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quadrinhos – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Sun, 21 Jul 2019 13:00:22 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 quadrinhos – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Satanie”: o inferno existe (mas não é o que você imagina) https://www.finisgeekis.com/2018/10/16/satanie-o-inferno-existe-mas-nao-e-o-que-voce-imagina/ https://www.finisgeekis.com/2018/10/16/satanie-o-inferno-existe-mas-nao-e-o-que-voce-imagina/#comments Tue, 16 Oct 2018 23:23:20 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20592 Fabien Vehlmann e Kerascoët (nome artístico do casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset) são uma parceria de peso. Juntos, os três assinaram o macabro Jolies Ténèbres, fantasia sobre os demônios da natureza humana.

Combinando uma imaginação cruel com um traço inocente, o BD preparou terreno ao mangá Made in Abyss, outra celebrada pérola sobre a perda da inocência.

Essa não foi a primeira vez em que o trio atacou o tema. Lançada nos EUA no mesmo ano em que o mangá de Akihito Tsukushi ganhos as telas (e ainda inédita no Brasil) Voyage en Satanie conta uma história ainda mais ousada.

A viagem de um equipe de exploradores para encontrar o Inferno.

Não o lugar fictício das religiões organizadas, mas o inferno real, que existe (a despeito da nossa ignorância) debaixo dos nossos pés.

Viagem ao centro da Terra

Voyage en Satanie (“Viagem a Satânia”, lançada em inglês como Satania) conta a história de Charlie, uma garota cuja mãe diz ter sido “estuprada por um demônio”.

Incapaz de acreditar que ela esteja louca, seu irmão, Christopher, decide comprovar cientificamente a existência do inferno.

O jovem parte em uma viagem às profundezas da Terra confiante de que há um mundo paralelo abaixo dos nossos pés. Habitado por hominídeos retorcidos e chifrudos – não por maldade, mas pelo simples curso da evolução.

Meses se passam, contudo, sem que sua família receba qualquer notícia. Disposto a encontrá-lo, Charlie encabeça uma missão de resgate que a levará por caminhos que nunca antes ousou desbravar.

O resgate dá início a uma jornada digna de Viagem ao Centro da Terra, o clássico de Júlio Verne. Em termos de poder imaginativo, chega até a superá-lo. Vehlmann e Kerascoët  lançam suas personagens contra florestas de cristais, utopias escavadas na rocha, geometrias lovecraftianas e figuras que parecem saídas de um delírio lisérgico.

É um mundo vibrante que parece ter uma lógica própria, por mais distante que seja da nossa natureza. Em algumas tomadas, como uma floresta de raízes que parecem árvores invertidas, ou cavernas que se revelam bocas escondidas, sentimos estar no submundo titular de Made in Abyss.

Charlie e o Padre Monsore, principais membros da expedição, possuem personalidades e habilidades conflitantes, num jogo de opostos que lembra Riko e Reg do mangá de Akihito.

Charlie é jovem e impetuosa, compensando com coragem uma brutal ingenuidade em relação aos perigos do submundo. Monsore é pragmático e relutante, mas sabe como ninguém como sobreviver em lugares ermos.

Missionário experiente, ele está mais do que acostumado a desbravar florestas, enfrentar perigos naturais e lidar com povos hostis para espalhar a palavra de Deus. É justamente esse propósito, logo descobrimos, que o levou a acompanhar Charlie.

Monsore vê a existência de um inferno “científico” como a última fronteira da fé. Para ele, os satanianos (como chamam os habitantes do submundo) são pessoas como quaisquer outras, à espera da civilização e da palavra do Senhor.

Suas tentativas de domesticar os hominídeos rendem algumas das cenas mais divertidas do quadrinho, com Monsore “batizando” seu rebanho com nomes de diabos famosos da tradição abraâmica.

Infelizmente, ao tentar “criar raízes” e domesticar satanianos,  Monsore não apenas cria atritos com Charlie, que anseia em encontrar seu irmão, mas com a própria natureza do inferno.

Pois o “inferno”, eles descobrem, não é simplesmente um lugar. É um verdadeiro organismo em estado de fluxo em que nada se repete nem permanece igual por muito tempo.

A “arquitetura” natural é incoerente e inconstante. Passagens apodrecem e se desmancham, buracos surgem do nada e desaparecem com a mesma facilidade. Os satanianos não parecem ter nenhuma estrutura social, nenhuma faculdade complexa, nada além de seus impulsos mais básicos.

Nativos de um mundo em que o amanhã é imprevisível, eles aprenderam a viver apenas no hoje.

É nesse ponto que Satanie deixa de ser uma mera HQ para se tornar uma discussão fresca, surpreendente e inteligente sobre nossa própria relação com o mundo.

Pois esse “inferno”, se pensarmos bem, não é lá tão diferente da nossa realidade.

Uma coleira na própria história

Imagens de infernos – seja o clássico fumegante popularizado por Dante, sejam os outros “submundos” mitologia a fora – não têm a ver somente com pecado. Eles estão relacionados a algo mais elementar: a ortodoxia.

O conjunto de ideias, doutrinas e preceitos tidos como verdadeiros e desejáveis por uma determinada visão de mundo. E do aparato que garante que eles sejam respeitados.

Divindades rebeldes, demônios e outros “excluídos” são confinados ao submundo nem tanto pelo que fazem, mas porque ameaçam um projeto de autoridade.

É necessário que haja um líder que nos indique o caminho certo para que uma civilização exista.  Do contrário, cada um de nós correria para um lado diferente e não saberíamos aonde ir.

A ideia de que o pluralismo é compatível com um projeto de sociedade demorou para vingar na história da humanidade. E mesmo ele só conseguiu emplacar quando criou para si sua própria religião cívica.

Isso acontece porque pessoas são mortais. Mais do que isso, porque também as nossas ideias, nossas línguas e conquistas um dia envelhecerão, desaparecerão e serão esquecidas. Para garantir que a ordem que nos é cara sobreviva, é necessário protegê-la do próprio tempo.

É essa a preocupação que vemos o tempo todo no discurso político, com temores de um “retrocesso”, de uma “onda de qualquer coisa”, do retorno dessa ou daquela tragédia do passado.

No fundo, o que mais assusta as pessoas é a perspectiva de que as coisas mudem. Pois mudanças são sempre imprevisíveis e podem nos levar ao pior.

É esse desafio, o de por uma coleira na própria história, que tem feito pensadores gastarem potes de tinta desde os primórdios do tempo. E que, levado às últimas consequências, habilitou as maiores atrocidades da nossa história.

Como dizia o filósofo Karl Popper sobre Platão:

[O próprio Platão] relata que ele esteve ‘desde o começo ansioso por atividade política’, mas também inibido pelas experiências preocupantes de sua juventude. ‘Ao ver que tudo pendia e mudava sem propósito, eu fiquei trêmulo e desesperado.’ Do sentimento de que a sociedade, e, de fato, ‘tudo’ estava em fluxo veio, eu creio, o impulso fundamental da sua filosofia tal como da filosofia de Heráclito; e Platão sumarizou sua experiência social, tal como seu predecessor historicista havia feito, proferindo uma lei de desenvolvimento histórico. De acordo com essa lei, (…) toda mudança social é corrupção ou declínio ou degeneração.

O submundo de Vehlmann e Kerascoët é, no fundo, o retrato dessa angústia. De um lado, temos a utopia de uma sociedade perene, ordenada, em que tudo tem um propósito e todos vivem em seu lugar.

Na HQ, ela é representada por Ultima Thule, uma cidade subterrânea que a comitiva encontra no início de sua jornada. Batizada em homenagem a uma província fictícia nos mapas gregos, ela é uma cidade aparentemente perfeita, mas que esconde esqueletos no armário.

Criminosos e dissidentes são brutalmente punidos. O direito de ir e vir é limitado, e mulheres existem apenas como chocadeiras, numa distopia digna de Margaret Atwood:

Que Thule (a província fictícia) tenha inspirado uma sociedade secreta popular entre nazistas não é mera coincidência. A desconfiança não escapa a uma das personagens, que a associa de imediato com o fascismo:

Do outro lado, temos os satanianos que parecem viver livres como o vento, sem líderes ou subordinados, sem normas ou obrigações. Indivíduos que vivem para eles mesmos, no aqui e agora, não em prol de uma imortalidade no paraíso.

Depois de fugirem da opressão de Thule, não demora para que um membro da expedição comece a pensar que o inferno, no fundo, é uma espécie de paraíso.

Num argumento que faria William Blake sorrir, ele reflete que os satanianos talvez vivam mais próximos das “leis de Deus” que os devotos das religiões abraâmicas.

Mas seria esse mundo inconstante, livre das hierarquias, tradições e instituições realmente melhor? Seria mesmo preferível – quando não possível – viver em uma realidade limitada ao hoje?

Num mundo sem futuro, qual é a necessidade de ter um propósito? E sem um propósito, qual é a necessidade de viver? Para que alimentar-se, sobreviver e procriar, se seremos invariavelmente mortos e comidos por alguém mais forte?

Numa natureza fluida, em que nada se repete e tudo é uma surpresa, qual é a função da inteligência? Do aprendizado? Da memória?

O que, enfim, nos separaria dos animais?

Escravos da natureza? Ou prisioneiros da cultura?

Essa, afinal, é a consequência inescapável dessa “liberdade”.

Ao abraçar o imediatismo dos satanianos, Charlie vislumbra regredir a uma escuridão anterior mesmo à Idade da Pedra, com suas hierarquias primitivas e cosmogonias simples: mundo anterior à própria linguagem.

Satanie não é uma apologia de um ou outro modo de pensar, mas uma constatação de que nós, tal como seus protagonistas, estamos na corda bamba entre dois infernos:  Satânia e Thule. O medo de nos tornarmos escravos da natureza ou prisioneiros da cultura.

Vehlmann e Kerascoët ganharam fama contando histórias simbólicas, provocativas, mas que nunca pendem ao moralismo. Satanie evita essa armadilha com o cuidado de um explorador percorrendo território desconhecido.

O trio de quadrinistas mostra mais do que julga; oferece mais perguntas que respostas. Da mensagem vaga à ausência de antagonistas ao final aberto (no melhor estilo francês), eles não têm medo de nos deixar no escuro, atormentados por nossas próprias dúvidas.

Eis um grupo de artistas que confia em seus leitores o suficiente para deixar que cheguem às próprias conclusões. Em tempos de arte panfletária, em que escritores se consideram profetas pregando a um rebanho de ovelhas, seu BD é uma lufada de ar fresco.

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Os super-heróis sempre foram politizados? https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/ https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/#respond Wed, 27 Jun 2018 12:16:19 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20248  

Temos que conceder aos quadrinhos. É fácil ser tachado de diversão vazia. Também é fácil ser acusado de panfletagem, provocação barata, veículo de doutrinação política.

Mais difícil, e o que os comics americanos vêm fazendo há décadas, é ser criticado pelas duas coisas ao mesmo tempo.

Todos nós já escutamos a acusação. HQs estão desesperadas atrás de relevância, agarrando-se a qualquer manchete para alavancar vendas. Da guerra na Síria à eleição de Donald Trump, não há um factóide que escape aos super sentidos dos heróis.

Mas teria sido sempre assim?

Críticos da politização os quadrinhos dizem que não. Segundo eles, quadrinhos estão se tornando mais politizados, histéricos e rasos. O fenômeno é novo – e poderia ser fatal. Se as coisas não voltarem rápido ao curso, o futuro da indústria poderia estar em risco.

Se isso é verdade, como explicar a palhinha de Barack Obama como personagem de Homem Aranha em 2009? Ou o retrato de um Doutor Destino em prantos após o atentado às Torres Gêmeas?  Ou ainda a HQ que transformou Magneto em um sobrevivente do Holocausto?

Causas mudam, pessoas envelhecem e partidos se renovam. Mas os quadrinhos parecem ter um flerte com a política que vai muito além do momento atual.

Essa é a opinião de Robert Jewett e John Lawrence no provocante Capitão América e a Cruzada contra o Mal. Escrito no calor do 9/11, mas ainda relevante aos dias de hoje, o livro argumenta que super-heróis sempre foram politizados – e ninguém deveria se orgulhar disso.

Para Jewett e Lawrence, a politização dos heróis não se deve à geração millenial, à Guerra ao Terror de Bush, ao Civil Rights Movement, nem mesmo à Guerra Mundial que deu vida a Capitão América e tantos outros. Ela vem de antes, muito antes de existirem quadrinhos. Muito antes, na verdade, até de existir um Estados Unidos.

As colônias inglesas na América, eles explicam, foram assentadas por Puritanos, uma facção radical dos cristãos britânicos que se viam na missão de reformar a sociedade – e, especialmente, o Novo Mundo.

Essa fé exacerbada deu origem a duas mentalidades muito diferentes entre si, mas que marcaram a história dos EUA até os dias de hoje.

A primeira foi a do realismo profético, a ideia de que a sabedoria de Deus está além do nosso alcance, e ninguém deve tomar para si o pedestal de executor de Sua vontade. É ideia de que demos julgar antes de agir e de que, não sendo oniscientes, precisamos tolerar os que pensam diferente.

Para os autores, essa é mentalidade por trás da tradição constitucional dos Estados Unidos, da desconfiança em relação a consensos e, posteriormente, do pensamento de autores que valorizavam a tolerância e a pluralidade intelectual.

A segunda foi a do nacionalismo zelota, a ideia de que os americanos seriam um povo escolhido, uma Nova Israel encarregada de purificar o mundo de hereges. É a ideia de que os valores que defendem não são apenas certos, mas divinos, e que preço nenhum é grande demais para protegê-los.

Foi do nacionalismo zelota, segundo eles, que veio a bagagem ideológica do Destino Manifesto, a conquista do Oeste, a Trilha das Lágrimas e a erradicação de povos indígenas. E, mais recentemente, o longo histórico de intervenções militares em nome do “bem”, da invasão das Filipinas à Guerra do Iraque, passando pelo Vietnã e as ditaduras na América Latina.

“Progresso Americano” de John Gast (1872)

As duas tradições ultrapassaram sua origem religiosa e ganharam espaço na cultura popular. O realismo profético deu origem a personagens como Atticus Finch de O Sol é Para Todos e o Jurado No 8 de 12 Homens e uma Sentença.

“Heróis” que não vestem capas e acreditam no jeito “certo” de se resolver as coisas. Que acham, como o Shepard “Paragon” de Mass Effect, que não podemos deixar o medo comprometer quem nós somos.

Gregory Peck como Atticus Finch em “O Sol é Para Todos”

O nacionalismo zelota, por outro lado, ganhou vida com os caubóis, justiceiros e vingadores encapuzados. São os pistoleiros de filmes de faroeste, policiais vigilantes como Dirty Harry e, é claro, super-heróis.

Eles acreditam que os fins justificam os meios e que o mal não merece tolerância. Aos vilões, só a violência.

O Complexo de Capitão América

Para Jewett e Lawrence, essa mentalidade deu origem ao que chamam de complexo de Capitão América: o uso de meios não-democráticos para defender valores democráticos.

O zelota faz a guerra em nome da paz, “matando milhares para salvar milhões”.  Ele apoia a censura em nome do diálogo, silenciando as pessoas “erradas” para dar voz às “certas”.

Como um delírio imaginado por George Orwell, ele é um duplipensamento ambulante, rebatendo ódio com ainda mais ódio, distribuindo socos, tiros e mísseis em nome do amor e tolerância.

O herói zelota acredita que seus excessos devem ser perdoados, pois ele luta em nome do bem, e seus inimigos são do mal. Ele não é o agressor, e sim a reação, a resistência contra as forças malignas da sociedade. Foram os vilões que atacaram primeiro, oprimindo fracos e silenciados, e agora eles terão o que merecem.

É por isso que o Capitão América usa um escudo, e não uma espada, bastão ou arma de fogo. É por isso que os heróis de Star Wars são da Rebelião ou da Resistência, e “Impérios” sempre são do mal.

Que o escudo antimísseis sugerido pelo presidente americano Ronald Reagan em 1983 se chamasse “Star Wars” não é mera coincidência. Essa é a lógica por trás da política externa dos EUA, que sempre se enxergaram como o defensor da luta contra uma conspiração maior, seja o nazismo, o comunismo ou o jihadismo.

Mas isso não é privilégio de uma única ideologia de governo. Jewett e Lawrence são cuidadosos em frisar que o mesmo pensamento pode ser visto em todos os lugares. Direita e Esquerda, Republicanos e Democratas vestiram a camisa dos zelotas em momentos diferentes da história. Seja para ajudar tolher direitos em nome da segurança ou para sacrificar regressistas nas chamas da revolução.

O importante, dizem eles, não é a causa defendida, mas seus meios. E é aí que super-heróis encontram a política, com consequências trágicas para todos nós.

Super-heróis e o “Fascismo Pop”

O mais fantástico nas histórias de herói não são os próprios heróis, mas o fato de que seu mundo não funciona sem eles.

No universo das HQs, o sistema opera mal. As leis servem para proteger bandidos e dificultar a vida dos justiceiros. Tribunais são corruptos. A polícia é fraca ou amedrontada. Afinal, que pode fazer um mero soldado contra super vilões e ameaças galácticas?

Para obter justiça de verdade, precisamos de pessoas excepcionais, mais fortes, mais capazes, mais corretas. Heróis que vem de fora e que conseguem resolver nossos problemas num piscar de olhos, desde que tiverem espaço para fazer seu trabalho.

Esses heróis têm o poder para destruir o mundo, mas eles não farão isso, pois sabem mais que a gente. Afinal, eles não são apenas mais poderosos que gente comum, mas também melhores como pessoas. E de tão melhores, e tão mais sabidos, esses Übermenschen são a última esperança contra o mal que nos aflige.

O universo dos heróis é um mundo de medo e submissão, em que as pessoas não têm escolha senão rezar por uma intervenção divina. Que vários heróis (e vilões) tenham sido interpretados como divindades de algum panteão é uma consequência obrigatória deste cenário.

O problema de se tirar essa delírio do Velho Testamento e aplicá-lo nos dias de hoje – de se fazer, enfim, política com super-heroísmo – é que essas ideias não se misturam. Pois elas já foram tentadas uma vez, e seus resultados foram devastadores.

Jewett e Lawrence chamam de “Fascismo Pop” a mistura de nacionalismo, vigilantismo e repúdio ao sistema que informa a ética dos super-heróis. Ela é, na sua opinião, um desenvolvimento extremo do Complexo de Capitão América e do motivo pelo qual o velho herói deveria pendurar o escudo.

Não errou a Marvel ao pintar o Capitão América com as cores da Hydra. No fundo, o herói sempre foi um fascista.

Se você, como fã de quadrinhos, ficou furioso ao ler isso, saiba que Jewett e Lawrence não foram os únicos a chegar nessa conclusão. A sacada não escapou a Michael Chabon, autor de um dos mais premiados romances sobre quadrinhos e um dos roteiristas de Homem Aranha 2.

Em sua fábula vencedora do Pullitzter, Chabon descreve um quadrinista judeu dos anos 1930 que percebe que seu herói se tornou a imagem daqueles que mais detesta:

“Joe Kavalier não foi o único dos pioneiros dos quadrinhos a perceber a imagem refletida do fascismo inerente no seu super-homem anti-fascista – Will Eisner, outro judeu quadrinista, deliberadamente vestiu Falcão Negro, seu herói dos Aliados, em uniformes modelados nas elegantes roupas com a cabeça da morte da Waffen-SS. Mas Joe foi talvez o primeiro a sentir a vergonha de glorificar, em nome da democracia e liberdade, a brutalidade vingativa de um homem muito forte. (…) Agora ocorria a Joe pensar se tudo o que eles haviam feito, desde o começo, não era ceder aos seus piores impulsos e fomentar a criação de uma nova geração de homens que veneravam a força e a dominação.”

O que isso diz sobre nós?

Capitão América e a Cruzada contra o Mal é um livro urgente, persuasivo e desconfortável. Mesmo assim, não pude afastar a impressão de que sua tese é um tanto convincente demais.

Jewett e Lawrence dizem que a febre dos heróis implica num culto a pessoas excepcionais, que estão acima das leis e não se integram ao mundo que salvam.

Como conciliar isso com a mensagem de empoderamento das histórias contemporâneas e o princípio, defendido por filmes, convenções, cosplayers e caridades, de que todos podemos ser heróis?

Heroes’ Alliance, grupo de cosplayers que visita crianças em hospitais infantis.

Ou o suposto nacionalismo de sua ideologia com o globalismo militado por tantos políticos e artistas mainstream? E que ganha, às vezes, contornos tão violentos quanto os dos zelotas de outrora?

Jewett e Lawrence publicaram seu livro em 2003, pensando nas consequências nefastas do contraterrorismo de George W. Bush. Foi o mesmo dilema que inspirou o célebre Guerra Civil da Marvel: a cilada 22 entre um governo tirânico e uma ameaça que ninguém sabia como enfrentar.

Seu objeto não são os quadrinhos em si, mas os desmandos da política americana – e suas similaridades com a cultura pop. Só que a cultura pop já não é mais a mesma, e sua mensagem, que já conta 15 anos, precisa de uma atualização.

O que nos resta daqui para a frente?

“Dois caminhos estão abertos para aqueles que gostariam de reformar a sociedade americana de hoje, ou aceitar sua missão de servir ao mundo. Há o caminho da violência redentora, que pode tomar a forma da grande revolução ou da cruzada. Este caminho promete despedaçar a injustiça com uma fúria virtuosa, punindo os malfeitores, emancipando os explorados e tornando o mundo seguro para a bondade. Mas também há o caminho do amor redentor. Sua promessa é menos definida, e seus resultados, mais imprevisíveis. Pois, quando o amor é exercitado, pessoas se tornam livres. Novos impulsos despertam que ninguém pode dominar em antecipação. Este, então, é o caminho dos audaciosos e generosos de espírito, aqueles que conseguem viver sem ídolos e encarar um futuro incerto sem medo.”

Jewett e Lawrence provavelmente apostavam na segunda opção. E, de fato, houve muito avanço. Não foram poucos os quadrinistas que reinterpretaram seus heróis, atentando às suas contradições.

Fora dos quadrinhos, o imaginário geek também conta com bons exemplos. Que uma personagem como Geralt de Rivia pôde nascer dos escombros do comunismo é prova de que o realismo profético tem voz na cena nerd.

Mas heróis zelotas – com ou sem capa – ainda existem, e a linguagem da violência, da fúria virtuosa contra os “do mal”, ainda persevera em quadrinhos, séries, filmes e tweets de criadores.

Num presente em que a coexistência é uma necessidade e os problemas não se resolvem mais com o porrete, esta retórica é tão problemática quanto é atrasada.

Sim, o futuro é incerto. Mas talvez, como dizem Jewett e Lawrence, seja essa a grande prova de nosso tempo. A capacidade de viver sem heróis, e sem deixar, tal qual Comandante Shepard, que o medo leve embora nossos princípios.

 

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“Dies Irae”: perguntas valem mais que certezas https://www.finisgeekis.com/2017/11/21/dies-irae-perguntas-valem-mais-que-certezas/ https://www.finisgeekis.com/2017/11/21/dies-irae-perguntas-valem-mais-que-certezas/#comments Tue, 21 Nov 2017 21:39:35 +0000 http://finisgeekis.com/?p=19794 Se Deus existir, ele terá de implorar pelo meu perdão.

A frase está gravada nas paredes de uma cela em Mauthausen, antigo campo de concentração nazista. Quando pensamos nos horrores do Holocausto, é fácil entender o porquê.

De fato, não é simples conciliar a existência de um Criador bondoso com todos os horrores que testemunhamos à nossa volta. Ou pensar que a vida tem um “sentido” quando parece apontar a uma vala comum.

Histórias que invertem nossa relação com o divino – colocando-o como uma “criatura” à imagem dos humanos – são um dos temas mais peculiares da ficção. Mesmo na cultura pop, elas podem ser vistas em todas as mídias, em níveis de seriedade que vão da crítica social (Deuses Americanos) à comédia pastelão (Noragami).

Dies Irae, criada pelos quadrinistas gaúchos do Tesla HQ, é a última tentativa de peitar o Criador. Que não perde, em ambição, a nenhuma das obras que a precedem.

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O Dia da Ira

A graphic novel se passa em um futuro próximo acometido por um desastre peculiar: deuses começam a chover do céu.

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Sem aviso ou explicação, faces conhecidas das principais mitologias despencam na Terra. As aparições são acompanhadas de episódios de histeria – alguns explicáveis, outros nem tanto.

Várias mulheres entram em transe e começam a dançar até a exaustão. Uma  violinista autista põe toda uma população em um frenesi mortal. Governos tentam fugir do planeta. Fanáticos religiosos perseguem o apocalipse.

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Dies Irae (em latim, “Dia de Ira”) é um dos nomes do Juízo Final. Também é um dos hinos que compõem as missas de réquiem – como o Réquiem de Mozart, que serve de “trilha sonora” a um de seus capítulos.

graphic novel de fato nos mostra julgamentos, embora não seja fácil determinar quem está sendo julgado por quem. Vemos deuses provocando desastres – ora voluntariamente, ora à revelia de suas vontades.

Contudo, também vemos mortais administrando sua própria variedade de “justiça” – contra si próprios e também contra o divino.

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A HQ começa com depoimentos dos próprios artistas, em que explicam sua missão de desafiar crenças e não se fiar a certezas prontas. É uma missão que executam bem demais e que peca, em alguns momentos, pela confusão.

São tantos questionamentos, símbolos e referências, acompanhados de textos tão densos e uma arte tão exuberante que transbordam das 104 páginas do quadrinho.

Uma HQ dessa complexidade se beneficiaria de um andamento mais cômodo – e uma janela mais ampla para nos introduzir os detalhes inquietantes de seu mundo. Histórias  menos ambiciosas – e muito menos interessantes – já se estenderam por gibis muito mais longos.

Que Dies Irae nos faça desejar mais é prova do quão criativa é sua proposta. Em tempos de gêneros engessados e gibis derivativos, a Tesla HQ trouxe uma obra que soa original, virtuosa e terrivelmente pertinente.

O fim das certezas

Seu roteiro nos mostra, com cinismo, como a humanidade perde seu caminho. É difícil ler a cacofonia de notícias, informes e memes que costuram seu enredo e não lembrar do retrato ácido da mídia de massa feita por Frank Miller em Cavaleiro das Trevas.

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Ou observar suas paisagens desoladas e não pensar em seu Ronin, com seu futuro igualmente distópico; igualmente povoado – à sua própria maneira – por deuses caídos.

Há, de fato, uma qualidade “retrô” em Dies Irae, a despeito do uso sofisticado de cores e da quadrinização elaborada.

A arte, assinada a seis mãos por Adan Marini, Thiago Danieli e Frank Tartarus, traz as linhas fortes e corpos esculpidos reminiscentes de heróis do fim da Era de Bronze. Ao mesmo tempo, não tem medo de fugir do figurativismo para algumas de suas cenas mais cerebrais.

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Se o tributo ao passado recente foi proposital, não sei dizer ao certo. Fato é que sua estética cai como uma luva ao roteiro de Tartarus e Rafael Rodrigues, que nos força a encarar questões nascidas, elas próprias, de outras épocas.

Nas páginas de Dies Irae, encontramos referências à teoria das cordas, ao efeito borboleta, e ao caos. O que estas ideias têm em comum é terem nascido de um mesmo “fim de século” marcado pelo fim das certezas – e o nascimento do “presente” como o conhecemos hoje.

Para as pessoas nos anos 1980, que perdiam o sono com a ameaça de um apocalipse nuclear, essas ideias caíram como um milagre. Afinal de contas, se a natureza é “incerta”, “incerto” também é o destino humano. Mesmo que todos os sinais à nossa volta apontem para o pior.

Para uma geração oprimida pela realidade, a ciência trouxe a desculpa que precisavam para acreditar que “tudo é possível”.  E enxergar, mesmo no caos, alguma espécie de sentido.

É a epifania de Dr. Manhattan em Watchmen, que o leva a recuperar sua fé na humanidade. Uma epifania que Dies Irae resgata ao presente, atormentado pelas suas próprias  incertezas, relativismos e “pós-verdades”.

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Será que estamos mais próximo de resolver esse dilema? Ou devemos aceitar, como diz a colorista Luciana Lain, que “não temos certeza de nada?”

Dies Irae traz uma resposta surpreendentemente otimista, que leitores de Philip Pullman reconhecerão de pronto. Dizer mais do que isto, infelizmente, seria estragar a magia.

Contudo, sua “mensagem” (se ela existe) não é advogada a ferro e fogo, por razões que a própria HQ, página a página, deixa óbvio.

Em tempos de moralidade binária, em que a “pertinência” de uma obra virou medida de proselitismo, os artistas da Tesla HQ nos lembram que a boa arte é a que faz perguntas, não a que entrega respostas prontas.

Seus painéis trazem poucas certezas – salvo uma. Se você for um fã de quadrinhos, este é um lançamento que não deve perder.

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Dies Irae foi lançada como uma minissérie digital entre 2014 e 2015 e publicada localmente no Rio Grande do Sul em 2016.

Hoje, a HQ está sendo distribuída nacionalmente por crowdfunding, por meio da plataforma Catarse.

Você pode obter seu exemplar clicando aqui.

 

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“Saint Alamo”: uma parábola da violência https://www.finisgeekis.com/2017/10/23/saint-alamo-uma-parabola-da-violencia/ https://www.finisgeekis.com/2017/10/23/saint-alamo-uma-parabola-da-violencia/#comments Mon, 23 Oct 2017 20:22:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=19410 Se me perguntassem há alguns anos o que eu jamais resenharia, quadrinhos de faroeste estariam bem alto na lista.

O western, de verdade, nunca me atraiu. Foi preciso a visão de um Kurosawa e o carisma de um Toshiro Mifune para que eu começasse a respeitá-lo no cinema. E o empurrão da Rockstar para que eu o aceitasse no mundo dos games.

Saint Alamo, que conheci graças ao maior dos acasos, me provocou o mesmo efeito nos quadrinhos. Produzida artesanalmente pelos brasileiros Jonathan Nunes e Rafael Conte, a HQ é uma das grandes surpresas de 2017.

Balas não sentem culpa

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A história acompanha Raymond Castle, um xerife com esqueletos no armário que protege a cidade fictícia de Saint Alamo. Na juventude, Castle serviu na gangue de Silas Dutcherbach, um ladrão, psicopata e ex-confederado que trata seus capangas e seus inimigos com a mesma crueldade.

Sabemos que Castle escapou da vida de criminoso e também que a fuga lhe custou um olho. Sabemos, porém, que “Dutch” ainda está vivo, e que o destino, na Fronteira, é uma eterna roleta russa.  Quando seu irmão e ex-companheiro de gangue lhe paga uma visita, Castle precisa confrontar seu pior pesadelo.

A narrativa é entrecortada por flashbacks que nos apresentam a vida de Castle em seus anos de fora-da-lei. Se não digo que o enredo acerta as notas de Red Dead Redemption é porque não preciso: com um antagonista chamado “Dutch”, recuso-me a acreditar que a referência não seja proposital.

A grande novidade da obra é evidente logo de cara. Suas personagens não são humanas, mas animais antropomórficos, repetidamente baleados, explodidos e mutilados com um sadismo que arrepiaria até um diretor de filme slasher.

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É uma crueldade que pende às vezes a uma histeria moral, quase kitsch em seu exagero. Se isso afogaria outras histórias, no roteiro de Jonathan Nunes ganha espaço para brilhar.

Sua jornada é tão clássica, sincera e estrangeira (com direito a título e nomes próprios em inglês) que dá a volta pela paródia e chega ao nível de fábula.

Com cenas que já vimos inúmeras vezes em outros lugares, Nunes constrói uma parábola da violência, destilando décadas de tiroteio, anti-heróis solitários e gore visceral em oitenta e poucas páginas.

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Não é óbvio o que levou os artistas a desenhar suas personagens como animais. Por um lado, a decisão provoca um contraste horripilante com a violência da história. Sobretudo pelo fato de muitas delas serem referências a personagens infantis como Ligeirinho e Coragem, o Cão Covarde. (Um apêndice didático – e desnecessário – traz a lista de easter eggs ao final do volume).

Por outro lado, o traço de Rafael Conte é tão limpo e expressivo que nos impressionaria em qualquer estilo. É prova de sua habilidade que as capas alternativas, feitas por artistas convidados, não chegam aos pés da sua composição original.

A escolha do preto e branco valoriza o que Saint Alamo traz de melhor. Não apenas a cor acrescentaria pouco ao seu mundo sombrio, como sua ausência reforça o esmero de Conte com o character design.

O destaque vai para Raymond Castle e seu contorno anguloso, tão arisco quanto sua personalidade. Mais ainda para a raposa Rhonda, com linhas da pelagem que flutuam, tal como a personagem, entre o perigoso, o sexy e o trágico.

 

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Numa mídia em que proliferam cópias de mestres japoneses, americanos e franco-belgas, a HQ é um colírio. Saint Alamo deliberadamente imita o estrangeiro e entrega, ainda assim, um quadrinho que parece fresco.

Um novo Texas no Brasil?

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Pode parecer estranho ver em um quadrinho brasileiro uma referência tão americana quanto a Batalha do Álamo. Ou um elenco de personagens com nomes anglófonos, que parecem saídos de um spaghetti western.

O estranhamento é menor se lembrarmos que a HQ nasceu de dois gaúchos: o estado, sem sombra de dúvida, que mais encarnou a experiência da Fronteira no Brasil.

Mas insistir no ponto seria lhe dar uma importância que não merece. Saint Alamo tem menos de O Tempo e o Vento que da ficção hardboiled – e suas releituras modernas, das mãos de criadores como Tarantino ou Frank Miller.

Nunes e Conte não estão preocupados com a “gênese de um povo”. Suas personagens têm rostos de ursos, gatos e coelhos, mas são todas, no fundo, lobos solitários: em guerra com seus passados, seus demônios e consigo mesmas.

A Fronteira que nunca terminou

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O western já foi o gênero mais influente da cultura pop. Por décadas a fio, dominou as telas de cinema e fechou cerco até sobre a “alta cultura”. Então seu domínio caiu de maduro, tal qual um pistoleiro crivado de balas.

Sua violência foi considerada excessiva; sua mensagem civilizatória, problemática; seu mundo, claustrofobicamente masculino.  Seus heróis individualistas foram sufocados por uma turba de punhos erguidos e discursos coletivos.

Ao menos esse foi o julgamento da geração do Civil Rights Movement, que dos anos 1970 em diante não pouparam esforços para condenar John Ford, Sergio Leone e John Wayne à lixeira do passado.

Mas o veredito pode ter sido apressado – e a sentença, mal-executada. O faroeste tem se reinventado no cinema (Os Oito Odiados, O Regresso), videogames (Red Dead Redemption, Hard West) e mesmo em neo-westerns (Breaking Bad, Logan) que atualizam suas mensagens às sensibilidades modernas.

Pode bem ser que tenhamos algo a resgatar da Fronteira. Um antídoto, seja ao escapismo alucinógeno dos super-heróis, seja ao coletivismo histérico que tem fraturado (literalmente) países.

Saint Alamo é parte desse resgate, cujas próximas edições eu aguardarei ansioso, entre poças de sangue e o cheiro de cordite.

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“Made in Abyss” e “Aurora nas Sombras”: dois olhares sobre a escuridão https://www.finisgeekis.com/2017/10/02/made-in-abyss-e-jolies-tenebres-dois-olhares-sobre-a-escuridao/ https://www.finisgeekis.com/2017/10/02/made-in-abyss-e-jolies-tenebres-dois-olhares-sobre-a-escuridao/#comments Mon, 02 Oct 2017 21:52:42 +0000 http://finisgeekis.com/?p=18794 (Aviso: contém SPOILERS para Made in Abyss)

A temporada de verão acabou, e temos um veredito. Made in Abyss, baseado no mangá de Tsukushi Akihito, se tornou um dos animes mais polêmicos, comentados – e idolatrados – dos últimos tempos.

Não é difícil entender a fama. E não falo só da  trilha primorosa do australiano Kevin Penkin, que acaba de se alçar ao pedestal de Yuki Kajiura, Yoko Kanno e Hiroyuki Sawano. Nem da falsa “vibe infantil”, com justaposição de traços cartunescos e gore suficiente para arrepiar o mais insensível dos otakus.

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Com um worldbuilding bem feito e temas tão chocantes quando curiosos, Made in Abyss uma série que desafia nossa coragem a cada episódio – e entrega sempre mais que o prometido.

Mesmo assim, a saga da exploradora Riko em busca de sua mãe, acompanhada pelo robô Reg, é um fábula difícil de explicar.

O que, afinal, é essa jornada ao fundo de um abismo misterioso? Uma meditação sobre o valor da vida? Uma advertência sobre a curiosidade humana? Uma metáfora para o amadurecimento? Uma pornografia da crueldade para fãs de 127 Horas?

Uma desculpa de 13 episódios para as tomadas mais deslumbrantes fora de um filme do Makoto Shinkai?

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Talvez um pouco de tudo, talvez nada disso. De minha parte, tendo a acreditar que certas obras, muitas vezes, esclarecem outras. Nesse caso em especial, não consigo tirar da cabeça outra história que li há alguns anos – e que até hoje me assombra.

Jolies Ténèbres

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Jolies Ténèbres (em francês, “Bela Escuridão”) é uma BD de Fabien Vehlmann e do casal Kerascoët que mostra por que a França ainda é a rainha dos quadrinhos.

Publicada no Brasil como Aurora nas Sombras, Sua trama começa com uma morte. Uma criança morre em um bosque. De seu corpo caem pequenas criaturas, tão confusas com o que está acontecendo quanto nós que as observamos de longe.

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Misto de Arietty e Moomin, Jolies Tenèbres acompanha esse pequenos seres enquanto tentam sobreviver no malvado mundo real. Porém, não é preciso ter visto Made in Abyss para entender que a história não tem nada de infantil.

A BD mistura estilos contrastantes. Enquanto que as criaturas têm traços cartunescos, a natureza que as cerca é desenhada com todas as cores. Mesmo aquelas que não gostaríamos de ver.

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O cadáver, logo percebemos, é um veículo para coisas piores. Na medida em que o corpo se decompõe, a sociedade dos pequeninos retrocede – literalmente – ao cão come cão.

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Alguns de seus quadros, como uma garota cujo braço incha após ser envenenada, parecem tirados diretos de Made in Abyss. Que seu mundo seja familiar, e não uma extravaganza fantástica, só o torna mais assustador.

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As semelhanças terminam por aí. De certa forma, Jolies Ténèbres é o oposto da fábula de Akihito.

Enquanto que Made in Abyss traz um mundo vibrante e detalhado, a BD é propositalmente vaga. Se a história de Akihito transborda de esperança (mesmo em seus momentos mais sombrios), a obra de Vehlmann e Kerascoët  afunda no cinismo, desespero e humor negro.

Made in Abyss é uma viagem ao abismo contada a partir da luz. Jolies Ténèbres¸como o próprio título já diz, fala de um mundo em que a escuridão impera.

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Mesmo assim – e talvez justamente por ser tão contrária – a HQ traz uma peça que complementa a odisseia de Riko e Reg. Uma chave para entender seu “abismo”, em toda sua escuridão.

A natureza do abismo

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O abismo, o anime nos conta, é como uma planta carnívora. Entrar nele é fácil. Quanto mais fundo penetramos, no entanto, mais difícil de sair.

Nas camadas mais altas, a “maldição da ascensão”, como é chamada, causa vômito e sangramentos. Para os que descem à base, no entanto, o preço é a própria humanidade.

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Na série, a “maldição” pode ser algo concreto, mas não é difícil vê-la como uma lição maior.

O abismo – seja ele qual for – muda as pessoas. Quem desce à escuridão está fadado a carregá-la consigo. Às vezes, para o resto de suas vidas.

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É um ponto que fica ainda mais claro em Jolies Ténèbres, embora seja contado de forma muito mais sutil. Cada uma de suas criaturas, logo percebemos, é um aspecto da garota que morreu.

Uma delas, a independente, parte como uma amazona para trilhar seu próprio caminho. Outra, a medrosa, se recusa a sair do cadáver: alimenta-se de vermes e de sua própria carne podre.

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Não demora para que percebamos que algumas índoles são mais fortes que outras. Tymothée, a insegura, logo é assassinada. E Zelie, a manipuladora, veste – literalmente – o manto de Senhora das Moscas.

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Aurora, a protagonista, é uma menina que acredita em fazer o bem. Porém,  na medida em que as coisas avançam, mesmo ela é obrigada a se entregar aos seus demônios.

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É uma lição muito antiga, ensinada desde João e Maria, a obra-prima do terror infantil. Como dizem os autores:

Nossa heroína é uma espécie de princesa de conto de fadas que se vê confrontada pela realidade: ela é obrigada a fazer as escolhas difíceis. Isto nos permite invocar a aprendizagem da crueldade, a obrigação de perder sua inocência para poder sobreviver. Para imaginar tudo isso, nós nos lembrados da nossa forma de nos comportar perante os outros quando éramos crianças.

Aurora desceu ao fundo do abismo. E, como os apitos brancos de Made in Abyss, está claro que sua viagem é de via única.

Quando a encontramos vestindo a carcaça de um rato que matou, a única sobrevivente do grupo original, percebemos que ela nunca mais será a “princesa” das primeiras páginas.

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Aurora amadurece. Mas seu rito de passagem não é algo genérico, como a morte ou a puberdade.

É uma transição bastante específica, dolorosa e cruel. Que muitos, inebriados pela ficção de um mundo perfeito, vivem e morrem sem conhecer.

Olhe muito tempo para o abismo, dizia Nietzsche, e o abismo olhará de volta para você. O horror não é só uma experiência. É algo que nos morde e não larga. Um fantasma que, quando despertado, nos assombrará até o final dos tempos.

Isso vale para grandes traumas: vítimas de PTSD, idealistas amargurados. Mas também vale, como Jolie Ténèbres mostra, para as pequenas crueldades.

Experimentamos o abismo quando saímos da caverna. Quando entendemos que estamos à mercê da natureza em um universo indiferente.

A maldição da ascensão pode tirar nossa humanidade. Mas ela começa com uma simples descoberta:

O mundo é um lugar escuro. E é perigoso caminhar de olhos fechados.

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Os animes são uma mídia para adultos? (Parte 2) https://www.finisgeekis.com/2016/07/13/os-animes-sao-uma-midia-para-adultos-parte-2/ https://www.finisgeekis.com/2016/07/13/os-animes-sao-uma-midia-para-adultos-parte-2/#comments Wed, 13 Jul 2016 18:12:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=8016

Na semana passada, eu me reuni ao Fábio Godoy do Anime 21, Diego Gonçalves do É Só Um Desenho e Vitor Seta do Otaku Pós-Moderno para responder a uma pergunta que todos já ouvimos diversas vezes.

Os animes que tanto curtimos são, de fato, um entretenimento para adultos?

Nessa semana, Cat Ulthar do Dissidência Pop e Kouichi Sakakibara do Animes Tebane se uniram a nós para refletir sobre a reputação dos desenhos japoneses, ora tidos como “coisa de criança”, ora como “diversão madura”.

E o que, em um caso ou no outro, estaria por trás dessa “maturidade”.

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Vinicius: Na semana passada, o Vitor mencionou os desenhos da Pixar como exemplo de um cinema infanto-juvenil com grande apelo para adultos.

Fico feliz que o estúdio tenha sido mencionado, pois ele é a primeira coisa que vem à minha mente quando penso em “animação” e “públicos-alvo” fora de um contexto japonês.

De fato, as animações da Pixar (e da Disney, antes dela) são verdadeiros primores, prova de que é possível fazer arte para todos os públicos. O próprio Justin Sevakis do Anime News Network as compara, com razão, às obras do Miyazaki e do Mamoru Hosoda.

Eu, mesmo, não tenho como discordar. Com o risco de perder alguns leitores, preciso confessar que, na minha opinião, A Bela Adormecida (1959) é a melhor animação já feita, superando qualquer coisa já produzida no Japão ou em qualquer outro lugar do mundo.

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Dito isso, parece-me sim que essa filosofia de animação, em seu esforço para não impor barreiras à compreensão, é frequentemente menosprezada.

Ou, para usar as palavras do Diego, ser “para adultos” tornou-se, de fato, um “atestado de qualidade” para uma parte do público (embora este “atestado” seja exigido de forma bem seletiva).

Isso com certeza tem menos a ver com a animação em si do que com a subcultura ocidental que veio a se identificar com os animes.

Talvez isto seja sinal de uma nova “contracultura” do século XXI. Talvez seja um mecanismo de defesa de pessoas que passaram a vida ridicularizadas por “gostar de desenhos”. Talvez, tão simplesmente, seja um produto da nostalgia pelos anos 1990, que leva jovens adultos a considerar o entretenimento padrão “da sua época” como o supra-sumo da arte.

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O que eu acho significativo é que essa não é uma opinião restrita a um círculo de fãs, mas disseminada entre os próprios críticos. Um dos maiores exemplos de memória recente foi a repercussão do Oscar de 2015, quando Kaguya Hime não faturou a estatueta de Melhor Animação.

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O grande vencedor

Um site citou a vitória de Big Hero 6 como “prova de que os votantes do Oscar não sabem nada sobre animação”. Outro, que o Oscar “não faz a menor ideia do que fazer com filmes excepcionais”. Um terceiro disse que, se A Viagem de Chihiro fosse apresentada hoje, provavelmente perderia para Lilo & Stitch.

Não quero pôr a mão no fogo para defender o Oscar. Suas políticas internas são, realmente, detestáveis. Porém, me parece claro que os votantes da academia adotam a “acessibilidade” como um critério essencial. Por mais que alguns tenham criticado o prêmio por levar em consideração a recepção infantil, parece haver um consenso de que uma animação que atinja a todos é preferível a um trabalho de nicho.

O que me leva a um outro ponto. Muitos dos animes considerados “adultos” não são apenas sofisticados. Eles requerem, também, uma bagagem cultural muito específica.

É o caso de Mawaru Penguindrum com o atentado ao metrô de tóquio em 1995 , de Joker Game com a Segunda Guerra Sino-Japonesa e de Showa Genroku Rakugo Shinjuu… bem, do começo ao fim.

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Isso me lembra de uma entrevista antiga de Mamoru Oshii. Nela, o diretor disse que animes são uma parte da cultura japonesa, e que seus temas jamais serão apreciados por ocidentais da forma como o são em seu país de origem. Não existe uma “cultura global”. Um japonês, diz ele, jamais entenderia a Guerra do Vietnã, e seria ingenuidade acreditar que a recíproca seja verdadeira.

Como vocês vêem a indústria atual nesse sentido? O próprio Justin Sevakis do ANN disse, ano passado, que a popularidade de animes no Ocidente (com a vinda ao Netflix e ao Hulu) estava fazendo diretores priorizarem gêneros “fáceis de se exportar”.

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Um exemplo entre tantos

Vocês acham que esse pode o futuro do anime (ao menos no curto prazo)? Ou existem sinais de que a indústria esteja adotando um caminho contrário?

Kouichi: A própria existência dos termos demográficos “Seinen” e “Josei” já deixa clara a existência de uma parcela da indústria da animação que quer atingir o público adulto. Infelizmente para o desenvolvimento dessa discussão, acho que ninguém vai ter a coragem de se opor.

Obras com um público bem restrito existem há muito tempo, mas de fato acredito que só recentemente elas começaram a ganhar um espaço maior durante as ditas “temporadas”.

Recentemente, escrevi um artigo sobre Ergo Proxy, que em meio a toda a “dissecação” do tema, eu me vi pesquisando latim e referências filosóficas do século XVIII e XIX para simplesmente começar a entender uma pontinha do enredo proposto. Dizendo isso já podemos imaginar o quão complexa é a obra, e como é restrito seu público alvo e consecutivo a isso, o quão afetado são seus lucros.

O que me chama atenção em todo caso, não é a existência ou não de obras focadas no público adulto nas últimas temporadas, ou existência real de um grande público adulto interessando em animação, mas sim, até onde animações adultas conseguem atrair adultos?

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Não é por nada não, mas no meio “otaku” em que convivo, eu costumo ver muitos adultos mais interessados em Moe e Ecchi, que em obras mais complexas como o já citado Joker Game ou até mesmo Young Black Jack, do fim de 2015.

Dito isso, me surge outra questão: se adultos vão se interessar por obras infantis/adolescentes, até onde é lucrativo produzir obras restritas para o público adulto, que não se mostra muito seletivo?

Diego: Eu tenho um ou dois comentários a fazer nessas últimas considerações do Vinicius, mas antes eu queria comentar algo que o Fábio falou no seu primeiro comentário: o que surgiu primeiro, animes para adultos ou  adultos vendo animes?

Recentemente, eu terminei de ler o livro Quadrinhos – História Moderna de uma Arte Global, que faz uma espécie de panorama dos principais movimentos e artistas relacionados aos quadrinhos da década de 60 até a atualidade.

Uma coisa interessante nele é que se você olhar bem a partir das décadas de 60 e 70 você tem quase que um movimento mundial de surgimento de quadrinhos “adultos” (é quando temos, por exemplo, o underground americano, com quadrinhos que retratam sexo, consumo de drogas e por ai vai)

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E meio que só pra “jogar” mais uma referência, isso me lembra também algo que Paul Gravett comenta no seu livro Mangá: Como o Japão Reinventou os Quadrinhos Ele fala do movimento Gekigá e de como ele veio após algumas gerações que já tinham crescido lendo mangá desde pequenos. Havia, então, uma demanda por esse produto por adultos que não queriam abandonar o hábito de leitura, mas também não queriam os quadrinhos infantis de antes.

Então eu acredito que a resposta a essa pergunta, Fábio, é uma espécie de meio termo. Você tem toda uma geração (ou mais) que de certa forma foi “acostumada” com a mídia, e que conforme foi crescendo não quis “desapegar”, e a isso você junta uma série de artistas que querem expandir os limites da mídia, e bom, aqui estamos agora.

Agora, Vinicius, sobre essa questão de o anime exigir uma certa bagagem, eu diria que isso depende muito de anime a anime, mesmo dentre as obras adultas.

Por exemplo, Master Keaton, anime de 39 episódios de 1998, é um anime episódico que segue o dia a dia de um investigador de seguros e ex-arqueólogo.

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É uma obra criada como direcionada a adultos na faixa dos 30, e sua estrutura lembra muito série americanas como CSI ou alguma outra de investigação, no sentido de ser algo mais formulístico.

Enfim, é um anime que facilmente qualquer leitor ocidental consegue entender sem problemas. Outro anime do tipo seria Galery Fake, sobre uma espécie de anti-herói que trabalha no submundo das venda de arte de forma ilegal. O anime é de 2003 (acredito) e é super acessível.

E eu argumentaria ainda que o próprio Joker Game é sim bastante acessível, porque embora o leitor ocidental não tenha normalmente essa bagagem cultural do lado oriental da segunda guerra, o próprio anime não trabalha realmente muito isso: é apenas “cenário” ali, e fora isso ele é uma história de espiões bastante “comum”, ou ao menos assim me parece.

Isso dito, de fato tem sim animes que exigem algum conhecimento, e que concordaria que as experiências de um espectador oriental e um ocidental seriam completamente diferentes. Exemplos seriam animes que usam pesadamente do folclore e do simbolismo próprio ao Japão, como Uchouten Kazoku, Hotarubi no Mori e, Kyousougiga e outros nessa linha.

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Cat: Essa é uma pergunta que, para um melhor entendimento, deve sair apenas do nicho dos animes japoneses, e abordar todo o trabalho de animação que exista, seja de qual país for, para depois adentrar em algo mais específico, como o Anime japonês.

Penso que a razão das animações serem prontamente associadas a um público infantil seja a influência, por vezes perversa, da televisão.

Geralmente animações, sejam ocidentais ou animes, são exibidos em canais ou programas infantis. Todo mundo deve lembrar dos velhos tempos da TV brasileira onde não era difícil poder assistir um anime ou outro, desde Cavaleiros do Zodíaco a Hunter x Hunter. Isso seria culpa do senso comum.

Em uma análise um pouco mais aprofundada do senso comum, verifica-se que quando um desenho possui uma temática mais madura ele seria a exceção, uma deturpação do sentido clássico da animação, que é entreter as crianças, como no caso de South Park e afins. Portanto, o desenho “adulto” seria o estranho no ninho.

Entretanto, sabe-se que as coisas não são bem assim. A animação surgiu como mais uma forma de expressão da arte cinematográfica. Como existem filmes que são infantis, outros não, assim ocorre com as animações, sejam ocidentais ou animes. Tudo é a questão da vontade criativa do seu criador. Isso ocorre em qualquer tipo de expressão artística, como a literatura, a música, as artes plásticas, há material voltado para todas as idades.

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Há animações para todas as idades, para crianças, para jovens, para adultos. No Japão há canais para cada demografia especializada. Como poderia ser classificado como infantil obras como Akira, Ghost in The Shell, Serial Experiments Lain, entre outros? Isso falando de animações japonesas, pois no ocidente não é diferente, como a clássica animação francesa surrealista Planeta Fantástico

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Claro que há obras que transitam entre várias demografias, ou melhor dizendo, muitos diretores, roteiristas e produtores inserem subtextos ou metalinguagem em suas obras no sentido de mascarar certas temáticas que não seriam apropriadas abordar para o público alvo de maneira direta.

Por exemplo, Digimom Tamers, dirigido por Chiaki Konaka, que produz muito material de horror lovecraftiano, que não é nada infantil, mas conseguiu inserir essa temática em uma obra voltada para o público infantil, de uma maneira a não levantar qualquer tipo de controvérsia. Mas um adulto, cito como exemplo eu, ao ver a obra depois de tantos anos verifica que ela mostra nas entrelinhas muito mais que uma criança consegue perceber conscientemente.

Outro exemplo clássico é Sakura Card Captors, somente quando adulto, ou pelo menos mais maduro que fui perceber a tensão homossexual que existe entre os personagens da série (Sakura X Tomoyo e Yukito X Toya). Quando eu era criança, esse tipo de material passava despercebido, assim como ocorre na maioria dos casos. Assistir uma obra na infância e depois assistir na idade adulta, são experiências totalmente diferentes.

Nesse tema eu também poderia citar uma série de postagens que fiz sobre a influência do misticismo gnóstico nos animes. O gnosticismo é uma corrente filosófico/religiosa antiquíssima e nada infantil, entretanto alguns de seus elementos e ensinamentos podem ser observados nas mais diversas obras, como Neon Genesis Evangelion, voltada para o público infanto-juvenil, mesmo possuindo uma complexidade ímpar.

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Assim, digo com certeza, que animes não são uma mídia para adultos, nem para crianças, tampouco para velhos, mas sim uma forma de entretenimento voltada para qualquer público dependendo da vontade do seu criador.

Muitas vezes uma obra voltada para crianças pode ser permeada de elementos adultos, colocados de forma não intencional ou, como ocorre muitas vezes, de forma intencional. Os animes são como qualquer outra forma de entretenimento, podem se encaixar em qualquer nicho ou faixa etária, basta procurar o que te interessa.

Fábio:  Eu me sinto plenamente representado pela resposta do Gato agora, era isso o que eu tentava dizer – o que não quer dizer que essa seja “a verdade”.

A verdade é que, na verdade, nem tentamos responder muita coisa, muito menos encontrar alguma verdade, não é? Com mais ou menos fundamentos cada um aqui deu sua opinião. E tudo bem. Mas no fundo falamos cada um de coisas diferentes e por isso as aparentes discordâncias, suponho.

Anime é pra adulto. Anime é pra criança. Anime é pra todo mundo e não é para ninguém em particular. Cada anime tem seu público-alvo. Sem repetir demais o Gato, alguns são mais infantis, outros são mais adultos, outros possuem temas adultos contados de forma que crianças consigam absorver – não necessariamente entender.

Ao mesmo tempo, a maioria dos animes é produzido para o público jovem adulto, mas são razoavelmente infantis ou infantilizados. Animes infantis e infanto-juvenis são produzidos em menor número absoluto mas com outra lógica de negócio, e costumam ter mais episódios e temporadas – e muito adulto assiste esses animes também. E existe uma minoria de animes realmente adultos.

Historicamente, a animação surgiu como uma técnica cinematográfica, e como toda arte, não era produzida para alguém em particular mas por ser produzida por adultos tendia a ser ela própria adulta ou puramente experimental.

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A Culpa é do Samba, curta da Disney de 1948, originalmente concebido para a participação de Carmen Miranda.

Com Disney nos EUA e com Tezuka no Japão (esse muito influenciado por aquele) a arte da animação se voltou fortemente para as crianças, e o sucesso desses dois artistas e empreendedores provavelmente é responsável pela imagem da animação como arte para crianças até hoje – mesmo que o próprio Tezuka tenha chegado a produzir também para adultos.

Sobre a Disney eu não sei, e por saber tão pouco prefiro apostar que ele também nalgum momento tentou encantar adultos, não apenas crianças – mas sua empresa, hoje, certamente investe em obras para toda família, algumas com as tais mensagens adultas mastigadas para crianças consumirem.

E não é como se em qualquer momento histórico tenha deixado de existir artistas que produzissem para adultos.

São quatro pontos de vista diferentes: o vocacional, o comercial, o artístico e o histórico. Cada um falou um pouco sobre alguns deles. Todos são válidos, nenhum é conclusivo. Se a pergunta for “Anime é para adultos?” no sentido de potencial, a resposta é sempre sim, pode ser. Se for no sentido determinístico, então a resposta é sempre não – anime não é só para adultos, afinal.

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O Japão de Frank Miller https://www.finisgeekis.com/2016/03/28/o-japao-de-frank-miller/ https://www.finisgeekis.com/2016/03/28/o-japao-de-frank-miller/#comments Mon, 28 Mar 2016 22:56:28 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3479

Há muito a se elogiar na segunda temporada de Demolidor, da Netflix. As cenas de luta são um espetáculo de coreografia. O tom consegue ser sombrio sem perder o charme. Elektra e o Justiceiro não são apenas excelentes coadjuvantes, mas estão fidelíssimos às suas raízes nas HQs.

Em adição a tudo isso, fãs de Frank Miller, a lenda-viva dos quadrinhos responsável por Sin City, O Cavaleiro das Trevas e 300, devem ter notado outra coisa. Tal como Batman v Superman, que chegou aos cinemas semana passada, Demolidor 2 é a adaptação de uma obra sua.

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A trajetória do Demolidor sob Miller teve muitos méritos. Porém, se houve um diferencial que a separou da maioria, foi o seu tributo ao universo japonês. Mais precisamente, o mundo obscuro dos ninjas, espadas e artes marciais.

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A inspiração não é uma coincidência. Muito embora Frank Miller seja um dos maiores ícones dos quadrinhos ocidentais, ele foi também um dos grandes divulgadores dos mangás no ocidente.

Em alguns dos melhores momentos de sua carreira, Miller cruzou caminho com shurikens, katanas e kimonos. O resultado, como se pode ver abaixo, foi uma reviravolta completa no jeito como HQs eram feitas.

Reinventando a Marvel: Wolverine e Demolidor

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Frank Miller em 1982

É conveniente que a última obra de Frank Miller a voltar aos holofotes tenha sido o Demolidor. Pois foi justamente trabalhando com o Homem Sem Medo que Miller, então um rapaz de 22 anos, deu início à sua ascensão meteórica nos quadrinhos.

O futuro criador de Sin City usou seu talento a serviço de Matt Murdock de 1979 a 1983, naquele que é considerado um dos arcos definidores da personagem. Se antes o herói não passava de uma cópia do Homem-Aranha (tão descarada que nem a capa escondia a semelhança), nas suas mãos (e na de seus colegas) ele se transformou em um dos nomes mais particulares da Casa das Ideias.

O diferencial, obviamente, foi o Japão. De terror dos assaltantes na Cozinha do Inferno, o Demolidor virou aprendiz de um velho artista marcial, amante de uma ex-ninja e rival do Tentáculo, uma ordem de assassinos milenares.

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A novidade não passou batida. Em 1982, graças ao sucesso da HQ, Miller foi chamado para trabalhar com o roteirista Chris Claremont na primeira história solo do Wolverine. O baixinho canadense que começara como um coadjuvante na revista do Hulk seguiu caminho para se tornar um dos heróis mais populares da Marvel.

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Tudo graças ao Japão. Logan aprendeu japonês, viajou para a terra dos samurais, desafiou os ninjas do Tentáculo e até se casou.

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A influência da linguagem visual dos mangás já pode ser sentida nas longas cenas de luta, em que Claremont deixa o diálogo no segundo plano, e os golpes falam por si só.

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Miller teve boas referências. Pouco antes de desenhar Eu, Wolverine (como o arco foi conhecido aqui no Brasil), ele havia descoberto o clássico absoluto dos mangás de samurai.

Kozure Ookami

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Miller entrou em contato com a obra-prima de Koike e Kojima em 1980, antes mesmo de ter sido publicada nos EUA. O fato de não saber japonês era apenas um detalhe. A atmosfera violenta e cerebral da saga do ronin Ittou Ogami falava por si só.

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Miller estava disposto a fazer o mangá chegar até as pessoas. Ele desenhou as capas e escreveu prefácios para a edição americana quando a obra foi finalmente lançada, em 1987.

Leitores brasileiros não precisam de mim para saber disso. Afinal de contas, as ilustrações de Miller foram incluídas na bela edição lançada no Brasil anos atrás.

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É importante se lembrar de que, nos anos 1980, o anime e o mangá ainda não tinha decolado com toda a força nos EUA. Miller não estava apenas “seguindo moda”, como tantos quadrinistas ocidentais nos últimos anos. Ele estava criando seu estilo artístico em cima de referências que uma boa parte dos leitores nunca tinha visto.

O próprio Frank Miller, anos depois, admitiu que tentara construir uma “ponte” entre os dois estilos:

“Eu percebi quando comecei Sin City que eu achava quadrinhos americanos muito palavrosos, constipados, e os japoneses muito vazios. Então eu tentava fazer um híbrido.”

A trajetória do Lobo Solitário nas praias americanas é prova disso. O mangá acabou interrompido em 1991, quando sua editora entrou em falência. Foi apenas em 2000, graças à Dark Horse, que a série foi finalmente lançada por completo.

Se a situação na virada do milênio foi diferente da de 1980, os otakus americanos têm muito a agradecer ao próprio Miller. Quatro anos antes, ele publicou uma das maiores homenagens aos dois mestres japoneses.

Ronin

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Embora Frank Miller tenha feito sua fama na Marvel, com Demolidor e Wolverine, foi na DC que produziu seu maior tributo à cultura japonesa.

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Ronin é ao mesmo tempo uma de suas obras mais celebradas e menos conhecidas. No Brasil, a Editora Abril só se arriscou a trazê-la muitos anos depois, de carona no sucesso de O Cavaleiro das Trevas.

Não é difícil entender por quê. No papel, a graphic novel era uma receita para o desastre. Miller assinou tanto o roteiro e a arte e teve carta branca para fazer o que quisesse (segundo um ex-editor da Marvel, a liberdade artística foi o motivo que o levou a escolher a DC sobre a Casa das Ideias). A história se baseava em um universo próprio, sem personagens conhecidas para atrair os fãs. Como disse Marcelo Alencar, que escreveu o prefácio da edição brasileira, a HQ era um verdadeiro laboratório de testes.

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A história acompanha um samurai sem mestre em sua jornada para derrotar um demônio. Graças ao poder de uma espada mágica, eles se vêem transportados para uma Nova York pós-apocalíptica, onde preparam seu duelo final em meio a tecnologia avançada e às ruínas da civilização.

O resultado é uma mistura de Lobo Solitário com Ex Machina. Monstros do folclore japonês se misturam a andróides, armas laser e uma inteligência artificial rebelada.

ronin ex machina

ronin akuma

As referências a Lobo Solitário são tão explícitas que incluem duas personagens chamadas Koike e Kojima, em referência aos autores do mangá clássico. Isto em 1983, quatro anos antes da HQ ser lançada nos EUA pela primeira vez.

ronin kojima

O homem moderno é um ronin

Olhando toda a sua carreira, não parece mero acaso que o  “projeto autoral” do gigante dos super-heróis tenha sido inspirado no Japão. Como o próprio Miller disse certa vez em uma entrevista:

 “O aspecto do samurai que mais me intriga é o ronin, o samurai sem mestre, o guerreiro caído… Todo esse projeto vem da minha sensação de que nós, homens modernos, somos ronin. Nós estamos meio que soltos. Eu não tenho a sensação, nas pessoas que eu conheço, nas pessoas que eu vejo na rua, de que elas têm alguma coisa maior em que acreditar. Patriotismo, religião, seja lá o que for – tudo isso perdeu o sentido para nós.”

Para quem é fã do estilo mais sério e sombrio dos quadrinhos dos anos 1980, esse depoimento não é nenhuma surpresa. Como eu disse semana passada, o anti-herói dos quadrinhos surgiu justamente em uma geração que se achava perdida, sem fé em ideais.

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Se não fosse a decepção com a política, o cinismo com as “grandes verdades” e todas as dúvidas da vida contemporânea, nós provavelmente não teríamos o Batman de O Retorno do Cavaleiro das Trevas, o Marv de Sin City nem toda a atmosfera pesada que até hoje agrada tantos fãs de quadrinhos.

Frank Miller viu no ronin japonês uma nobreza – ou, pelo menos, uma sinceridade – que parecia faltar nos modelos ocidentais. De um pária empobrecido buscando se integrar, o samurai sem mestre virou para ele uma espécie de idealista, um sujeito que andava no fio da navalha entre o crime e o “sistema” por escolha própria. Nas palavras do comissário  Gordon, “um herói que Gotham merece”.

Ronin não foi o primeiro sinal dessa febre. Desde pelo menos os anos 1960 diretores de faroeste viram nos samurais sem mestre um paralelo ao cowboy americano: guerreiros individualistas, que fazem suas próprias regras e vivem com o suor de seus esforços.

Não é à toa que muitos dos maiores clássicos do gênero são, na verdade, remakes de longas japoneses. Por um Punhado de Dólares é uma adaptação de Yojimbo. Sete Homens e um Destino (que ganhará uma nova versão esse ano) é uma refilmagem de Os Sete SamuraisNão é uma coincidência que pelo menos um comentarista tenha comparado o Wolverine de Frank Miller a Clint Eastwood.

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A semelhança é inegável

Esse fascínio americano pelos samurais é uma daquelas coisas que parece normal até pensarmos nela com mais calma. Afinal de contas, é difícil imaginar uma figura mais incompatível com a mentalidade japonesa do que o cowboy.

Se cowboys são símbolo do individualismo, samurais são o ícone do serviço – que está até na origem do nome, o verbo saburau. Se cowboys são conhecidos pela falta de recato, samurais são a referência em sofisticação. Se cowboys às vezes trapaceiam para vencer, samurais preferem morrer com honra.

Donos do próprio destino

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A culpa, nesse caso, pode ser de Akira Kurosawa. Muito embora o diretor de Yojimbo e Os Sete Samurais seja um marco do cinema japonês, ele já foi considerado o diretor “mais ocidental” do Japão, a ponto de lhe render críticas de conterrâneos.

Segundo  Roger Ebert, Kurosawa realmente tinha um pé atrás com alguns elementos da mentalidade japonesa. Em especial, a ideia de sacrifício à autoridade, de papeis sociais imutáveis e de submissão do indivíduo à comunidade.

Para Ebert, a partir de Ikiru e depois com força total em seus filmes de samurai, Kurosawa tentou imaginar um mundo em que as pessoas fossem capazes de decidir seus próprios destinos.

Enquanto que Miller e outros ocidentais comentavam sobre a falta de rumo de sua geração, Kurosawa, que vivera em uma cultura com “rumos demais”, pareceria desejar, ele mesmo, uma vida sem mestre.

De todas as HQs “japonesas”  de Miller, a que melhor captura esse conflito é sem dúvida Eu, Wolverine. Na história, Logan descobre que o amor de sua vida, a japonesa Mariko Yoshida, foi casada contra a vontade com um gângster que a humilha e espanca.

Mariko pede que ele não se envolva, pois é assim que as coisas têm de ser. Ela deve obediência ao pai, ao clã, às tradições de seu país. O que ela “quer” não é importante.

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Wolverine (aqui, praticamente uma versão peluda e mortífera da Princesa Kaguya) se recusa a deixar barato. O que se segue não é apenas uma luta para proteger sua amada, mas uma batalha contra o sistema desumano de obrigações a que todos estão submetidos.

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Poucas coisas são mais fascinantes no entretenimento do que o fato de que um mesmo livro, filme ou gibi pode ser lido de várias maneiras diferentes. Eu já comentei no passado como mesmo obras mais simples podem virar símbolos das coisas mais díspares, dependendo do público pelo qual circulam.

O Japão de Frank Miller é um grande exemplo disso. No fundo, de “oriental” ele tem muito pouco. Ele revela bastante, no entanto, sobre o seu próprio criador. Tal como Wolverine, Miller parece acreditar que falta alguma coisa em seu mundo, e que a Terra do Sol Nascente pode ser a chave para encontrá-la. Ou, quem sabe, para reencontrar a si mesmo.

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De onde vieram os anti-heróis dos quadrinhos? https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/ https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/#comments Mon, 21 Mar 2016 23:15:41 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3083

Entre a nova (e violenta) adaptação de Demolidor, os ecos de Frank Miller em Batman vs. Superman, o status de “lenda cult” de Christopher Nolan e a vinda da Guerra Civil para os cinemas, tudo aponta para a mesma coisa: o anti-herói está na moda. E pretende ficar.

Por si só, isso não é uma surpresa. Seja na literatura, nos games ou nas séries de TV, o velho confronto do “bem” versus o “mal” parece ter sido substituído por algo mais sofisticado – e muito mais sanguinolento.

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Roteiristas, quadrinistas e desenvolvedores descobriram (como John Milton já havia feito muito tempo atrás) que personagens com defeitos e personalidades complexas são muito mais cativantes. Afinal de contas, ninguém é perfeito. E nada enriquece mais uma obra de arte do que heróis verossímeis.

Mesmo assim, seria um erro pensar que esses protagonistas tortos, interessantes e (pasmem) carismáticos simplesmente caíram do céu. Nos quadrinhos  americanos, em especial, eles foram trazidos por uma geração específica, tumultuada e muitíssimo criativa.

Seguem, abaixo, três das principais “mães” dos anti-heróis das HQs.

1- A decepção com a política

A coisa que não podemos esquecer sobre quadrinhos de super-heróis é que sua popularidade veio nos anos 1940, a década da Segunda Guerra Mundial, do ufanismo e da maior radicalização política já vista na história.

Para além de uma luta do “bem” contra o “mal”, a mensagem desses quadrinhos era a de que as coisas se resolviam dentro do sistema. Não era apenas o bom-mocismo que estava em jogo, mas todo um projeto de governo, sociedade e bons costumes.

Super-heróis até podiam ser cruéis e implacáveis, desde que obedecendo às ordens “de cima” ou, no mínimo, atendendo ao espírito de seu tempo.

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Ninguém tinha pena do Tojo

Se hoje esses quadrinhos nos parecem estranhos (quando não grotescos), a mensagem que passavam era extremamente popular. Diante da ameaça da guerra total, heróis que colocavam ditadores no seu lugar, colaboravam com a polícia e protegiam crianças era o que todos queriam ver.

A partir dos anos 1970, isso deixou de ser verdade.

Com o conflito no Vietnã, os americanos entenderam que a guerra nem sempre é para o “bem”, e que o combate é bem menos glorioso quando se está do lado perdedor. Com a Crise de Reféns no Irã e o Caso Watergate, o governo americano mostrou que podia errar e ser corrupto. A Crise do Petróleo jogou a economia para baixo, e a Guerra Fria trouxe o medo de um holocausto nuclear. Como confessou Frank Miller, “o mundo estava ficando louco”.

Desconfiadas da autoridade, as pessoas buscaram seus herois em outros lugares. Em Watchmen, Rorschach se recusa a abrir mão de seu código de conduta, mesmo que isso traga a promessa de paz mundial. Em O Retorno do Cavaleiro das Trevas, Batman prefere se tornar um criminoso a virar um novo Superman, um herói “do partido” que só luta as batalhas autorizadas pelo presidente.

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Porém, a mudança mais impressionante foi a do maior ícone do bom-mocismo patriótico: o Capitão América. “Ressuscitado” em 1964, Steve Rogers se sente mais e mais decepcionado com os rumos da política. Em 1974, ele  passa a combater o crime como o Nômade, um herói, como o nome já diz, sem pátria.

Seu momento definidor veio também das mãos de Frank Miller. Em Daredevil: Born Again, ele deixa claro que os Estados Unidos que defende são uma ideia, não um governo.

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De campeões do sistema, os super-heróis viraram outsiders. O herói não é mais um role model para servir de exemplo aos jovens. Agora, ele segue o seu próprio caminho, apontando a hipocrisia nos outros e mostrando como a prática do “bem” passa longe de seu ideal.

É por isso que, em sua primeira história pós-11/9, o Capitão América não esmurra Bin Laden como antes fizera com Hitler. Em vez disso, ele visita Dresden, cidade alemã que foi obliterada por bombardeios aliados na Segunda Guerra. Longe de ser um fanático patriota, ele se lembra de todo o sangue que já foi derramado em nome da “justiça”.

É por isso que na Guerra Civil – uma alegoria do Patriot Act, lei americana que reduziu a proteção constitucional de civis em nome da luta contra o terrorismo – Steve Rogers se posiciona contra a ideologia de que a segurança é preferível à liberdade.

E é por isso que, no filme Soldado Invernalele se rebela contra a tentativa da SHIELD de se tornar uma “polícia global”. No longa, tudo é obra da Hydra. Na vida real, é preciso bem menos. Basta olhar para o escândalo de espionagem da NSA, cujos alvos incluíram até a Presidência brasileira.

Novas ideias, no entanto, demandam novos públicos. E para conquistar novos públicos é preciso novas formas de se vender quadrinhos. O que nos leva à segunda “mãe” dos anti-heróis

 2- O surgimento das gibiterias

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Como quem já se aventurou pela arte sabe muito bem, a distribuição é a alma de qualquer obra de sucesso.

Quando os quadrinhos de superheróis surgiram nos anos 1930, ninguém pensava em ganhar o prêmio Pullitzer ou em escrever o mesmo personagem por 70 anos. Os gibis eram vendidos em qualquer lugar por onde meninos perambulassem: bancas de jornal, lojas de brinquedo, farmácias e até docerias.

Como não havia garantia de que a criança voltaria a comprar o mesmo título, a ideia era prezar a quantidade sobre a qualidade. Cada HQ tinha um começo, meio e fim e eram feitas para o maior público possível, sem continuidade nem, muitas vezes, coerência. Para chamar a atenção, não era raro uma editora publicar histórias estapafúrdias. Ou o que era pior: histórias estapafúrdias repetidas.

superman dragon

superman jimmy olsen

Com o passar do tempo, esse modelo perdeu popularidade. Com o envelhecimento do público alvo, o fim dos vilões óbvios da Segunda Guerra e a pressão de moralistas (vide o próximo tópico), o número de vendas mensais caiu de 59,8 milhões em 1952 para 18,5 milhões em 1979.

Para o hobby não morrer, alguma coisa precisava mudar. A volta por cima veio com Phil Seuling, um fã de quadrinhos e criador da Comic Art Convention de Nova York. Seuling desenvolveu um sistema de distribuição baseado em lojas especializadas, dirigidas ao fã. Assim, nasciam as primeiras gibiterias.

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Austin Books & Comics, no ramo desde 1977

Para os envolvidos, esse novo modelo (chamado de mercado direto) era muito mais interessante. Antes, gibis não vendidos eram devolvidos para os fornecedores, o que forçava as lojas a calcular bem a quantidade de HQs que achavam que venderiam (e, obviamente, não adquirir obras mais controversas). Na gibiteria, pelo contrário, números antigos simplesmente entravam para o catálogo.

Com menos risco, as editoras passaram a apostar em títulos mais trangressores. Não só isso, como produtores independentes finalmente conseguiram uma chance de entrar no mercado. O resultado foi um boom de histórias inovadoras e selos independentes capazes de rivalizar com a Marvel e DC.

Ao mesmo tempo, as gibiterias criaram uma “contracultura” dos quadrinhos, oferecendo espaço para fãs confraternizarem, montarem coleções e acompanharem artistas e personagens específicos. Pela primeira vez, a base do que se tornaria a “cena nerd” começou a ganhar força.

A capacidade de se enturmar com outros fãs e ficar “próximo” dos autores se mostraria fundamental para a sobrevivência do hobby. Isto porque, nessa mesma época, os quadrinhos se tornaram o campo de batalha de uma verdadeira guerra cultural.

 

1- A necessidade de chocar

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Quem vê a truculência do Rorschach em Watchmen ou a lista de baixas do Justiceiro já percebe que os anti-heróis não estão de brincadeira. Muito menos os seus autores.

Se essas HQs parecem às vezes desnecessariamente cruéis, é porque a intenção foi de fato chocar. E, se uma geração inteira de artistas sentiu a necessidade de chacoalhar o público, é porque eles tinham um inimigo em comum.

Quando os quadrinhos de super-herói surgiram nos EUA, eles foram imediatamente alvo da perseguição de moralistas. A Igreja, os políticos, intelectuais e até médicos criaram a narrativa de que histórias em quadrinhos estimulavam a violência, atentavam contra a moral e desvirtuavam as crianças.

Nos casos mais extremos, entidades justiceiras organizaram mutirões para remover gibis do comércio e queimá-los em fogueiras.

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Para os quadrinistas, a grande batalha foi “perdida” em 1954, com a publicação de A Sedução dos Inocentes, do psiquiatra Fredric Wertham. O livro dava um roupagem científica para a tese de que HQs eram uma influência ruim no desenvolvimento de crianças e se tornou a bíblia dos que buscavam proibi-las.

As evidências de Wertham eram completamente furadas, mas isso era irrelevante. Nos anos 1950, a delinquência juvenil se tornou um pânico moral. A Sedução dos Inocentes dizia aquilo que as pessoas queriam ouvir. Assim, se tornou uma sensação.

A consequência direta da repercussão foi a promulgação do Comics Code Authority, um código de conduta destinado a regular o conteúdo dos quadrinhos. A iniciativa foi obra da Comics Magazines Association of America (CMAA), um grupo de figurões da indústria que acreditou que uma auto-regulação mostraria a boa vontade do profissionais em aceitar as “críticas”. A alternativa seria uma censura oficial, o que enterraria as HQs de vez.

Num argumento ainda muito comum entre moralistas, o CCA dizia que os artistas tinham uma “responsabilidade” para a “cena cultural americana” e deviam “fazer uma contribuição positiva para a vida contemporânea”.

Approved_by_the_Comics_Code_AuthorityNa prática, isso significava “purificar” quadrinhos de tudo o que fosse considerado ofensivo, perigoso ou de mau gosto. Estava banido o uso das palavras “terror” ou “horror” (Parte B, 1), violência excessiva (Parte B, 3), apologia ao crime (Parte A, 4 e 5), excesso de gírias (Parte C, 3), nudez e sensualidade (Costume, 1 a 4) e mesmo incentivo ao divórcio (Marriage and sex, 1).

Ninguém era obrigado a usar o selo, mas distribuidores se recusavam a vender HQs que não o tinham. Depois de meses de perseguição (e inclusive uma audiência pública no senado), ninguém queria ser visto como um defensor da delinquência juvenil.

Para os artistas, isso não foi apenas um “mundo ficando chato” : foi um desastre que por pouco não afundou toda a indústria de quadrinhos. Frank Miller, um dos “pais” indisputáveis dos anti-heróis, nos diz isso com todas as letras no prefácio de Batman: O Cavaleiro das Trevas:

Não vale a pena citar o nome daquele psiquiatra lunático ou de seu livro absolutamente desprezível. Há muito o mundo se esqueceu dos dois.

No pequeno universo dos quadrinhos, entretanto, aquele lixo de livro causou tanto estrago quanto um ciclope. Ou Galactus. As vendas caíram mais e mais. Por algum tempo, os artistas de HQs sequer revelavam sua profissão. Não em companhia de pessoas cultas.

Deus sabe que não abordávamos temas políticos.

Mas nós apenas parecíamos irrelevantes. Apenas parecíamos mortos.

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Foi justamente o desejo de não ser irrelevante que motivou Miller e outros criadores (como Robert Crumb, Richard Corben e Neal Adams) a pisar nos calos. A partir dos anos 1970, com a popularização das convenções e o mercado direto, a cena de quadrinhos underground finalmente mostrou as suas garras.

Autores polêmicos agora sabiam que havia uma maneira de seus trabalhos chegarem aos fãs, com ou sem o selo de aprovação. Não demorou para as grandes editoras peitarem a CMAA, chegando, em casos extremos, a publicar gibis mesmo sem o aval do CCA.

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Amazing Spider Man #96, que teve o selo negado por mostrar Harry Osborne em crise de abstinência.

 

A consequência foi uma geração de heróis (e vilões) complexos, inclementes e repletos de defeitos. O Justiceiro e o Motoqueiro Fantasma deram as caras pela primeira vez. O Homem de Ferro virou um alcóolatra. E o Batman se tornou o líder de uma gangue sanguinária, fazendo com as próprias mãos a justiça que faltava ao governo.

Os anti-heróis dos anos 1970 e 1980 não desafiavam só as normas de seus mundos fictícios. Eles eram, também, símbolo do desafio de seus próprios criadores, lutando para que as HQs tivessem o mesmo tratamento de filmes ou livros.

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Esses artistas nunca deixaram de militar pela sua liberdade criativa. Em 1987, Alan Moore deixou a DC após a editora tentar implementar um sistema de classificação etária. Em 1997, Frank Miller, que nunca foi exemplo de sutileza, escreveu Tales to Offend.

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O criador de Elektra não tem nenhum remorso pela postura “in your face”. Como ele disse em um depoimento, “tudo o que se colocar entre meu pincel e minha mesa de desenho é meu inimigo”.

Os anti-heróis nos dias de hoje

É curioso, mas nem um pouco surpreendente, que os anti-heróis façam tanto sucesso nos dias atuais. Em muitas aspectos, nossa geração tem várias coisas em comum com o universo dos anos 1970 e 1980 de onde eles surgiram.

Tal como há 30 anos, nossa época é marcada por um enorme niilismo político. De protestos nas ruas ao sucesso de candidatos implausíveis (veja apenas Trump nos EUA) há uma sensação generalizada de que o jogo está viciado, e que a resposta se encontra em outro lugar.

Tal como nos tempos de Phil Seuling, temos a nosso dispor uma imensidade de formas alternativas de produção e distribuição de quadrinhos: de serviços como o Comixology ao cenário do crowdfunding, da cena efervescente das fanzines aos webcomics. Os quadrinhos nunca foram tão diversos e acessíveis a tantas pessoas (leitores e criadores).

Tal como na época do CCA, pânicos morais continuam estourando na cena nerd, e a ideologia de que artistas têm uma “responsabilidade social” de produzir obras de bom gosto parece ter renascido das cinzas. O site da CBLDF, uma ONG dedicada à proteção da liberdade de expressão de quadrinistas, contém uma lista de obras que têm sido atacadas por moralistas nos últimos anos. Os títulos são surpreendentemente variados, e incluem desde Dragonball até Persépolis.

Qual será o futuro do nosso novo “culto ao anti-herói”, só o tempo nos dirá. Uma coisa, no entanto, podemos afirmar com certeza: se as nossas turbulências trouxerem novos gigantes do calibre de Miller, Moore, Crumb e Gaiman, estamos em boas mãos.

 

 

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Shigeru Mizuki: O soldado que inventou o mangá moderno https://www.finisgeekis.com/2015/08/31/shigeru-mizuki-o-soldado-que-inventou-o-manga-moderno/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/31/shigeru-mizuki-o-soldado-que-inventou-o-manga-moderno/#comments Mon, 31 Aug 2015 22:49:37 +0000 http://finisgeekis.com/?p=625 Quando pensamos em “pai do mangá”, o primeiro nome que vem à cabeça é quase sempre Osamu Tezuka. Entre seu pioneirismo em praticamente todos os gêneros, a influência de seu trabalho nos filmes da Disney e as inúmeras graphic novels premiadas, é impossível olhar para uma gibiteca e não ver a marca do autor de Astro Boy em praticamente tudo.

De que sua fama é merecidíssima não há nenhuma dúvida. Contudo, Tezuka é um daqueles artistas que, de tão famosos, acabam ofuscando até mesmo os outros gênios. É o caso de seu contemporâneo Shigeru Mizuki, outro pioneiro do mangá que ganhou destaque nos anos 1950 e não parou de brilhar.

Dizem que uma imagem vale mil palavras. No caso de Mizuki, isso é triplamente verdade.

shigeru mizuki

Sim, esse senhorzinho com idade para ser seu bisavô é um dos pais dos mangakás. Nascido em 1922, ele é seis anos mais velho que o próprio Tezuka. Sim, ele está segurando um prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos. E este não é o único: até hoje, três obras suas faturaram estatuetas. Sim, ele não tem um braço. Em 1942, Mizuki foi convocado à guerra pela marinha japonesa. Na Batalha de Rabaul, a cabana em que dormia foi atingida por um bombardeio aliado. Ele voltou com vida, mas não inteiro.

O episódio ganharia vida pela sua própria pena, décadas depois:

braço amputado

Como todo veterano de guerra, é de se esperar que suas experiências mais traumáticas fossem inspirar alguns de seus trabalhos. Souin Gyoukusai Seyo!, ou Onward Towards Our Nobles Deaths, na tradução americana, foi seu primeiro (e muitíssimo bem recebido) relato de seus anos de combate. Contudo, Mizuki é muito mais do que um sobrevivente com histórias para contar. De certa forma, suas maiores batalhas foram travadas depois do fim da guerra. Vivendo na pobreza de um Japão em ruínas, o artista foi um dos pioneiros que decidiu transformar o desenho japonês em um meio artístico completamente novo.

Do teatro popular à cultura otaku

Nos anos 1950, sem um tostão nos bolsos e muito talento para esbanjar, Shigeru Mizuki começou a trabalhar com kamishibai. Trata-se de um estilo de performance tradicional em que um narrador conta uma história amparado por uma série de ilustrações. A prática surgiu em templos budistas como forma de pregação, mas eventualmente ganhou vida própria como um entretenimento de rua. Para quem está curioso, várias apresentações podem ser encontradas no YouTube, tanto em japonês como em inglês:

Mizuki passou seus primeiros anos após a guerra desenhando esses cartazes de papel. Para seu desespero, o kamishibai logo não se mostrou suficiente para fechar as contas no fim do mês. Felizmente, outra forma de entretenimento conquistava espaço entre a população de Tóquio.

comic books

Assim, quase que por acaso, o ex-soldado se tornou um dos pioneiros do mangá. Seu sucesso na nova arte não significou o abandono da tradição com que crescera. Pelo contrário, Mizuki viria a se tornar um dos mais conhecidos autores de quadrinhos de youkai, monstros típicos do folclore japonês. Suas ilustrações combinaram um traço estilizado, debochado e um detalhismo digno das gravuras do Período Edo (1603-1868)

gegege kitaro

Se eu fosse listar e comentar toda a sua obra, é muito provável que esse post jamais terminasse. Em cinco décadas de carreira, é mais fácil mencionar os prêmios que Mizuki não recebeu do que contar as estátuas, medalhas e diplomas que já passaram por sua mão. Quem visitar Sakaiminato, sua cidade natal, encontrará a Rua Shigeru Mizuki, batizada em tributo a ele e decorada com estátuas de bronze de suas personagens.

statues mizuki road

Sua criação mais famosa, Hakaba Kitarou, mais conhecido como GeGeGe Kitarou, tornou-se um dos clássicos mais adaptados da história do mangá, com 6 animes e 15 games, do Famicom ao Nintendo DS.

É justamente sua versatilidade e irreverência que fazem de seus trabalhos autobiográficos tão impressionantes. Guerra é sempre um assunto delicado, em especial um conflito que matou 70 milhões de pessoas e culminou em dois ataques nucleares. Não há falta de pessoas que se puseram a desenhar sobre o assunto, mas o resultado sempre anda no fio da navalha entre o ridículo e o horrorosamente chato. Neste sentido, Mizuki não só fez um dos melhores quadrinhos de guerra que já vi, como nos deu uma lição de vida.

Como já disse várias vezes, o Japão tem um problema com sua história. O governo até hoje reluta em admitir os crimes contra a humanidade cometidos por Hirohito. Figurões do estado maior da cúpula fascista foram sepultados com honras de Estado e até hoje recebem visitas oficiais. Se está difícil mentalizar o absurdo, imagine a Angela Merkel abrindo o ano legislativo com uma cerimônia no mausoléu de Adolf Hitler. Colocando lenha na fogueira, uma parcela de intelectuais (incluindo mangakás) defendem que o Império do Japão estava “certo”, que as proezas da Marinha Imperial devem ser relembradas com orgulho e que as ocupações da China, Coreia, Indochina e quase todo o Pacífico foram uma guerra “defensiva” para proteger os pobres asiáticos do imperialismo ocidental.

Shigeru Mizuki, ele mesmo um fuzileiro da Marinha Imperial, tinha todos os motivos para seguir na linha. Se nada mais, sua biografia tica todos os quadrados de melodramas patrióticos sobre “o sofrimento de nossos veteranos” como Zero Eterno. Mizuki, no entanto, fez exatamente o contrário.

A época em que a vida não pertencia às pessoas

tojo

Showa: A History of Japan é a versão do ex-soldado sobre esse período tão conturbado. É uma apaixonante autobiografia, de onde vieram as ilustrações das anedotas de sua vida que usei acima. É, também, uma das mais longas, tocantes e sinceras histórias do Japão moderno.

showa covers

Showa é tanto um relato pessoal quanto uma biografia coletiva das mais de 70 milhões de pessoas que viveram (e, em muitos casos, morreram) entre o Grande Terremoto de Kanto e o final dos anos 1980 – a época, como o título já entrega, conhecida como Era Showa. Em seu estilo característico, Mizuki mistura paineis ultrarrealistas, baseados em fotos de época, ao traço irreverente de seus mangás sobre youkai. Quem puxa a história é Nezumi-Otoko, um espírito trapaceiro do universo de GeGeGe Kitarou. Ao longo de mais de 2000 páginas, nós o vemos ora como um narrador onisciente, ora como uma aparição, conversando com personagens como Hideki Tojo e Yosuke Matsuoka.

O resultado é uma fusão entre a densidade de Notas Sobre Gaza de Joe Sacco com a leveza de Maus de Art Spiegelman. Mizuki conseguiu criar um comentário sobre o totalitarismo no Japão que é complexo tanto quanto é acessível. Showa nos mostra com riqueza de detalhes como uma nação empobrecida por uma crise econômica gradualmente cede a um extremismo político que terminaria por destrui-la. Em suas páginas, vemos como a bravata das autoridades levou um país economicamente insignificante a travar uma guerra que jamais poderia ganhar – e seu povo a pagar o preço amargo da derrota.

Mizuki conta mais do que julga, e nisso está a maior força de seu trabalho. Ele não acredita no “pacifismo poliana” de Miyazaki e na sua visão da guerra como um mal inconcebível. Ao longo dos volumes, vemos como uma série de fatores – político, econômicos e ideológicos – se combinam para trazer o conflito, e como uma boa parte da população (incluindo seu próprio pai) era favorável ao fascismo. Mais tarde, ele argumenta ainda que a ocupação militar americana e o envolvimento do Japão na Guerra da Coreia enriqueceram o país.

Ele não compra a apologia ao heroismo de Naoki Hyukuta. Pelo contrário, deixa claro que a guerra foi um castelo de cartas erguido com mentiras. Mizuki narra como o exército japonês sabotou suas próprias operações para culpar inimigos imaginários e justificar uma invasão contra a China, como estatísticas propagandísticas levaram a derrotas desnecessárias e como comandantes forçavam suas tropas ao suicídio mesmo quando a vitória era possível.

Por fim, ele é apaixonadamente contrário a Yoshinori Kobayashi, que prega que as atrocidades cometidas pelos japoneses são invenções do Ocidente. Mizuki não poupa tintas para descrever o Massacre de Nanking ou a Marcha da Morte de Bataan. Ao mesmo tempo, ele não tem medo de colocar sua opinião quando acredita que há dúvidas sobre os verdadeiros culpados. De certa forma, a questão é pessoal. Seu próprio irmão, também soldado, foi condenado e preso como criminoso de guerra por executar um prisioneiro aliado.

Shigeru Mizuki e seu pai

Shigeru Mizuki e seu pai na época da guerra

As intervenções de seu narrador youkai e o tom leve com que narra a sua própria trajetória não prejudicam a mensagem do livro. Pelo contrário, só fazem da tragédia ainda mais assustadora. Em dado momento, um companheiro de Mizuki é ferido em combate. Sem chances de resgatá-lo, Mizuki recebe ordens para decepar o dedo do moribundo. É costume japonês que ao menos um osso do morto seja guardado para as cerimônias fúnebres. Se ele vai morrer de qualquer jeito, que pelo menos sua família tenha um funeral digno.

funeral

Um pouco antes, logo após a guerra ser declarada, acompanhamos Mizuki largando a escola. Sem a mínima vontade para estudar ou trabalhar, ele passa todo o seu tempo no quarto lendo filosofia. Quando lhe cobram satisfações, sua resposta é de dar frio na espinha:

filosofia

Showa está recheado de episódios como esse. Em dado momento, Mizuki nos conta que as “Três Balas Humanas“, um trio de jovens soldados que tiraram a própria vida para explodir uma trincheira chinesa, só fizeram o que fizeram porque esperavam voltar com vida: o pavio da bomba havia sido acidentalmente cortado mais curto do que deveria. Em outro, ele relata como, ao saber da sobrevivência de sua unidade, seus oficiais superiores tentaram executá-los. Como eles já haviam comunicado o “suicídio glorioso” ao Imperador, ficava mais fácil matá-los do que explicar o erro.

being aliveAqui está talvez o maior mérito do mangá. Mizuki não nos mostra apenas como é viver em um regime totalitário, mas o que, de fato, significa o totalitarismo. Sob uma ideologia que prega o controle do Estado sobre tudo, a vida humana se torna apenas mais um recurso – como dinheiro ou combustível – a ser “gasto” conforme as necessidades.

Hoje, setenta anos depois, esse mundo nos parece um pesadelo. Muitos, se sujeitos a essas condições, apelariam ao revanchismo. Shigeru Mizuki preferir contar histórias. Há uma certa poesia em sua atitude que vai além da própria beleza de seus mangás.

Cerca de 3 milhões de japoneses morreram na Segunda Guerra Mundial, mais ou menos 4% da população do país. Nada garantia que Mizuki não se tornasse um deles. Para um jovem combatente servindo no final da guerra os números eram ainda piores. Contra todas as expectativas, Mizuki não só sobreviveu como viveu mais que o próprio imperador, morto em 1989. Seu mangá é mais que uma lição de história: é um ato de liberdade de um homem que, à sua maneira, triunfou sobre a Era Showa.

kodansha award

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Antes de ‘Perfect Blue’: os mangás esquecidos de Satoshi Kon https://www.finisgeekis.com/2015/08/24/antes-de-perfect-blue-os-mangas-esquecidos-de-satoshi-kon/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/24/antes-de-perfect-blue-os-mangas-esquecidos-de-satoshi-kon/#comments Mon, 24 Aug 2015 18:31:12 +0000 http://finisgeekis.com/?p=597 Satoshi Kon, morto aos 46 anos em 2010, foi um dos maiores nomes da animação japonesa. Mais do que qualquer outro diretor, ele conseguiu traduzir às telonas a vibe histérica e surrealista de autores como Haruki Murakami e de movimentos como o Superflat.

Seus fãs geralmente o conhecem por seus quatro longa-metragens: Perfect Blue (do qual Cisne Negro é uma adaptação), Millenium Actress, Tokyo Godfathers Paprika, e também por sua série, Paranoia Agent. Poucos sabem, no entanto, que antes de sua estreia no cinema Kon escreveu e desenhou uma série de mangás tão inovadores e adultos como o trabalho que o tornou famoso.

À primeira vista, parece óbvio que um figurão do anime tivesse um pé nos quadrinhos nipônicos. As duas indústrias têm uma relação tão forte que o mangá é geralmente a porta de entrada mais fácil para aspirantes ao universo da animação. Satoshi Kon, entretanto, não era um diretor lá muito comum, e seus quadrinhos deixam isso claro. Para nós, órfãos do grande mestre, essas obras (a maioria inacabada) são uma chance inédita de conhecer a mente do criador que virou de ponta cabeça a arte de Miyazaki e Tahakata.

Abrindo o baú

Eu me considero um fã hardcore do trabalho de Kon (a ponto de ter visto Paprika Millenium Actress vezes suficientes para ter quase memorizado o roteiro). Mas mesmo eu até pouquíssimo tempo atrás não fazia a mínima ideia de que o diretor tinha uma produção significativa no mangá. Foi preciso fuçar em uma prateleira esquecida em uma loja nerd em Helsinki, onde estive para um curso sobre videogames, para encontrar Kaikisen, ou Tropic of the Sea, um volume único publicado pela primeira vez em 1990.

Kaikisen

Também conhecido como “O Retorno ao Mar” em algumas traduções

Com exceção do traço característico de suas personagens femininas (onde já podemos ver a semente de Paprika e Chiyoko), é difícil acreditar que o mangá saiu da mesma cabeça que nos deu Paranoia Agent. Trata-se de uma história tradicional de temática ecológica sobre um jovem cuja família foi escolhida para proteger um ovo de sereia. Quando o bairro em que vive é vendido para a construção de um resort, ele se vê lutando contra uma empreiteira para evitar a ira dos tritões.

Em mensagem, Kaikisen é um história à la Miyazaki sem a exuberância visual que tornou o diretor famoso. Se o mangá nos faz coçar a cabeça ao compararmo-lo às suas obras mais célebres, é visível aqui o tom enxuto e despretensioso de Tokyo Godfathers. O espírito ousado que o levaria mais tarde ao estrelado ainda estavam por vir.

Para isso, seria preciso a ajudinha de um peso-pesado.

Sobre os ombros de gigantes

Um ano depois de sua fábula sobre sereias e meio-ambiente, Satoshi Kon se debruçou sobre World Apartment Horror, uma trama sobrenatural envolvendo mafiosos da Yakuza e espíritos maléficos. A obra merece destaque não apenas pelo conteúdo, mas pela companhia: o mangá é uma adaptação de um filme de mesmo nome de ninguém menos que Katsuhiro Otomo, o deus da animação que nos trouxe Akira. Kon, não fosse o bastante, escreveu também o roteiro do longa. Ombro a ombro com os maiorais da animação, não demoraria para ele ganhar seu ticket de entrada na elite da indústria.

WAH

O mangá não seria a última colaboração de Kon com artistas renomados. Entre 1994 e 1995, ele teve a oportunidade de trabalhar a quatro mãos com aquele que é tal vez o nome mais conhecido do universo do anime depois de Miyazaki.

Sim, é ele mesmo: Mamoru Oshii

Sim, é ele mesmo

Satoshi Kon cuidou da arte. Mamoru Oshii, que a essa altura já tinha Patlabor Urusei Yatsura no currículo, assinou o roteiro. Seu toque autoral pode ser sentido em toda a trama. Fugindo do surrealismo e da explosão de referências que viriam a marcar o trabalho de Kon, Seraphim é uma odisseia em um mundo pós-apocalíptico, acompanhando uma jovem que busca salvar a humanidade de uma doença terrível.

seraphim

A arte é de tirar o fôlego e traz à vida o mundo cruel, alienígena e chocante que Oshii concebeu. Além do mais, digno do criador de Ghost in the Shell, o mangá está repleto de referências filosóficas e religiosas.

seraphim collage

Se hoje a mera menção da dupla é suficiente para provocar orgasmos mentais em qualquer otaku, nos anos 1990 a coisa era diferente. Seraphim é um título surpreendentemente obscuro, que nunca recebeu qualquer destaque e acabou descontinuado. O processo de criação foi tão conturbado que foi até objeto de uma piada de Satoshi Kon em um de seus trabalhos posteriores:

seraphim opus

Encontrando a própria voz

opus-satoshi-kon

É, no entanto, em 1995 que o Satoshi Kon que conhecemos finalmente abriu as asas. Opus, serializado na Comic Guys entre 1995 e 1996, faz juz ao título: trata-se sem sombra de dúvida de seu magnum opus (obra-prima). Aqui, toda a irreverência e verve cerebral de seus longas recebe o desenvolvimento que merece.

Em um enredo típico da ficção pós-moderna japonesa, o título conta a história de um personagem de mangá que, percebendo que sua morte está próxima, se rebela contra seu criador. O desenhista se vê então lançado ao próprio mundo fantástico que criou e se une à protagonista para colocar ordem na bagunça.

opus 2

opus 1

Ironicamente, tal como SeraphimOpus nunca foi concluído. Quem tiver a sorte de encontrar a edição da Vertical de Tropic of the Sea vai poder ler um pósfacio em que Kon conta um pouco do ritmo endiabrado da rotina de mangaká. Sempre um perfectionista, o animador preferia fazer tudo (ou quase tudo) sozinho, o que lhe exigia virar noites a fio trabalhando. Com a fama dos filmes e a necessidade de cuidar dos longas, essa vida simplesmente lhe ficou impossível. Em seu depoimento, ele diz:

No meu ponto de vista eu tenho usado os chapéus tanto do mangaká quando do animador, mas quando sou apresentado em revistas e coisas do tipo eles se referem a mim como “diretor de anime”, com meu chapéu de “mangaká” relegado ao esquecimento. Eu não me lembro de ter jogado fora aquele chapéu ou fechado aquele negócio, mas eu não posso lutar contra a avaliação objetiva da sociedade. Esses dias eu mesmo tenho depreciativamente me contentado com “mangaká em minha encarnação passada.”

De certa maneira, Satoshi Kon foi vítima de seu próprio sucesso. Felizmente, este mesmo sucesso fez com que suas obras escritas, outrora obscuras, fossem publicadas novamentes em edições de luxo. Para o fã desolado que queira gabaritar a produção de seu “mangaká na vida passada” favorito, recomendo ainda dois outros títulos. O primeiro é Dream Fossil, coletânea de contos de quadrinhos que escreveu ao longo dos anos 1980 e 1990. O segundo é Kon’s Works 1982-2010um belíssimo art-book com pôsteres, artes conceituais e ilustrações variadas de toda sua carreira.

kon collage

Nada disso nos cura da trauma de sua morte prematura. Porém, se nada mais, esses mangás nos trazem uma pontada de nostalgia e avivam nossa esperança de um dia assistirmos ao seu filme póstumo nos cinemas.

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