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Satoshi Kon – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Mon, 25 Feb 2019 18:09:51 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Satoshi Kon – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Perfect Blue”: o livro por trás do anime clássico https://www.finisgeekis.com/2018/04/03/perfect-blue-o-livro-por-tras-do-anime-classico/ https://www.finisgeekis.com/2018/04/03/perfect-blue-o-livro-por-tras-do-anime-classico/#respond Tue, 03 Apr 2018 15:06:46 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20078  

Há uma cena em Perfect Blue que permanece em nossa mente muito depois do filme acabar. Murano, um fotógrafo, recebe um delivery de pizza. Assim que abre a porta, a entregadora o apunhala com uma chave de fenda.

Murano cambaleia. Um segundo golpe leva seu olho. Sangue cobre os móveis na medida em que ensaia uma defesa fútil. A atacante o sobrepuja, e nós vemos que é Mima Kirigoe, nossa protagonista, uma atriz cujos nus Murano fotografou.

Um projetor é ligado acidentalmente, e imagens da própria Mima incidem sobre ela. Enquanto golpeia um Murano já inanimado, a garota é contraposta às fotos de seu ensaio. A cada lembrança, uma careta mais odiosa contorce seu rosto.

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Para boa parte dos espectadores, essa foi a tomada que os introduziu a Perfect Blue. Capa de seu DVD, ela fez para o filme o que o grito de Janet Leigh no chuveiro no Psicose fez ao clássico de Hitchcock. E ajudou a transformar Satoshi Kon num dos maiores diretores dos anos 2000.

É estranho imaginar o que seria do longa sem essa sequência. Mais estranho ainda saber que não existia no livro que deu origem à história.

Com Perfect Blue: Complete Metamorphosis, publicado pela Seven Seas, leitores ocidentais podem finalmente conferir onde tudo começou.

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Escrito por Yoshikazu Takeuchi, o livro traz nomes conhecidos dos fãs do filme, em papéis tão diferentes que parecem uma outra história.

Mima Kirigoe é uma idol de sucesso diante do maior desafio de sua profissão: a idade. Ameaçada pelo sucesso de uma jovem rival, a artista é forçada a se reinventar para continuar relevante.

A solução, para a surpresa de ninguém, é o sexo. Sob a orientação de seus agentes, Mima é rebaixada a um objeto de desejo, alavancando sua fama com ensaios eróticos, performances ousadas e roupas provocativas.

Nem todos aprovam essa nova Mima. Um fã anônimo, obcecado pela inocência de sua antiga persona, resolve proteger sua pureza. Movido por uma adoração temperada por misoginia, ele está disposto a impedir que sua idol favorita mude. Por todos os meios necessários.

As semelhanças com sua adaptação cinematográfica acabam por aqui. O assassinato icônico do fotógrafo não faz parte do enredo, que traz, no entanto, sua própria cota de sangue. Rumi, a assistente de Mima, aparece no romance, mas não o twist chocante de sua versão das telas.

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Mais importantemente, o conflito entre verdade e ficção, delírio e realidade não tem lugar nessas páginas. Kon usou a história de Mima como pretexto para uma fábula pós-moderna. Takeuchi, por sua vez, escreve um suspense sem firulas, a meio caminho do terror slasher e do romance erótico.

A decisão pode soar estranha aos calejados pelo anime, mas cai como uma luva a seu assunto espinhoso. Takeuchi apresenta um retrato asqueroso da pior face do mundo das idols, em que jovens mulheres são induzidas à promiscuidade e, paradoxalmente, punidas por abraçarem sua libido.

O stalker de Mima, cujo nome nunca é mencionado, é o perfeito retrato desse ardil 22. Em dada cena, o vilão sequestra e estupra uma idol para depois assassiná-la por ser “impura”. A violência e cinismo são tão revoltantes que faz do assassinato de Murano na versão cinematográfica uma catarse a altura.

O livro foi escrito em 1991, mas não parece ter envelhecido um ano desde sua publicação. Pelo contrário, é impossível não compará-lo ao show business contemporâneo, dos escândalos de assédio por trás das câmeras à sexualização oportunista (e pasteurizada) de estrelas pop.

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É uma pena, no entanto, que essa denúncia tenha ganhado vida não nas páginas de um romance, mas no sucessor do pulp, a light novel japonesa.

Fãs de anime são bem familiares ao gênero, que incubou algumas das melhores (e piores) séries dos últimos tempos. Os amantes de literatura, por sua vez, merecem uma palavra de aviso.

Light novels não são livros infanto-juvenis. Como o nome já entrega, são versões destiladas do bom e velho romance. Quem já estudou língua estrangeira com aquelas versões simplificadas de grandes clássicos reconhecerá de cara o formato.

O vocabulário é reduzido. Os períodos, simples. As metáforas, raras e óbvias. Os diálogos, engessados e expositivos. São histórias despidas ao mais básico (e anódino) que a narrativa tem a oferecer.

Ao amante de literatura é quase um exercício do que não fazer com uma pena em mãos – e uma prova da importância de dominar as ferramentas da linguagem.

Perfect Blue é menos uma história que um enredo a espera de quem o articule. Ao evitar os meandros cerebrais da sua versão animada, a novel de Takeuchi se afasta também da mensagem que transformou o filme em um clássico cult.

O show business, Kon nos conta, não é uma agressão apenas ao corpo. Ele destrói também a mente, a realidade, nossa própria consciência como indivíduos.

Há mais no mercado das idols que homens maus judiando de garotinhas. É uma gangrena maior que afeta a toda a sociedade, dopada em opioides, na mídia de massa, no seu próprio narcisismo impenitente.

Não é à toa que seu anime foi adaptado tão bem a histórias de vício em drogas e ballet, nos filmes Réquiem para um Sonho e Cisne Negro. O assassinato de Murano por Mima não é chocante pelo sangue ou pela nudez. Ele nos assombra porque já vimos essas pessoas antes, em outras profissões, sob outras loucuras.

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Takeuchi se aferroa ao primeiro ponto, com cenas de tortura e estupro para sádico algum colocar defeito. Sem a visão de Kon, porém, sua violência gráfica desaba à pornografia.

O autor salta de ponto de vista ao longo do romance, colocando o leitor ora nos pés de Mima, ora no de sua rival, seus agentes e até do stalker que a persegue. Com tudo às claras, o sentimento de paranoia que Kon construiu tão bem não encontra espaço para crescer.

Perfect Blue, o filme, é a luta arraigada de uma mente contra a loucura e a obsessão. Perfect Blue, o livro, é uma denúncia maquinal do mercado de espetáculo, narrada com a inanidade de uma câmera de segurança.

É notável que os dois posfácios incluídos na edição da Seven Seas – de 1991 e 1998, respectivamente – não trazem nada que não pudéssemos inferir da própria história. Takeuchi diz escrever da perspectiva de um fã de idols, coisa que seu texto deixa bem claro. Tal como o stalker que persegue Mima, ele não consegue ver a big picture.

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É um golpe de ironia que o autor tenha escrito uma sequência ao romance: Perfect Blue: Awaken From a Dream. Segundo a edição anglófona, o volume traz “histórias inéditas do universo de Perfect Blue.” Mais um sinal de que a produção não entende as implicações do que está na página.

Perfect Blue não precisa de um “universo”, e é justamente aí que reside o terror da sua fábula. Seu “mundo” nada mais é do que o nosso próprio.

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Existe anime fora do Japão? https://www.finisgeekis.com/2015/11/09/existe-anime-fora-do-japao/ https://www.finisgeekis.com/2015/11/09/existe-anime-fora-do-japao/#comments Mon, 09 Nov 2015 19:12:39 +0000 http://finisgeekis.com/?p=844

Da lista de perguntas que causam flamewars com maior frequência, essa com certeza está no Top 10. Os animes conquistaram o mundo faz já algum tempo, e de lá para cá são vários os artistas que se inspiraram no estilo para criar seus próprios trabalhos. Mas seriam essas obras “animes”, também?

Se trocássemos “anime” por “mangá”, creio que poucos discordariam. Muitos cartunistas ocidentais já se puseram a escrever seus próprios mangás. Apenas no Brasil, a Editora JBC já realizou concursos brasileiros, cujos ganhadores foram publicados pela revista Henshin. E isso sem mencionar todo o mercado de fanzines.

Mesmo na animação, há quem argumente que o nome “anime” pode ser aplicado a animações ocidentais que emprestam fórmulas e visuais dos desenhos japoneses. Elas incluiriam séries como Avatar, A Lenda de KorraTeen Titans, Samurai Jack e mesmo Meninas Super Poderosas.

Encontre o anime

Encontre o anime

Problema encerrado? Nem de longe. Muita gente discorda dessa posição. O Anime News Network, maior portal de anime e mangá em língua inglesa, define “anime” exclusivamente como animação produzida no Japão. Com o mangá é a mesma coisa. Criações ocidentais inspiradas na estética nipônica são chamadas pelo site de “mangás do mundo.”  O nome é inspirado na categoria dos “mangás globais”, criada pela editora Tokyopop para a sua linha de “mangás” ocidentais.

Quem estaria com razão? Haveria alguma razão, ou seria esse um assunto melhor deixado às flamewars da vida?

Eu acredito que haja pontos bons de ambos os lados. Porém, para chegarmos até eles, precisamos desbravam as opiniões mais a fundo.

Anime: uma denominação de origem.

Chris O’Brien, em uma coluna para o Escapist, fez uma das defesas mais apaixonadas da universalidade do anime. Ele aponta A Lenda de Korra como um perfeito exemplo da mídia, e justifica seu ponto com um paralelo com o mundo das bebidas. Em especial, com o conceito de denominação de origem controlada, ou DOC.

docUma DOC é uma categoria de bebidas padronizadas, cuja produção precisa cumprir uma série de requisitos para garantir o selo. Elas podem ser mais ou menos rígidas – nos casos mais famosos, controlam até mesmo como os produtores devem plantar a matéria prima. Se uma bebida não respeitar as regras, não pode levar o nome da DOC.

A característica mais marcante de uma DOC é a necessidade de ser produzida em uma determinada região. Assim, só espumantes da região de Champagne podem se chamar champagne, só os portugueses podem fazer vinho do porto, só os americanos podem fazer Bourbon e só os brasileiros têm direito a produzir cachaça.

O’Brien muito libertariamente diz que isso é tudo um grande conchavo de políticos para estufar os bolsos de dinheiro e acabar com a livre-concorrência. Para ele, o consumidor não está nem aí para a origem da bebida ou para o jeito como ela é feita. Ele só deseja beber e se divertir.

Com a animação seria a mesma coisa. O rótulo “anime”, tal como DOC, estaria aí apenas para evocar um falso senso de purismo e depreciar as excelentes animações em estilo japonês produzidas fora da Terra do Sol Nascente.

Eu tenho simpatia por alguns pontos de O’Brien. No entanto, se existisse um prêmio de comparação mais descabida da internet, ele com certeza o levaria. Em primeiro lugar, DOCs não são decretos de cima para baixo, mas fruto da pressão dos próprios produtores para valorizar aquilo que fazem. Na maioria das vezes, elas servem para oficializar práticas tradicionais que, em alguns lugares, têm sido feitas informalmente há séculos.

Elas cumprem sim, a função de proteção, mas não a proteção dos consumidores contra os “imitadores” de meia tigela. Antes, elas servem para proteger os próprios estilos frente à popularidade de novas formas de se fazer bebida que surgiram no Novo Mundo. Elas não só não “reduzem a criatividade” como são, elas mesmas, resultados de um mundo globalizado em que todo mundo têm direito de fazer o que quer e vender para quem quiser.

Mais: nenhum produtor é “forçado” a produzir dentro da DOC, mesmo se viver na zona de origem. Um exemplo são os supertoscanos, vinhos  “rebeldes” da região de Chianti que se tornaram alguns dos melhores da Itália.

Dizer que anime é um rótulo como a DOC é dizer que os japoneses estão com medo de serem “ocidentalizados” pela animação gringa e criaram um rótulo para proteger sua produção nacional, forçando seus profissionais a desenharem sempre do mesmo jeito. Dada a imensa popularidade da estética anime no mundo e a receptividade dos japoneses às influências estrangeiras, a explicação não tem pé nem cabeça. Ainda mais se considerarmos que a própria “cultura otaku” que os animes promovem foi feita com base em elementos ocidentais.

O’Brien também parece esquecer uma coisa muito importante. Ao contrário do que ele diz…

As pessoas não pagam apenas pelo produto

figures

Há um motivo que leva as pessoas a pagarem R$350,00 numa garrafa de Veuve Clicquot em vez de beber um espumante do Vale do São Francisco por R$20,00. E não é a qualidade (a título de curiosidade, os espumantes brasileiros são referência mundial).

O champagne é uma bebida histórica, estilosa, que “agrega no camarote”, como disse um certo meme-humano. Quem paga uma pequena fortuna em um champagne não o faz apenas pelas bolinhas. Eles querem algo mais.

E não digo isso apenas pela “ostentação”. Criações tradicionais atraem pessoas porque o público já sabe o que esperar delas. Elas têm uma fama e um propósito que vai além da experiência.

Animes – tais como outras “escolas” de animação – tem suas próprias convenções, o seu próprio “banco de dados” de personagens, cenários e histórias que atiça a memória do fã. Isso sem contar toda a fascinação com a cultura japonesa, que normalmente leva jovens e estudantes de língua a tornaram-se espectadores assíduos.

Quem busca esse tipo de entretenimento pode muito bem se divertir com outros tipos de animação – afinal de contas, ver uma coisa não nos proíbe de assistir outra também. No entanto, o que ele busca no momento em que deseja assistir ao anime é algo que acha que só o anime é capaz de dar.

Ou, ao menos, é o que certos fãs dizem. Na prática, a coisa é um pouco mais complicada, pois…

Não há, no Japão, um consenso sobre o que seja “anime”

Logo do Studio Ghibli. A palavra

Logo do Studio Ghibli. A palavra “anime” (アニメ) não aparece.

Aqui quem nos ilumina é Brian Ashcraft, o correspondente da Kotaku no Japão. Segundo ele, os japoneses nunca tiveram uma única palavra para definir a arte que faziam. Mesmo o termo “anime” só se tornou popular a partir dos anos 1970. Ou seja: os clássicos do Osamu Tezuka dos anos 1960, tidos por alguns como a origem do anime, só ganharem esse nome depois de terem sido produzidos.

Para complicar, se o termo “anime” acabou se tornando uma marca para a animação japonesa no exterior, no Japão isto não aconteceu. O nome é usado para se referir a Sailor Moon e Samurai X  tanto quanto para animações ocidentais como os Looney Toons:

anime antique collection

Não fosse o bastante, muitos animadores japoneses não utilizam o termo “anime” para suas próprias obras. O próprio Studio Ghibli, talvez a maior referência em animação japonesa, muitas vezes opta apenas pelo termo sakuhin (“obra”), o mesmo usado pela Disney em seus lançamentos no Japão. E, se a estética do Ghibli está indiscutivelmente dentro do que chamamos de “anime”, o mesmo não pode ser dito de muitas outras séries que não obstante levam o nome do estilo:

shin chan

Se nem mesmo os japoneses estão preocupados em preservar sua “marca”, haveria sentido em definir anime como uma produção exclusivamente oriental? Em um mundo cosmopolita em que todos se influenciam mutuamente, não seria melhor nos guiarmos apenas pela estética?

O que dizem os contrários

O blog Animenation acha que não, e apresenta um argumento compartilhado pelo Anime News Network, que citei acima. Segundo seu autor, é justamente por vivermos em ambiente interconectado em que todos se influenciam que é necessário definir com precisão o que significa “anime”.

Hoje em dia, a estética da animação japonesa já está tão difundida que é possível encontrar referências em filmes e séries que nada têm a ver um com o outro. Mais: o próprio estilo exagerado do anime, com seus olhos gigantescos e gestos extravagantes, não foi criado no Japão, mas “importado” por Osamu Tezuka e seus contemporâneos de personagens famosas dos Estados Unidos, como a Betty Boop.

betty boop

Se fôssemos, seguindo O’Brien, levar apenas o estilo em consideração, logo  “anime” se tornaria quase sinônimo de “animação”. E, se é verdade que animadores de toda parte têm seus pontos em comum, às vezes queremos nos referir especificamente à mídia popularizada no Japão. Para fins analíticos – dizem essas páginas – não há alternativa melhor do que definir anime pelo seu país de origem.

E quando ao uso casual? Neste caso, tanto o Animenation quanto o Anime News Network acreditam que não haja diferença em adotar o nome “anime” para tudo. Afinal de contas, se não estamos escrevendo um artigo acadêmico ou calculando uma estatística de mercado, por que isso seria importante?

Por que, como tudo na vida, mesmo as coisas complicadas podem ficar ainda mais complicadas.

O anime é uma expressão da cultura japonesa

Space-Battleship-Yamato

Para a maioria dos otakus ocidentais, a frase acima é suficiente para fazê-los revirar os olhos. Aqueles que fazem cosplay talvez se lembrem das peças raras na internet que dizem que apenas japoneses podem encarnar personagens de anime, já que eles foram “feitos para japoneses.”

Acreditem em mim, no entanto, quando digo que essa frase não tem a ver com nenhum discurso do tipo. Mais do que isso: ela não foi dita por um troll nos fóruns do Crunchyroll, mas por dois dos maiores gênios do meio: Satoshi Kon e Mamoru Oshii.

Exatos dez anos atrás, os dois diretores integraram um número de profissionais da indústria entrevistados pela Tokyo Foundation. Os textos originais já saíram do ar, mas felizmente as páginas foram preservadas no archive.org.

Para os dois diretores, o anime não é qualquer animação – mesmo que o termo, casualmente, seja usado desta forma. Também não é uma estética, um grupo de convenções ou uma fanbase. É uma expressão autêntica da mente japonesa, que nenhuma outra cultura é capaz de imitar.

Sobre os empréstimos entre Hollywood e o cinema japonês e a possibilidade de uma arte universal, Satoshi Kon foi bastante categórico:

– Você acredita que a arte ou o estilo são universais? Que as linhas que separam a animação norte americana da japonesa estão se apagando?

Satoshi Kon: Não. Eu acho que não. A estética americana, não importa de que lado você olhe, é americana. Por exemplo, a Disney ou a Dreamworks poderiam usar técnicas da animação japonesa para fazer um fime. Mas não há como alguém dizer que o resultado é “animação japonesa”.

(…)

Mas Hollywood ainda tenta – e com teimosia, alguns diriam.

Satoshi Kon: A cultura da animação e dos quadrinhos japoneses é e foi construída sobre a experiência, mentalidade e nuances do povo japonês, então alguém que não tenha essa mentalidade não consegue criar a mesma coisa. Ela se torna apenas uma imitação. É a mesma coisa com os japoneses. Se nós tentarmos fazer algo “ocidental”, ele se tornará só uma imitação. Claro que nós podemos nos influenciar, mas apenas imitar não saudável e não é bom.

Mamoru Oshii,  tem uma opinião semelhante, muito embora (como em toda a sua obra) ele a coloque de forma bem mais dramática:

– (…) Como você se sente em relação à popularidade do anime e do mangá no exterior?

Mamoru Oshii: Eu não acho que a animação pode ser descrita de forma tão simples. Animação japonesa, animação americana, animação europeia, elas têm suas diferenças. O formato é similar. Mas, por exemplo, quanto que uma pessoa japonesa pode entender da Guerra do Vietnã? Quanto que nós podemos transmitir sobre a guerra em um filme, de qualquer maneira? Se nós tivermos um impacto no público, isto é ótimo. Na América do Norte e na Europa, meus filmes podem ser uma forma de entretenimento, mesmo que haja partes com que eles possam se relacionar porque nossas histórias estão entrelaçadas. Mas no Oriente Médio ou em outros lugares no mundo islâmico, eu não acho que o público responderia bem aos meus filmes porque eles são muito diferentes. Há uma barreira que precisamos ultrapassar. Eu não acho que exista uma cultura global. Há culturas diferentes com crenças diferentes, e isto nós não podemos esquecer. A [Guerra do] Iraque está acontecendo porque as pessoas não entendem isso.

mamoru oshii

Oshii toca num ponto interessante, e no qual geralmente não pensamos. Para ele, o que define uma “arte” não é só seu estilo, mas sua escolha de conteúdo. Não há animação como a japonesa porque apenas os japoneses falam das coisas de que falam do jeito como falam.

Há, obviamente, exceções. O Studio Ghibli, com seu universalismo, está muito mais próximo da Disney da velha guarda do que de muito do que se produz no âmbito do anime. Mesmo sim, é difícil olhar para os animes e não ver reflexões de uma sociedade que não é a nossa.

Sky Crawlersdo próprio Oshii, já foi interpretado como um ataque aos otakus japoneses, que preferem permanecer eternas crianças a se tornarem cidadãos produtivos. Paranoia Agent fala sobre o ritmo alucinado dos trabalhadores no Japão e como muitos descambam para a loucura e o suicídio. Mawaru Penguindrum é um drama sobre o ataque de gás sarin no metrô de Tóquio em 1995, um atentado terrorista completamente diferente daqueles com o qual o ocidente está acostumado. E eu já falei diversas vezes de como o trauma da Segunda Guerra e as questões sem resposta daquele época são um tema recorrente em vários animes e mangás.

paranoiaagent

E isso para citar apenas os títulos “cabeça”. Mesmo nos lançamentos comerciais nós vemos sinais inconfundíveis de que estamos lidando com algo feito em outro país. Os uniformes escolares que adolescentes usam o tempo todo, não importa se estejam em aula ou pilotando um mecha no espaço. A reverência ao senpai. As personagens que falam de costas umas para as outras para efeito dramático. As vending machines que vendem pocky e kit kats de sabores estranhos. Os baito dos jovens adultos. Os apartamentos minúsculos de um quarto só, com chão de tatame e um kotatsu para os dias frios.

kotatsu

É possível separar o anime de toda essa carga cultural? Para Mamoru Oshii, não. É possível para um criador ocidental fazer uma obra que lide com tudo isso? Possível é, mas como disse Satoshi Kon, isso seria uma imitação, e quem deseja uma imitação? Os gaikokujin têm suas próprias histórias para contar. Eles não precisam copiar as japonesas.

Independente do lado que cada um tome, há um ponto com o qual todos concordam. A boa animação pode vir de qualquer lugar, não importa o nome que damos a ela.

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Antes de ‘Perfect Blue’: os mangás esquecidos de Satoshi Kon https://www.finisgeekis.com/2015/08/24/antes-de-perfect-blue-os-mangas-esquecidos-de-satoshi-kon/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/24/antes-de-perfect-blue-os-mangas-esquecidos-de-satoshi-kon/#comments Mon, 24 Aug 2015 18:31:12 +0000 http://finisgeekis.com/?p=597 Satoshi Kon, morto aos 46 anos em 2010, foi um dos maiores nomes da animação japonesa. Mais do que qualquer outro diretor, ele conseguiu traduzir às telonas a vibe histérica e surrealista de autores como Haruki Murakami e de movimentos como o Superflat.

Seus fãs geralmente o conhecem por seus quatro longa-metragens: Perfect Blue (do qual Cisne Negro é uma adaptação), Millenium Actress, Tokyo Godfathers Paprika, e também por sua série, Paranoia Agent. Poucos sabem, no entanto, que antes de sua estreia no cinema Kon escreveu e desenhou uma série de mangás tão inovadores e adultos como o trabalho que o tornou famoso.

À primeira vista, parece óbvio que um figurão do anime tivesse um pé nos quadrinhos nipônicos. As duas indústrias têm uma relação tão forte que o mangá é geralmente a porta de entrada mais fácil para aspirantes ao universo da animação. Satoshi Kon, entretanto, não era um diretor lá muito comum, e seus quadrinhos deixam isso claro. Para nós, órfãos do grande mestre, essas obras (a maioria inacabada) são uma chance inédita de conhecer a mente do criador que virou de ponta cabeça a arte de Miyazaki e Tahakata.

Abrindo o baú

Eu me considero um fã hardcore do trabalho de Kon (a ponto de ter visto Paprika Millenium Actress vezes suficientes para ter quase memorizado o roteiro). Mas mesmo eu até pouquíssimo tempo atrás não fazia a mínima ideia de que o diretor tinha uma produção significativa no mangá. Foi preciso fuçar em uma prateleira esquecida em uma loja nerd em Helsinki, onde estive para um curso sobre videogames, para encontrar Kaikisen, ou Tropic of the Sea, um volume único publicado pela primeira vez em 1990.

Kaikisen

Também conhecido como “O Retorno ao Mar” em algumas traduções

Com exceção do traço característico de suas personagens femininas (onde já podemos ver a semente de Paprika e Chiyoko), é difícil acreditar que o mangá saiu da mesma cabeça que nos deu Paranoia Agent. Trata-se de uma história tradicional de temática ecológica sobre um jovem cuja família foi escolhida para proteger um ovo de sereia. Quando o bairro em que vive é vendido para a construção de um resort, ele se vê lutando contra uma empreiteira para evitar a ira dos tritões.

Em mensagem, Kaikisen é um história à la Miyazaki sem a exuberância visual que tornou o diretor famoso. Se o mangá nos faz coçar a cabeça ao compararmo-lo às suas obras mais célebres, é visível aqui o tom enxuto e despretensioso de Tokyo Godfathers. O espírito ousado que o levaria mais tarde ao estrelado ainda estavam por vir.

Para isso, seria preciso a ajudinha de um peso-pesado.

Sobre os ombros de gigantes

Um ano depois de sua fábula sobre sereias e meio-ambiente, Satoshi Kon se debruçou sobre World Apartment Horror, uma trama sobrenatural envolvendo mafiosos da Yakuza e espíritos maléficos. A obra merece destaque não apenas pelo conteúdo, mas pela companhia: o mangá é uma adaptação de um filme de mesmo nome de ninguém menos que Katsuhiro Otomo, o deus da animação que nos trouxe Akira. Kon, não fosse o bastante, escreveu também o roteiro do longa. Ombro a ombro com os maiorais da animação, não demoraria para ele ganhar seu ticket de entrada na elite da indústria.

WAH

O mangá não seria a última colaboração de Kon com artistas renomados. Entre 1994 e 1995, ele teve a oportunidade de trabalhar a quatro mãos com aquele que é tal vez o nome mais conhecido do universo do anime depois de Miyazaki.

Sim, é ele mesmo: Mamoru Oshii

Sim, é ele mesmo

Satoshi Kon cuidou da arte. Mamoru Oshii, que a essa altura já tinha Patlabor Urusei Yatsura no currículo, assinou o roteiro. Seu toque autoral pode ser sentido em toda a trama. Fugindo do surrealismo e da explosão de referências que viriam a marcar o trabalho de Kon, Seraphim é uma odisseia em um mundo pós-apocalíptico, acompanhando uma jovem que busca salvar a humanidade de uma doença terrível.

seraphim

A arte é de tirar o fôlego e traz à vida o mundo cruel, alienígena e chocante que Oshii concebeu. Além do mais, digno do criador de Ghost in the Shell, o mangá está repleto de referências filosóficas e religiosas.

seraphim collage

Se hoje a mera menção da dupla é suficiente para provocar orgasmos mentais em qualquer otaku, nos anos 1990 a coisa era diferente. Seraphim é um título surpreendentemente obscuro, que nunca recebeu qualquer destaque e acabou descontinuado. O processo de criação foi tão conturbado que foi até objeto de uma piada de Satoshi Kon em um de seus trabalhos posteriores:

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Encontrando a própria voz

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É, no entanto, em 1995 que o Satoshi Kon que conhecemos finalmente abriu as asas. Opus, serializado na Comic Guys entre 1995 e 1996, faz juz ao título: trata-se sem sombra de dúvida de seu magnum opus (obra-prima). Aqui, toda a irreverência e verve cerebral de seus longas recebe o desenvolvimento que merece.

Em um enredo típico da ficção pós-moderna japonesa, o título conta a história de um personagem de mangá que, percebendo que sua morte está próxima, se rebela contra seu criador. O desenhista se vê então lançado ao próprio mundo fantástico que criou e se une à protagonista para colocar ordem na bagunça.

opus 2

opus 1

Ironicamente, tal como SeraphimOpus nunca foi concluído. Quem tiver a sorte de encontrar a edição da Vertical de Tropic of the Sea vai poder ler um pósfacio em que Kon conta um pouco do ritmo endiabrado da rotina de mangaká. Sempre um perfectionista, o animador preferia fazer tudo (ou quase tudo) sozinho, o que lhe exigia virar noites a fio trabalhando. Com a fama dos filmes e a necessidade de cuidar dos longas, essa vida simplesmente lhe ficou impossível. Em seu depoimento, ele diz:

No meu ponto de vista eu tenho usado os chapéus tanto do mangaká quando do animador, mas quando sou apresentado em revistas e coisas do tipo eles se referem a mim como “diretor de anime”, com meu chapéu de “mangaká” relegado ao esquecimento. Eu não me lembro de ter jogado fora aquele chapéu ou fechado aquele negócio, mas eu não posso lutar contra a avaliação objetiva da sociedade. Esses dias eu mesmo tenho depreciativamente me contentado com “mangaká em minha encarnação passada.”

De certa maneira, Satoshi Kon foi vítima de seu próprio sucesso. Felizmente, este mesmo sucesso fez com que suas obras escritas, outrora obscuras, fossem publicadas novamentes em edições de luxo. Para o fã desolado que queira gabaritar a produção de seu “mangaká na vida passada” favorito, recomendo ainda dois outros títulos. O primeiro é Dream Fossil, coletânea de contos de quadrinhos que escreveu ao longo dos anos 1980 e 1990. O segundo é Kon’s Works 1982-2010um belíssimo art-book com pôsteres, artes conceituais e ilustrações variadas de toda sua carreira.

kon collage

Nada disso nos cura da trauma de sua morte prematura. Porém, se nada mais, esses mangás nos trazem uma pontada de nostalgia e avivam nossa esperança de um dia assistirmos ao seu filme póstumo nos cinemas.

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“Cultura otaku” é cultura japonesa? https://www.finisgeekis.com/2015/08/10/cultura-otaku-e-cultura-japonesa/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/10/cultura-otaku-e-cultura-japonesa/#comments Mon, 10 Aug 2015 18:42:28 +0000 http://finisgeekis.com/?p=540 Para nós, do outro lado do mundo, essa pergunta soa estranha. O Guia da Cultura Japonesa carrega uma seção inteira sobre o assunto (algo de se esperar, já que é publicado pela JBC). No bairro da Liberdade em São Paulo mangás e merchandise otaku dividem espaço com kimonos, mistura para missô e cogumelos shiitake. Mesmo os mais ávidos “militantes” anti-anime reconhecem seu carimbo nipônico: anos atrás, um deputado americano declarou que a mídia é a prova de que duas bombas não haviam sido suficientes.

O leitor pode ficar surpreso ao saber que na terra do sol nascente essa opinião tem seus contrários. Políticos como Shintaro Ishihara, ex-prefeito de Tóquio, aproveitam cada oportunidade para atacar a influência da cultura otaku na “saúde dos jovens”, a ponto de terem trocado farpas com gigantes da indústria com um projeto de lei de controle da mídia anos atrás. Ishihara não é um único: para vários japoneses, mangá e anime não são cultura japonesa “de verdade”. Para eles, não passariam de perversões ocidentais que retratam – quando não zombam – de símbolos nipônicos legítimos. O “verdadeiro Japão” não usa palavras em inglês em seu vocabulário, nem baba com garotas estilizadas de pouca roupa e heróis de topetes coloridos. Estes são costumes ocidentais – em especial, americanos – que japoneses abraçaram por vergonha, ignorância ou degeneração.

Por mais histéricos que esses críticos soem, eles não estão 100% errados. Há algo de não-japonês na cultura otaku, que abala a própria ideia de uma “cultura japonesa”. Porém, como em todas as coisas, a verdade é sempre mais complicada.

Quando os japoneses foram proibidos de ser japoneses

Hiroki Azuma, um autor que já citei aqui algumas vezes, tem uma explicação. Além de crítico especialista em cultura otaku, ele é o escritor da história que inspirou o belo anime Fractale e é parceiro de Takashi Murakami no movimento Superflat. Para aqueles que não são familiares com o mundo da arte, Murakami é um pintor que incorpora influências da animação japonesa e da cultura pop em seus trabalhos. Dá para perceber, portanto, que para ele a questão é pessoal.

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Gero tan, de Takashi Murakami

Segundo Azuma, tudo começa – como as coisas, no Japão contemporâneo, geralmente começam – com a Segunda Guerra Mundial.  Entre 1945 e 1952, o Japão esteve ocupado pelas forças armadas dos Estados Unidos. Se por um lado os americanos acabaram com a terrível censura do regime de Hirohito, por outro colocaram, eles mesmos, suas proibições. Obras “indecentes” ou que fizessem apologia ao militarismo eram proibidas de circular. Na prática, isto significou que uma boa parte da cultura que os japoneses tinham de mais cara fosse banida ou controlada, dos filmes de samurai ao próprio shintoísmo, a religião oficial do país. De um dia para outro, um povo que se via no dever de se orgulhar da própria cultura teve de aprender a esquecê-la. Não é um trauma fácil de se resolver. Para a sorte dos japoneses, eles tiveram uma ajudinha do estrangeiro.

Nos anos 1970 e 1980, um novo jeito de encarar a arte e o mundo chegou ao Japão. Esta filosofia, criada na França para pensar na loucura e histeria das novas mídias que surgiam, se baseava em uma ideia simples.

Um dia, no passado, a realidade era apenas o que havia à nossa volta. Obras de arte, escritos e entretenimento eram um tempero a mais, um toque de criatividade que curtíamos de quando em quando e que sabíamos separar do mundo que nos cercava.

Alguns séculos depois, a situação era outra. Rádio e TV viraram itens indispensáveis cujos programas nos acompanhavam dia e noite. Com os walkmen (depois CD players e iPods) a música passou a ser algo presente em cada segundo de nossas vidas. Com as telas (primeiro na sala, depois nos quartos, bolsos e relógios) nosso dia a dia deixou de ser físico para abraçar o virtual. Programas, desenhos e comerciais não eram mais um tempero: eles haviam se tornado parte da realidade. Pense só em sua infância e em quantas memórias você tem de jingles, personagens de animação, locutores favoritos ou websites. Recentemente, passamos mais tempo com vídeo, internet e arquivos mp3 do que com um mundo que existe “de verdade” e que podemos “tocar”.

Essas mudanças fizeram a cabeça de uma legião de artistas, que criaram uma arte acessível e criativa, em que nada era o que parecia e a própria existência era posta em xeque. Neste mundo, personagens interagiam com seres imaginários e manifestações dos seus próprios sentimentos. Às vezes, eles temiam estar ficando loucos. Outras vezes, eles “descobriam” que são personagens em uma história e lutavam para se libertar do autor.

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O resultado é uma “fantasia” igual a nenhuma outra. Não é mágica ou coerente como os livros de Tolkien e seus milhares de imitadores. Não é séria como a low fantasy que lida com monstros (fantásticos ou humanos). Não é “afeiçoada à pátria” e politizada como o realismo fantástico da América Latina. É, fiel à sua origem, uma mistura desvairada de cultura pop, memes, cores vibrantes e doidices aleatórias.

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Qualquer semelhança com o anime não é mera coincidência. Quando os japoneses foram apresentados a essa corrente, algo incrível aconteceu.

A “domesticação” da cultura pop

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Para artistas ansiosos em expor a cultura, modo de vida e desassosegos de seu país, porém sem saber como escapar do rótulo de “americanizados”, essa nova arte trouxe uma saída inédita. E se o mundo moderno, os arranha-céus, as palavras em inglês e  os adereços modernos – do celular aos consoles de games – pudessem se transformar em uma nova cultura? Não, obviamente, do jeito que estavam, mas caso fossem modificados um pouco, misturados aos samurai, shamisen e cerimônias do chá? Afinal, se coisas imateriais já faziam parte da realidade e se não havia mais divisão entre o mundo “real” e “digital”, por que não combinar tudo?

Desse caldeirão surgiu o anime que amamos tanto. O Japão até produzia animações antes da guerra, mas basta uma olhada para perceber que elas não tinham nada a ver com o universo vibrante de Goku, Sakura e Usagi. Obviamente, o anime não foi a única coisa a sair desse choque. Outro Murakami, o escritor Haruki, trouxe à literatura o que seu xará fez com as artes plásticas. O autor, cuja obra influenciou uma série de animes, de Haibane Renmei Angel Beats!, a ponto de ser diretamente citada no surreal Mawaru Penguindrumescreveu histórias que trouxeram Johnnie Walker, Coronel Sanders, o ataque de gás sarin no metrô de Tóquio e a campanha japonesa na Manchúria na Segunda Guerra a um mundo fantástico.

livros murakami

Livros de Murakami no anime Mawaru Penguindrum

Quase cem anos atrás, Virginia Woolf disse que a arte só começa onde termina a auto-afirmação. Muito se fala sobre preservar as “raízes”, celebrar a “nossa cultura” e acabar com as “influências de fora”. O advento do anime, no entanto, nos passa uma lição contrária. Afinal de contas, ele deu à cultura japonesa algo que ela (com exceção talvez dos trabalhos do Hokusai) nunca antes teve: popularidade inigualável no mundo inteiro. O otaku não tem país. Ele existe em qualquer parte do mundo, tal com os comerciais, mascotes, referências literárias, memes e toda a realidade recortada que celebra.

É importante ter orgulho de onde viemos e de quem somos. Mas às vezes, para compartilhar nossa experiência, nada é melhor do que deixar isso de lado por um instante.

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Cidades sem ninguém https://www.finisgeekis.com/2015/05/04/cidades-sem-ninguem/ https://www.finisgeekis.com/2015/05/04/cidades-sem-ninguem/#respond Mon, 04 May 2015 19:02:16 +0000 http://finisgeekis.com/?p=204 É uma grata surpresa ver, em uma nova temporada de anime, títulos que buscam impressionar sem abandonar fórmulas de sucesso. O maior destaque nas últimas semanas tem sido o doce (e irreverente) Plastic Memories. 

Com a verve melodramática que anda fazendo sucesso hoje em dia, a animação acompanha a história de funcionários de uma divisão da SAI Corp., companhia que vende robôs humanoides sapientes chamados giftias. Iguais a serem humanos em quase tudo, eles têm, contudo, uma diferença crucial: seus circuitos só aguentam nove anos de atividade. Assistir ao sistema se degradando não é para muitos. Em função disso, a SAI Corp. fornece serviços “funerários”, recolhendo os giftias que se aproximam de seu fim.

Serviço de passagem

Eis aqui um argumento que parece uma versão cibernética de A Partida. Ao contrário dos okuribito do filme de  Yojiro Takita, no entanto, os “despachantes” deste mundo futurista trabalham sempre em dupla, um humano e um giftia. Tsukasa, um novato desastrado, e Isla, uma androide no fim de sua vida útil, são nossos protagonistas. Tsukasa busca se aproximar da companheira, e parece evidente que seu relacionamento se tornará mais profundo. Dado que Isla tem poucas semanas de vida, parece também inevitável que o vínculo terminará em tragédia. O leitor aguçado poderá ver paralelos com os Persocoms de Chobits, ou mesmo com a angústia dos replicantes de Blade Runner, mas estejam avisados que as aparências enganam. Pelo que tem mostrado até agora, a série é pouco ambiciosa.  O elenco, uma pequena coleção dos clichés mais queridos do anime, estão dispostos a tirar risos tanto quanto lágrimas. Isla, uma kuudere que poderia se passar por irmã da Tenshi, de Angel Beats, tem em comum com a Chi de Chobits apenas os circuitos. Fechada e deslocada do mundo, dá uma presença muito mais pesada à série, mesmo em seus momentos de escape cômico.

Logo de cara fica evidente que não está na ficção científica a chave da série.  Marcada por um desdém por technobabble digno de Ah! My Goddess, a lore de Plastic Memories só está presente para dar volume. A dupla de “despachantes”, por exemplo, é chamada de spotter marksman, uma referência sem razão aparente às unidades de sniper das forças armadas. Pelo contrário, a obra parece muito mais interessada nas facetas humanas da perda do que na sua lógica. O fundamental em relação aos giftias não é o fato de serem máquinas, propriamente ditas, e sim artifícios, criações humanas. Frutos, enfim, das nossas mãos e da nossa mente. Conforme nos familiarizamos com a rotina de Isla e Tsukasa, há uma questão que jamais sair do ar: é possível compensarmos nossas perdas criando algo para ocupar seu lugar?

A insustentável leveza do ser

A pergunta não é nova, nem rara. Pelo contrário, parece nos acompanhar com maior frequência dia após dia. Na nossa época, muito se fala de construções humanas. Da língua que falamos ao país em que vivemos, das causas do amor ao nosso próprio corpo, das nossas preferências estéticas à doçura do doce e ao amargor do amargo, tudo é uma grande invenção vendida por mentes prodigiosas. A ideia de que vivemos em uma construção do nosso próprio gênio, e que a natureza não existe ou não importa é extremamente sedutora. Afinal, se a realidade é criada, é necessário que os seres humanos sejam capazes de criar. Inventar o mundo: que grande triunfo à espécie que sempre desafiou a natureza! Para os que antes se contentavam em se proteger das intempéries em cavernas e dar grandes saltos na superfície da lua, nossa geração vive numa utopia sem precedentes.

Acontece que nem tudo são flores. E viver sozinho em um playground se torna solitário mais cedo ou mais tarde. Podemos nos divertir o quanto quisermos com nossos brinquedos de faz de conta, desde que não pensemos muito a respeito. Pois se o único sentido da vida é o sentido que damos a ela, é porque a vida não tem sentido algum. Se a única realidade é a que decretamos ser real, vivemos no escuro, sem conhecer o que nos cerca. Se os únicos amigos que temos são os da nossa imaginação, é porque estamos na verdade desesperadamente sós. Como uma pensadora controversa dizia muito tempo atrás, podemos ignorar o mundo real, mas o mundo real não nos ignora.

Há uma razão pela qual o anime é visto com desconfiança em seu país de origem. Existe a impressão de que o meio faz com que as pessoas troquem o real pelo virtual, os ganhos na vida pelo prazer emulado, os laços com humanos de verdade pelo afeto de desenhos de olhos esbugalhados. Quem empurra quem é difícil dizer. É bem capaz que o anime só preencha um vazio que nossos tempos tenham criado: uma solidão extrema e uma falta de propósito em escala global. Nada muda o fato de que nos voltamos para nossos “giftias”, sejam eles quais forem, para nos acreditarmos mais completos. A armadilha, como Plastic Memories nos lembra, é que giftias um dia morrerão. E o buraco que esperávamos tampar vai reaparecer quando menos esperamos.

plastic memories ending

No primeiro episódio, Isla e Tsukasa precisam aposentar uma jovem androide da casa de uma idosa. A peça é uma criança, uma ilusão criada pela senhora para esconder o fato de que está sozinha, próxima do seu fim, e que o mundo à sua volta não lhe cede mais nenhum afeto. Em Chobits, a indústria dos Persocoms é construída por almas solitárias. Chitose Hibiya, sua inventora, viu nos androides uma forma de ter os filhos que nunca pôde conceber. Minoru Kokubunji, prodígio da robótica, tenta a todo custo recriar sua irmã falecida. Hiroyasu Ueda se casa com sua persocom e sofre um trauma quando ela invariavelmente fica obsoleta e para de funcionar. Nas entrelinhas, Uma cidade sem Ninguém, o livro ilustrado lido por Chi ao longo da história, serve de lembrança silenciosa dos corações partidos e olhos embargados.

Se nessas séries o laço é visto com bons olhos – uma “cura”, conquanto inadequada, para a grande solidão de nossa década –  isso nem sempre é o caso. Em Paranoia Agent, Satoshi Kon nos apresenta um otaku que de tão viciado em anime é incapaz de tirar prazer de pessoas reais. Para satisfazer suas necessidades mais básicas, contrata prostitutas e mantém bonecas nas mãos durante o coito, imaginado as estar possuindo. O amor surpreendentemente casto de Chi e Hideki, por este lado, não parece mais tão bittersweet!

otaku paranoia agent

Curiosamente, é justo sobre androides que fala o ‘canto do cisne’ de Kon. The Dreaming Machine se propunha a ser um “road movie para robôs”, abordando outro tipo de solidão: a das criaturas pelos seus criadores. O elenco não contaria com uma única pessoa: é o sentimento dos “objetos”, dos frutos da engenhosidade humana, que nos comoveria. O longa cumpre a dupla façanha de ser a primeira obra de Kon com roteiro original assinado pelo próprio diretor e a primeira para um público infanto-juvenil. Infelizmente, Kon morreu de câncer em 2010, e seu filme foi arquivado por falta de verbas. Salvo o crowdfunding de alguma alma bondosa, é possível que jamais assistamos à sua última palavra sobre o assunto.

Uma grande pena. Em nossa época de criaturas, nada é mais bem vindo do que um grande criador.

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