci fi que chegou a ser expulso da associação Science Fiction Writers of America.

Muito disso, claro, foi obra das suas circunstâncias. Vivendo na Polônia em plena ditadura comunista, o escritor tinha dificuldades para importar trabalhos estrangeiros.

A isso se somava outra “cortina de ferro”: Lem nunca aprendeu inglês direito e dependia de traduções para outras línguas, sobretudo o alemão.

Sua literatura, portanto, foi escrita em relativo isolamento. Mesmo quando as portas do Oeste começaram a se abrir, ele nunca se sentiu parte da comunidade sci fi que desabrochava no mundo anglófono.

Pelo contrário, ele a detestava.

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O autor de Solaris achava que a ficção científica era extremamente ambiciosa, mas que 99,9% do que produzia era um lixo. Suas obras lidavam com as questões mais fundamentais da humanidade, mas o faziam da forma mais superficial, batida e mal escrita possível.

A culpa, dizia, estava nas políticas editoriais. Como ele mesmo colocou:

O problema persiste que todos os livros de ficção científica são parecidos um com o outro – não segundo seu conteúdo, mas a forma como ele é recebido. Inúmeras imitações de cada obra original aparecem, de maneira que os originais são enterrados debaixo de montanhas de lixo, como torres de catedrais em torno das quais entulho foi jogado durante tanto tempo que apenas as pontas se projetam do refugo que se estende em direção aos céus. Neste contexto, vale perguntar quantos são os iniciantes talentosos que não têm poder suficiente para preservar sua individualidade como escritores.

Lem não era ingênuo a ponto de achar que a literatura “séria” não sofria problemas semelhantes. A diferença, para ele, é que neste caso críticos, público e divulgadores trabalhavam para separar o joio do trigo.

Autores como Herman Melville e James Joyce não fizeram sucesso em vida, mas sua obra sobreviveu, graças a uma intelligentsia disposta a escavá-los em meio a bibliotecas de romances esquecíveis.

Não as pérolas da ficção científica, cujos “intelectuais” dançavam à música das editoras – e a favor da mediocridade.

Suas palavras são de 1972, mas é apavorante quão atuais elas parecem.

Quem nunca viu gigantes da “mídia especializada” babando ovo para blockbusters mastigados? Prêmios “imortalizando” modinhas esquecíveis, “experts” forçando tendências que não têm nada de novo?

Em um meio como esse, é inevitável que “iniciantes talentosos” amarguem no esquecimento.

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Muitos (inclusive esse que vos escreve) já falaram da “crise do mundo nerd”. Lem diagnosticou esses mesmos problemas quarenta anos antes, na época em que ele acabava de nascer.

Mais do que isso, são problemas de que nós, críticos e blogueiros, compartilhamos a culpa. Na tentativa de fazer o geek abarcar tudo, corremos o risco de colocar tudo por terra.

Lem, contudo, não era um hater – muito menos um profeta. Por mais que tenha criticado a ficção científica, ele também fez muito para transformá-la no que é hoje.

 Suas críticas eram cáusticas,

4) … mas ele também a amava.

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Em Ficção Científica: Um Caso Perdido – com Exceções, Lem defende seu gênero com as seguintes palavras:

Sem dúvida alguma há uma diferença entre a ficção científica e todos tipos próximos, muitas vezes relacionados, de literatura trivial. Ela é uma vadia, mas uma vadia bem encabulada naquilo que faz. Ela se prostitui, mas, como a Sônia Marmeladova de Dostoiéviski, o faz com desconforto, repulsa, contrariamente aos seus sonhos e esperanças.

Sim,  é difícil acreditar que um autor que compara seu gênero a uma prostituta deseje elogiá-lo. Lem, no entanto, tem algo bem específico em mente.

Para ele, a ficção científica não é apenas uma entre tantas literaturas “de gênero”, como o mistério ou chick lit. Ela é algo mais, entalada entre os mundos do erudito e do popular, desconfortável em ambos.

Solaris é uma rara obra que circula por ambos universos. A sensibilidade e a beleza de sua prosa o aproximam dos grandes mestres. Suas inovações temáticas e erudição científica representaram um divisor de água para o sci fi.

É um golpe de justiça poética a melhor adaptação cinematográfica de sua obra tenha se tornado um marco do cinema-arte.

Se Lem flertava com o pulp (mesmo que em uma relação abusiva), Andrei Tarkovksy, sempre se comportou como uma autoridade. Com quase três horas de duração, seu filme é difícil, filosófico – e, acima de tudo, autoral.

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O que mudou?

É difícil não imaginar que o cinema tenha exercido um papel.

De Viagem à Lua e Metrópolis a Gravidade e Interestelar, passando por 2001 e pelo próprio Solaris, a ficção científica não só foi bem aceita na sétima arte, como rendeu alguma de suas maiores obras-primas.

O aporte visual com certeza ajudou. Libertados das páginas, os mundos fantásticos de autores como Lem proveram a cenógrafos, figurinistas, experts em efeitos visuais a tela com que provar sua arte ao mundo.

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É provável também que tenhamos aprendido a ver tais histórias de um jeito diferente.

Como diz a autora Marie-Laure Ryan, as sutilezas da narrativa são a alma da literatura, mas não necessariamente pré-condição para arte. Dos libretos de ópera ao ballet, não há falta de histórias simplórias no mundo da arte. Nem por isso seus méritos são questionados.

Narrativas podem ser fins em si, mas também meios para um fim. Formas de nos transportar por ideias, para digerir conceitos complexos (relatividade, não-linearidade, os limites da ciência) em uma maneira fácil de entender.

A ficção científica está em seu melhor quando cumpre essa proposta. Graças a Lem (entre seletos outros), ela pôde transcender seu nicho e sacudir o mundo.

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“História da Sua Vida”: o conto que inspirou “A Chegada” https://www.finisgeekis.com/2017/02/06/historia-da-sua-vida-o-conto-que-inspirou-a-chegada/ https://www.finisgeekis.com/2017/02/06/historia-da-sua-vida-o-conto-que-inspirou-a-chegada/#comments Mon, 06 Feb 2017 20:43:44 +0000 http://finisgeekis.com/?p=14779

Tudo isso que eu já vi na guerra, (…) tanta falta de sentido, violência… me fez pensar sobre falta de comunicação. Quer dizer, essa não é a raiz de tudo isso? Conflitos, guerras… no final das contas, não é tudo questão de linguagem? As palavras que ouvimos e que dizemos e que não são sempre as mesmas. E eu pensei: e se houvesse uma só língua – uma língua universal?

A sacada é do xerife Hank Larsson, personagem da série Fargo. É uma ideia atraente, em que todos nós, em algum momento, já devemos ter pensado.

E se tudo o que houvesse de errado na terra fossem apenas problemas de comunicação?

E se pudéssemos encontrar uma linguagem objetiva, universal, que nos permitisse entender a todos – e a tudo?

Quem acompanha o Oscar 2017 sabe que o exercício já foi colocado em prática. É, afinal, o enredo de A Chegada, ficção científica com Amy Adams que coleciona indicações.

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O que alguns talvez não saibam é que A Chegada é baseado em um conto de um dos maiores talentos da ficção científica contemporânea. E que, para nossa sorte, já foi lançado no Brasil.

História da Sua Vida

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Ted Chiang pode não ser tão conhecido como Arthur C. Clarke ou Philip K. Dick, mas não há dúvidas de que é um dos novos talentos do gênero. Com apenas quinze textos publicados, já ganhou mais de uma dúzia de prêmios, incluindo vários Nebula, Hugo e Locus Awards.

Sua popularidade fala por si só: depois do lançamento de A Chegada, História da Sua Vida, o conto que o inspirou, se tornou o best-seller número 1 na categoria ficção científica da Amazon.

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O escritor Ted Chiang

Chiang não é conhecido por lores vastas ou trilogias super elaboradas. Seu estilo é enxuto, e é no conto que encontrou sua melhor expressão.

Tal como Jorge Luís Borges (cuja obra ele próprio cita), várias de suas histórias giram em torno de invenções inusitadas que nos convidam a pensar na vida de outra maneira.

Em História da Sua Vida, publicado aqui pela Intrínseca, essa invenção não é exatamente um objeto, mas um idioma. No conto, naves misteriosas pousaram na terra. Não parecem reagir aos humanos. Não dizem a que vieram, nem o que esperam de nós.

Devemos atacá-los? Expulsá-los? Esperar até que façam algo?

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As forças armadas convocam Louise Banks, uma linguista, para encontrar um jeito de se comunicar com os recém-chegados. Em uma trama sem qualquer drama, technobabble ou gordura de sobra, Chiang nos guia para uma obsessão intelectual – e uma viagem pelo mundo da linguagem.

O tempo é relativo

Contatos com extraterrestres são frequentes na ficção científica. Muitas vezes, estes “alienígenas” são humanos em tudo, menos no nome.

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E não digo apenas em aparência. Extraterrestres, Hollywood nos conta, são compatíveis conosco em sentimentos, raciocínio, humor (e até sistemas operacionais)

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Quase impossível fazer um vírus que funcione para PC e Mac. Mas para o computador da nave de Independence Day? Brincadeira de criança.

História da Sua Vida é feliz ao imaginar seres tão diferentes que nos obrigam a rever nossas própria noção de “ser”, “imaginação” e “diferença”.

Na sua missão para se comunicar com os heptapódes (como os alienígenas são chamados), a protagonista descobre que sua mente não tem nada em comum com a nossa. Não só em visões de mundo, mas na própria percepção do tempo.

Nós, seres humanos, captamos os acontecimentos um após o outro. A vida, aos nossos olhos, é uma jornada linear do nascimento até a morte. Nenhum homem entra no mesmo rio duas vezes: nem o homem é o mesmo, nem o rio é o mesmo.

O problema, como físicos vêm nos dizendo há mais de um século, é que o “tempo”, na natureza, é uma coisa bem mais complicada.

Para os heptapódes, ele é simultâneo. Passado, presente e futuro são apreendidos juntos. Suas mentes viajam da infância à velhice, dos traumas aos momentos de alegria, como se fossem quartos diferentes de uma casa.

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Louise descobre que seu idioma é incompreensível justamente porque depende desse entendimento. E qual é a sua surpresa ao se tocar que, conforme o aprende, ela começa, também, a perceber o tempo como os heptapódes.

A linguista se torna onisciente, capaz de se “lembrar” do futuro com a mesma facilidade com que nos recordamos do que comemos ontem. Sua vida inteira – o casamento, o primeiro bebê, a morte da filha aos 25 anos – passa diante de seus olhos.

O conceito é baseado em uma ideia que existe de verdade na linguística. Trata-se da hipótese de Sapir-Whorf, que sugere que forma como nos comunicamos influencia nosso jeito de pensar.

Claro, linguista nenhum já sugeriu que é possível prever o futuro aprendendo uma nova língua. Mas isto é o de menos. História da Sua Vida  não é um conto sobre a clarividência, mas sobre suas consequências.

Como Louise Banks descobre, por sintetizar passado, presente e futuro; aquilo que existe com aquilo que não existe, a língua dos heptapódes é perfeitamente objetiva. Como ela mesma diz a um colega:

 — Existe alguma coisa assim nos sistemas de escrita humanos?

— Equações matemáticas, partituras de música e dança. Mas são todas muito especializadas; nós não conseguiríamos registrar essa conversa usando elas. Mas eu suspeito que, se a conhecêssemos bem o suficiente, conseguiríamos registrar essa conversa na escrita heptapóde. Eu acho que é uma língua gráfica completa, feita para todos os fins.”

Consegue se imaginar escrevendo em partituras? Explicando seu gosto por comida com uma equação? Ver réus e candidatos políticos  se justificando com álgebra?

Com certeza, essa língua seria “melhor” do que as que temos hoje. Mas as pessoas que a usam continuariam a ser humanas? Existe “humanidade” para além da mentira, da ambiguidade… da poesia?

Os limites de uma língua “perfeita”

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Uma língua “perfeita” resolve muitos problemas. Como violinista, por exemplo, acho o máximo saber que existe um sistema que permite que eu registre qualquer som, de uma sonata do Beethoven até a buzina de um caminhão.

O problema é que, para o dia-a-dia, não existe nada parecido com isso. E algumas das características mais fundamentais da nossa cultura surgiram justamente para remediar essa falta.

Se contássemos com uma língua 100% objetiva, não precisaríamos de metáforas, hipérboles e outras figuras de linguagem. Não precisaríamos tampouco de debates ou conversas: afinal, a realidade é uma só e pode ser conhecida por todos.

Pior ainda, não existiria nem “vida”. Se já sabemos o que acontecerá a cada etapa, tudo o que nos resta é esperar o inevitável.

É o que Louise Banks eventualmente descobre, na medida em que sua mente é transformada:

O conhecimento do futuro é incompatível com o livre-arbítrio. O que torna possível para mim exercitar a liberdade de escolha também me impossibilita de saber o que está por vir. Da mesma forma, agora que eu sei o futuro, eu jamais agirei contrária ao futuro, e isto inclui dizer aos outros o que eu sei: aqueles que sabem do futuro não falam sobre ele. Quem leu o Livro das Eras nunca admite tê-lo lido.

Uma linguagem objetiva, capaz de ver o “plano geral” do universo é uma dádiva inimaginável. Infelizmente, como o Dr. Manhattan de Watchmen nos mostra, ao cruzar essa linha perdemos algo muito mais importante.

Cada um de nós vê o mundo com nossos próprios olhos. É isso que dá sentido às nossas discussões, nossas trocas – e mesmo nossa arte. Se tudo o que foi, é e será estivesse diante dos nossos olhos, cada ponto de vista seria indistinguível do outro.

Com onisciência, perdemos a multiplicidade.

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A Chegada é fiel ao conto de Chiang, mas curiosamente deixa isso de lado. Em vez dos conflitos filosóficos de Louise Banks, temos um thriller geopolítico, em que líderes globais ameaçam transformar nosso primeiro contato em uma guerra planetária.

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Comunicar-se com os aliens, logo descobrimos, é apenas um pretexto. A verdadeira missão da linguista é fazer com que nossos próprios líderes ponham suas diferenças de lado e aprendam a trabalhar em equipe.

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Comparado com seu material de origem, é uma história muito mais upbeat. E, justamente por ser assim otimista, parece às vezes “certa demais”.

Ao assisti-la nos cinemas, não consegui parar de pensar em Solaris, a obra prima de Stanislaw Lem que se tornou outra obra-prima do cineasta Andrei Tarkovsky. Para alguns, o 2001: Uma Odisséia no Espaço da União Soviética.

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Tal como em História da Sua Vida, Solaris fala da tentativa de se comunicar com uma entidade alienígena. Neste caso, um oceano inteiro que parece ter consciência própria. Tal como no conto de Chiang, os cientistas percebem que se comunicar com esta criatura é mais difícil do que parece.

Eles logo notam que “Solaris”, este planeta vivo, está em outro nível de realidade, e que sua “língua” não é um idioma, mas um chamado lovecraftiano. Mesmo que possua uma “mente” como a nossa, seu raciocínio não é algo que podemos (ou desejaremos) ouvir.

Não demora para que descubram que não são eles que estão fazendo experimentos com o alien, mas o contrário: é Solaris quem os estuda, invadindo sua mente e brincando com suas memórias, medos e pensamentos.

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Solaris mostra que conhecer o “plano geral do mundo” é uma rota para a loucura. “Deus”, se ele existe, não é um velhinho de barba branca, mas um turbilhão de caos, histeria e impotência:

Quero dizer um Deus cujas deficiências não vêm da simplicidade de seus criadores, mas constituem sua característica mais essencial e imanente. Este seria um Deus limitado na sua onisciência e onipotência, que poderia errar ao prever o futuro de sua obra, que poderia se ver horrorizado pelos eventos que desencadeou. Este é um Deus… aleijado, que sempre deseja mais do que ele pode ter e nunca percebe isto. Que criou relógios, mas não o tempo que eles medem. Que criou sistemas e mecanismos que servem propósitos particulares, mas que superaram estes propósitos e o traíram. E que criou um infinito que, longe de ser a medida do poder que deveria ter, tornou-se a medida de seu fracasso sem fim.

A Chegada brinca com onisciência, mas ao contrário do conto de Chiang – e do romance de Lem –  para por aí.

Seu foco é obviamente outro. O filme é um comentário típico sobre a nova era Trump, reforçando a “força na união” e a necessidade de abrir fronteiras. De certa forma, é uma versão adulta de Pacific Rim, apresentando o globalismo como  panaceia.

É, no entanto, um “globalismo” bem made in America, em que todos falam inglês e compartilham os mesmos valores. Mas e se aquilo que nos tornar diverso também nos impedir de trabalhar juntos?

E se nossas línguas de fato moldarem nossas visões de mundo, nossas culturas… nossas identidades?

Neste “Admirável Mundo Novo” unificado pela língua perfeita, nós continuaríamos a ser quem somos? Ou viraríamos uma nova humanidade, modelados por um Deus aleijado?

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A Chegada louva a linguagem como ferramenta de união, mas se esquece de que é igualmente eficiente como uma arma de alienação. As minorias linguísticas ao redor do globo, que viram suas culturas desaparecerem sob o jugo de potências homogeneizadoras, aprenderam isto do jeito mais difícil.

Sim, nós nem sempre nos entendemos. Às vezes batemos cabeça, somos maus com os outros, guerreamos por nada. Mas é esta teimosia que nos faz humanos.

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