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Shigeru Mizuki – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Mon, 25 Feb 2019 17:53:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Shigeru Mizuki – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 ‘Joker Game’: lutando a guerra perdida no Japão dos anos 1930 https://www.finisgeekis.com/2016/04/11/joker-game-lutando-a-guerra-perdida-no-japao-dos-anos-1930/ https://www.finisgeekis.com/2016/04/11/joker-game-lutando-a-guerra-perdida-no-japao-dos-anos-1930/#comments Mon, 11 Apr 2016 20:03:30 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3993 Em 1937, os japoneses montaram uma assalto contra Shanghai, na China. Sem explosivos, três soldados encheram um bambu com pólvora, acenderam um pavio e o jogaram próximo ao acampamento inimigo.

Infelizmente, eles calcularam mal o raio de detonação, e a “bomba” acabou explodindo antes que pudessem voltar para as trincheiras. A propaganda do Estado, entretanto, vendeu o episódio como um ataque suicida de três valentes defensores da pátria. Os pobres soldados foram batizados de “As Três Balas Humanas”.

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Em 1945, soldados japoneses em Zungen, na Nova Guiné, receberam a ordem para se suicidarem em uma carga banzai. Para a surpresa de todos, um oficial se recusou a obedecê-la. Ele mandou seus homens se refugiarem na selva e continuou lutando por meio de táticas de guerrilha.

Ao saber disso, o comando japonês ficou possesso. A notícia de que a tropa se sacrificara pela pátria já tinha sido transmitida. Desmenti-la seria um vexame. Para a Marinha Imperial Japonesa, preservar combatentes (em uma guerra em que já estavam em desvantagem numérica) era menos importante do que morrer com honra.

Quem conta a história é o mangaká Shigeru Mizuki, ex-fuzileiro naval e sobrevivente da Pacificação de Rabaul. Esses e outros episódios que descreveu em seus quadrinhos são exemplos da doutrina de sacrifício do Império do Japão, o princípio de que a vida dos cidadãos pertencia ao imperador e que deveria ser entregue sem pestanejar.

É a filosofia por trás dos ataques kamikaze, dos gyoukusai e dos suicídios em massa de civis. Nas palavras da propaganda oficial, a ideia de que o Japão, se caísse, cairia como um todo: cem milhões de pessoas morrem juntas.

Por motivos óbvios, esse não é um assunto que se vê todo dia, sobretudo na esfera otaku. Porém, o quadro pode estar para mudar. Joker Game, destaque na nova temporada de animes, é uma série que mergulha de cabeça nesse passado que muitos gostariam de esquecer.

Jogos dentro de jogos

joker game book

Adaptada de um romance de sucesso (o qual até já rendeu um longa metragem), Joker Game é um drama de espiões digno de John le Carré. Nele, acompanhamos a Agência D, um esquadrão de inteligência fictício do Exército Imperial Japonês em 1937.

Se a data não dá calafrios, deveria. É o começo da Segunda Guerra Sino-Japonesa, conflito que eventualmente empurraria o Japão à Segunda Guerra Mundial e que foi pretexto para alguns dos piores crimes contra a humanidade já cometidos.

O primeiro episódio acompanha o tenente Sakuma, um militar típico, que encarna a mentalidade esperada do Exército Imperial. Ele acredita que ordens devem ser obedecidas a todo custo, que a luta deve ser feita às claras, que o inimigo deve ser exterminado e que o suicídio é preferível à derrota.

Sakuma é escolhido como representante militar de uma unidade de espionagem composta apenas por civis. Não demora muito para que entenda porque nenhum dos seus colegas de quartel deu as caras. Na Agência D, bravura, disciplina e perícia com armas são secundários. A doutrina de sacrifício do Exército Imperial é motivo de chacota. Nesse mundo estranho, Sakuma logo percebe que é um peixe fora d’água.

Para a Agência D, o importante é a sutileza. Fluência em línguas estrangeiras, conhecimento de venenos, técnicas de sedução. Bons espiões não matam ninguém (nem a si mesmos). Eles cumprem suas missões e desaparecem sem disparar um tiro.

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A diferença fica clara em seu passatempo favorito: uma partida de pôquer em que todos trapaceiam. Para além do jogo “oficial” de cartas, fichas e blefes, há um metagame de sussurros, espiadas e “parceiros” de fora.

É assim, eles explicam, que o mundo real funciona. Quem o entende, sobrevive. Quem insiste em julgar o mundo pelas aparências, joga o joker game.

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Fora do universo de faz-de-conta do Exército Imperial, a mentira e a verdade andam de mãos dadas. Cumprimentos e acordos diplomáticos traem planos maquiavélicos. O maior aliado pode, quando as balas começarem a voar, se mostrar o pior dos inimigos.

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Se Sakuma conseguirá se adaptar – ou se não será, ele mesmo, feito de coringa – é o que descobriremos ao longo da temporada. Uma coisa é certa: A versão fascista do bushidô que Hirohito impunha ao seu regime (e que Sakuma compra sem pestanejar) podia funcionar em casa, mas não no mundo traiçoeiro da política internacional.

O exemplo que os espiões da Agência D citam é o Tratado Naval de Washington de 1922. Vitorioso na Primeira Guerra Mundial, o Japão foi convidado para discutir um acordo anti-armamentista para evitar tragédias futuras.

Infelizmente para o Japão, as potências ocidentais usaram a ocasião para colocá-lo em desvantagem, proibindo-o de ter uma força militar do mesmo tamanho da americana e da britânica. O governo japonês viu isso como um insulto e um sinal de que não deveria mais jogar limpo. O resultado foi uma corrida armamentista “às escondidas”, a exemplo do que Hitler faria na Alemanha.

As entranhas da guerra

É difícil saber quão fundo Joker Game pretende enveredar no submundo da Guerra do Pacífico. Embora não sejam lá tão conhecidos (sinal de que fizeram bem o seu trabalho), espiões japoneses se envolveram em operação realmente inacreditáveis, incluindo parcerias com a Yakuza, infiltrações em seitas budistas e mesmo atividades em solo brasileiro.

O seu braço mais notório talvez sido a kokuryuukai, ou Sociedade do Dragão Negro, uma mistura de máfia, sociedade secreta e corpo de inteligência que inspirou até vilões no universo DC.

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O Japão como um dragão negro no filme de propaganda Prelúdio de uma Guerra (1942)

De fato, essa underbelly da Segunda Guerra é um assunto tão delicado que levou ao menos um crítico a se recusar a avaliar Joker Game. O anime não é a primeira obra a levantar essa polêmica. O excelente Zero Eterno, publicado no Brasil pela JBC, também foi atacado pela maneira como glorificou os “velhos guerreiros” de Hirohito.

Fábio Godoy, do Anime 21, também mostrou receio pelo retrato aparentemente benigno do Exército Imperial na série. Já Rebecca Silvermann, do Anime News Network, chegou a citar seus familiares que lutaram na guerra como motivo para seu desconforto.

Como alguém que também teve familiares no conflito, só que do lado do Eixo, confesso que tenho mais curiosidade em ouvir a versão desses vilões de outrora. E aqui, parece-me que os espectadores podem ficar tranquilos. Joker Game não parece ser uma exaltação da bravura suicida dos “heróis” do imperador.

Pelo contrário, ele parece mostrar o descompasso de um país que confraternizava com inimigos em Washington ao mesmo tempo em que mandava mulheres e crianças para a morte armados com lanças de bambu.

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Lutando a Guerra Perdida

O tenente Sakuma não foi o único a notar que a mão direita do Império não parecia saber o que a esquerda estava fazendo. Desde o ataque a Pearl Harbor (em alguns casos, até antes), muitos japoneses já tinham a impressão de que jogavam o joker game.

Para quem se interessa pelo assunto, não há livro melhor do que Japan at War: An Oral History, uma coleção de entrevistas com sobreviventes japoneses do conflito mundial.

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Quem não conhece o livro de nome deve conhecê-lo de reputação. Um de seus testemunhos, o da mulher de um padeiro que viu o kempeitai assassinar um cachorro por “atrapalhar as comunicações”, virou inspiração para o filme Cartas de Iwo Jima de Clint Eastwood.

Lendo as entrevistas, podemos ver claramente quem entendia o que realmente estava acontecendo e quem pagou pela própria ingenuidade.

Alguns, mais patriotas, achavam que o Japão perdera por pouco. Um dos entrevistados, um ex-soldado, chegou a dizer que o país teria vencido a guerra se não tivesse se acovardado após as bombas nucleares.

Já outros sabiam que a declaração de guerra tinha sido o começo do fim. Um deles, operário de fábrica, disse que adivinhara desde o princípio que o Japão perderia, pois todos os desenhos industriais que usavam eram importados. Se rompessem relações com o Ocidente, de onde arranjariam maquinário?

Como quem joga Hearts of Iron sabe muito bem, guerra não é só uma questão de coragem e boa mira. É preciso ter indústrias, tecnologia, linhas de abastecimento, combustível, dinheiro. Nos anos 1940, o Japão tinha tão pouco de tudo isso que precisava derreter estátuas do Buda para reaproveitar metal e diluir saquê em álcool puro, pois não havia arroz para se comer.

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Mamoru Shigemitsu

Caso mais trágico foi o do diplomata Mamoru Shigemitsu. Contrário à guerra, ele fez de tudo para convencer os países do Ocidente de que sua nação buscava a paz. Foi feito de coringa: o Japão queria invadir a China a todo custo e só o usou de fachada para ganhar tempo.

Sua humilhação não parou por aí. Em 1943, quando a derrota já era certa, Tojo o nomeou como ministro para que “tomasse a bala” pelo país. Ele foi o escolhido para assinar a Ata de Rendição a bordo do USS Missouri em 1945 e ainda foi preso por crimes de guerra a pedido da União Soviética. Tal como o tenente Sakuma, ele não percebeu (ou não conseguiu evitar) o verdadeiro jogo nas entrelinhas.

Considerando que o Japão acaba de se remilitarizar, talvez fosse inevitável que uma novo olhar sobre a Segunda Guerra chegasse até os animes. Eu digo mais: nos próximos anos, dependendo de quanto barulho Kim Jong-un fizer, veremos muitos mais Zeros, metralhadoras Nambu e bandeiras imperiais em meio aos nossos heróis shonen e colegiais em uniformes de sailor.

Nesse sentido, Joker Game parece, à primeira vista, ser uma lufada de ar fresco em um tema bem espinhoso. Em vez de heróis trágicos ou “isentos” com a cabeça nas nuvens, temos um retrato daqueles que sabiam, nas palavras de Bismarck, como as leis e salsichas eram feitas.

Se a série não tiver medo de pisar nos calos, por si só já valerá a temporada.

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Shigeru Mizuki: O soldado que inventou o mangá moderno https://www.finisgeekis.com/2015/08/31/shigeru-mizuki-o-soldado-que-inventou-o-manga-moderno/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/31/shigeru-mizuki-o-soldado-que-inventou-o-manga-moderno/#comments Mon, 31 Aug 2015 22:49:37 +0000 http://finisgeekis.com/?p=625 Quando pensamos em “pai do mangá”, o primeiro nome que vem à cabeça é quase sempre Osamu Tezuka. Entre seu pioneirismo em praticamente todos os gêneros, a influência de seu trabalho nos filmes da Disney e as inúmeras graphic novels premiadas, é impossível olhar para uma gibiteca e não ver a marca do autor de Astro Boy em praticamente tudo.

De que sua fama é merecidíssima não há nenhuma dúvida. Contudo, Tezuka é um daqueles artistas que, de tão famosos, acabam ofuscando até mesmo os outros gênios. É o caso de seu contemporâneo Shigeru Mizuki, outro pioneiro do mangá que ganhou destaque nos anos 1950 e não parou de brilhar.

Dizem que uma imagem vale mil palavras. No caso de Mizuki, isso é triplamente verdade.

shigeru mizuki

Sim, esse senhorzinho com idade para ser seu bisavô é um dos pais dos mangakás. Nascido em 1922, ele é seis anos mais velho que o próprio Tezuka. Sim, ele está segurando um prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos. E este não é o único: até hoje, três obras suas faturaram estatuetas. Sim, ele não tem um braço. Em 1942, Mizuki foi convocado à guerra pela marinha japonesa. Na Batalha de Rabaul, a cabana em que dormia foi atingida por um bombardeio aliado. Ele voltou com vida, mas não inteiro.

O episódio ganharia vida pela sua própria pena, décadas depois:

braço amputado

Como todo veterano de guerra, é de se esperar que suas experiências mais traumáticas fossem inspirar alguns de seus trabalhos. Souin Gyoukusai Seyo!, ou Onward Towards Our Nobles Deaths, na tradução americana, foi seu primeiro (e muitíssimo bem recebido) relato de seus anos de combate. Contudo, Mizuki é muito mais do que um sobrevivente com histórias para contar. De certa forma, suas maiores batalhas foram travadas depois do fim da guerra. Vivendo na pobreza de um Japão em ruínas, o artista foi um dos pioneiros que decidiu transformar o desenho japonês em um meio artístico completamente novo.

Do teatro popular à cultura otaku

Nos anos 1950, sem um tostão nos bolsos e muito talento para esbanjar, Shigeru Mizuki começou a trabalhar com kamishibai. Trata-se de um estilo de performance tradicional em que um narrador conta uma história amparado por uma série de ilustrações. A prática surgiu em templos budistas como forma de pregação, mas eventualmente ganhou vida própria como um entretenimento de rua. Para quem está curioso, várias apresentações podem ser encontradas no YouTube, tanto em japonês como em inglês:

Mizuki passou seus primeiros anos após a guerra desenhando esses cartazes de papel. Para seu desespero, o kamishibai logo não se mostrou suficiente para fechar as contas no fim do mês. Felizmente, outra forma de entretenimento conquistava espaço entre a população de Tóquio.

comic books

Assim, quase que por acaso, o ex-soldado se tornou um dos pioneiros do mangá. Seu sucesso na nova arte não significou o abandono da tradição com que crescera. Pelo contrário, Mizuki viria a se tornar um dos mais conhecidos autores de quadrinhos de youkai, monstros típicos do folclore japonês. Suas ilustrações combinaram um traço estilizado, debochado e um detalhismo digno das gravuras do Período Edo (1603-1868)

gegege kitaro

Se eu fosse listar e comentar toda a sua obra, é muito provável que esse post jamais terminasse. Em cinco décadas de carreira, é mais fácil mencionar os prêmios que Mizuki não recebeu do que contar as estátuas, medalhas e diplomas que já passaram por sua mão. Quem visitar Sakaiminato, sua cidade natal, encontrará a Rua Shigeru Mizuki, batizada em tributo a ele e decorada com estátuas de bronze de suas personagens.

statues mizuki road

Sua criação mais famosa, Hakaba Kitarou, mais conhecido como GeGeGe Kitarou, tornou-se um dos clássicos mais adaptados da história do mangá, com 6 animes e 15 games, do Famicom ao Nintendo DS.

É justamente sua versatilidade e irreverência que fazem de seus trabalhos autobiográficos tão impressionantes. Guerra é sempre um assunto delicado, em especial um conflito que matou 70 milhões de pessoas e culminou em dois ataques nucleares. Não há falta de pessoas que se puseram a desenhar sobre o assunto, mas o resultado sempre anda no fio da navalha entre o ridículo e o horrorosamente chato. Neste sentido, Mizuki não só fez um dos melhores quadrinhos de guerra que já vi, como nos deu uma lição de vida.

Como já disse várias vezes, o Japão tem um problema com sua história. O governo até hoje reluta em admitir os crimes contra a humanidade cometidos por Hirohito. Figurões do estado maior da cúpula fascista foram sepultados com honras de Estado e até hoje recebem visitas oficiais. Se está difícil mentalizar o absurdo, imagine a Angela Merkel abrindo o ano legislativo com uma cerimônia no mausoléu de Adolf Hitler. Colocando lenha na fogueira, uma parcela de intelectuais (incluindo mangakás) defendem que o Império do Japão estava “certo”, que as proezas da Marinha Imperial devem ser relembradas com orgulho e que as ocupações da China, Coreia, Indochina e quase todo o Pacífico foram uma guerra “defensiva” para proteger os pobres asiáticos do imperialismo ocidental.

Shigeru Mizuki, ele mesmo um fuzileiro da Marinha Imperial, tinha todos os motivos para seguir na linha. Se nada mais, sua biografia tica todos os quadrados de melodramas patrióticos sobre “o sofrimento de nossos veteranos” como Zero Eterno. Mizuki, no entanto, fez exatamente o contrário.

A época em que a vida não pertencia às pessoas

tojo

Showa: A History of Japan é a versão do ex-soldado sobre esse período tão conturbado. É uma apaixonante autobiografia, de onde vieram as ilustrações das anedotas de sua vida que usei acima. É, também, uma das mais longas, tocantes e sinceras histórias do Japão moderno.

showa covers

Showa é tanto um relato pessoal quanto uma biografia coletiva das mais de 70 milhões de pessoas que viveram (e, em muitos casos, morreram) entre o Grande Terremoto de Kanto e o final dos anos 1980 – a época, como o título já entrega, conhecida como Era Showa. Em seu estilo característico, Mizuki mistura paineis ultrarrealistas, baseados em fotos de época, ao traço irreverente de seus mangás sobre youkai. Quem puxa a história é Nezumi-Otoko, um espírito trapaceiro do universo de GeGeGe Kitarou. Ao longo de mais de 2000 páginas, nós o vemos ora como um narrador onisciente, ora como uma aparição, conversando com personagens como Hideki Tojo e Yosuke Matsuoka.

O resultado é uma fusão entre a densidade de Notas Sobre Gaza de Joe Sacco com a leveza de Maus de Art Spiegelman. Mizuki conseguiu criar um comentário sobre o totalitarismo no Japão que é complexo tanto quanto é acessível. Showa nos mostra com riqueza de detalhes como uma nação empobrecida por uma crise econômica gradualmente cede a um extremismo político que terminaria por destrui-la. Em suas páginas, vemos como a bravata das autoridades levou um país economicamente insignificante a travar uma guerra que jamais poderia ganhar – e seu povo a pagar o preço amargo da derrota.

Mizuki conta mais do que julga, e nisso está a maior força de seu trabalho. Ele não acredita no “pacifismo poliana” de Miyazaki e na sua visão da guerra como um mal inconcebível. Ao longo dos volumes, vemos como uma série de fatores – político, econômicos e ideológicos – se combinam para trazer o conflito, e como uma boa parte da população (incluindo seu próprio pai) era favorável ao fascismo. Mais tarde, ele argumenta ainda que a ocupação militar americana e o envolvimento do Japão na Guerra da Coreia enriqueceram o país.

Ele não compra a apologia ao heroismo de Naoki Hyukuta. Pelo contrário, deixa claro que a guerra foi um castelo de cartas erguido com mentiras. Mizuki narra como o exército japonês sabotou suas próprias operações para culpar inimigos imaginários e justificar uma invasão contra a China, como estatísticas propagandísticas levaram a derrotas desnecessárias e como comandantes forçavam suas tropas ao suicídio mesmo quando a vitória era possível.

Por fim, ele é apaixonadamente contrário a Yoshinori Kobayashi, que prega que as atrocidades cometidas pelos japoneses são invenções do Ocidente. Mizuki não poupa tintas para descrever o Massacre de Nanking ou a Marcha da Morte de Bataan. Ao mesmo tempo, ele não tem medo de colocar sua opinião quando acredita que há dúvidas sobre os verdadeiros culpados. De certa forma, a questão é pessoal. Seu próprio irmão, também soldado, foi condenado e preso como criminoso de guerra por executar um prisioneiro aliado.

Shigeru Mizuki e seu pai

Shigeru Mizuki e seu pai na época da guerra

As intervenções de seu narrador youkai e o tom leve com que narra a sua própria trajetória não prejudicam a mensagem do livro. Pelo contrário, só fazem da tragédia ainda mais assustadora. Em dado momento, um companheiro de Mizuki é ferido em combate. Sem chances de resgatá-lo, Mizuki recebe ordens para decepar o dedo do moribundo. É costume japonês que ao menos um osso do morto seja guardado para as cerimônias fúnebres. Se ele vai morrer de qualquer jeito, que pelo menos sua família tenha um funeral digno.

funeral

Um pouco antes, logo após a guerra ser declarada, acompanhamos Mizuki largando a escola. Sem a mínima vontade para estudar ou trabalhar, ele passa todo o seu tempo no quarto lendo filosofia. Quando lhe cobram satisfações, sua resposta é de dar frio na espinha:

filosofia

Showa está recheado de episódios como esse. Em dado momento, Mizuki nos conta que as “Três Balas Humanas“, um trio de jovens soldados que tiraram a própria vida para explodir uma trincheira chinesa, só fizeram o que fizeram porque esperavam voltar com vida: o pavio da bomba havia sido acidentalmente cortado mais curto do que deveria. Em outro, ele relata como, ao saber da sobrevivência de sua unidade, seus oficiais superiores tentaram executá-los. Como eles já haviam comunicado o “suicídio glorioso” ao Imperador, ficava mais fácil matá-los do que explicar o erro.

being aliveAqui está talvez o maior mérito do mangá. Mizuki não nos mostra apenas como é viver em um regime totalitário, mas o que, de fato, significa o totalitarismo. Sob uma ideologia que prega o controle do Estado sobre tudo, a vida humana se torna apenas mais um recurso – como dinheiro ou combustível – a ser “gasto” conforme as necessidades.

Hoje, setenta anos depois, esse mundo nos parece um pesadelo. Muitos, se sujeitos a essas condições, apelariam ao revanchismo. Shigeru Mizuki preferir contar histórias. Há uma certa poesia em sua atitude que vai além da própria beleza de seus mangás.

Cerca de 3 milhões de japoneses morreram na Segunda Guerra Mundial, mais ou menos 4% da população do país. Nada garantia que Mizuki não se tornasse um deles. Para um jovem combatente servindo no final da guerra os números eram ainda piores. Contra todas as expectativas, Mizuki não só sobreviveu como viveu mais que o próprio imperador, morto em 1989. Seu mangá é mais que uma lição de história: é um ato de liberdade de um homem que, à sua maneira, triunfou sobre a Era Showa.

kodansha award

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