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Puella Magi Madoka Magica – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Fri, 13 Dec 2019 10:17:56 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Puella Magi Madoka Magica – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Por dentro do “Fausto” de “Madoka” https://www.finisgeekis.com/2016/06/27/por-dentro-do-fausto-de-madoka/ https://www.finisgeekis.com/2016/06/27/por-dentro-do-fausto-de-madoka/#comments Mon, 27 Jun 2016 22:08:21 +0000 http://finisgeekis.com/?p=7310 É fato conhecido entre fãs de Madoka que o mahou shoujo de Gen Urobochi foi inspirado em Fausto. A homenagem é frequentemente comentada em resenhas do anime, como nessa ou nessa.

Não que a produção da SHAFT tenha feito muitos esforços para esconder o tributo. Frases em alemão tiradas diretamente da peça estão literalmente espalhadas pelas cenas do anime:

Screenshot (7)

madoka fausto quote 2

O que talvez seja menos evidente é quão inspirada a série realmente é. Não se trata apenas de trechos tirados de um dicionário de citações ou da página da wikipedia. Há Goethe suficiente dentro de Madoka para chamá-la de releitura – quando não mesmo de adaptação.

Para apreciá-la, não é preciso ir longe. Basta começar pelo começo:

Um pacto diabólico

kyubey.png

Sou parte da Energia

Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.

– Mefistófeles

 

Madoka quebrou os paradigmas de seu gênero ao apresentar garotas mágicas não como heroínas, mas como vítimas de pacto maldito.

Em vez de um familiar fofinho para acompanhá-las, suas guerreiras do bem encontram Kyubey, uma inteligência alienígena que deseja usá-las como fonte de energia para evitar a morte térmica do universo.

Não é preciso ter lido Goethe para perceber que Kyubey é uma figura diabólica. Porém, sua maior semelhança com Mefistófeles não está em seu objetivo, mas na personalidade.

No anime de Urobochi, o Incubator, como é conhecido, não é exatamente um vilão. Ele não age por maldade e não tem pretensões de dominar o mundo. Nem teria como: sua espécie é incapaz de sentir emoção.

Para ele (e seus superiores), nada do que fazem é pessoal. Garotas serão condenadas a servir de baterias-vivas, mas o universo será preservado. É uma boa barganha. Por que os humanos não conseguem ver as vantagens?

Screenshot (54).png

Por quê?

Não é exatamente a postura que esperamos do Senhor de Todo o Mal. Mas é, curiosamente, a forma como Goethe nos introduz a Mefistófeles.

Ao contrário dos demônios em outras histórias, Mefisto não é exatamente cruel. Tal como Kyubey, ele é um diabo corporativo, que faz “apenas o seu trabalho” Tão “correto” ele é, na verdade, que pede autorização a Deus antes de tentar Fausto com sua proposta.

A produção da SHAFT não se esqueceu da cena. Pelo contrário, até a homenageou em um pequeno easter egg.

Madoka abre seu primeiro episódio com uma citação em código (já decifrado pelos fãs). Ela diz Prolog im Himmel, ou “Prólogo do Céu”, título da cena de abertura de Fausto, em que nosso burocrático demônio pede o consenso do Criador.

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A homenagem, claro, vai muito além do easter egg.

A maldição da felicidade

mami tea madoka.jpg

Se vier um dia em que ao momento

Disser: Oh, para! És tão formoso!

Então algema-me a contento,

Então pereço venturoso!

 – Fausto

Na antiga lenda alemã, Fausto é um acadêmico amargurado com uma vida insossa. Ao fazer o pacto com o demônio, ele vê a oportunidade de experimentar aquilo que nunca teve: poder, prazer, conhecimento infinito.

Uma dos principais twists do Fausto de Goethe – e um dos motivos pelo qual sua versão é tão celebrada – é que ele vira essas motivações de ponta-cabeça. Na sua história, Fausto não está apenas amargurado.  Ele acredita que não há nada no mundo que possa agradá-lo.

Nem ouro, nem poder, nem luxúria, nem conhecimento. Para Fausto, a vida perdeu o brilho. Nas suas palavras:

Maldita seja a presunção,

Em que o critério se emaranha!

Maldita o encanto da visão

Que no íntimo sensual se entranha!

Maldito o que em vão sonho enleia,

Da fama e glória o falso brilho!

(…)

Do amor, maldita a suma aliança!

Maldita da uva a rubra essência!

Maldita fé, crença e esperança!

E mais maldita ainda, a paciência.”

Se a linguagem pomposa parece distante de Madoka, pense de novo. A quote (ou uma parte dela) aparece ao lado de Mami,  no labirinto de uma das primeiras bruxas derrotadas pelas garotas.

Madoka goethe quote.png

Fausto está tão certo de que jamais encontrará um desejo que lhe agrade que resolve fazer uma aposta com Mefistófeles. Se um dia ele realmente ficar satisfeito, completamente satisfeito, ele abrirá mão da sua vida.

A “maldição da felicidade”, como ficou conhecida, é umas artimanhas mais sombrias da tragédia. Sem saber (ou, talvez, sem entender o peso da sua escolha), Fausto condena a si mesmo a um sofrimento insuportável e angústia infinita.

Era apenas óbvio, tratando-se de Urobochi, que esse terror psicológico fosse encontrar algum lugar em Madoka. Nem precisamos esperar muito. Ele aparece já nos primeiros episódios.

Embora pareça uma garota bonita, alegre e capaz, Mami Tomoe conta às suas novas amigas que o trabalho de mahou shoujo cobra um preço alto. Esqueçam namorados, amigas ou uma rotina comum. Para quem arrisca a pele lutando contra bruxas, a vida será sempre solitária.

Tudo isso muda quando Madoka entra em cena. Mami, que já tinha se resignado a morrer sozinha, descobre que terá uma companheira para dividir o fardo. No labirinto da bruxa, ela conta à amiga que nunca se sentiu tão feliz.

O resto, como dizem, é história.

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Mami sofre a maldição às últimas consequências, mas fica claro, na série, que nenhuma mahou shoujo está destinada a ser feliz. Tal como Mefistófeles, Kyubey só está interessado em suas almas… e no que acontecerá com elas depois que morrerem.

Kyoko leva o pai à loucura e ao assassinato. Sayaka troca a alma pelo coração de um garoto, que perde para a amiga popular. Homura tenta salvar Madoka, mas se envolve em uma espiral de fracasso e decepção que a transformaria, cedo ou tarde, em uma bruxa.

Não havia como ser diferente. Pois, se alguma coisa merece o adjetivo “fáustico”, ser ludibriado a um destino terrível com certeza é ela.

Afinal…

A esperança e desespero andam juntos

Madoka Gretchen.png

Não devo; para mim a esperança está morta.

Por que fugir? se estão mesmo a espreitar-me.

 – Gretchen

Usagi é a protagonista de Sailor Moon. Cardcaptor Sakura é a história de Sakura Kinomoto. Seria óbvio, em um anime chamado Puella Magi Madoka Magica, que acompanhássemos a jornada pelos olhos de Madoka Kaname.

Seria, se Urobochi e companhia não nos tivessem presenteado com um dos twists mais celebrados de memória recente. O que de início parecia a jornada de Madoka para se tornar uma garota mágica se prova, na verdade, a saga de Homura.

Aterrorizada ao descobrir o verdadeiro plano de Kyubey, ela troca sua alma pelo poder de voltar no tempo. Para salvar a vida de Madoka no futuro, ela retorna ao passado para evitar que faça o pacto que custará sua vida.

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Seja o que for preciso

Não que esse fosse um plano que ela pudesse realizar. Num paradoxo conhecido de ficções sobre viagem no tempo, Homura não consegue evitar que o inevitável aconteça. Pior ainda, ela só agrava as coisas.

Como o próprio Kyubey reconhece, cada vez que volta ao passado o potencial de Madoka aumenta. Quanto mais forte ela for como garota mágica, mais terrível ela será quando finalmente se transformar em uma bruxa. E maior a destruição que espalhará pelo globo.

É um twist genial, mas que não deve passar batido para quem está de olho nas referências a Fausto. Afinal, também o personagem de Goethe termina sua tragédia em uma corrida desesperada para salvar a mulher que ama.

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Quem duvidava?

Em Fausto, o protagonista usa o poder de Mefistófeles para conquistar uma jovem chamada Gretchen. O feitiço é um sucesso, e a garota se rende aos seus encantos. No entanto, o que era para ser um sonho logo se transforma em um pesadelo.

Para conseguir se encontrar com Fausto, Gretchen dá à mãe um sonífero. Sem ela saber, o que havia no frasco era veneno, e sua mãe morre ao bebê-lo.

Ela engravida e se torna o escândalo da cidade. Seu irmão, Valentim, desafia Fausto para um duelo, mas acaba sendo morto em combate. Gretchen dá à luz e, num momento de desespero, mata o próprio filho afogado. As autoridades a prendem e a condenam à morte.

Antes uma garota feliz de 15 anos, Gretchen testemunha a vida acabar em um dominó de catástrofes.

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Fausto, infelizmente, não estava lá para ajudá-la. Foragido após o assassinato de Valentim, ele cede à proteção de Mefisto. O diabo o leva à Walpurgisnacht, ou Noite de Valpúrgis, uma festa orgiástica em que bruxas se entregam para demônios.

Quando finalmente ele se dá por si, já é tarde demais. Ao retornar à cidade, ele descobre que seu mundo estava fadado à destruição.

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Que Madoka seja a Gretchen de Homura é, novamente, algo que a SHAFT não fez nenhum esforço para esconder. Seu nome como bruxa, revelado no episódio 10, é nada menos que Kriemhild Gretchen.

À primeira vista, se há uma diferença gritante entre Fausto Madoka, ela está justamente na resolução. Madoka possui um final feliz, se bem que agridoce.

Fausto, por outro lado, é tradicionalmente uma tragédia de danação. Na maioria de suas versões, o estudioso que vende a alma ao demônio tem o final que merece: é arrastado ao inferno.

Apenas à primeira vista.

O perdão é para todos

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Inclina, inclina,

Ó Mãe Divina,

À luz que me ilumina,

O dom do teu perdão infindo!

 – Una Poenitentium

Ao contrário do que muitos imaginam, a lenda alemã de Fausto é só metade da tragédiaGoethe não se contentou apenas em contar sua versão do conto. Ele escreveu uma segunda parte, centrada naquilo que lhe acontece depois – em seu caminho para a redenção.

Se você nunca ouviu falar de Fausto II (como a peça é conhecida) não se desanime. A obra é incrivelmente longa (três vezes maior do que sua parte I), raramente encenada e considerada uma das obras mais difíceis da história da literatura.

Nela, após a morte de Gretchen, Fausto acorda em um mundo fantástico, onde embarca em uma jornada pela mitologia. Tudo vai bem a princípio, até que, num momento de fraqueza, ele admite ter tudo o que deseja.

A “maldição da felicidade” o arrebata de imediato, e Mefistófeles, feliz por ter ganho a aposta, surge para tomar sua alma. Para sua surpresa, os próprios céus descem para proteger Fausto.

Acontece que, tal como Madoka, Gretchen também tem um desejo a realizar. Ela renasce como uma figura celestial chamada Una Poenitentium, perdoa os pecados de Fausto e o leva consigo para o paraíso.

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Se parece inacreditável que Madoka tenha ido tão longe atrás de um plot, basta lembrar que não é a primeira vez que isso acontece. Fausto não é novidade na cultura pop japonesa. Pelo contrário, ninguém menos que Osamu Tezuka, o pai do mangá, já havia feito sua própria adaptação nos anos 1950.

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E não qualquer adaptação. Ao contrário de Miyazaki, que se baseou em um dicionário de mitologia para criar Nausicaa, Tezuka era um leitor ávido de Goethe, que devorou várias vezes as duas partes de Fausto. 

E não só de Goethe. Crime e Castigo, de Dostoievski, recebeu o mesmo tratamento.

É estranho, para quem vê de fora, pensar que uma mídia famosa como entretenimento para adolescentes possa ter essa profundidade. No entanto, esta é a mesma mídia em que mesmo desenhos abertamente juvenis colocam sinfonias do Mahler em cenas de beijo.

O que dizer? Anime também é cultura.

NOTA: A versão em português citada nesse texto é a tradução de Jenny Klabin Segall, publicada pela Editora 34

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Aquele que luta contra monstros deve ter cautela para que ele também não se transforme em um monstro.

A frase é de Nietzsche, embora tenha se popularizado (um tiquinho modificada) na voz de Idris Elba no filme Pacific Rim. No que diz respeito aos nossos medos, a afirmação vai direto ao ponto. Monstros apavoram, mas o medo é muito maior quando sabemos que eles têm uma casca de humanidade. Dos lobisomens aos serial killers, do vampirismo à loucura, poucas coisas fazem homens tremerem nas bases mais do que saberem que podem sucumbir à selvageria.

Ainda assim, há uma pequena nuance na frase que a torna ainda mais interessante. E se fosse o ato mesmo de caçar monstros que os faz surgir em primeiro lugar? E se a distância entre caçadores e criaturas for pequena – pequena demais, talvez, para que a maioria das pessoas a perceba? E se eles – tanto monstros quanto herois – não pertencerem ao mundo “normal”, mas fizerem parte de um outro: um jogo de gato e rato mortal em que inocentes estão à mercê de sua violência?

“Herois” que assustam

Games e animes, pela sua própria riqueza visual, têm um carinho especial por coisas de outro mundo. Para alguns, estas mídias chegaram a virar sinônimo do fantástico, ao ponto de estranharam quando um Noir ou Heavy Rain da vida nos apresenta uma história “comum”, sem os fogos de artifício do faz-de-conta.  Em muitos trabalhos, este “segundo mundo” é tão mundano quanto calça jeans e pão com manteiga. Não existe “sobrenatural”: o universo é colorido e povoado por seres estranhos, sejam eles os Gorons, Dekus e Zoras de Zelda ou os Totoros do Miyazaki. Adolescentes encontram bichinhos fantásticos e se tornam garotas mágicas. Aventureiros tomam uma poção vermelha e curam todos os ferimentos. Para a audiência, só resta sorrir e aceitar: até desligarem a TV estarão em um planeta com outras regras, e não há nada de errado com ele.

No entanto, outras obras vão por um caminho diferente. Nelas, o mundo é “normal”, ou ao menos deveria ser. Suas personagens são pessoas como nós, com limitações e expectativas como as nossas, vivendo em bairros como os nossos. Se surge alguma coisa fantástica, ela é sempre estranha, inexplicável… aterrorizante. O “sobrenatural”, como o próprio nome já diz, não se encaixa nas expectativas dessas pessoas. Ele faz com que questionem o que sabem, fujam para a segurança e busquem ajuda. Ele é monstruoso, e onde existem monstros existem caçadores para abatê-los.

Acontece que esses mundos são mais complicados. Aqui, não basta girar uma varinha e ganhar um uniforme escolar encantado. Tal como o caçador precisa viver com a caça para entendê-la, o predador de monstros precisa viver com os monstros. Eis a pergunta que não quer se calar: quando eles finalmente lutarem e um sair vitorioso, será que as pessoas normais vão saber reconhecer quem é quem?

Uma barganha infernal

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Talvez o exemplo mais surpreendente nos últimos anos tenha sido Puella Magi Madoka Magica. Que a abundância da cor rosa e a semelhança da protagonista com Sakura Kinomoto não dê margem para dúvidas. A série mais se aproxima do sombrio Kara no Kyoukai¸ o qual também teve a trilha assinada pela Yuki Kajiura e músicas de crédito do Kalafina. (Às vezes, não é preciso de mais nada para falar do monstruoso. Escutem isso e me digam que não imaginaram bonecas amaldiçoadas ganhando vida).

Ao contrário do que alguns dizem, Madoka Magica não é exatamente uma subversão do gênero. Todos os elementos clássicos da fórmula da garota mágica estão presentes sem o menor pingo de ironia. Um familiar fofinho com cara de bichinho de pelúcia. Uma menina tímica, porém cheia de amigas. Uma garota que aposta tudo pelo bem de seu amado. Uma heroína que usa o “poder do amor” para salvar o mundo das trevas. A diferença é o sentido nefasto que as coisas ganham. De início, tanto as personagens quanto os espectadores são seduzidos pelo mundinho cor de rosa que esperamos de garotas mágicas. Com o tempo, porém, as protagonistas percebem que venderam sua alma a uma causa horrenda. Conduzidas por um primo do Kero-chan que mais parece uma pelúcia do MothmanMadoka e suas amigas fazem um pacto com forças obscuras e descobrem, episódio após episódio, o preço exorbitante que terão de pagar.

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Se acha que isso é um personagem do Yellow Submarine, você terá a surpresa da sua vida

Geralmente ocupadas em alegrar as manhãs de sábado e vender brinquedo, é difícil ver séries de garota mágica empenhadas em tornar macabro o próprio glamour que o gênero ostenta. Na fantasia medieval, estas releituras são mais comuns, em parte pela popularidade da low fantasy (recentemente, Game of Thrones), em parte pela sua associação popular com o folclore, ele mesmo bastante sombrio.

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Isto não significa, obviamente, que não haja grandes destaques. Em Claymore, o mundo é assolado por criaturas chamadas youma. A solução arranjada para os massacres é uma casta de guerreiras cujos corpos foram fundidos aos de monstros na infância. O resultado são seres com mente e fisionomia humanas, mas com a força sobrenatural e os poderes de youma. A “aparência”, entretanto, é apenas aparência. Claymores são monstros com máscaras de gente, e caso usem suas habilidades para além de seu limite elas se transformam em youmas elas próprias.

Clare_Partial_AwakenedCom o tempo, a organização que as produz se tornou um negócio extremamente rentável e eficiente. As “voluntárias” a se tornarem guerreiras são sempre do sexo feminino – segundo a lore, a natureza agressiva dos homens faz com que sejam instáveis e mais propensos a se transformar. Eventualmente, descobrimos que órfãs e crianças traumatizadas são as candidatas prediletas. A força das claymores está relacionada com seu psicológico antes da operação, e vítimas de violência tornam-se criaturas mais monstruosas. Quando uma guerreira cede aos seus instintos inumanos, um esquadrão é enviado para abatê-la. Quando um vilarejo sofre o ataque de um monstro, os habitantes contratam a organização mediante um gordo pagamento. Quando a ameaça é eliminada, um funcionário passa para receber o pagamento – e recrutar as meninas cujas familiares foram devoradas pelo youma. Tudo funciona muito bem. Até – o espectador começa a suspeitar-  bem demais.

Awakened_clare_claymore

É difícil não ver semelhança com The Witcher,  série de Andrzej Sapkowski, adaptada a uma trilogia de games premiadíssima pela CD Projekt Red. Entre cabelos acinzentados, olhos dourados, e o amor por uma filha adotiva, Geralt de Rivia, nosso protagonista, é uma versão polonesa e barbada de Teresa, a guerreira mais poderosa da organização em Claymore. Tal como as caçadoras de youma, witchers são humanos que sofrem horríveis mutações para caçar monstros. A transformação (que fãs de Dragon Age acharão familiar) lhes confere agilidade e força sobre-humanas, sentidos apurados e capacidade de usar magia. Até então, rol normal de habilidades de um herói de RPG. A diferença está no preço.

O que Madoka Magica faz com a garota mágica, The Witcher faz com o aventureiro dos mundos de fantasia. Geralt pode beber as poções de cura que levantam até defunto, mas a contrapartida é uma transformação irreversível. Fórmulas miraculosas, afinal de contas, pertencem ao sobrenatural. Para usá-las, é preciso deixar de ser humano. O efeito colateral? Witchers são estéreis, incapazes de chorar ou de mostrar grandes emoções. Por onde eles andam pessoas cospem, xingam e se afastam. Ao longo da trilogia de games, Geralt se relaciona com o resto do mundo com sua voz rouca e seu senso de humor seco. As pessoas rosnam e o chamam de “bastardo sem coração”. Da cadeira, diante do computador, é impossível não sentir uma pontada de tristeza. Tal como Madoka e suas amigas, ele deu um passo em direção à escuridão e pagou um preço grande. Que ele seja um dos últimos de sua casta fala por si só: poucos têm desejo de seguir em seus passos.

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Ainda assim, se há algo diferente na monstruosidade dos witchers é porque eles são apenas o lado mais evidente de uma mudança maior. Na série, o mundo já foi um dia um lugar normal, “calmo” e previsível como a realidade. Um fenômeno estranho, a Conjunção das Esferas, fez com que se transformasse num pesadelo vindo direto de True Detective (ou do livro que o inspirou). Todos os universos precisam de seus faxineiros. Quando a sujeira é a encarnação das perversões humanas, é preciso um profissional com uma espada de prata.

Bem vindo à Carcosa

Bem vindo à Carcosa

Talvez o mais interessante nessas histórias seja justamente seu esforço em esconder o terror – e nossa surpresa quando finalmente o encontramos. Ao longo do artigo, tive de me policiar várias vezes para não incluir spoilers. Todas essas séries, e as mais de centenas que seguem sua fórmula, têm um twist muito parecido. Como que ele ainda funciona, depois de tanto tempo? Por que nos assustamos tanto ao ver o lado monstruoso das coisas, se assistimos (e jogamos) esse mesmo drama há anos? Talvez seja menos uma questão de medo do que de vontade de sermos contrariados; de olharmos para Madoka, Clare e Geralt e torcermos para que mantenham sua humanidade, por mais difícil que pareça perdê-la. E nos assegurarmos de que nós também temos uma chance de não virarmos monstros, em nossas lutas pessoais contra a monstruosidade da vida.

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