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RPG – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 24 Mar 2021 21:20:35 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 RPG – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “The Life and Suffering of Sir Brante”: A História não é um simples dominó https://www.finisgeekis.com/2021/03/24/the-life-and-suffering-of-sir-brante-a-historia-nao-e-um-simples-domino/ https://www.finisgeekis.com/2021/03/24/the-life-and-suffering-of-sir-brante-a-historia-nao-e-um-simples-domino/#respond Wed, 24 Mar 2021 20:53:44 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22722 Muito tempo atrás, quando videogames ainda eram novidade, estudiosos da mídia se perguntavam qual era a melhor “caixinha”, no mundo da arte, em que deveriam ser colocados.

Alguns defendiam que eles eram apenas outro tipo de jogo, igual ao xadrez ou mesmo ao futebol.

Outros argumentavam que eram uma forma de contar histórias, comparável ao cinema, a literatura e ao teatro.

Não demorou para que ambos percebessem que estavam errados. Videogames eram uma mistura das duas coisas – e mais tantas outras que não haviam antecipado. Tentar separá-las ia justamente contra aquilo que os tornava uma arte tão fascinante.

Mas ambos também estavam certos – em relação a outra coisa. A despeito de seus códigos e interfaces gráficas, games não são uma mídia completamente “nova”. Eles remontam a tradições – de narrativas, de divertimentos, de maneiras de entender o mundo – que acompanham a humanidade desde os seus primórdios.

De vez em quando surge um jogo para nos provar que isso sempre será verdade, não importa quão sofisticados fiquem nossos computadores e consoles.

The Life and Suffering of Sir Brante, RPG baseado em texto desenvolvido pelo estúdio Sever, é um desses games.

Roleplay em tempos de revolta

Que Sir Brante não é um RPG como os outros fica claro já em sua primeira tela. Enquanto que muitos títulos do gênero se contentam em ser um pastiche de J.R.R. Tolkien, dando ao seu universo um tom vagamente europeu e medieval, Sir Brante mira uma época mais recente. Seu estilo artístico parece se inspirar em xilogravuras e águas-fortes dos séculos XVI e XVII.

A referência tem um porquê que se torna evidente quando jogamos o game. Sua história nos leva auma monarquia fictícia conhecida como o Abençoado Império Arkniano. Mais precisamente, como o subtítulo revela, na época em que esse império encontra seu fim.

No que consiste essa derrocada é um mistério que Sir Brante guarda para o final. O jogo é um RPG baseado em texto no estilo de Fallen London, que acompanha retrospectivamente a vida de um homem que virou seu mundo de ponta cabeça.

Seu enredo é organizado em cinco capítulos, correspondentes às fases da vida de seu protagonista. Desde o primeiro, – “Infância” – observamos as tensões que mais tarde se tornarão críticas.

O Abençoado Império, aprendemos, é um mundo cruel cuja sociedade é dividida em três estados: os nobres (que mandam), os plebeus (que sofrem) e o clero (que justificam a desigualdade perante à lei como parte de um plano divino).

As coisas começam a mudar quando a própria Igreja  começa a questionar sua doutrina. Da opressão aos camponeses nasce um movimento dissidente – a Nova Fé – que prega o livre acesso às escrituras e defende o dever de cada um buscar sua própria salvação.

Se você entende de história – ou é fã de Europa Universalis –  já deve ter entendido do que Sir Brante realmente se trata. Seus “padres dissidentes” são uma referência óbvia a Martinho Lutero e os primeiros protestantes. O próprio “Abençoado Império Arkniano” nada mais é que o Sacro Império Romano-Germânico, antigo estado na Europa Central onde Lutero nasceu. E cuja resistência em aceitar sua “nova fé” mergulhou a Europa em uma das piores guerras de sua história.

“O Enforcamento” por Jacques Callot (1633)

As Guerras de Religião

Dissidentes enforcados em “Sir Brante”

Como escrevi em outro artigo tempos atrás, RPGs são um gênero complicado. Vivem nos prometendo “liberdade de escolha”, mas esquecem de nos dizer que as “escolhas” em questão quase sempre estão “sobre trilhos”.

Na maioria das vezes, elas consistem apenas em escolher entre duas ou três alternativas opostas. Geralmente bem identificadas, para que saibamos exatamente o que estamos escolhendo.

Sir Brante joga essa convenção pela janela. Nada mais justo para um game inspirado nas Guerras Europeias de Religião,  uma série de conflitos super-complexos que não podem ser resumidos a paragons e renegades.

O jogo contém um número surpreendente de caminhos, mesmo para um RPG sem uma interface gráfica propriamente dita.

Como em visual novels, há uma série de “rotas” principais, correspondentes aos três estados que regem o Império Arkniano. Dependendo das escolhas que tomar em seus anos de formação, Brante pode se tornar um nobre, um padre ou continuar um plebeu.

Dentro de cada caminho, porém, é possível se posicionar a favor ou contra o status quo. E no seio de cada uma dessas lutas, é possível optar pela via reformisma ou pela violência desenfreada.

Obviamente, nada é tão simples quanto parece. Isto porque o cabo de guerra entre situação e revolução é representado como métricas distintas, cada qual com seus valores máximos e mínimos.

Se qualquer um desses termômetros políticos chegar no extremo, em qualquer uma das direções, o resultado invariavelmente será um banho de sangue – seja no sentido da anarquia, seja de uma reação brutal contra os oprimidos.

Há aqui uma lição importante sobre a natureza do populismo. Lute pelos seus direitos e você pode mudar o mundo para o melhor. Porém, se sua luta violar essa frágil malha de civilidade que chamamos de Estado de Direito, é muito provável que sua cabeça termine ao lado das dos tiranos que almejava depor.

De um ponto de vista de game design, o que impressiona nesses desenlaces é como a equipe do estúdio Sever conseguiu escrever uma história coesa sem que saibamos, até o último momento, que rumo nossa jornada tomará.

Isso jamais seria possível sem o imensa sensibilidade de seu roteiro e o carinho com que trata suas personagens.

Casos de família

“Esteja pronto a aceitar que Sir Brante não conseguirá vencer cada desafio em seu caminho” o jogo nos avisa ao começarmos a campanha, “Cada vitória será uma luta – um caminho calcado por derrotas amargas e fracassos torturantes.”

“O que será de Sir Brante, seus entes amados, e seu mundo?”

Essas palavras salientam bem a natureza do jogo da Sever: essa não é uma história sobre ideias, e sim sobre pessoas.

Boa parte da trajetória de nosso protagonista é passada ao lado de sua família, ao longo de três décadas de crises, tragédias e alegrias compartilhadas.

Brante é filho de Robert, membro da baixa nobreza, e Lydia, camponesa que trouxe à casa sua filha Glória, fruto de um estupro por um nobre abusador. Eles também vivem com Stephan, filho de Robert com sua primeira esposa, uma nobre “da espada” – i.e. que pertence ao alto escalão do Império e tem o direito de passar seu título aos filhos. Por conta disso, ele goza dos privilégios da aristocracia, enquanto seus irmãos, apesar de morarem na mesma casa, são seus inferiores.

Robert é um reformista de coração, mas nunca teve coragem de peitar seu próprio pai, alpinista social disposto a sacrificar tudo para não ser confundido com um plebeu  – em uma cena, ele literalmente tenta colocar fogo na própria casa com a família dentro.

Stephan constantemente humilha seus irmãos plebeus, em especial Glória, que considera a culpada por todos os problemas da família. Cada esporro, porém, torna a irmã mais hostil – e desdenhosa dos esforços de Stephan para erguer a reputação dos Brante.

Lydia, a mãe, faz o possível para manter a família unida, muito embora ela seja a que mais sofra nas mãos de Stephan e do sogro. Paradoxalmente, ela é também uma religiosa devota que acredita que sua opressão é obra de Deus e não deve ser resolvida.

Não é preciso dizer que seja qual for a revolta que Sir Brante vier a armar, ela não descerá bem com sua família.

Esses conflitos trazem à mente We. The Revolution, outro jogo que usou a família do protagonista para dar um rosto humano a um período conturbado da história. No caso, a Revolução Francesa.

Porém, se naquele jogo a ruína da família era uma tragédia anunciada – um lembrete de que revoluções invariavelmente decapitam até mesmo aqueles que manejam a guilhotina – em Sir Brante temos a opção de evitar o pior.

Nenhuma dos caminhos para isso é fácil. O que só torna nossa derrota mais amarga quando nossos esforços para salvar a família fracassarem. Ou quando descobrimos, tarde demais, o preço terrível que teremos de pagar por eles.

O dilema não acaba na família. Virtualmente todas as pessoas com que Brante se relaciona em sua vida pessoal desempenharão um papel na arquitetura de sua revolta. Para ajudá-lo – ou, às vezes, opondo-se a ele até as últimas consequências.

Nesse sentido, Sir Brante é praticamente um anti-Dragon Age II. Se o muito criticado game da Bioware nos obrigava a assistir uma revolução que acontecia à nossa revelia, no jogo da Sever todo o combustível da revolta já está presente desde a nossa infância, esperando apenas nosso movimento estabanado para espalhá-lo e incendiá-lo.

Cada uma de nossas ações – mesmo as mais inconsequentes – terão um papel a desempenhar na Hora H.

“Como uma pessoa normal se torna uma figura história?” escreveu Fyodor Slusarchuk, autor do cenário de Sir Brante, no artbook oficial. “Que caminho alguém percorre para ganhar o poder de remodelar o muito inteiro ao seu redor? Estas são as questões que quisemos fazer ao público”.

De que essas perguntas foram feitas, não há dúvidas.

Mas será que são as perguntas certas?

O dilema das decisões importantes

 

O problema de se acreditar que “cada decisão importa” é que, no mundo real, isso não podia ser mais longe da verdade. Boa parte das coisas que fazemos, dizemos e sofremos não significa coisa alguma.

Mesmo as pessoas que de fato mudaram o mundo não passaram toda sua vida planejando seu grande ato. Não são raros aqueles que se imortalizaram por um único ato de heroísmo. Às vezes, fruto da mera sorte; outras, contrário a tudo o que haviam feito antes.

“Deus escreve certo por linhas tortas” e “há males que vêm para o bem” não seriam ditados populares se não tivessem um fundo de verdade.

Isso não vale apenas para as pessoas, mas também para a própria história. Não é porque nosso presente veio na sequência de épocas passadas que todos os problemas que enfrentamos hoje são resultados de um dominó iniciado quando o primeiro humano descobriu o fogo.

Foto: os responsáveis pela lentidão no combate à Covid-19 em 2020

Admitir o contrário implica em aceitar a conclusão simplista  – e terrivelmente conservadora – de que somos escravos de nosso passado. E que, por consequência, ninguém é responsável de verdade pelas próprias ações.

Se todos os problemas do Brasil vêm da época colonial – como dizem ingenuamente certos professores de história, desesperados para que seu trabalho seja levado a sério – não há por que nos responsabilizarmos pelos erros e desastres do presente.

Se a crise ambiental que enfrentamos é resultado direto da Revolução Industrial, não adianta mexermos um dedo para salvar o planeta. Trezentos anos de desenvolvimento não-sustentável nos trouxeram até aqui. Não será a retórica de uma Greta Thunberg que nos desviará desse caminho.

Se o futuro de uma pessoa é determinado já na sua infância, é inútil investir em educação, assistência ou formação profissional. Afinal, uma vez miserável, sempre miserável.

Se nossa sociedade é desigual e injusta, é porque “tem de ser”. Milênios de civilização nos trouxeram até esse ponto. O que seria um punho erguido perto de toda essa ação humana acumulada?

Tudo o que nos resta a fazer é baixar nossa cabeça e aceitar calados nosso estado como os plebeus do Império Arkniano.

Mas há outra forma de ler Sir Brante que vira de ponta-cabeça essa interpretação. E sua chave está na própria interface do jogo.

Sir Brante é um livro. Mais precisamente, um livro de memórias escrito pelo próprio Brante, na tentativa de entender sua própria vida.

O game deixa isso claro desde o primeiro momento, obrigando-nos a responder “quem determina o destino de um homem?” Pergunta esta que ele repete em diversos da história, como se nos desafiasse a mudar de opinião.

Essa “história dentro da história” esconde uma lição ainda mais importante do que as mensagens que o jogo traz sobre política, história ou relações humanas. Nossa passagem por esse mundo – e a de todas as pessoas  – não é apenas uma lista de lavanderia de coisas que aconteceram. É, também, uma narrativa.

Uma tentativa de agrupar nossas alegrias e sofrimentos, conquistas e derrotas, de uma maneira que faça sentido: que nos convença de que não vivemos à toa, de que seremos lembrados, perdoados, vingados; de que mundo que deixamos não é o mesmo de quando nascemos – para o bem ou para o mal.

A história não é um dominó inevitável que une o Homo erectus às eleições de 2018. Somos nós que escolhemos encará-la dessa forma, seja porque isso permite prever minimamente o futuro (ainda que com uma grande margem de erro), seja apenas porque tememos um Deus que joga dados.

É essa decisão que Sir Brante nos convida a tomar. Certas eventos com que nos deparamos ao longo do jogo nos dá a entender que estamos no controle. Outros tantos acontecem à nossa revelia. Há sinais de que a divisão da sociedade em três estados é mesmo parte de um plano divino. Outras pistas sugerem que não existem deuses – e que a própria realidade não passa de um sonho.

Certas pistas são melhores que outras. Mas decidir quais segui-las, e qual história com elas escrever, depende apenas de nós.

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O problema emocional de “Cyberpunk 2077” https://www.finisgeekis.com/2021/01/06/o-problema-emocional-de-cyberpunk-2077/ https://www.finisgeekis.com/2021/01/06/o-problema-emocional-de-cyberpunk-2077/#respond Wed, 06 Jan 2021 21:00:41 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22497 (Aviso: contém SPOILERS de Cyberpunk 2077)

Tive um amigo parecido com Johnny Silverhand.

Não, ele não era um roqueiro, nem terrorista, tampouco tinha um braço cibernético. Mas ele tinha, como o deuteragonista de Cyberpunk 2077, a gana de “encarar a morte”.

Meu amigo sofreu uma grande decepção amorosa enquanto prestava o serviço militar. O fora o transformou em um guerreiro exemplar. Permaneceu nas Forças Armadas muito mais do que a lei o obrigava.

Não se engane: ele não era um patriota. O que o movia era o perigo. Para se distrair da dor que sentia, passou a se voluntariar para todo tipo de missão. Era como se, lá no fundo, desejasse morrer durante um resgate ou treinamento na selva.

Um dia, sua dedicação o colocou no hospital. Imediatamente depois ele deu adeus à carreira militar. Quando perguntei por quê, ele me confessou:

“Eu tenho uma namorada agora. Quando estive internado, o rosto dela não saía da minha cabeça. Eu não posso mais fazer isso sabendo que há alguém me esperando em casa.”

Ao jogar Cyberpunk 2077, não pude deixar de lembrar de meu amigo. E quanto mais avançava em sua história futurista sobre vida e morte, violência e redenção, mais eu percebia que havia algo de profundamente errado na mensagem que o game quis passar.

Never fade away

Se tirarmos de Cyberpunk 2077 sua roupagem sci-fi e implantes cibernéticos, veremos que a história por baixo segue um caminho bastante familiar: a jornada de uma pessoa que descobre ter os dias contados.

Conflitos como esse estão longe de ser novos. É possível que você, leitor, já o tenha enfrentado, ou conheça pessoas que o fizeram. É o drama que sentem aqueles diagnosticados com câncer, que se submetem a cirurgias arriscadas ou que se voluntariam para uma guerra de que não esperam retornar.

A ficção está cheia daqueles que aproveitam esse dilema para fazerem a diferença em suas vidas. Seja aos outros ou a si mesmos.

É o que fez Michael Furey, personagem do conto Os Mortos de James Joyce, que preferiu “atravessar corajosamente ao outro mundo no serviço de alguma paixão a desaparecer e definhar tristemente com a idade”. É o que fez Johnny Silverhand ao ficar para trás durante seu atentado terrorista para garantir que seu manifesto circulasse.

Mantidas as proporções, é o que tentou fazer também meu amigo, lançando-se aos perigos da carreira militar para não ter de sofrer uma vida desiludida.

Cyberpunk, à primeira vista, conta a história de uma pessoa assombrada por essa mesma decisão. Dexter deShawn, o inescrupuloso fixador que lança V à missão que lhe custará a vida, apresenta-se com a seguinte pergunta: “Você prefere viver na paz como um zé-ninguém e morrer de velhice ou apostar tudo pra ditar a história e nem chegar na casa dos trinta?”

Dexter, que prefere a primeira opção, acaba morto no mesmo lixão em que V ativa a consciência de Johnny Silverhand. Esse mesmo lugar, descobrimos depois, esconde o cadáver de Rache Bartmoss, lendário hacker que também morreu “ditando a história.”

Não é preciso ser um adivinho, nem ter lido spoilers, para entender que algo parecido marcará o destino de V.

Histórias como essa são naturalmente poderosas. A morte chega a todos um dia, e a perspectiva de morrer em vão nos apavora mais do que bater as botas.

Como escreveu Alasdair Gray em seu romance Lanark, “a morte raramente acontece quando as pessoas estão no seu melhor. É por isso que nós gostamos de tragédias. Elas mostram homens terminando enérgicamente com suas faculdades intactas e merecendo morrer.”

Em um cenário como o de Cyberpunk 2077, em que o próprio valor da vida é posto em cheque, uma premissa como essa é duplamente efetiva. V, neste sentido, poderia ser uma resposta futurista ao Booker deWitt de Bioshock Infinite: uma criminosa que espelha sua própria realidade distópica, sem futuro possível além de levá-la consigo ao inferno.

Para crédito dos roteiristas, o jogo pincela ideias como essas aqui e ali. “Sua oferta foi uma merda” diz V a um funcionário da Arasaka em um dos finais possíveis “Mas, ao fazê-la, você me deu uma coisa melhor.”

“Antes, a morte era inevitável. Um fato da minha vida de merda. Você me permitiu escolhê-la, aceitá-la nos meus termos.”

V não deseja sobreviver apenas porque tem medo da morte. Seus diálogos deixam claro que sua luta é contra a própria Night City, antro de cobiça e violência em que a vida humana não tem valor e a morte mal vale um obituário.

É por isso que, ao suicidarmo-nos no final “ruim”, o jogo se encerra com uma tomada de Night City.

É a cidade que venceu de novo, abafando mais uma alma rebelde, mais um disparo esquecido em sua escuridão.

Infelizmente, a história que une essa premissa com esse final parece ter vindo de um jogo completamente diferente.

Viver como um Zé Ninguém ou ditar a história?

O que Cyberpunk parece esquecer é de que a escolha dada por deShawn  é fundamentalmente egoísta. Ela faz sentido se não tivermos nada a perder – ou se agirmos que nem um sociopata, “matando quem tivermos de matar”, como aconselha a boneca do Clouds na missão “Amor Automático”.

Porém, como meu amigo militar descobriu do jeito difícil, as coisas se complicam quando forjamos relações com outras pessoas. A partir do momento que convidamos alguém à nossa vida, o preço de terminá-la não é mais apenas nosso.

O problema de Cyberpunk 2077 é que sua missão principal nos empurra ao fatalismo, mas o jogo em torno dela nos incentiva a construir novos vínculos. Boa parte das side quests que recheiam as suas mais de 100 horas nos colocam cara a cara com pessoas que estão reconstruindo suas vidas. E que esperam que V seja parte de seu futuro.

Judy Alvarez deseja retomar o clube Clouds para vingar sua amiga Evelyn. Seu apreço por V é tamanho que aceita largar Night City ao seu lado – e o fará sozinha, caso seja rejeitada. River Ward quer ter uma vida em família ao lado da irmã e sobrinho. Panam deseja retornar ao seu clã. Kerry Eurodyne, em uma série de missões que formam a melhor parte do jogo, encontra um novo sentido para a vida ao lado de uma banda de idols..

Essas não são pessoas dispostas a “encarar a morte” de frente como Johnny Silverhand. Pelo contrário, como a namorada de meu amigo, elas esperam reencontrar V são e salva quando a poeira baixar.

É justamente por isso que o fim iminente da protagonista funciona tão bem como um dispositivo de enredo. Nós sabemos que sua morte arruinará irremediavelmente a vida dessas pessoas.

Quando um jogo permite que desenvolvamos esse tipo de afeto por suas personagens não é suficiente que apele a um final trágico. É preciso que este sentimento retorne à V de alguma forma; que sua escolha final, na sacada da loja de Misty, seja retratada com a gravidade que merece.

E é aqui que Cyberpunk 2077 escorrega da pior forma.

Jogos de vida, jogos de morte

A morte não é apenas o fim de uma vida. Para os que ficam para trás, ela envolve meses – quando não anos – de luto. No caso de mortes antecipadas, como a de V, este processo começa antes mesmo do nosso último suspiro.

Jogos que falam sobre a morte sabem disso muito bem. Suas histórias não são apenas uma corrida para evitar (ou apressar) o fim, mas também o processo pelo qual fazemos as pazes com o que está por vir.

Foi o que fez Majora’s Mask, jogo apocalíptico em que cada uma das quests força suas personagens a aceitarem a morte – sua ou de terceiros. E que termina, literalmente, com uma metáfora sobre o luto.

Foi o que fez The Witcher 3, permitindo a Geralt de Rivia uma última noite com os outros witchers antes da batalha contra a Caçada Selvagem. Que o encontro aconteça em Kaer Morhen é significativo: para peitar a morte, Geralt retorna ao lugar onde sua vida começou.

Foi o que fez Mass Effect 2 com sua Missão Suicida e as quests pessoais que levavam a ela. E, a despeito de seu final controverso, o que fez também seu sucessor, Mass Effect 3. O jogo inteiro funciona como uma longa despedida em que fechamos todas as pontas, lamentamos todas as perdas e visitamos todos os planetas da Via Láctea fictícia que Shepard chamou de casa.

Cyberpunk 2077 mira no sentimentalismo desses jogos, mas não em seu senso de resolução. Em vez de propiciar missões que sublinhem o que está realmente em jogo – uma última date com Judy, desta vez a um lugar de nossa própria infância; um pedido de desculpas a River por não poder fazer parte de seu futuro com Randy; um adeus merecido à Mama Welles – contamos apenas com brevíssimas mensagens de celular informando-nos do que aconteceu após o sobe-créditos.

A relação de V com os Aldecados são uma notável exceção, mas exige que o jogador escolha um final específico – “A Estrela”. Mesmo esta vinheta, porém, é ofuscada pelo volume imperdoável de conteúdo secundário que contradiz a urgência da missão principal e servem a nenhum propósito senão preencher a cartilha dos games mundo-aberto.

V tem pouco mais de duas semanas restantes de vida, mas o jogo nos encoraja a tomar nosso tempo colecionando carros de luxo, fazendo o trabalho da polícia e ocupando-nos de tarefas meniais com zero impacto na vida das personagens que o próprio jogo nos diz que importam.

A forma como lida com a morte de outras pessoas além de V é ainda mais problemática.

Cyberpunk 2077 esposa um sistema moral preto-no-branco que permite matar qualquer criminoso sem consequências, sem parar para pensar que V e seus entes queridos também são criminosos. Qual o sentido em lamentar a vida de Jackie, um ex-Valentino, se podemos fuzilar todos os Valentinos que encontramos nas ruas? Que direito tem V de dizer que prefere “evitar mortes” – com faz no final “ruim” – se tudo o que fez até então foi genocidar NPCs a torto e a direito?

The Witcher 3 respondeu a perguntas parecidas com vilões tridimensionais e dilemas complicados que nos puniam por escolher saídas fáceis. Cyberpunk 2077, por outro lado, sucumbiu ao simplismo de um GTA futurista.

É muito pouco para uma aventura que prometia calçar os sapatos de um dos melhores games de memória recente.

A exceção: Johnny Silverhand

Há uma personagem no jogo para quem as questões que apontei acima não se aplicam: Johnny Silverhand, o ex-terrorista atormentado por fantasmas pessoais que habita a consciência de V.

A longo do jogo, Johnny oferece missões que não apenas nos permitem conhecer seu passado, mas também enfrentar, no presente, as consequências de seus erros.

Johnny revisita o sofrimento que causou a Alt Cunningham, faz as pazes com Rogue, ajuda Kerry a reerguer sua vida e ainda – dependendo das nossas escolhas  – vinga-se de Adam Smasher. Praticamente todo o conteúdo trazido pela personagem está relacionado diretamente a sua morte – e às decisões, certas e erradas, que levaram até ela.

O problema é que ser uma personagem cativante não faz de Johnny a nossa personagem.

Ao dar aos jogadores o poder de customizar sua própria V – a ponto de deixá-los customizar até mesmo sua genitália – o jogo faz a promessa implícita de que aquela será a nossa janela para Night City. Fãs de RPG, afinal de contas, jogam games para criar suas próprias aventuras, não para servir de líderes de torcida a um avatar do Keanu Reeves com diálogos pré-escolhidos.

Cyberpunk 2077 poderia ter unido o útil ao agradável se Johnny, não V, fosse a personagem customizável. Na linha de Tides de Numenera, o jogo poderia ter contado a história do ponto de vista de Silverhand, recém-despertado após o roubo ao Kompeki Plaza. Como o Último Descartado do game da InXile, teríamos de revisitar Night City num corpo que não nos pertence.

As escolhas que faríamos na criação de personagens ainda teriam um impacto no jogo, determinando a vida – e as ponta soltas – que herdaríamos após o malfadado roubo da relíquia. As cenas de Johnny, por outro lado, teriam muito mais impacto. Mesmo nossas pequenas conquistas – como reencontrar a jaqueta da banda Samurai – traziam um peso emocional muito maior. Não estaríamos fazendo cosplay de um roqueiro morto, e sim recuperando a pessoa que um dia fomos.

Mas Cyberpunk 2077 não é esse jogo, e Johnny só entra em cena quando já enxergamos em V um rosto conhecido nas trevas de Night City.

Dizia Alfred Hitchcock que, se um filme começa mostrando um ladrão roubando uma casa e depois o surpreende com as sirenes da polícia, o público naturalmente torcerá para o ladrão. Não importa que ele esteja errado e a polícia certa. Quando enxergamos a vida pelos olhos de alguém nós nos colocamos do seu lado.

Em Cyberpunk 2077, V é o nosso ladrão. E nem mesmo Keanu Reeves pode salvar um jogo que a abandona à mercê de seu destino.


Nota: a anedota de Hitchcock é contada por Philip Pullmann em seu livro Daemon Voices, no ensaio “Making it Up and Writing it Down”. Não pude encontrar a fonte original.

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“Torment: Tides of Numenera”: o futuro dos RPGs é uma casa dividida https://www.finisgeekis.com/2017/03/20/torment-tides-of-numenera-o-futuro-dos-rpgs-e-uma-casa-dividida/ https://www.finisgeekis.com/2017/03/20/torment-tides-of-numenera-o-futuro-dos-rpgs-e-uma-casa-dividida/#comments Mon, 20 Mar 2017 21:41:57 +0000 http://finisgeekis.com/?p=15893  Certa vez, assistindo à intro de Majora’s Mask, minha noiva fez o seguinte comentário:

Os jogos no passado eram mais mágicos.”

“Por quê? ” eu perguntei.

“Porque deixavam mais a cargo da imaginação.”

Não dá para negar o argumento. Os Zeldas do N64 não fizeram sucesso apenas por serem jogos bons. É preciso de algo a mais para transformar polígonos ambulantes em personagens cativantes.

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Quase vinte anos depois, a situação parece ter mudado. Basta um titubeio pelo uncanny valley para que um jogo seja crucificado. Mass Effect: Andromeda foi o alvo mais recente, mas sem dúvida não será o último.

Assim, é curioso notar que o CRPG mais financiado da história do Kickstarter segue um caminho completamente diferente.

Não qualquer CRPG, mas o sucessor espiritual de um dos maiores games de todos os tempos: Planescape Torment.

Tides of Numenera

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Produzido pela InXile, desenvolvedora de Brian Fargo que ressuscitou a franquia Wasteland anos atrás, Torment: Tides of Numenera traz vários dos criadores de Planescape de volta para um novo épico.

O game da InXile se passa no cenário de Numenera, do qual já falei aqui antes. Trata-se de uma idade das trevas futurista, ambientada um bilhão de anos no futuro.

Oito “humanidades” já ascenderam e foram extirpadas por apocalipses planetários. No Nono Mundo, como a Terra passa a ser chamada, uma sociedade primitiva sobrevive em meio a destroços de civilizações passadas.

O cenário é uma realização ambulante da 3ª lei de Arthur C. Clarke: “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. De naves interdimensionais a monstros biomecânicos, nanorrobôs a seitas místicas, seu universo é tão exótico que borra as distinções entre “fantasia” e “ficção científica”.

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Nada mais justo para um sucessor espiritual de Planescape: Torment, baseado no celebrado cenário Planescape de D&D, que o próprio Monte Cook, criador de Numenera, ajudou a criar.

O enredo

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Fiel ao seu cenário, o game da InXile começa com um mistério. Em uma abertura digna de Haibane Renmei, nosso protagonista “nasce” enquanto despenca do céu. Ou, mais precisamente, quando se espatifa no chão e descobre, como o Nameless One de Planescape: Torment, que não é capaz de morrer.

Nossa personagem em Tides of Numenera é um Deus. Na verdade, um ex-Deus.  

Vaga pelo Nono Mundo uma figura críptica chamada de Changing God, um imortal com o poder de criar novos corpos e transferir sua consciência para eles. Os corpos rejeitados se tornam castoffs, indivíduos que compartilham seus poderes, mas não suas memórias.

Seus experimentos com a imortalidade atraíram a ira de uma força misteriosa conhecida como The Sorrow, uma contra-força da natureza àqueles que violam seu equilíbrio. Na sanha de evadi-la, o Changing God se vê em uma perseguição que durará séculos, mudando freneticamente de corpos atrás de uma forma capaz de destruí-la.

Em Tides of Numenera, nosso protagonista é o último dos castoffs. Descobrindo que a Sorrow persegue estes castoffs com a mesma energia com que caça o Changing God, ele parte em uma jornada atrás do indivíduo que outrora habitou seu corpo.

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Se a sinopse acima foi o bastante para dar um nó em sua cabeça, já podem imaginar o tipo de jogo que Tides of Numenera é. Tal como seu precedessor, Planescape: Torment,  game da InXile é um festival de criatividade, exotismo e uma das lores mais interessantes a dar as caras em um RPG.

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Planescape: Torment ficou célebre pelo seu roleplay “cabeça”, e Tides of Numenera faz jus ao seu legado. Esqueça o final tricolor de Mass Effect 3 ou a moral binária de Fable ou Star Wars: KotOR. O game da InXile traz um dos leques mais diversos de atuação que um CRPG pode oferecer.

O jogo é baseado no elegante sistema Cypher, o mesmo utilizado no RPG de mesa de Monte Cook. Três atributos (força, velocidade e intelecto) regem todas as interações, e pontos de “esforço” podem ser gastos para facilitar tarefas em que teríamos dificuldade.

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Cypher tem sido elogiado como uma das maiores surpresas do RPG de mesa, e Tides of Numenera mostra que sua reputação é merecida. Sua jogabilidade é minimalista e eficiente, um sopro de ar fresco em comparação aos clássicos isométricos da Infinity Engine que visa a simular.

O combate, por turnos, é taticamente superior ao contemporâneo Pillars of Eternity, embora não alcance o refinamento de Divinity: Original Sin ou mesmo Wasteland 2, título anterior da InXile.

Seu diferencial mais memorável, no entanto, é que eles não são sinônimos de derramamento de sangue. Batalhas em Torment: Tides of Numenera são chamadas de “crises”, e sempre podem ser resolvidas de diversas maneiras, das quais a luta é apenas uma.

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Ambiente, maquinário e uma série de gadgets podem ser aproveitados para resolver situações. NPCs (mesmo se hostis) estão quase sempre abertos ao diálogo, e uma lista formidável de skills nos dá uma gama de possibilidades para manipulá-los aos nossos interesses.

Em uma época em que CRPGs se confundem com FPSs e Hack n’ Slash, esse é um destaque que não pode ser subestimado. Sua ênfase em caminhos não-violentos faz de Tides of Numenera um jogo marcadamente lento, mas traz nuances de roleplay virtualmente inéditas desde o Torment original.

Muito disso é fruto de seu volume colossal de escrita. Tides of Numenera transborda de diálogos de uma maneira que mesmo o CRPG, gênero conhecido pela exigência de leitura, poucas vezes faz.

O jogo abusa do tell don’t show – tanto, em alguns momentos, que nos sentimos jogando não um RPG isométrico, mas uma visual novel.

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Se o texto não parece supérfluo, o mérito é da altíssima qualidade de sua escrita. E não digo isso com leviandade: o game é assinado por uma equipe de peso, incluindo Patrick Rothfuss, autor de A Crônica do Matador do Rei.

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O escritor Patrick Rothfuss

Seja como for, não há dúvidas de que Tides of Numenera não será um jogo para todos. Mesmo eu, que me gabo de valorizar uma boa história acima de tudo, senti falta dos arroubos de adrenalina que CRPGs contemporâneo me ensinaram a gostar.

De fato, ao viajar pelos mistérios do Nono Mundo, não pude deixar de me perguntar

Existe ainda espaço para um game como esse?

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Em 2011, quando Dragon Age II foi lançado, o escritor da Bioware David Gaider disse estar apreensivo com o futuro do gênero. Os videogames estavam ficando cada vez mais realistas e cinemáticos, exigindo cada vez menos da imaginação.

Em alguns aspectos, isso era tudo o que a indústria precisava. Dublagem e motion capture popularizaram o talento de atores reais. Gêneros expansivos como o mundo aberto se tornaram hegemônicos. Sob a deusa cadela do fotorrealismo, os games se tornaram mais populares do que nunca.

O problema, como fãs de RPG de mesa sabem muito bem, é que a imaginação é infinita. Não importa quão fotorrealista seja um game AAA, ou quão competentes sejam seus designers. Jogo algum pode competir com uma mente em polvorosa.

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É notável que o recente Mass Effect: Andromeda tenha sido criticado (entre outras coisas) por oferecer “mais do mesmo”. Sua saga se passa em outra galáxia centenas de anos no futuro, mas seu diálogo é contemporâneo; seus aliens, humanos e racionais. Tudo business as usual.

Não em Tides of Numenera. Ao viajar pelo Nono Mundo, me deparei com cristais vivos que se comunicam por memórias, artrópodes que se alimentam de eletricidade, uma nave espacial sapiente que viaja através das dimensões, uma cidade-viva lovecraftiana que serve de lar a milhares de pessoas.

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E tudo isso foi só o começo.

Jogos diferentes possuem apelos diferentes. Para alguns, ele está na excitação do combate. Para outros, na dificuldade, beleza gráfica; na sensação de construirmos uma personagem, um lar, uma cidade só nossa.

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Em Tides of Numenera, flagrei-me buscando curiosidades. Como uma criança ouvindo um adulto ler um livro infantil, embarcava no jogo ansioso pelas coisas inusitadas, chocantes ou maravilhosas, que ele iria me trazer.

Ele nunca desapontou. De NPCs secundários ao vendor trash, cada objeto carrega uma história instigante. É quase possível imaginar o entusiasmo de seus escritores, inserindo tanto detalhe em coisas tão pequenas.

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Um caminho para o futuro… ou um retorno ao passado?

Três anos se passaram desde o começo da chamada renascença do RPG isométrico. Parece bem claro, hoje, que o CRPG ocidental se tornou uma casa dividida.

A profecia de que videogames conseguiriam dar vida aos nossos sonhos não se cumpriu. De um lado, o universo AAA ofereceu um deslumbre visual e dramático sem igual, mas constrangido às fórmulas do MMORPG, da sandbox-Ubisoft e de outras modas do momento.

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Do outro lado, Tyranny e agora Tides of Numenera parecem fazer o novo RPG isométrico dar um passo atrás. Não porque sejam ruim, ou pior que seus antecessores, mas porque resgatam um universo de possibilidades que CRPGs ocidentais parecem ter abandonado.

Jogos densos, lentos e cerebrais, com baixa fidelidade gráfica, feitos para serem degustados aos poucos, não varados em noites de binge.

Qual caminho é mais promissor? Difícil responder. Por um lado, é trágico ver ícones dos novos tempos –  como Mass Effect – buscarem sua redenção na megalomania, celebridades do momento e pornô softcore.

Por outro, Tides of Numenera parece cumprir seus objetivos bem demais. Desenvolvimento e worldbuilding são importantes, mas mesmo no distante passado, quando dependíamos de dados e da imaginação do mestre para nos situar, um pouco de excitação era o tempero de nossas quests.

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O novo RPG isométrico não traz o espetáculo visual de Horizon Zero Dawn, o mundo aberto expansivo de Breath of the Wild, ou o hack n’ slash instigante de Nier: Automata. Ele é storytelling nu e cru; puro demais, talvez, para se sustentar na indústria em pleno 2017.

No entanto, há uma razão para o storytelling, simples e direto como é, ter sobrevivido firme e forte ao passar dos séculos. Mesmo com o advento do espetáculo e da euforia das novas mídias.

A mente, dizia John Milton, é o seu próprio lugar. E em si mesma faz um inferno do céu; um céu do inferno. Com ela, engine nenhuma é capaz de competir.

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“Numenera”: Em um bilhão de anos, o que significará ser humano? https://www.finisgeekis.com/2016/02/22/numenera-em-um-bilhao-de-anos-o-que-significara-ser-humano/ https://www.finisgeekis.com/2016/02/22/numenera-em-um-bilhao-de-anos-o-que-significara-ser-humano/#comments Mon, 22 Feb 2016 23:45:01 +0000 http://finisgeekis.com/?p=2295

2016 pode estar apenas começando, mas alguns jogos, de tão aguardados, nos fazem pensar que o tempo não anda. Para mim – e, imagino, tanto outros que acompanham a renascença dos RPGs isométricos – é o caso de Torment: Tides of Numenera.

O game da inXile foi anunciado em 2013, já arrecadou mais de US$ 5 milhões no Kickstarter, teve a data de lançamento adiada algumas vezes e agora está em early access. Todo cuidado é pouco: o que Pillars of Eternity fez com Baldur’s Gate e Wasteland 2 fez com Wasteland e Fallout, Tides of Numenera pretende fazer com Planescape: Torment.

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É difícil navegar por fórums de CRPG sem topar com uma menção ao título da Black Isle. Planescape: Torment é um dos mais populares games que ninguém jogou. Devido à sua arquitetura contraintuitiva,  o RPG foi um tremendo fracasso de vendas. Ao mesmo tempo, ele guarda a honra de ser um dos jogos mais complexos e bem escritos de todos os tempos.

Tides of Numenera promete unir o útil ao agradável. Ao contrário de seu “predecessor espiritual” e suas inclementes regras de AD&D, o game é baseado no sistema Cypher,  que preza pela simplicidade e clareza.

O que sairá da experiência só saberemos nas próximas semanas (ou meses). Felizmente, não precisamos esperar para ter um gostinho do que está por vir. Tides of Numenera é inspirado um RPG de mesa criado por Monte Cook e lançado em 2013.

Se o livro de referência é algum indicativo, gamers podem esperar um 2016 bombástico. Numenera não é apenas o cenário mais criativo a dar as caras na “renascença isométrica”,  como tem o potencial de ser um jogos mais profundos dos últimos tempos.

Quão profundo? A ponto nos convidar a questionar o que é ser humano.

O que é ‘Numenera’?

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Numenera é um mundo de ficção científica disfarçado de fantasia. Ou é assim como o descreve seu criador, Monte Cook, no livro base do cenário. Inspirado na 3ª lei de Arthur C. Clarke (“qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”), Cook nos apresenta uma sociedade medieval construída sobre as ruínas de uma grande civilização futurista.

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Na verdade, não apenas uma, mais oito. O Nono Mundo, como se chama o planeta de Numenera, acompanha a vida da humanidade após oito apocalipses. Quem foram os outros povos? Por quanto tempo eles permaneceram vivos? O que os extinguiu? Ninguém sabe dizer. Para os humanos do futuro, as “maravilhas” do passado não passam de magia.

Numenera não é ambientada em em um futuro “próximo” de alguns séculos ou milênios. Pelo contrário, o Nono Mundo tem início mais de um bilhão de anos depois dos nossos dias. É um futuro tão, mas tão distante que a própria natureza já não é mais a mesma.

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O sol inchou e engoliu Mercúrio. Os continentes se unificaram em uma nova Pangéia. Todas as plantas e animais mostram sinais de engenharia genética. Mesmo apontar o que é “natural”  ou “artificial” tornou-se um desafio.

Os habitantes do Nono Mundo não fazem ideia do que aconteceu, mas nem por isso deixam de fazer uso das coisas que os antigos deixaram para trás. Estes “detritos” das eras passadas são os “numenera”, máquinas, instrumentos ou peças cujas funções originais foram perdidas, mas que os novos humanos reaproveitam da forma que podem.

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Tal com em Fallout e outras ficções pós-apocalípticas, os poucos que preservam algum conhecimento científico o protegem com devoção sectária. A Ordem da Verdade – versão ainda mais futurista do Brotherhood of Steel – é uma cabala de “cientistas” que exerce sobre o Nono Mundo o mesmo poder de que a Igreja Católica usufruía na Idade Média.

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Com direito a seu próprio papa

O singular do cenário é justamente o quão distante ele é do nosso presente. Para se ter uma ideia, o período jurássico terminou por volta de 145 milhões de anos atrás. Estamos falando, portanto, de um futuro quase sete vezes mais longe da nós do que nós estamos dos dinossauros.

É possível imaginar um mundo tão diferente? Para alguns, com certeza não. Em 1922, o grande dramaturgo George Bernard Shaw escreveu uma peça ambientada em um futuro “tão longe quanto alcança o pensamento”: o ano de 31920 d.C. Sua brincadeira sequer chega perto do exercício mental que Numenera nos propõe.

Já para outros, não há limites para a imaginação. Nos últimos tempos, não apenas autores de ficção científica, mas também historiadores começaram a pensar na humanidade em uma perspectiva cósmica. E as ideias que eles levantaram podem mudar completamente a forma como vemos o mundo.

A “Big History” e o futuro da humanidade

Historiadores costumam brincar que não é possível estudar “Deus e a sua época”. É preciso ter um foco, nos limitar a alguma época ou lugar. Do contrário, seríamos afogados em trabalho infinito.

Ou, pelo menos, é o que diz a maioria. Outros, mais rebeldes, decidiram pensar diferente.

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Big History” é uma tentativa de fazer o que Monte Cook sugeriu com Numenera: investigar toda a história, desde o Big Bang até o fim dos tempos.

O termo foi inventado nos anos 1980, mas a ideia não é nova. O sonho de uma história “completa”, que fosse capaz de nos “colocar” na galáxia, ou mesmo prever o que seres humanos farão no futuro já convive conosco há algum tempo.

Ele já apareceu, inclusive, em vários clássicos da ficção científica. Entre eles, a saga Fundação, de Issac Asimov, e Last and First Men, de Olaf Stapledon – que  o próprio Cook cita como inspiração de Numenera.

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A questão, que tanto fascinou esses autores, é que pensar em uma “história cósmica” requer levar em conta coisas que mal conseguimos imaginar. Um bilhão de anos é tempo suficiente para que os continentes se rearranjem, extinções em massa aconteçam e mesmo o Homo sapiens evolua para uma nova espécie.

Em nossa rotina de anos, décadas e séculos, é surreal pensar nisso fora de um programa do Neil deGrasse Tyson. Como seriam as pessoas desse futuro remoto? O que aconteceria com os países após mudanças geológicas? Existiria cultura humana? Existiriam humanos?

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Nessa escala, as perguntas são outras. De onde viemos? Qual o sentido da vida? Para onde a civilização caminha? O que significa ter “humanidade”? A ciência deixa de ser uma ferramenta para resolver questões pontuais para tentar responder aos antigos mitos de origem.

Qualquer semelhança com o mundo da religião não é mera coincidência. Não é a toa que, em Numenera, a Ordem da Verdade abriu mão da fachada acadêmica para se transformar em um culto, com direito à sua própria liturgia e guerras santas contra facções hereges.

Os novos “pensadores” têm mais em comum com os antigos sábios do que com os pesquisadores de hoje em dia, com sua rotina burocrática e seus departamentos bem divididos. Trabalhando em conjunto, eles não buscam conhecimento especializado, mas uma “teoria de tudo”.

Rumo à psico-história?

O problema é que com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades. E com conhecimento absoluto, somos lembrados de algo que nossos antepassados já sabiam muito bem: a consciência do bem e do mal traz consigo o sofrimento.

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Se realmente existisse uma “teoria de tudo”, o que aconteceria com nosso livre arbítrio? Se nossa inteligência, nossa morte e mesmo nossos gostos e inclinações pudessem ser teorizados e previstos, nós continuaríamos realmente no controle?

Qual o sentido de viver se tudo está “escrito nas estrelas” – ou nos átomos, genes ou números?

Não é preciso esperar um bilhão de anos para fazer a pergunta. Em nossos tempos de big data, transhumanismo e genoma decodificado, muitos cientistas já começaram a perder o sono.

Felizmente para nós, a maioria acredita que o livre-arbítrio é real. O universo humano  é muito complexo para ser ditado apenas pelas leis da física, ou quaisquer outros princípios elementares. E quando mais subimos na “escada” da sociedade humana – do nosso destino pessoal à trajetória de países, civilizações, planetas – mais complexas e imprevisíveis as coisas se tornam.

Mas Numenera não para por aí. O Nono Mundo não é apenas futurista: é construído nas ruínas de civilizações que tiveram o poder de alterar a própria natureza. E por “alterar” não falo de coisas simples, como desviar o trajeto de um rio, mas de transcender a mortalidade, construir estrelas, reescrever as leis da física.

O que impede seres humanos de usarem esse poder para controlar o desenvolvimento da espécie? De decidir quem nasce e quem morre, de projetar indivíduos “sob medida”, de fundir tecnologia e natureza até o ponto em que não saibamos o que é uma coisa e o que é a outra?

Sondas Von Neumann

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Essa é uma daquelas hipóteses que parece boa, até pensarmos nela com mais calma. Graças à Mass Effect, temos um retrato bem convincente do que seria o “pior cenário”.

No game da Bioware, a humanidade descobre ruínas alienígenas e entra em contato com tecnologias avançadas. Graças à isso, a ciência avança a um patamar nunca antes visto, permitindo fontes infinitas de energia, viagens intergaláticas e o contato com outras civilizações.

Em dado momento, no entanto, fica claro que tudo não passa de uma armadilha. A tecnologia em questão foi desenvolvida pelos Reapers, uma raça de naves ciborgues que invade a galáxia a cada 50000 anos para extinguir toda a vida sapiente.

A “ajuda” que os Reapers oferecem é, no fundo, uma ferramenta de controle. Tal como o monólito de 2001, eles “forçam” as espécies a evoluir de uma maneira previsível e observável.

Os Reapers também têm uma “teoria de tudo”. Eles prevêm que a inteligência artificial inevitavelmente destruirá a vida na galáxia. Para eles, a única forma de impedir o desastre é evitar que comece: eliminando os inventores antes que dêem o passo final.

Destruir ou incorporar?

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Se fãs de Mass Effect se decepcionaram com o final de sua saga, talvez lhes seja um consolo saber que a Bioware não foi a primeira a contar essa história. Nausicaa do Vale do Vento, um clássico de Miyazaki e outra inspiração para Numenera, antecipou a jornada do Comandante Shepard em mais de trinta anos.

Nausicaa se passa em um cenário muito parecido com RPG de Monte Cook. O mundo civilizado foi destruído pela guerra, e as pessoas sobrevivem de “detritos” de uma época mais evoluída. Tal como em Numenera, humanos usam relíquias do passado sem saber como elas funcionam, e a tecnologia caminha bem próxima da magia.

A diferença é que, no conto de Miyazaki, a natureza decide revidar. Para salvar o planeta da aniquilação, o mar podre – uma floresta tóxica de fungos e insetos – começa a se espalhar pela superfície terrestre.

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Nausicaa acredita que a natureza não está errada, e que se os humanos pararem de agredi-la, tudo voltará ao normal. A verdade, no entanto, está muito além do que ela imaginava.

Em um fim digno da trilogia da Bioware, Nausicaa encontra uma inteligência de uma civilização passada, que lhe conta que o mar podre não é natural. Ele foi desenvolvido por seres sapientes para “trazer ordem ao caos”, e “salvar” a humanidade por meio de sua destruição. Só um apocalipse, diz ela, protegeria os seres humanos de acabarem com todo o planeta.

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Mass Effect joga a escolha em nossas mãos como um grande dilema moral. Nausicaa, por outro lado, não tem nenhuma dúvida sobre qual é o caminho certo:

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Morrer, sofrer, ser extinto não são coisas ruins. Elas fazem parte da natureza, e o ser humano, para viver em harmonia com seu ambiente, precisa aprender a aceitá-las. A vida é arriscada e imprevisível, mas é assim que as coisas devem ser. Nunca, em hipótese alguma, nós devemos controlá-la.

Será muito interessante ver o que a equipe da inXile pretende nos contar desse dilema. Felizmente, pelo menos dessa vez nós não dependemos dos desenvolvedores. Por se tratar de um RPG de mesa, todos nós podemos vivenciar nosso futuro distante no Nono Mundo. E decidir, por nós mesmos, o que nos fará humanos daqui há um bilhão de anos.

 

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‘Liberdade de escolha’, ou como os video games nos enganam https://www.finisgeekis.com/2015/09/21/liberdade-de-escolha-ou-como-os-video-games-nos-enganam/ https://www.finisgeekis.com/2015/09/21/liberdade-de-escolha-ou-como-os-video-games-nos-enganam/#comments Mon, 21 Sep 2015 21:04:59 +0000 http://finisgeekis.com/?p=699 O mundo dos games é repleto de chavões. Dentre eles, pouco são mais usuais (e controversos) do que “liberdade de escolha”. Fãs de RPG, em particular, terão dificuldade em encontrar qualquer análise aprofundada de seu jogos favoritos que não esbarre na expressão ou em suas parceiras: “escolhas significativas”, “histórias customizáveis”, “narrativas ramificantes”, “agência”.

À primeira vista, parece que há uma demanda para que games se tornem playgrounds virtuais, ferramentas para que os jogadores brinquem de faz-de-conta e inventem as próprias histórias. Eu mesmo já me deparei com isso. Ano passado, após dar uma palestra sobre video games, ouvi um membro da plateia dizer que jogava para “ser ele mesmo”, com todas as opções e nuances do mundo real. Jogos que chegavam perto disto eram jogos bons.

Isso, é claro, à primeira vista. Basta estourar uma pipoca e observar as trocas de farpas entre profissionais da indústria para ver que nem entre desenvolvedores há um consenso sobre o que significa ser “livre” e “entrar na pele” das personagens. Pior: nem se essas duas coisas, ou qualquer outro dos chavões do primeiro parágrafo, têm necessariamente a ver um com o outro.

Em 2010, Daniel Erickson, diretor de roteiro da Bioware, soltou os cachorros sobre Final Fantasy XIII. Segundo ele, o game não era um RPG, e colocar um “J” na frente não enganaria ninguém:

Você não faz escolhas, você não cria uma personagem, você não vive a sua personagem… Eu não sei o que eles são – adventure games, talvez? Mas eles não são RPGs.

Não bastou nem dois anos para que o feitiço voltasse contra o feiticeiro. Em 2011, Dragon Age II, sequel da IP de sucesso da Bioware, foi malhada por incluir um protagonista não customizável e ter um enredo pouco reativo.

No ano seguinte, Mass Effect 3 acendeu a internet em chamas com uma das sequências finais mais controversas da história. A polêmica foi tão grande que uma versão “consertada”, ajustada aos interesses do público, foi lançada no mesmo ano. O episódio foi impactante a ponto de alguns terem sugerido que Half Life 3 custa a sair porque os desenvolvedores estariam com medo de uma reação similar por parte dos fãs.

Talvez haja algum fundo de verdade nos comentários de Erickson. Mesmo assim, ele deveria, nos dizeres de Bill Gates, ter arrumado o próprio quarto antes de tentar mudar o mundo. É verdade que JRPGs não oferecem o mesmo tipo de “liberdade” de que a Bioware se gaba. Mas até que ponto o modelo “ocidental”, “sem o J” de Erickson vive às suas próprias expectativas?

Para responder a essa pergunta, é necessário voltar  no tempo.

‘Interatividade’…. até quando interessa

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Nos anos 1980, quando computadores eram uma novidade e a maioria das pessoas sequer sabia o que eram videogames, Brenda Laurel propôs uma ideia pioneira. Segundo ela, softwares tinham muito em comum com o teatro. Tal como as peças, eles eram compostos por uma série de elementos que deveriam funcionar em conjunto, do código à interface. Para que tudo opere como esperado, é necessário que esses elementos estejam orientados por um projeto geral do autor, e que esse projeto seja traduzido para a dimensão material da obra. Se o criador pesar a barra em seu plano, a ideia parecerá inacabada ou forçada. Se, por outro lado, ele estiver escondido demais, o público encarará o que se passa sem fazer ideia do que significa.

Deve haver uma obra de arte escondida aí...

Deve haver uma obra de arte escondida aí…

Brenda Laurel influenciou teóricos e designers, que se basearam nesses princípios para criar experiências em que as ações dos jogadores tivessem maior impacto. O que eles perceberam foi que games com escolhas relevantes são justamente aqueles em que essa balança está em equilíbrio.

Se ela pende para o lado do autor, chegamos no famoso railroading: a sensação de sermos “carregados” para finais que não necessariamente desejamos. Se ela pende para o lado material, temos conteúdo filler, que parece estar no jogo apenas para gerar volume.

Em Dragon Age II, templários e magos entram em guerra e destroem Kirkwall, independente dos esforços do protagonista para impedi-los. A vontade dos autores de contar sua história e preparar terreno para o jogo seguinte falou mais alto que seu desejo de deixar as rédeas nas mãos dos jogadores.  Em Mass Effect 3, o plano de Casey Hudson e Mark Walters de autorar uma ficção científica “cabeça” pesou além da conta sobre uma série que se propunha a ser a versão digital de um livro de “escolha sua aventura”.

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Por outro lado, as caças aos shards, mosaicos, garrafas e quebra-cabeças de Dragon Age: Inquisition parecem filler porque não conseguimos ver um sentido geral por trás delas. O problema não está na natureza das quests. Os audio diaries de Bioshock são essenciais à narrativa, e nos trazem enorme satisfação ao serem encontrados. Ambas são “caças ao tesouro”: uma pecou pelo excesso; a outra achou a medida certa.

Isso mostra que, contrário à sabedoria popular, mais nem sempre é melhor. Se não está claro como as decisões se relacionam com a ideia central,  há alguma coisa de errado com estas decisões, e a impressão que elas passarão com certeza não será de liberdade.

Eu insisto em “impressão’. Folheiem um guia de estratégia de um jogo que gostam e verão que, na maioria das vezes, o potencial de escolha é muito pequeno. Se os desenvolvedores são generosos, vocês terão alguns finais diferentes. Na maioria das vezes, uma dezena de variações dos mesmos finais, ou um punhado de escolhas significativas ao longo de 50h de aventuras. Levante a mão quem nunca jogou um grande RPG, voltou do começo para fazer uma aventura completamente nova e descobriu que certas coisas não mudariam.

A questão, portanto, não é de prometer liberdade infinita, mas de fazer a pouca liberdade de que os jogadores dispõem parecer aceitável. Há uma série de truques para isso, alguns dos quais são mais antigos que os próprios games. Abaixo vão três dos meus favoritos.

Esconder o plano geral dos jogadores

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Esse é um ponto que mestres de RPG já conhecem de cor e salteado. Os jogadores não precisam saber que a Cidade A que eles visitaram é exatamente igual à Cidade B que eles decidiram não conhecer. Tampouco precisam, após perderem os cabelos derrotando um boss, saber que você os deixaria ganhar de qualquer jeito.

Isso é possível porque há dados que são escondidos dos jogadores. Sem ter mapas ou descrições das cidades, eles não têm como saber se o mestre os está conduzindo com uma guia. Sem informações sobre pontos de vida, habilidade ou classe de armadura dos montros, eles não fazem a menor ideia do tamanho dos desafios que encontram.

Um mestre astuto consegue engambelar seu grupo por sessões a fio sem que ninguém perceba. O resultado é uma história em que as regras estão lá apenas como referência e em que o mestre decide, como o “líder” de um faz-de-conta entre crianças, quem viveu e quem morreu.

Antes que vocês abram aquele sorrisinho maldoso e enviem esse texto para aquele seu colega que faz isso, saibam que essa tática é tão eficiente, popular e desejada que virou dica oficial no Livro do Mestre da 4a edição de D&D:

Se você ver que as personagens estão obviamente dominadas em um encontro, você pode:

  • Dar às personagens uma rota de fuga
  • Fazer escolhas ruins de propósito para os monstros
  • “Esquecer” de rolar o dado para ver se monstros recarregam seus poderes
  • Inventar um motivo dentro da história para os monstros abandonarem a luta
  • Deixar os monstros ganharem, mas deixar as personagens vivas por algum motivo.

(…)

[Se um encontro estiver fácil demais], você pode aumentar a dificuldade na medida em que as coisas andam. Traga reforços. Dê ao vilão uma habilidade nova da qual os jogadores não sabiam. 

Em videogames isso é ainda mais crucial do que em jogos de tabuleiro. Nenhum software, por mais complexo que seja, conseguirá ser tão rico quanto a imaginação.

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Não, nem Daggerfall

A diferença entre um jogo bom e ruim muitas vezes jaz em uma coisa tão simples como saber o que esconder e por quanto tempo. Em Heavy Rain, escolhas erradas em alguns momentos-chave levam à morte das personagens. Porém, ao anunciar que “ninguém está à salvo” e que suas decisões podem condenar quase todo mundo, os desenvolvedores criam um véu de tensão que faz até os quicktime events mais banais parecerem significativos.

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Caro David Cage: só não exagere na dose. ALGUMAS decisões reais são necessárias, caso contrário perde a graça

Na maioria das vezes, isso é feito de forma sutil. Vários jogos, a exemplo do mestre de RPG que citei, escondem informações cruciais dos inimigos, de fraquezas a pontos de vida. Quando bem feito, isso torna o jogo muito mais difícil e imprevisível, exigindo que pensemos duas vezes antes de chutar o menor dos goblins.

É o famoso “tigre de papel”. Após alguns playthroughs, pode até ser que deduzamos a lógica da coisa e encontremos um “caminho ótimo” para chegar ao final. Com o tempo, nós logo veremos que a maior parte das ameaças é pífia se encarada do jeito certo ou no nível ideal. Na primeira vez, no entanto, cada mísera escolha será tomada com o suor a escorrer da testa.

Trilhas de migalhas

Fonte

Entregar a história de mão beijada, seja via cutscenes ou diálogos expositivos, não é a coisa mais excitante do mundo. Para contornar este problema, designers muitas vezes “quebram” as informações relevantes da história e as espalham pelo mundo do jogo.

Esses resquícios podem ser qualquer coisa: ruínas, campos de batalha, livros ou mensagens escritas, cadáveres, rumores sussurados por NPCs, gravações ou mesmo visões fantasmagóricas. Nenhum conta uma história completa, apenas uma “peça” que, juntada as outras, ganha um sentido.

Se a diferença parece minúscula, na prática ela é gritante. Aqui, por mais linear que o enredo seja, é sempre do jogador o papel de colocar as coisas em ordem. Rondar cada centímetro de Columbia em busca de voxophones nos dá um sentimento muito maior de agência do que escutar uma narração em off por vinte minutos.

Para aqueles de vocês que curtem um palavreado técnico, o nome disso é paradigma indiciário. O termo foi cunhado pelo historiador Carlo Guinzburg para denotar a capacidade de reconstruir um todo a partir de traços. É o princípio do romance policial. A diferença é que é o jogador, implicita ou explicitamente, que veste a boina do Sherlock Holmes.

Para Guinzburg, trata-se de uma habilidade cultivada desde os caçadores da idade da pedra. Na perseguição por pegadas, sangue e outros rastros de animais, aprendemos a narrar o que havia acontecido com eles e para onde eles iriam. De uma atividade de sobrevivência surgiu nosso dom de contar histórias.

Geralt, o romancista

Geralt, o prosador

Justamente por ser tão básica e fácil de usar essa técnica pode ser encontrada em praticamente todo game narrativo. Ela está presente no prólogo de The Last of Us, em que exploramos a casa de Joel e descobrimos quem ele é, que tipo de relação tem com a filha e o que está acontecendo com o mundo. Ela é o elemento crucial em Bioshock e em adventure games como Gone Home, cujas histórias dependem da interação com objetos. Ela aparece de maneira literal nos contratos de monstros de Witcher 3 e em todos os jogos de investigação. Não que precisemos ir tão longe: nós a vemos em virtualmente todos os dungeons de Skyrim, por meio de notas, cadáveres estrategicamente posicionados e NPCs tagarelas.

Shavari's_Note

Aquela hora em que nos damos conta de que Skyrim tem um índice de analfabetismo menor do que o do Brasil

Mundos dinâmicos

 

Em 2011, Witcher 2 fez os queixos da crítica caírem ao incluir uma decisão tão, mas tão relevante que mudava completamente o segundo ato do jogo. Para ver tudo o que o game tinha a oferecer, não havia saída a não ser jogá-lo (quase) inteiramente uma segunda vez.

A verdadeira narrativa ramificante é um sonho de muitos gamers, mas quem já tentou colocar a ideia no papel– ou apenas já brincou no Aurora Toolset de Neverwinter Nights – sabe o pesadelo que é pô-la em prática.

aurora toolset

Meus olhos doem…

Se cada escolha “mudasse para sempre o universo”, como prometem as contracapas de vários games, jogos seriam infinitos e impagáveis. E isso sem contar as pressões editoriais. Como o escritor da Bioware Patrick Weekes disse num depoimento três anos atrás, o railroading às vezes é uma exigência do escritório de cima. Em um mundo de gamers que só jogam um título uma única vez ou nem chegam até o final e de empresas como a EA que vivem de nivelar por baixo, impedir o jogador de acessar conteúdo (como vez Witcher 2) nem sempre é aceitável.

Quem acompanha a série Elder Scrolls há mais de uma década sabe a pena que isso é. Em Morrowind, as diferentes facções do jogo têm suas rivais, e para prosseguir em suas quests é necessário destrui-las. Deseja se tornar grão-mestre da Guilda dos Magos? Prepara-se para caçar agentes Telvanni. Quer liderar a Guilda dos Guerreiros? Para tanto, é necessário ou eliminar a Guilda dos Ladrões ou organizar um motim e tornar-se mestre à força. Seja como for, o resultado é dramático: personagens-chave morrerão e, com elas, quests, diálogos e oportunidades específicas. Compare isso com Skyrim, em que um único personagem pode se unir a todas as facções, quest-givers são imortais e os impactos de suas ações na postura de NPCs são quase imperceptíveis.

A solução é contar com pequenas escolhas espalhadas ao longo do jogo. Elas não precisam ser relevantes ou mesmo associadas à trama principal. Pelo mero fato de estarem lá – e em grande número – passam a sensação de que o protagonista causou uma diferença no mundo à sua volta. Jogos não são apenas histórias, mas lugares virtuais que habitamos por algum tempo. Deixar nossas marcas nesses lugares muitas vezes é mais importante do que ver um slideshow diferente no epílogo da jornada.

Isso é o que Mass Effect, para a infelicidade de seus criadores, fez bem demais. O terceiro jogo da série contou com mais de 1000 pontos de variação com base em decisões feitas nos dois anteriores. A maioria dizia respeito a side quests formulaicas, easter eggs ou fanservice, mas não importa. O jogo passou a sensação de que as ações de Shepard, por menores que fossem, mudariam a vida das pessoas a sua volta. Quando o mesmo não aconteceu com as “grandes” decisões – e, nestas dimensões, não tinha mesmo como acontecer – a internet pegou fogo.

Para alguns, o que separa um grande criador de um medíocre é a capacidade de se virar com pouco. Dê a um chef tomate, azeite, farinha, água e sal e ele fará um banquete a ser lembrado. Coloque um leigo em uma cozinha industrial e ele queimará sua torta do mesmo jeito. Não se trata de inspiração divina ou talento nato, mas da ideia de que bons criadores conhecem seus limites e sabem fazer o melhor sem pisar fora deles.

Se isso é verdade, sem dúvida se aplica aos games também. Os recursos e possibilidades para criar um jogo dos sonhos sempre serão limitados. A marca da experiência inesquecível é a lábia de seus criadores em  “mascararem” as costuras de seus universos de faz-de-conta.

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O que “The Witcher 3” nos ensina sobre afeto https://www.finisgeekis.com/2015/06/29/o-que-the-witcher-3-nos-ensina-sobre-afeto/ https://www.finisgeekis.com/2015/06/29/o-que-the-witcher-3-nos-ensina-sobre-afeto/#respond Mon, 29 Jun 2015 20:54:06 +0000 http://finisgeekis.com/?p=421

Qual foi a última vez que você se pegou pensando em uma personagem de videogame como uma pessoa real? Que passou o dia agonizando após um criatura de pixels e voz pré-gravada lhe dar as costas, ou “morrer” graças às suas ações?

Para fãs de CRPG a pergunta é quase retórica. O gênero veio de histórias coletivas criadas em rodas entre amigos e levou a mesma vibe aos computadores e consoles. Se fãs de estratégia esperam nações e territórios e fãs de tiro olham para balas e alvos, RPGistas estão atrás de pessoas.

E espadas e muito sangue. Claro, uma coisa não exclui a outra

E espadas e muito sangue. Claro, uma coisa não exclui a outra

Jogos de interpretação… ou jogos de afeto?

Se você não é um recém-chegado ao gênero, sabe que o afeto não é uma firula, mas a lógica que dá sentido a tudo.  Com os orçamentos multimilionários, efeitos especiais e cenas de ação, é tentador tornar as experiências cada vez “maiores”, mais “decisivas” e “épicas”.  No entanto, maior não é sempre melhor. A morte de Obi-Wan nos toca muito mais do que a explosão de Alderaan. “Salvar o mundo das forças do mal” é uma premissa muito mais maçante do que encontrar a pessoa amada, ganhar reconhecimento ou apenas sobreviver.

Jogadores de Dark Souls sabem do que estou falando

Jogadores de Dark Souls sabem do que estou falando

Na série Mass Effect, as decisões que mudam o destino da galáxia são importantes porque dizem respeito aos companheiros que reunimos ao longo da jornada. Impedir a guerra entre os Quarians e os Geth é vital não pelos seus motivos estratégicos, mas para salvar a vida de Tali, confidente de Shepard desde o primeiro jogo. Curar o genophage é uma decisão difícil porque envolve Wrex, um dos amigos mais queridos do comandante.

Games de outros gêneros também focados em narrativa seguem o mesmo caminho. John Marston é um excelente protagonista porque Red Dead Redemption não é um jogo sobre a conquista do Oeste, mas o drama pessoal de um homem arruinado em busca de sua mulher e filho. Do enredo meia-boca de Beyond: Two Souls o que se salva é o belo capítulo em que a protagonista é adotada por um grupo de mendigos, que logo se torna sua família adotiva. E, com o devido SPOILER WARNING, no final de The Last of Us Joel deixa claro que entre Ellie e o futuro da humanidade, ele prefere sua jovem companheira.

Isso para ficar só nas últimas gerações

Isso para ficar só nas últimas gerações

The Witcher III: The Wild Hunt não é muito diferente. Um dos muitos (e justíssimos) elogios que o game recebeu é quão “pequeno” é seu foco. Geralt de Rivia ronda uma terra devastada em busca de sua filha adotiva, recolhendo, no caminho, os cacos de vidas destruídas pela guerra. Da guerra em si, das “forças do mal” e do destino do universo ele não sabe nada. Os protagonistas das outras batalhas não lhe dizem respeito.

Entretanto,  por mais popular que tais histórias sejam, há um sentimento de que suas protagonistas sejam fúteis, cafonas. Em parte, isso se justifica pelas inúmeras tentativas horríveis de se contar esse tipo de história. (Watch Dogs, estou olhando para você). Em parte, porém, a crítica tem outra fonte: a obsessão pela “força” das personagens e seu potencial como role models.

A tirania das personagens fortes.

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Existe uma tendência (que suspeito que Star Wars tenha tornado popular) de achar que herois estão acima dos reles mortais. Tal como um mestre Jedi, o protagonista não tem vínculos fortes e se dedica integralmente à sua causa.  Ele precisa servir de exemplo aos outros, não se rebaixar às suas paixões. Para alguns, esse modelo de Jedi é a marca que faz de uma personagem “forte e independente”.

É engraçado, no entanto, que ter “força” signifique muitas vezes ser avesso aos outros. A personagem “forte” não tem amigos; tem aliados, pessoas que servem para alguma coisa e que ela pode largar sem prestar satisfações. A personagem “forte” não tem compromissos amorosos, apenas cobaias para saciar suas vontades. A fidelidade, em um mote que poderia sair direto da boca de um Sith, é uma fraqueza a ser zombada. A personagem “forte”, por fim, não depende de ninguém: ela prefere a si mesma àqueles à sua volta, sua carreira à companhia dos entes amados, seu escritório à família e amigos.  A personagem “forte” só pensa em si e só deve a si própria sua felicidade. Os outros podem partilhar da sua alegria se ela deixar, mas não devem roubar a cena.

À primeira vista, Geralt parece ser o “forte” por excelência: um cavaleiro solitário sem comprometimentos, com poder para matar qualquer vilão, vencer qualquer disputa, conhecer qualquer monarca e ir para a cama com qualquer mulher. Porém, bastam algumas dezenas de horas no mundo dos witchers para conferir que a verdade não é bem assim.

Como eu já disse em outra ocasião, o mundo de The Witcher é um universo de monstros e Geralt de Rivia é um monstro à sua própria maneira. Pessoas cospem no chão quando o vêem e o xingam de “mutante”, “freak” e “bastardo desalmado”.  Ele não gosta do que faz, mas tem poucas alternativas. As mutações que lhe deram seus poderes lhe deixaram estéril e incapaz de mostrar emoções. Mesmo que ele desejasse mudar, ele está simplesmente excluído do mundo normal.

O que não significa que por trás do cabelo branco e dos olhos de gato não exista, de fato, uma pessoa normal.

Nesse sentido, seu momento mais tocante acontece quando visita a cidade de Novigrad. Geralt viu sua filha adotiva pela última vez na adolescência. Num mundo sem Facebook ou câmeras fotográficas, isto significa que a única imagem que ele tem dela vem de suas lembranças. Eis, então, que surge uma possibilidade de ver como ela se tornou, adulta. A reação do nosso caçador de monstros fala por si só:

Nada de diálogo explicativo. Nada de berros, lágrimas ou abraços. Reparem que quase não há trilha sonora. Apenas a expressão de dor de um homem que não é capaz de chorar, mas que acaba de ver que a criança que mais ama cresceu sem que ele estivesse lá para ver. A dor que muitos pais já sentiram ao perderem a infância de seus filhos; a mesma, provavelmente, que tomou conta de Solomon Northup em 12 anos de Escravidão, quando retorna para casa vê que sua filha está casada e já é mãe.

Quem acha que The Witcher é mais uma história do heroi durão derrotando meio mundo para salvar a pessoa X está perdendo o mais importante. Do triângulo amoroso com Triss e Yennefer à camaradagem de Zoltan e Dandelion, passando pela “amizade” conturbada de Lambert, Drijska e Roche, Geralt deve tudo àqueles à sua volta. O universo dos witchers, como o de outras séries do gênero, é um mundo cruel, em que pessoas procuram a companhia alheia para tentar afastar as trevas. Na maioria das vezes, sem sucesso.

hanged man tree

A insustentável leveza do ser

Mais de trinta anos atrás, o escritor tcheco Milan Kundera escreveu sobre essa “força”. Em seu livro, ele nos dá um cirurgião “forte”, “independente” e “realizado” com sua carreria, vida social e prazeres carnais. Uma pessoa, enfim, que ticaria todos os quadrados da cartilha do individualismo gamístico.  Entretanto, um belo dia ele larga tudo para viver ao lado daquela que jurou passar a vida ao seu lado.

Ao contrário dos role models celebrados a torto e a direito, as personagens de Kundera não vêem sentido nessa vida dos sonhos. O que para outros é “liberdade”, para eles é a insustentável leveza do ser. O ser humano – ou ao menos estes seres humanos não foram feitos para existir sozinhos. Daí que eles se mudam da Suíça para a Tchecoslováquia comunista, da cidade grande para o campo, de carreiras brilhantes e bem remuneradas a bicos no meio do nada, da vida “realizada” a uma morte sem sentido, num acidente de carro numa estrada de terra qualquer.

Por quê? Eu não sei. Talvez ninguém saiba. Na vida real (e nas melhores ficções) algumas coisas não fazem sentido. Mesmo assim, eu não consigo deixar de pensar que a obsessão pelos role models pode nos levar a um lugar perverso, tão apavorante, talvez, como o mundo dos witchers.

Em Cardcaptor Sakura, Kero-chan diz que o apocalipse é algo muito pior do que a explosão da terra: é a perda do afeto por todos aqueles que amamos. Que os justiceiros, na cruzada para impedir a primeira, tomem cuidado para não provocar a segunda. A insustentável leveza do ser pode ser um fim em si mesma. E por “fim” não digo propósito, mas game over. Ponto final.

]]> https://www.finisgeekis.com/2015/06/29/o-que-the-witcher-3-nos-ensina-sobre-afeto/feed/ 0 421 O papel da imaginação https://www.finisgeekis.com/2015/03/30/o-papel-da-imaginacao/ https://www.finisgeekis.com/2015/03/30/o-papel-da-imaginacao/#respond Mon, 30 Mar 2015 19:45:30 +0000 http://finisgeekis.com/?p=147

Eu acho que o meio está rapidamente se movendo na direção de se tornar mais cinemático do que era – o que é bom e ruim, eu creio. É bom na medida em que agora podemos mostrar tanto quanto contamos. E é ruim porque nós subitamente precisamos mostrar, e menos fica a cargo da imaginação… algo com que, de várias maneiras, nós jamais poderemos competir.

A frase acima é de David Gaider, escritor da Bioware, em entrevista que deu quando do lançamento de Dragon Age II. Sua opinião é ao mesmo tempo pé-no-chão e profética, e só mostra quanto Gaider está antenado na metamorfose pela qual os CRPGs passam. Dragon Age II foi criticado por simplicar demais as mecânicas do gênero, por emprestar demais dos games de ação e por – supostamente – ter se colocado como um “primo pobre” (e fantástico) do bem sucedido RPG/TPS Mass Effect. O lançamento causou alguma comoção – com direito até a uma “mea culpa” do diretor criativo Mike Laidlaw – mas ela pareceu superficial, se não mesmo derrotada. Entre os gráficos superiores, novos sistemas e orçamentos dignos de Hollywood, havia uma impressão sutil de que o novo, goste a gente ou não, chegou para ficar. Adicione a isso uma nova geração de gamers que conheceu pouco a era de ouro dos CRPGs e menos ainda os jogos de tabuleiro que a inspiraram e a situação piora ainda mais. Não há mais lugar para os RPGs de ontem, e quem pensa diferente pode fazer as malas e partir.

golden age

Quem vibrou com esses títulos sabe a pena que isso é

Um recomeço inesperado

As malas eles fizeram, só que pouquíssimos (além de David Gaider) podiam imaginar quão longe eles chegariam. De 2011 até hoje há um Kickstarter de distância, e com a popularização do crowdfunding uma série de desenvolvedores não muito amado pelos investidores tradicionais arregaçaram as mangas e se puseram a desbravar fronteiras. O resultado? Em 2014, Divinity: Original Sin, homenagem saudosa à “era de ouro”, arrecadou 1 milhão de dólares dos fãs; Wasteland 2, sequel de um título obscuro de 1987, juntou quase 3. Pillars of Eternity, lançado esse mês, ultrapassou os 4 milhões, e Torment: Tides of Numenera, sucessor do clássico cult (e fracasso de vendas) Planescape: Torment está a caminho dos 5. Um gamer veterano que retomasse o hobby hoje após vinte anos de hiato se sentiria em casa: os velhos CRPGs isométricos são o novo preto.

As razões para isso talvez não sejam tão misteriosas. Já falei aqui antes do papel do “faz de conta” e da dificuldade dos games em reproduzi-lo. Se um roguelike ou uma narrativa emergente, como um RPG de mesa, trazem isso pelo acaso e pela imprevisibilidade, os CRPGs de eras passadas traziam pelo que lhes faltava. Não havia pixels suficientes para representar uma vestimenta, então estávamos livres para imaginá-la da forma que quiséssemos. Não havia uma voz oficial para o protagonista assinada por uma celebridade, então escutávamos a nossa. Não havia, muitas vezes, o aprisionamento de nossas personagens à uma lore rígida, então podíamos criar personagens do absoluto zero, muitas vezes reutilizando heróis de RPG de mesa ou outros videogames. Não havia a obrigação (ou o espaço em disco) para se contratar muitos dubladores, e assim nossos diálogos eram imensos, irrestritos e versáteis em opções.

O dilema lembra as disputas entre aqueles que consideram jogos um “playground” e os que pensam neles como narrativas, sucessores de filmes e livros. É uma discussão quase tão velha quanto Baldur’s Gate, e que levou desenvolvedores e pesquisadores a coçar muito a cabeça. O curioso dos RPGs é que, mais do que qualquer outro gênero, parecem estar no meio do tiroteio: seus “diferenciais” desde que mundo é mundo foram a liberdade de escolha e a qualidade narrativa, e há fãs de ambos os lados pronto para criticá-los quando pendem para um lado mais do que para outro. De onde vem a questão: e quando liberdade e narrativa forem auto excludentes? E se os longos textos e diálogos intermináveis – sem contar a preocupação em criar um enredo coerente – tirarem do jogador a sensação de autonomia? E se o emaranhado de atributos, cálculos e acrônimos incompreensíveis (porém indispensáveis) afugentarem um jogador que de outra forma teria amado mergulhar na história?

Apesar de meu apreço pela “velha guarda”, sempre me incomodei com que direcionava essas limitações como críticas aos novos CRPGs do mundo AAA. Afinal de contas, trata-se de um estilo de jogo que veio a outro propósito, e tem um currículo próprio de inovações bem sucedidas. Quem nunca se impressionou com uma cinemática bem feita ou com a voz da Jennifer Hale que atire a primeira pedra. Entretanto, o “retorno” dos CRPGs isométricos conta uma história que não pode ser negada: há uma experiência única no gênero que se perdeu com o passar do tempo. E alguns gamers estão dispostos a voltar para buscá-las.

O retorno do filho pródigo

Aqueles que jogam desde os anos 1980 e 1990, todavia, sabem que a coisa não é tão simples. Há motivos para o gênero ter mudado em primeiro lugar, e muito do que era feito antigamente só era feito porque não se conheciam alternativas viáveis. O gamer contemporâneo que explore um título de vinte anos sofrerá o mesmo choque de um estrangeiro perdido em uma feira livre. Afinal, estamos falando de uma época anterior aos quest markers, auto-travel, autosave, regeneração automática; a era das mortes permanentes, diários de campanha pouco claros, resolução de tela sofrível e sistemas de combate desesperadores. A época em que era possível “perder” o jogo simplesmente por deixar de ter um item específico em um lugar específico em um momento específico.  Lembro-me com amargura de ter abandonado Planescape: Torment depois da terceira vez em que tive de recomeçar o jogo do zero por ter jogador fora quest items sem saber que eram importantes.

Seria a nostalgia suficiente para trazer esse estilo de volta à moda, ou seria preciso reinventá-lo? É possível reinventar esse tipo de jogo sem perder sua essência?

A despeito de seu sucesso, a nova leva de RPGs isométricos deixa algumas dúvidas. Divinity: Original Sin modernizou seu visual, sistema de combate, criação e customização de personagens, mas sofre de diálogos prolixos e um sistema de crafting para dar dor de cabeça em qualquer um. Wasteland 2 tem batalhas estupidamente difíceis e uma lista de perícias gigantesca, que exige um planejamento minucioso na hora de criar sua equipe. Qual foi minha surpresa, portanto, ao ver que os criadores de Pillars of Eternity resolveram nadar contra a corrente.

Segundo o diretor de projeto, Josh Sawyer, o objetivo do sistema de regras é impedir a criação de personagens inviáveis. Todos que já tiveram experiências com CRPGs sabem que montar cuidadosamente um protagonista é uma das tarefas mais importantes no gênero – e fonte de boa parte da diversão. Afinal, nada dá mais prazer do que ver uma personagem evitando um combate graças ao bom uso de perícias, ou derrotando um inimigo superior por meio da sinergia entre party members.

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A proposta é estranha, mas assusta menos quando vista em prática. Para os revoltados de plantão: não se alarmem. Há habilidades melhores que outras e o jogo ainda recompensa aqueles que dominam o sistema. Ademais, a dificuldade de alguns encontros vai fazer bom uso dessas recompensas. A “mágica” está em três fatores: níveis de dificuldade minuciosamente customizáveis, diversidade de builds para cada classe e a possibilidade de criar party members, “NPCs do jogador”, ao longo da aventura. Sozinhas, cada uma das medidas não impressionaria muito, mas juntas formam um equilíbrio interessante. Até que ponto vai ser suficiente para levar o gosto por CRPGs isométricos a uma nova geração é ponto para debate. De qualquer maneira, eles não estão sozinhos na luta. Os novos CRPGs do universo AAA também deverão se reinventar caso queiram resistir à popularidade das sandboxes e dos jogos de ação. A diferença é que, ao contrário de Pillars of Eternity, eles não têm um passado ao qual voltar. Dragon Age se diz “sucessor espiritual” de Baldur’s Gate, e várias franquias reivindicam o legado de uma “tradição” RPGística. Mas a verdade é que, mais do que nunca, estes jogos são cartas de despedida a uma origem perdida

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Sonhos e pesadelos https://www.finisgeekis.com/2015/02/23/sonhos-e-pesadelos/ https://www.finisgeekis.com/2015/02/23/sonhos-e-pesadelos/#comments Mon, 23 Feb 2015 11:47:54 +0000 http://finisgeekis.com/?p=58 Os velhos RPGs de mesa não são o hobby mais popular do momento. As regras são complicadas, os veteranos nem sempre são receptivos aos iniciantes e a simples proeza de se reunir regularmente com um grupo de amigos por horas a fio é um desafio a qualquer adulto. Mesmo assim, há uma razão para avivarem a nostalgia dos que cresceram com eles e a curiosidade dos novatos. Suas possibilidades são tão vastas quando desejaram os jogadores. As regras existem como pretexto, nunca como jaula. Mais do que qualquer outro tipo de jogo, eles têm limites apenas na imaginação de seus participantes. E sessão após sessão, na medida em que uma história coletiva é esboçada, o tradicional “jogo de interpretação” se aproxima das brincadeiras de faz-de-conta que todos curtimos na infância.

É compreensível, portanto, que tanto egressos de RPGs de mesa quando saudosos de faz-de-conta se sintam ligeiramente insatisfeitos com o mundo dos videogames. Por mais sofisticado que seja, um software é sempre um software, e seus limites jamais serão páreo a uma mente fértil. Um mundo virtual é sempre o mesmo, independente de quantas vezes o visitamos. A ilusão de escolha sacia a imaginação, mas apenas por um tempo. Basta um pouco de familiaridade para percebermos que as ações de nosso avatares são contáveis; seus caminhos, binários, e os desfechos de sua jornada, predestinados. Quanto mais os jogos se estabelecem como sucessores do cinema e os gamers se rendem aos confortos da linguagem cinematográfica (com suas trilhas sonoras, dublagem e arcos narrativos lógicos), mais o jogador, de protagonista, passa a espectador.

Nem mesmo criadores fogem aos resmungos. Susan O’Connor, escritora de títulos com Bioshock e Tomb Raider, desabafou em termos parecidos um tempo atrás. Videogames, diz ela, transformam o impossível em possível. Caso nós os explorássemos bem, eles seriam quase como sonhos. A imagem é bonita, mas carrega algo mais. Sonhos não são apenas ilimitado, eles são também imprevisíveis, incontroláveis e, por vezes, terríveis. Basta uma noite mal dormida ou uma preocupação fixa para que virem pesadelos. Uma vez que chegado a esse ponto, acordar se torna uma aventura em si. Daí a pergunta: e se os games fossem de fato como sonhos? Aleatórios, inesperados, capazes de nos apavorar ou emocionar sem qualquer aviso? Seriam assustadores, talvez. Entendiantes, jamais.

‘Legos’ Narrativos

A sacada veio de Ken Levine, criador do aclamado Bioshock e ex-colaborador de Susan. Ao contrário de jogos narrativos, games de estratégia não têm caminhos traçados ou finais predeterminados. As variáveis são tamanhas que as possibilidades são praticamente infinitas. Jogue Civilization 100 vezes e você terá 100 experiências diferentes. E se o jogador decidir colocar seu percurso no papel – criando um AAR, ou after action report, como dizem os fãs do gênero? Eis que a experiência se transforma em uma história. E se, em vez de países ou potências globais, o jogo em questão tratar de pessoas? Daí, em vez de um épico nacional, temos a história de um indivíduo, um casal ou uma família, com todas as suas peripécias, amarguras e desencontros.

Se os analistas medievais soubessem que seu trabalho seria substituído por um jogo...

Se os analistas medievais soubessem que seu trabalho seria feito por um jogo…

O resultado é uma máquina de fazer narrativas que oferece oportunidades que nem o mais livre dos faz-de-contas consegue emular. São os lances de dados do RPG, multiplicados ao extremo e aplicados a tudo. É a própria frieza do computador, em seus cálculos e processos, que molda o caminho a ser seguido.

A ideia não é inédita. Roguelites, como tais jogos são chamados, são aventuras randomizadas. Dos itens iniciais e personagens encontrados no percurso aos próprios cenários e mapa mundi, quase tudo é (ou pode ser) gerado a cada interação. As possibilidades não são ilimitadas, mas são justamente os limites que tornam a experiência interessante. O jogador pode ir longe, abençoado de início pela boa sorte, ou encontrar seu fim em questão de minutos. Tal como, quando fechamos os olhos à noite, nós nos flagramos torcendo por bons sonhos e temendo nossos piores pesadelos.

O mar não é um amigo

O recente Sunless Sea leva o princípio um passo adiante. Não por ser inovador – na verdade, é um roguelite bem convencional – mas pela escolha de assunto. O jogo é um spin-off de Fallen London, espécie de visual novel de browser com alguns elementos de RPG. Na trama, a cidade de Londres vitoriana foi roubada por morcegos e transposta a um mundo subterrâneo. O jogador encarna um explorador do underzee, um mar das profundezas que separa a cidade caída de outros refúgios exóticos da civilização. O resultado é um encontro de Neverwhere de Neil Gaiman com O Chamado de Cthullu de H.P. Lovecraft, uma jornada steampunk por riquezas e conhecimento na sombra de criaturas abissais, loucura e o pior que a natureza humana tem a oferecer.

O underzee é mutável e se rearranja de tempos em tempos. Para refletir isso, a cada novo jogo o mapa é randomicamente gerado. Nenhuma das muitas ilhas encontráveis tem localização fixa: cada nova jornada é uma aventura do zero, e o jogador deve contar apenas com sua coragem. Não existem garantias. Cada zarpada é um passo em potencial em direção a um horror ancestral e inominável, ou problemas mundanos (mas não menos mortais) como fome e motins.

Se Sunless Sea nos choca – para o bem ou para o mal – isso diz menos respeito ao jogo do que a um fenômeno crucial do atual mundo de games. À medida que os jogos largaram seu “espírito de fliperama”, a promessa de desafio perdeu sua centralidade. Se anteriormente terminar o jogo era uma façanha que ganhava o respeito de todo um círculo de amigos, hoje se tornou o mínimo. Se segredos de games davam origem a verdadeiras teorias de conspiração, agora são escrutinizados em wikis especializadas. Se discos eram acompanhados de manuais com mais de cem páginas, hoje a trivialidade se tornou a nova regra, e ninguém é esperado a gastar mais de duas horas entendendo um título. Do protagonista que se tornou espectador, o gamer só reteve o desejo de controle: da progressão da personagem, dos rumos da história, da gravidade dos desafios, da certeza de um desfecho favorável e de um sorriso no rosto. Se há duas décadas o gamer foi um pioneiro, hoje é um paisagista: seu papel não é desbravar uma terra selvagem, mas curtir um minimundo à sua imagem. E reclamar quando não o encontra.

Roguelites como Sunless Sea impressionam porque nos tiram o controle. Não há aqui finais felizes ou atalhos misericordiosos. Seus mundos virtuais não são playgrounds, mas florestas inexploradas onde os fracos não têm vez. Isso é possível justamente graças à sua proceduralidade: sua composição aleatória, ditada pelo software. Esta frieza os torna mais versáteis que games normais, porém muito mais incoerentes – e, por isso mesmo, imprevisíveis – que uma narrativa humana, organizada por um mestre de RPG. Susan O’Connor pode ter exagerado ao declarar que games fazem do impossível o possível. No entanto, a linguagem procedural e suas várias aplicações mostram que oferecem algo único… e inclementemente divertido.

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