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política – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Fri, 19 Jul 2019 10:34:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 política – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Dororo” e a misericórdia https://www.finisgeekis.com/2019/07/16/dororo-e-a-misericordia/ https://www.finisgeekis.com/2019/07/16/dororo-e-a-misericordia/#comments Tue, 16 Jul 2019 20:11:46 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21915 (AVISO: Contém SPOILERS de Dororo)

Dororo, última reencarnação do clássico de Osamu Tezuka, sem dúvida deu o que falar. Não só pela produção de primeira, nem pela legião de fãs que deixou em seu rastro.

Por trás dos monstros e cenário de época, sua história de um guerreiro amaldiçoado lutando para recuperar seu corpo é uma parábola sobre a vingança, a justiça – e a misericórdia.

Ou, ao menos, essa parece ter sido a intenção.

Se a internet é uma referência, nem todos ficaram convencidos com a bagagem moral do anime. Andy Pfeiffer do ANN achou sua mensagem central pouco convincente, apoiada por “argumentos ambíguos que não consegue suportar”.

Tom e Linny do All Your Anime acharam sua moral “confusa e questionável”, resultado de uma série que não soube escolher entre ser “uma jornada divertida ou que pena com uma mensagem tocante e difícil”.

A ideia de que Hyakkimaru pudesse estar errado em lutar para reaver seu corpo parece ter atraído o grosso das críticas. De fato, se Dororo começa num familiar monstro-da-semana, não demora para que as coisas se compliquem.

Ao longo do anime, descobrimos que certos demônios parecem menos ruins que outros. Certos humanos parecem piores que demônios – e Hyakkimaru, dominado pelo ódio, nem sempre consegue separar o joio do trigo.

Não fosse o bastante, os demônios que levaram seu corpo trouxeram benefício para pessoas –pelo menos, para algumas delas. Kaga, o domínio de sua família, prosperou desde que seu pai, Daigo, fez seu pacto diabólico.

Seria justo que Hyakkimaru tomasse de volta o que é seu, se com isso fizesse mais pessoas sofrerem?

E se realmente o for, não teria sido errado de sua parte não ter levado sua vingança às últimas consequências? Ter feito aqueles que roubaram seu corpo não apenas devolverem o que é seu, mas pagarem pelo seu pecado?

É uma feliz coincidência que o final de Dororo tenha chegado junto com o lançamento de Sobre a Misericórdia, do filósofo Malcolm Bull.  Abordando questões que soariam familiares a Hyakkimaru, o autor avança uma hipótese provocativa:

A misericórdia é mais importante que a justiça.

Justiça ou misericórdia?

Antes de surfar na polêmica, é preciso deixar claro o que Bull quis dizer com isso.

Segundo o autor, ter “misericórdia” significa tomar ações, propositais, que causem menos dano que suas alternativas.

No princípio, ele nos explica, essa era considerada uma virtude essencial para governantes. O bom rei era aquele que sabia perdoar tanto quanto punir – de onde a prática da anistia, que sobrevive até hoje nos códigos legais.

Obviamente, nem sempre é possível contar apenas com o perdão. Sobretudo quando ele vem de um inimigo com motivos de sobra para nos querer mortos.

Com o tempo, isso levou a misericórdia a perder espaço na discussão política. Para os pensadores do Iluminismo, era na razão e na imparcialidade, não em arroubos de boa-vontade, que a sociedade deveria se basear. O sistema ideal não pode depender de pessoas bem-intencionadas, e sim da justiça.

Nas palavras de Omura, de O Último Samurai, um país é defendido por suas leis, não pela espada de um guerreiro deslumbrado.

Omura, em “O Último Samurai”

O problema, segundo Bull, é que sistemas ideais só existem na nossa cabeça. No mundo real, é possível cometer as mais terríveis atrocidades sem com isso deixar de ser “justo”.

A ficção traz vários exemplos de pessoas que caem pelas frestas do sistema sem que ninguém as ajude, pois sua miséria não viola nenhuma regra. Ou de culpados por crimes pífios que tem sua vida destruída por uma aplicação rigorosa da lei.

Jean Valjean do romance Os Miseráveis, que passou 19 anos na cadeia pelo roubo de um pão. Pintura de Jean Geoffroy

Como um paladino leal e estúpido armado com uma ogiva nuclear, uma sociedade regida friamente pela justiça corre o risco de provocar uma distopia inabitável.

Em algumas circunstâncias, pode ser melhor não punir culpados, mesmo que eles mereçam. Pelo bem de nossa sociedade, se nada mais.

Isso não significa que Hyakkimaru errou ao matar os demônios, ou que deveria ter aceitado sua sina. Pelo contrário, pelos próprios termos de Bull o protagonista de Dororo é a personagem mais misericordiosa do anime.

E é justamente por isso que ele está certo.

Entre o fogo e a frigideira

Do ponto de vista do próprio Hyakkimaru, que sua vingança seja “justa” ou “injusta” faz pouco sentido. A reparação que busca é de outra natureza.

Bull explica a diferença citando o trabalho de outro filósofo, Bernard Williams. Segundo o autor, nem todos os conceitos éticos são iguais.

Alguns – chamados por ele de “finos” – são mais abstratos. Eles atuam no campo das ideias, dizendo se uma coisa pertence ao “bem” ou ao “mal”, mas pouco além disto.  Outros – chamados de “densos” – são mais próximos do nosso mundo. Eles dizem respeito a coisas que nos machucam, nos causam medo, provocam consequências que voltarão para nos assombrar.

A vingança de Hyakkimaru pode até ser “errada”, mas vender seu primogênito aos demônios é cruel. E a crueldade, Bull argumenta, é muito mais densa que o certo ou o errado.

Ele está vulnerável demais, encurralado demais pelo seu próprio sofrimento para sequer pensar em termos finos como o “justo”, o bem coletivo ou a salvação da sua alma.

Quando estamos na frigideira, não pensamos no fogo em que podemos cair. Tudo o que queremos é pular para fora.

No anime, seu irmão Tahomaru entende isso muito bem. “Eu não acho certo o que nosso pai fez a você” ele diz a Hyakkimaru no episódio 12. “Mas esse é o sacrifício necessário para proteger o nosso domínio. Se rompermos o acordo agora, a terra morrerá.”

Incapaz de convencer seu irmão apelando a um conceito fino (“é errado”), ele apela a um denso (“é cruel e egoísta fazer os outros sofrerem”).

É um raciocínio asqueroso durante uma cena horripilante, mas ele talvez tenha mais mérito que Hyakkimaru – e até mesmo nós – enxergamos à primeira vista.

“A paz construída no sacrifício de uma pessoa é uma coisa frágil”, diz a mãe de Hyakkimaru. Mas não seriam todas as sociedades construídas sobre este tipo de sacrifício?

Se Hyakkimaru for eximido de seu suplício, o que impede um jovem soldado, recrutado contra a vontade, de fazer o mesmo quando a guerra chegar? Ou um civil de se rebelar quando, durante uma emergência, seus bens forem confiscados pelo Estado?

Fora das nossas utopias mais lisérgicas, existe mesmo um mundo em que pessoas se sacrificam por livre e espontânea vontade? Não existe, em todo sistema, uma parcela de Hyakkimarus, sofrendo pelo conforto dos outros sem receber nada em troca?

“O Preço da Paz”, por Brian Jay

Colocado dessa forma, seria um argumento para ruminarmos. Se Daigo estivesse falando a verdade.

Poder e misericórdia

Como o pai de Hyakkimaru confessa já no primeiro episódio, seus motivos para vender o filho aos demônios estão longe de serem altruístas.

“Nós já estamos vivendo no inferno” ele diz a um monge antes de matá-lo. As pestes, secas e tragédias que ele quer imputar a Hyakkimaru já existiam antes dele nascer, trazidas não por deuses irados, mas pela sua própria incompetência.

Seu pacto com os doze demônios não foi um sacrifício por um bem maior, mas um atalho para esconder o fato de que ele não presta como governante.

Como ele mesmo admite:

Doze demônios, eu sou Daigo Kagemitsu. Senhor de Ishikawa e vassalo do governador da província de Kaga. A escassez e as epidemias recorrentes assolaram minhas terras, enfraquecendo meu povo até a morte. Desse jeito, eu nunca conquistarei o poder e o renome que desejo.

Mitigar a pobreza do seu povo foi apenas um efeito colateral de seu verdadeiro objetivo: ganhar uma promoção. Enxergando as coisas por esse ângulo, até mesmo sugerir que Hyakkimaru deva se compadecer do pai é um insulto ao jovem.

Como Bull explica, ser misericordioso implica, em primeiro lugar, ter poder sobre alguém. Mais do que isso, implica em estar disposto a abrir mão desse poder, nem que apenas temporariamente.

Aumentar seu poder sobre alguém, pelo contrário, é sempre uma operação tirânica, pois deixa as pessoas a sua mercê ainda mais vulneráveis. E manter alguém em uma situação vulnerável é, em si, uma forma de dano.

O inverso, porém, não é verdadeiro. Quem é oprimido por um poderoso pode – e deve – tentar virar a mesa, pois perder poder, por si só, não é um tipo de dano. Daigo poderia viver muito bem sendo “apenas” o senhor de Ishikawa. Hyakkimaru, privado dos seus sentidos mais básicos, não pode dizer o mesmo.

Mas como garantir que um Hyakkimaru não se deixe levar por sua vingança e se torne o próximo Daigo? Como garantir que os vulneráveis, de posse dos privilégios com que tanto sonharam, não façam ainda pior que seus antigos senhores?

Ou, nas palavras de Biwamaru, Jukai e todos aqueles que zelaram pela alma de Hyakkimaru, que não deixem o poder tolher sua humanidade?

Porque, por incrível que pareça, eles podem não ter escolha.

A energia que até os demônios cobiçam

Ao longo da história, muita tinta foi gasta para justificar por que certas pessoas têm direito de mandar nas outras.

Porque seu poder vem de Deus ou da vontade do povo. Porque são os mais capazes. Porque é o que dizem as regras, e as regras são boas. Porque eles mandam, pura e simplesmente, e se você reclamar irão te machucar.

Para Bull, contudo, tudo converge a uma mesma máxima: o poder é aceito quando não é exercido às últimas consequências.

Justificativas são bonitas, mas pessoas não vivem e morrem de justificativas da mesma forma que morrem se forem executadas pelos seus senhores. No final das contas, nós engolimos sapo porque acreditamos que isso nos machucará menos que as alternativas.

Quando acreditamos, em outras palavras, que nossos opressores terão misericórdia.

Como escreve Bull (grifo meu):

Há muitas coisas para que isso pode ser um alicerce instável, mas a política não é uma delas, pois, se nada mais, a política é um esquema coletivo para manter (pelo menos algumas) pessoas vivas e funcionantes quando elas poderiam de outra forma, estar mortas ou sofrendo. Os corpos dos vulneráveis são sempre sua matéria-prima. 

É por causa disso que tantas aldeias em Dororo aceitam formar pactos com monstros. Sacrificar crianças para uma mariposa gigante está bem longe de ser justo. Mas é melhor, a seus olhos, do que morrerem todos devorados.

É também por isso que outros tantos camponeses se recusam a obedecer aos samurais – que, muito mais do que monstros, tem o “direito” nominal para governar.

Yajiro, o mineiro rebelde do episódio 7, é o exemplo mais claro. Sob o jugo de um senhor que trabalha seu povo até a morte, ele opta pela incerteza da liberdade. E leva consigo todos os companheiros que consegue.

Curiosamente, é também isso que permite a Hyakkimaru ter sucesso em sua vingança. Embora nem sempre consiga controlar seus instintos, o jovem é incrivelmente seletivo na sua violência. Ao longo de sua jornada, ele evita antagonizar humanos e mesmo monstros que não lhe queiram o mal.

Muitas das suas lutas, com o duelo contra a espada possuída no episódio 4, teriam sido muito mais fáceis se ele se permitisse matar a todos, indiscriminadamente. É pouco provável, no entanto, que ele chegasse vivo até o fim se levasse à cabo esta violência sem freios.

Sim, é possível dominar os outros com o medo e a brutalidade. Mas brutalizar os outros significa tratá-los como inimigos, e ninguém pode sobreviver em luta armada contra o planeta inteiro.

“Sem misericórdia nós estamos mortos” diz Bull “porque ninguém pode se defender com sucesso de toda ameaça em todo momento.”

Se quisermos que a sociedade seja algo além de uma guerra de todos contra todos, é necessário algo além do poder nu e cru: O potencial de mudar o mundo que Biwamaru enxergou em Dororo no episódio final. E que nós observamos a cada passo de sua jornada, em cada ato de misericórdia.

Daigo não entende essa verdade, e termina sua história destituído, coberto de sangue. Hyakkimaru a entende, e é por isso que poupa sua vida na hora final.

“Nessa sua energia” o pai reconhece “Há algo que até os demônios cobiçaram”.

Não o poder de cobrar um olho por um olho, mas de plantar as sementes de um futuro sem ódio.

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4 coisas que “We. The Revolution” nos ensina sobre populismo https://www.finisgeekis.com/2019/05/01/4-coisas-que-we-the-revolution-nos-ensina-sobre-populismo/ https://www.finisgeekis.com/2019/05/01/4-coisas-que-we-the-revolution-nos-ensina-sobre-populismo/#comments Wed, 01 May 2019 17:25:02 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21746 “Populismo” é uma palavra quente do momento. Em vários países, pelas mais variadas razões, pessoas têm tomado as ruas, as urnas e (em alguns casos) as armas contra as injustiças do status quo.

Até agora, o resultado foram políticos ineptos ou demagogos afastados do mainstream eleitoral. E a sensação desconfortável de que algo deu errado.

Se em 2013 ações de massa eram vistas com olhos otimistas, hoje em dia não são poucos os que encaram multidões com receio. A ideia de que pessoas unidas são capazes de muito – inclusive, de muita besteira – nunca despertou tanta desconfiança.

Não é de se espantar, portanto, que esses medos fossem chegar aos games.

We. The Revolution, da polonesa Polyslash, não é o primeiro game a refletir sobre os perigos de uma turba irada. Nem de situá-los em um episódio histórico. No caso, a Revolução Francesa.

Ele é, no entanto, um dos retratos mais contundes de um país à mercê de seu povo.

O game nos coloca nos pés de Alexis Fidèle, um juiz do tribunal revolucionário. No início, agimos como meros funcionários da lei, enviando bandidos comuns à cadeia. Com o tempo, percebemos que algo sinistro nos espera das sombras.

Na medida em que o Terror pinta Paris de vermelho, Fidèle se verá jogado no olho do furacão. Por meio de suas mãos, protagonizaremos os maiores eventos da Revolução Francesa, do julgamento de Luís XVI à batalha do 13 Vendemiário, que lançou Napoleão Bonaparte à vida política.

Mais do que uma aula de história, o jogo é uma verdadeira lição sobre as causas – e consequências- do populismo.

1) A ação humana é limitada. Suas consequências não

 

Um dos maiores apelos do populismo é o sentimento de que quase tudo é possível. Os problemas do mundo existem não por serem complicados, mas única e exclusivamente por má vontade. As soluções estão escondidas em uma pasta, debaixo do traseiro de políticos incompetentes. Cabe ao povo trazê-las à luz do dia.

Em We. The Revolution, é fácil pensar que nós, também, desfrutamos desse poder. Em especial quando, com a força de guilhotina, conseguimos implementar mudanças que nem os próprios revolucionários foram capazes de fazer.

Essa impressão, infelizmente, logo se dissipa.

Por um lado, We the Revolution coloca em nossas mãos um poder que burocrata nenhum seria capaz de exercer. De juiz arbitrando casos pequenos logo nos transformamos em um carrasco, padrinho político, mestre do submundo e até general.

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Ao mesmo tempo, nossa agência – nossa capacidade, efetiva, de escrever nossa própria história– diminui a cada turno.

Cada veredito que assinamos provoca uma reação nos revolucionários, nos monarquistas e nas pessoas comuns. Se qualquer um destes grupos se sentir incomodado, o resultado pode ser uma facada das costas.

Não que temos tempo para pesar nossas decisões. Tão cedo nos familiarizamos com suas mecânicas o jogo introduz um relógio. Cada pergunta que fazemos torna o povo mais irrequieto. Se a insatisfação passar dos limites, recebemos uma penalidade severa à nossa reputação.

Mesmo que você tente jogar como um funcionário “justo” da Revolução, cedo ou tarde parará de preocupar com o “certo” e o “errado”. Afagar as facções, decapitando bodes expiatórios e inocentando aliados, se torna nossa única prioridade. Não respeitá-la é arriscar o game over.

Aqueles que criticaram o jogo por “railroading” não entenderam o tipo de obra com que estão lidando. Nem, talvez, a mensagem que quis passar.

We. The Revolution é um game em que parecemos fazer muito, mas que nos constrange mais e mais a cada mecânica que introduz. Uma sensação não muito diferente daquela sentida por revolucionários da vida real, à mercê de um movimento que eles podem ter criado, mas nem por isso sabem controlar.

Manifestação dos gilets jaunes na França. Fonte

Qualquer semelhança com populistas dos nossos tempos, que prometem mundos para depois ceder aos piores vícios do establishment, não é mera coincidência.

2) A tirania dos melhores leva à ditadura dos piores

Para o irlandês Edmund Burke, o maior crítico da Revolução Francesa, um dos principais crimes do movimento foi ter empoderado uma classe vil: os advogados e homens de lei. A mesma classe que encarnamos na pessoa de Alexis Fidèle ao longo de We. The Revolution:

Quem poderia reivindicar a si que esses homens, subitamente e, como o foram, por encantamento, retirados dos mais humildes escalões da subordinação não acabariam intoxicados por sua grandeza despreparada? Quem poderia conceber que homens que são habitualmente bisbilhoteiros, ousados, sutis, ativos, de disposições litigiosas e mentes inquietas reincidiriam facilmente na sua antiga condição de obscuro antagonismo e laboriosa, baixa e improfícua trapaça? Quem poderia duvidar que, às custas do Estado, de que eles conheciam nada, eles deveriam atender a seus interesses pessoais, de que eles conheciam demais?

Burke tinha seus próprios motivos para querer o povo comum longe do poder. Poucos dos quais, eu imagino, soam muito convincentes aos seus leitores contemporâneos. Mesmo assim, é difícil ler seu Reflexões sobre a Revolução Francesa sem pensar em Alexis Fidèle.

O jogo abre com Alexis e seu mentor, Raymond Dévoyé, chegando ao fórum após uma noite de bebedeira. Raymond vomita no chão e limpa sua boca na bandeira francesa.

Uma vez no tribunal, descobrimos que o “caso”, em questão, é uma lavagem de roupa suja entre os próprios Fidèle. Seu caçula, Fréderic, bateu em um colega que acusou seu pai de ser um bêbado.

Antes mesmo de aprendermos suas mecânicas, We the Revolution nos ensina que seu protagonista é um beberrão irresponsável, que não consegue botar ordem em sua própria casa.

Horas depois, veremos esse mesmo beberrão à frente da guilhotina, controlando o destino de milhares de parisienses.

Fidèle não é o único. Os rivais que enfrenta ao longo do jogo são pessoas terrivelmente normais, motivadas pelos interesses mais fúteis. Um bufão controlado pela esposa. Um bispo que paga de ateu para escapar da guilhotina. Um político corrupto que deseja construir uma ponte. Um militar cabeça quente que decide dispersar um protesto na bala.

Que milhares de pessoas tenham de morrer por canalhas tão comuns não seria tão notável se a própria revolução não fosse obcecada com o fim mágico de todos os vícios humanos. Um delírio de virtude personificado por seu líder, o “incorruptível” Maximilien Robespierre.

Enebriados pela própria grandeza, Fidèle e seus comparsas não entendem que eles próprios podem ser parte do problema. E que o sistema que defendem, feitos para homens perfeitos, não tem contingência para o erro humano.

Os “revolucionários”, afinal, são sempre bons, de forma que os ruins só podem ser monarquistas disfarçados. Nada diferente de tantos “-ismos” contemporâneos, que se livram de militantes problemáticos rotulando-os de apóstatas. Não sem antes usar de seu serviço sujo para levar à cabo as ambições do movimento.

E se os revolucionários são sempre bons, também a “Revolução” deve ser sempre boa. De forma que se algo está errado, deve ser culpa do que veio antes. Mesmo que este “antes” sejam as regras básicas que nos separam da anarquia.

Segundo um outro Alexis, o problema não é a hipocrisia, mas o idealismo em excesso:

Por mais divididos que eles pudessem ter estado no resto do caminho, todos eles se agarraram a esse mesmo ponto de partida: todos eles pensaram que era correto substituir os costumes complexos e tradicionais que guiavam a sociedade de seu tempo com as regras simples e elementares emprestadas da razão e da lei natural.

Impedidos de participar da política, as pessoas da época cultivaram ideias infantis sobre como se rege uma sociedade.

As pessoas de hoje não têm a mesma desculpa. Mesmo assim, elas ainda invocam delírios parecidos, acreditando que qualquer problema pode ser resolvido se eles tiverem carta branca para apagar as regras que não entendem.

Mal sabem eles que a borracha será brandida não por eles próprios, mas pelos Alexis Fidèles da vida. E que, sem as normas retrógradas para proteger seus direitos fundamentais, apenas a boa-vontade dos carrascos os salvará da guilhotina.

3) O pessoal é político. O inverso… não necessariamente.

As víboras da revolução e a voz da turba não são as únicas pressões com que Fidèle precisa lidar. Em We. The Revolution, precisamos também cuidar de uma família que está prestes a se desintegrar.

Alexis e sua esposa Mathilde vivem um casamento complicado. Seu filho mais velho, Bernard, é um revolucionário apaixonado, enquanto que seu pai, Alaric, vê a política com receio. Alexis é seu filho mais novo. O primogênito, Bruno, teve o nome manchado na justiça e foi enviado para morrer nas guerras da revolução.

Do conflito entre essas personagens surge um drama poderoso que servirá de enredo à carreira de Fidèle.

Cada decisão que tomamos afeta sua vida pessoal de alguma forma. Alguns réus despertarão a raiva ou a simpatia de sua família. Uma sentença desfavorável pode ganhar seu favor – ou perdê-lo para sempre.

Quanto mais Fidèle paga pelos vícios da revolução, mais difícil fica conciliar as posições de de pai e juiz. Infelizmente para ele, as engrenagens da política giram independente de seus esforços.

Em dado momento, percebemos que investir em sua vida pessoal é uma causa perdida. A Revolução cobra tudo e não oferece nada em retorno. Nada, pelo menos, que sirva de alento a sua família.

Um biscoito para quem, ao vestir os sapatos de Fidèle, não se lembrou das tantas famílias reais que a última eleição desuniu. Divididas por ideólogos que pouco se preocupam com as pessoas que os apoiam, e que, nos momentos de dificuldade, jamais erguerão um dedo para consertar as relações que destruíram.

De tão preocupados que estivemos arrumando briga com nossa família, é capaz de termos esquecido que é de rixas como essas que extremistas nascem.

Sem ninguém para acolhê-los, militantes têm as duas orelhas livres para escutar as ideias mais odiosas. E rancor de sobra – contra o sistema, mas também contra seus entes queridos – para pô-las em prática.

4) O rancor é o motor da história. Ignorá-lo é ser seu cúmplice

“Nós estávamos encantados pela ideia da liberdade” diz Fidèle no início do jogo. Com o filho pequeno no pescoço, ele observa um homem ser linchado e enforcado em praça pública. Ao seu lado, uma mulher ri do espetáculo.

Não é preciso muito para adivinhar que bem mais que uma “ideia” é necessária para que as coisas cheguem a esse ponto. Ideias são bonitas, mas, para motivar as pessoas a fazer o pior, é necessário algo mais forte.

We. The Revolution, de fato, pinta a Revolução como uma batalha de rancores. Rancores do povo, manipulado por demagogos convincentes, mas também rancores pessoais, na medida em que Fidèle acumula vítimas.

Nas cutscenes do jogo, esses sentimentos são representados como uma infecção. Um vírus, um câncer rubro que se alastra do agressor ao agredido, do demagogo ao doutrinado até enlouquecer toda a sociedade.

Não são poucos os movimentos que prometem acabam com as injustiças, extinguir os privilégios, punir os culpados.  Mal sabem eles que até boas ações podem levar ao inferno. E que a melhor das intenções não impede a bala de matar um inocente, os direitos de uma pessoa de serem violados, um indivíduo a pagar por crimes que não cometeu.

Essas pessoas não estão interessadas em “males menores”, “fatalidades” ou “reações legítimas”. E ao se depararem com ideólogos arrogantes, protegidos por um sistema cúmplice, elas buscarão os ouvidos de quem estiver disposto a escutá-las. Mesmo que estes sejam os piores fanáticos que a humanidade produziu.

We, the Revolution é a parábola perfeita para quem acredita que “socar nazistas” (ou qualquer outro indesejável) é o caminho para construir uma sociedade melhor. Levando esta estratégia a cabo, Fidèle transforma uma Paris recém-libertada  em uma zona de guerra à mercê da barbárie.

A salvação, quando chega, vem pelo fuzil de um certo militar. Um homem, o próprio jogo nos lembra, que estaria fadado a se tornar um ditador.

“Quem será o próximo?” pergunta o narrador.  Ele não está falando de Napoleão Bonaparte. A pergunta, afinal, não é para Fidèle. É para nós.

We. The Revolution é uma fábula para nossos tempos. Uma crítica incisiva – e emocional – sobre os danos da polarização política no espírito humano.

Não é uma coincidência que o game tenha vindo justamente da Polônia, país que conhece, melhor que poucos, o que é viver sob o jugo da tirania – venha ela da esquerda ou da direita. E que sofre, nos dias de hoje, com sua própria dose de populismo.

Passeata do Ruch Narodowy, partido de extrema-direita polonês. Fonte

De This War of Mine a Frostpunk, passando pelo monumental The Witcher, a indústria polonesa tem mostrado ao mundo que tem uma voz própria. Calcada na moderação, no perdão, no apelo – quase desesperado – aos melhores anjos da nossa natureza.

Resta saber se estamos dispostos a escutá-la.

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Os super-heróis sempre foram politizados? https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/ https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/#respond Wed, 27 Jun 2018 12:16:19 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20248  

Temos que conceder aos quadrinhos. É fácil ser tachado de diversão vazia. Também é fácil ser acusado de panfletagem, provocação barata, veículo de doutrinação política.

Mais difícil, e o que os comics americanos vêm fazendo há décadas, é ser criticado pelas duas coisas ao mesmo tempo.

Todos nós já escutamos a acusação. HQs estão desesperadas atrás de relevância, agarrando-se a qualquer manchete para alavancar vendas. Da guerra na Síria à eleição de Donald Trump, não há um factóide que escape aos super sentidos dos heróis.

Mas teria sido sempre assim?

Críticos da politização os quadrinhos dizem que não. Segundo eles, quadrinhos estão se tornando mais politizados, histéricos e rasos. O fenômeno é novo – e poderia ser fatal. Se as coisas não voltarem rápido ao curso, o futuro da indústria poderia estar em risco.

Se isso é verdade, como explicar a palhinha de Barack Obama como personagem de Homem Aranha em 2009? Ou o retrato de um Doutor Destino em prantos após o atentado às Torres Gêmeas?  Ou ainda a HQ que transformou Magneto em um sobrevivente do Holocausto?

Causas mudam, pessoas envelhecem e partidos se renovam. Mas os quadrinhos parecem ter um flerte com a política que vai muito além do momento atual.

Essa é a opinião de Robert Jewett e John Lawrence no provocante Capitão América e a Cruzada contra o Mal. Escrito no calor do 9/11, mas ainda relevante aos dias de hoje, o livro argumenta que super-heróis sempre foram politizados – e ninguém deveria se orgulhar disso.

Para Jewett e Lawrence, a politização dos heróis não se deve à geração millenial, à Guerra ao Terror de Bush, ao Civil Rights Movement, nem mesmo à Guerra Mundial que deu vida a Capitão América e tantos outros. Ela vem de antes, muito antes de existirem quadrinhos. Muito antes, na verdade, até de existir um Estados Unidos.

As colônias inglesas na América, eles explicam, foram assentadas por Puritanos, uma facção radical dos cristãos britânicos que se viam na missão de reformar a sociedade – e, especialmente, o Novo Mundo.

Essa fé exacerbada deu origem a duas mentalidades muito diferentes entre si, mas que marcaram a história dos EUA até os dias de hoje.

A primeira foi a do realismo profético, a ideia de que a sabedoria de Deus está além do nosso alcance, e ninguém deve tomar para si o pedestal de executor de Sua vontade. É ideia de que demos julgar antes de agir e de que, não sendo oniscientes, precisamos tolerar os que pensam diferente.

Para os autores, essa é mentalidade por trás da tradição constitucional dos Estados Unidos, da desconfiança em relação a consensos e, posteriormente, do pensamento de autores que valorizavam a tolerância e a pluralidade intelectual.

A segunda foi a do nacionalismo zelota, a ideia de que os americanos seriam um povo escolhido, uma Nova Israel encarregada de purificar o mundo de hereges. É a ideia de que os valores que defendem não são apenas certos, mas divinos, e que preço nenhum é grande demais para protegê-los.

Foi do nacionalismo zelota, segundo eles, que veio a bagagem ideológica do Destino Manifesto, a conquista do Oeste, a Trilha das Lágrimas e a erradicação de povos indígenas. E, mais recentemente, o longo histórico de intervenções militares em nome do “bem”, da invasão das Filipinas à Guerra do Iraque, passando pelo Vietnã e as ditaduras na América Latina.

“Progresso Americano” de John Gast (1872)

As duas tradições ultrapassaram sua origem religiosa e ganharam espaço na cultura popular. O realismo profético deu origem a personagens como Atticus Finch de O Sol é Para Todos e o Jurado No 8 de 12 Homens e uma Sentença.

“Heróis” que não vestem capas e acreditam no jeito “certo” de se resolver as coisas. Que acham, como o Shepard “Paragon” de Mass Effect, que não podemos deixar o medo comprometer quem nós somos.

Gregory Peck como Atticus Finch em “O Sol é Para Todos”

O nacionalismo zelota, por outro lado, ganhou vida com os caubóis, justiceiros e vingadores encapuzados. São os pistoleiros de filmes de faroeste, policiais vigilantes como Dirty Harry e, é claro, super-heróis.

Eles acreditam que os fins justificam os meios e que o mal não merece tolerância. Aos vilões, só a violência.

O Complexo de Capitão América

Para Jewett e Lawrence, essa mentalidade deu origem ao que chamam de complexo de Capitão América: o uso de meios não-democráticos para defender valores democráticos.

O zelota faz a guerra em nome da paz, “matando milhares para salvar milhões”.  Ele apoia a censura em nome do diálogo, silenciando as pessoas “erradas” para dar voz às “certas”.

Como um delírio imaginado por George Orwell, ele é um duplipensamento ambulante, rebatendo ódio com ainda mais ódio, distribuindo socos, tiros e mísseis em nome do amor e tolerância.

O herói zelota acredita que seus excessos devem ser perdoados, pois ele luta em nome do bem, e seus inimigos são do mal. Ele não é o agressor, e sim a reação, a resistência contra as forças malignas da sociedade. Foram os vilões que atacaram primeiro, oprimindo fracos e silenciados, e agora eles terão o que merecem.

É por isso que o Capitão América usa um escudo, e não uma espada, bastão ou arma de fogo. É por isso que os heróis de Star Wars são da Rebelião ou da Resistência, e “Impérios” sempre são do mal.

Que o escudo antimísseis sugerido pelo presidente americano Ronald Reagan em 1983 se chamasse “Star Wars” não é mera coincidência. Essa é a lógica por trás da política externa dos EUA, que sempre se enxergaram como o defensor da luta contra uma conspiração maior, seja o nazismo, o comunismo ou o jihadismo.

Mas isso não é privilégio de uma única ideologia de governo. Jewett e Lawrence são cuidadosos em frisar que o mesmo pensamento pode ser visto em todos os lugares. Direita e Esquerda, Republicanos e Democratas vestiram a camisa dos zelotas em momentos diferentes da história. Seja para ajudar tolher direitos em nome da segurança ou para sacrificar regressistas nas chamas da revolução.

O importante, dizem eles, não é a causa defendida, mas seus meios. E é aí que super-heróis encontram a política, com consequências trágicas para todos nós.

Super-heróis e o “Fascismo Pop”

O mais fantástico nas histórias de herói não são os próprios heróis, mas o fato de que seu mundo não funciona sem eles.

No universo das HQs, o sistema opera mal. As leis servem para proteger bandidos e dificultar a vida dos justiceiros. Tribunais são corruptos. A polícia é fraca ou amedrontada. Afinal, que pode fazer um mero soldado contra super vilões e ameaças galácticas?

Para obter justiça de verdade, precisamos de pessoas excepcionais, mais fortes, mais capazes, mais corretas. Heróis que vem de fora e que conseguem resolver nossos problemas num piscar de olhos, desde que tiverem espaço para fazer seu trabalho.

Esses heróis têm o poder para destruir o mundo, mas eles não farão isso, pois sabem mais que a gente. Afinal, eles não são apenas mais poderosos que gente comum, mas também melhores como pessoas. E de tão melhores, e tão mais sabidos, esses Übermenschen são a última esperança contra o mal que nos aflige.

O universo dos heróis é um mundo de medo e submissão, em que as pessoas não têm escolha senão rezar por uma intervenção divina. Que vários heróis (e vilões) tenham sido interpretados como divindades de algum panteão é uma consequência obrigatória deste cenário.

O problema de se tirar essa delírio do Velho Testamento e aplicá-lo nos dias de hoje – de se fazer, enfim, política com super-heroísmo – é que essas ideias não se misturam. Pois elas já foram tentadas uma vez, e seus resultados foram devastadores.

Jewett e Lawrence chamam de “Fascismo Pop” a mistura de nacionalismo, vigilantismo e repúdio ao sistema que informa a ética dos super-heróis. Ela é, na sua opinião, um desenvolvimento extremo do Complexo de Capitão América e do motivo pelo qual o velho herói deveria pendurar o escudo.

Não errou a Marvel ao pintar o Capitão América com as cores da Hydra. No fundo, o herói sempre foi um fascista.

Se você, como fã de quadrinhos, ficou furioso ao ler isso, saiba que Jewett e Lawrence não foram os únicos a chegar nessa conclusão. A sacada não escapou a Michael Chabon, autor de um dos mais premiados romances sobre quadrinhos e um dos roteiristas de Homem Aranha 2.

Em sua fábula vencedora do Pullitzter, Chabon descreve um quadrinista judeu dos anos 1930 que percebe que seu herói se tornou a imagem daqueles que mais detesta:

“Joe Kavalier não foi o único dos pioneiros dos quadrinhos a perceber a imagem refletida do fascismo inerente no seu super-homem anti-fascista – Will Eisner, outro judeu quadrinista, deliberadamente vestiu Falcão Negro, seu herói dos Aliados, em uniformes modelados nas elegantes roupas com a cabeça da morte da Waffen-SS. Mas Joe foi talvez o primeiro a sentir a vergonha de glorificar, em nome da democracia e liberdade, a brutalidade vingativa de um homem muito forte. (…) Agora ocorria a Joe pensar se tudo o que eles haviam feito, desde o começo, não era ceder aos seus piores impulsos e fomentar a criação de uma nova geração de homens que veneravam a força e a dominação.”

O que isso diz sobre nós?

Capitão América e a Cruzada contra o Mal é um livro urgente, persuasivo e desconfortável. Mesmo assim, não pude afastar a impressão de que sua tese é um tanto convincente demais.

Jewett e Lawrence dizem que a febre dos heróis implica num culto a pessoas excepcionais, que estão acima das leis e não se integram ao mundo que salvam.

Como conciliar isso com a mensagem de empoderamento das histórias contemporâneas e o princípio, defendido por filmes, convenções, cosplayers e caridades, de que todos podemos ser heróis?

Heroes’ Alliance, grupo de cosplayers que visita crianças em hospitais infantis.

Ou o suposto nacionalismo de sua ideologia com o globalismo militado por tantos políticos e artistas mainstream? E que ganha, às vezes, contornos tão violentos quanto os dos zelotas de outrora?

Jewett e Lawrence publicaram seu livro em 2003, pensando nas consequências nefastas do contraterrorismo de George W. Bush. Foi o mesmo dilema que inspirou o célebre Guerra Civil da Marvel: a cilada 22 entre um governo tirânico e uma ameaça que ninguém sabia como enfrentar.

Seu objeto não são os quadrinhos em si, mas os desmandos da política americana – e suas similaridades com a cultura pop. Só que a cultura pop já não é mais a mesma, e sua mensagem, que já conta 15 anos, precisa de uma atualização.

O que nos resta daqui para a frente?

“Dois caminhos estão abertos para aqueles que gostariam de reformar a sociedade americana de hoje, ou aceitar sua missão de servir ao mundo. Há o caminho da violência redentora, que pode tomar a forma da grande revolução ou da cruzada. Este caminho promete despedaçar a injustiça com uma fúria virtuosa, punindo os malfeitores, emancipando os explorados e tornando o mundo seguro para a bondade. Mas também há o caminho do amor redentor. Sua promessa é menos definida, e seus resultados, mais imprevisíveis. Pois, quando o amor é exercitado, pessoas se tornam livres. Novos impulsos despertam que ninguém pode dominar em antecipação. Este, então, é o caminho dos audaciosos e generosos de espírito, aqueles que conseguem viver sem ídolos e encarar um futuro incerto sem medo.”

Jewett e Lawrence provavelmente apostavam na segunda opção. E, de fato, houve muito avanço. Não foram poucos os quadrinistas que reinterpretaram seus heróis, atentando às suas contradições.

Fora dos quadrinhos, o imaginário geek também conta com bons exemplos. Que uma personagem como Geralt de Rivia pôde nascer dos escombros do comunismo é prova de que o realismo profético tem voz na cena nerd.

Mas heróis zelotas – com ou sem capa – ainda existem, e a linguagem da violência, da fúria virtuosa contra os “do mal”, ainda persevera em quadrinhos, séries, filmes e tweets de criadores.

Num presente em que a coexistência é uma necessidade e os problemas não se resolvem mais com o porrete, esta retórica é tão problemática quanto é atrasada.

Sim, o futuro é incerto. Mas talvez, como dizem Jewett e Lawrence, seja essa a grande prova de nosso tempo. A capacidade de viver sem heróis, e sem deixar, tal qual Comandante Shepard, que o medo leve embora nossos princípios.

 

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Uma aventura no Japão #2: os fantasmas de Yasukuni https://www.finisgeekis.com/2017/06/09/uma-aventura-no-japao-2-os-fantasmas-de-yasukuni/ https://www.finisgeekis.com/2017/06/09/uma-aventura-no-japao-2-os-fantasmas-de-yasukuni/#respond Fri, 09 Jun 2017 16:53:39 +0000 http://finisgeekis.com/?p=16835 Esse artigo é parte de uma série. Para ver os demais, clique aqui.

Alguns passeios são óbvios. Outros, nos fazem coçar a cabeça em desassossego.

No Japão, esse é o caso do santuário Yasukuni.

1200px-Yasukuni_Shrine_201005.jpg

Trata-se de um templo dedicado aos heróis militares que morreram em nome do Japão.

Até aí, nada demais. O problema é que, entre os “homenageados” estão 14 criminosos de guerra classe A, incluindo Hideki Tojo, primeiro ministro fascista que liderou o país durante a segunda guerra.

Para entender o quão chocante isso é, imagine um monumento aos heróis da Alemanha em Berlim, com Hitler e Himmler entre os imortais consagrados.

Yasukuni é uma polêmica a céu aberto, que virá e mexe azeda a relação do Japão com seus vizinhos. Cada visita que o santuário recebe de um primeiro ministro (e acredite, foram mais de uma) é um incidente diplomático.

As objeções vêm sobretudo de chineses e coreanos, que dizem que o monumento esconde as pavorosas atrocidades que os japoneses cometeram contra seus povos. É fácil  simpatizar: a China foi o país com o segundo maior número de mortos de toda a guerra, atrás apenas da União Soviética.

Não é exatamente um passeio good vibe, muito menos um ponto turístico no topo da lista de qualquer guia. Entretanto, como historiador, senti que era meu dever enxergar esse monumento com meus próprios olhos.

O que encontrei foi de arrepiar, mas também foi fascinante.

A primeira coisa que chama a atenção, ao chegar da estação Ichigaya do metrô, é seu tamanho. Yasukuni não é apenas um santuário, mas um complexo que inclui até mesmo um teatro noh.  Mesmo visitando num dia de chuva, seus portões são uma visão de peso.

Não mentiria se dissesse que foi o templo mais imponente com que cruzei no Japão. E olha que não foram poucos.

Mais importante (e  controverso) é o museu militar Yushukan, que faz parte do complexo. Sua coleção possui legendas em inglês, mas não se engane: você não verá muitos ocidentais no passeio. Ao explorar as galerias, não é difícil entender o porquê.

O museu possui uma exibição sobre os primórdios da guerra no Japão, da antiguidade até o período Edo (1603-1868). A maior parte da sua exposição, contudo, diz respeito à modernização do Japão – e sua escalada como potência global no século XX.

À primeira vista, há muito mesmo do que se orgulhar. Em 1900 afinal de contas, um outrora primitivo Japão marchava lado a lado com as potências ocidentais. Em 1905, tornou-se a primeira nação não-ocidental a derrotar um império europeu. Em 1941, sua marinha era uma das mais formidáveis e modernas do mundo.

Suisei yasukuni.jpg

Planador suicida Ohka e dive-bomber Suisei, em exposição no museu Yushukan

O que a exposição não fala (mas deixa subentendido) é que a cruzada do Japão contra o “imperialismo ocidental” fora feita na tentativa de imitá-lo. E que sua visão de “prosperidade asiática” implicou em um dos regimes mais sanguinários da história da humanidade.

A invasão japonesa da China, que ocupa boa parte da exibição, é mascarada como uma série de “incidentes” entre tropas japoneses e insurgentes chineses – os últimos, obviamente, sempre os agressores.

Suas explicações vão do patético (ao dizer que o Chi Ha era um tanque de respeito) ao humilhante (ao implicar que os civis massacrados no Estupro de Nanquim eram soldados chineses disfarçados).

O museu reitera em quase todas as salas que o Japão sempre foi uma “nação de paz”. Seus painéis, contudo, celebram baixas americanas na Guerra do Pacífico, e seus corredores estão decorados com fotos de Wildcats abatidos por Zeros.

O custo humano da beligerância de Tojo mal é mencionado. Pelo contrário, fãs do ditador podem conferir uma bandeira autografada por ele e pelos demais réus do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, o equivalente japonês de Nuremberg.

Não, não estou brincando. Isso é sério, e faz parte da exposição. O museu não permite fotos da maior parte de seu acervo (por que será?), mas eu por sorte guardei o flyer:

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Repare que o museu diz “supostos” criminosos de guerra, sugerindo que o Tribunal Internacional não foi um julgamento legítimo.

Yasukuni é um monumento ao vitimismo. É a apologia a uma ditadura que arruinou a vida de seus cidadãos, que esteve tão certa de sua vitória que, 70 anos depois, ainda não consegue entender como perdeu.

Ao rondar pelos destroços de torpedos e aviões, confesso que fantasiei em vê-los tomando vida e se integrando à natureza, como os robôs de Laputa. O museu faz o pacifismo caricato de Miyazaki finalmente ganhar sentido, e mostra como a mensagem de seus filmes, às vezes criticada por ser programática, é obrigatória em seu país de origem.

laputa-castle_crop.jpgNesse sentido, é digno que a parte mais honesta e tocante da exposição seja justamente o lixo.

Capacetes, cantis e armas destruídas, espalhados às centenas. Um epitáfio aos milhões de japoneses mortos na selva em nome de um regime odioso.

DSC_6391

DSC_6390Tal como nos filmes de Miyazaki, o orgulho militarista foi ao Japão sua asa de Ícaro. E é ao pó, à ferrugem e a sujeira que esteve fadado a se estatelar.

the wind rises end

Uma aventura no Japão continua na próxima segunda. Fique de olho!

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“The Crown”: Por que Elizabeth II é tão importante https://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/ https://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/#respond Tue, 06 Dec 2016 21:10:01 +0000 http://finisgeekis.com/?p=13402

Algumas heroínas são óbvias. Outras, nem tanto.

Todos nós estamos acostumados a garotas mágicas e guerreiras de capa e collant. Nos últimos tempos, anti-heróinas e vilãs carismática também marcaram presença. Não parece ter sido o suficiente para a Netflix, que resolveu pensar fora da caixa.

E nos trazer uma heróina bastante diferente.

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À primeira vista, Elizabeth II não parece ser uma pessoa muito emocionante. Para nós, que nos acostumamos a encará-la como uma velhinha simpática, é difícil imaginá-la fora das colunas sociais. Muito menos como protagonista de uma nova série, prevista para durar seis temporadas.

Apenas à primeira vista.

Como nos mostra o seriado The Crown (que contém até um brasileiro entre os produtores), Elizabeth II foi (e ainda é) uma das mulheres mais poderosas da atualidade, com um dedo em vários dos mais importantes episódios históricos do século XX.

Não deixem os vestidos, jóias e corgis enganá-los. A rainha é badass.

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Bem, não exatamente desse jeito

“Mas como?” muitos, inclusive eu próprio, já devem ter perguntado. O cargo de monarca não é apenas cerimonial? O que as fofocas sobre o Príncipe William têm a ver com grandeza e heroísmo? Porque os britânicos insistem na monarquia, enquanto que tantos outros países já a abandonaram?

Acontece que há muito mais na rainha do que coroas e palácios. A “Coroa” que dá nome ao seriado é muito mais que uma jóia. É um princípio tão importante que, sem ele, o Reino Unido não consegue funcionar.

É o que me conta meu grande amigo Rafael Andrade, que conhece o assunto melhor que ninguém.

Intrigado pela série, resolvi procurá-lo para escrever um artigo especial para o finisgeekis, nos contando porque Elizabeth II é tão importante – e porque nós, ao assistir The Crown, estamos perdoados se terminarmos de queixo caído.

Confiram abaixo:

A heroína que a Inglaterra merece

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Qual, afinal, é a função da rainha? A resposta mais simples é que ela desempenha um papel constitucional na Inglaterra.

Claro, antes de comentar isso, é preciso entender o que é exatamente, a constituição britânica.

Ao contrário da maioria das monarquias constitucionais do mundo, o que torna o Reino Unido um caso ainda mais sui generis é que o país não possui uma constituição formal. Aí você pode se perguntar: mas pera aí, o tempo todo eles falam na constituição durante a série, o que isso quer dizer?

Pois bem, o que quer dizer é que, no Reino Unido, ao invés de um só documento constitucional rígido, como funciona nos Estados Unidos, no Brasil e praticamente todos os outros países do mundo, quatro fontes de entendimento constitucional são adotadas:

Elas são a common law (leis baseadas na tradição e nas decisões tomadas anteriormente por juízes e cortes de justiça), a statute law (leis estabelecidas para legislar pontos importantes que contrariem a common law ou que precisem de legislação mais rígida), convenções parlamentares (que tratam do funcionamento do parlamento) e, por fim, os works of authority (uma coleção de obras fundamentais para o entendimento da lei, incluindo “A Constituição Inglesa” de Bagehot, que é citada o tempo todo na série e que é uma das obras estudadas por todos os herdeiros do trono inglês, como também vimos na série).

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Como não poderia deixar de ser, todas as quatro fontes de poder  são intimamente ligadas à figura do soberano.

A common law vem diretamente da sua autoridade como representante das tradições inglesas, chefe da Igreja Anglicana e, até 2005,  por ter a prerrogativa de apontar o chefe do sistema judiciário inglês, sob aconselhamento do primeiro ministro.

A statute law, assim como a common law, também provém da autoridade do soberano, mas de maneira diferente. Apesar de serem aprovadas em última instância pelo monarca, essas leis tradicionalmente limitam o poder que ele exerce.

Esse tem sido o caso desde a Magna Carta de 1297 até o recente ato parlamentar de 2011. Apesar disso, é a autoridade e continuidade da instituição da monarquia que permite que documentos do século XIII ou XVII sejam citados em tribunais britânicos até os dias de hoje.

As convenções do parlamento e os works of authority, apesar de não serem ligados diretamente à monarquia, também dizem respeito ao soberano, na medida em que discutem suas prerrogativas e a própria natureza do poder real.

Não é pouca coisa, e não é à toa que George VI exige que Elizabeth passe toda a sua infância estudando apenas esses fundamentos. A jovem rainha pode se incomodar por não  ter estudado conhecimentos gerais, mas tudo existe por um motivo.

Poder apenas simbólico, mas nem tanto

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Mas como funciona o poder real? O que Elizabeth pode e não pode fazer?

Os direitos constitucionais mais importantes do soberano, aqueles que são aplicados com maior frequência, são: o direito de ser consultado, o direito de encorajar e o direito de avisar (que também foram teorizados por Bagehot).

Esses direitos representam a influência pessoal que o monarca, símbolo das instituições do Reino Unido pode ter em suas reuniões com o primeiro-ministro, chefe do governo de Sua Majestade e são vistos com clareza durante a série.

Ao longo dos episódios, Elizabeth se reúne diversas vezes com Churchill, que acaba se considerando uma espécie de professor da jovem rainha.

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Quanta influência que o monarca de fato exerce no governo do país é difícil de medir. Afinal, nós, meros mortais, não temos acesso exato ao que é conversado entre as quatro paredes do Palácio de Buckingham entre o primeiro-ministro e seu soberano.

Temos, no entanto, vários indícios de um poder de influência forte, apesar de exercido com parcimônia.

Por exemplo, durante a Crise da Rodésia, quando o país africano, (atual Zimbábue) declarou-se independente da Coroa, a rainha teve uma atuação extremamente importante, cooperando com o gabinete para lidar com a ex-colônia rebelde.

É, aliás, nas relações exteriores em que o poder simbólico do monarca fica ainda mais aparente. Como Chefe de Estado e representante do poder emanado pelo governo britânico, o soberano desempenha papéis cerimoniais em vários eventos, espalhados pelo território da Commonwealth, assim como visitas de estado em vários países, como o próprio Brasil, que foi visitado pela ilustre Rainha em 1968.

Em The Crown, não é por acaso que George VI coloca tanta importância na Commonwealth Tour, a rodada oficial de visitas às colônias britânicas. Nem que Elizabeth, quando vista a sua coroa, faça o mesmo.

No episódio 8, Orgulho e Alegria, sua relação com o marido ameaça degringolar porque se recusa a encurtar a viagem. Tudo por uma boa causa: como diz um de seus assessores, os “ventos da independência” sopram pelo continente.

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Além das funções cerimoniais, o poder de influência é claríssimo, como demonstrado pela própria série no episódio em que o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, é forçado a aceitar o convite da rainha para um banquete de Estado.

Apesar de não ser um mais um colosso diplomático como foi sua trisavó, a Rainha Vitória, apelidada carinhosamente de “avó da Europa”, em uma era onde as monarquias são cada vez mais raras e as oportunidade para o monarca de influenciar diretamente a diplomacia do país por via de casamentos reais são, consequentemente, cada vez mais escassas, a influência exercida pela atual Rainha é sentida e impõe um respeito intangível nos Chefes de Estados estrangeiros.

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O staff do Palácio de Buckingham que o diga

A parte mais importante do poder simbólico real, entretanto, é o senso de continuidade passada pela instituição. Ele é refletido nas cerimônias oficiais, como a coroação e a abertura do parlamento.

A série passa bem isso na cena da coroação, apesar de não entrar em todos os pormenores que os amantes da monarquia adoram discutir.

Por exemplo, você sabia que o trono de madeira simples  no qual a Rainha sentou durante sua coroação, o que foi replicado fielmente na série, é um trono comissionado pelo Rei Eduardo I (sim, ele mesmo, o “Martelo dos Escoceses”, vilão do filme Coração Valente) e contém uma pedra ancestral capturada pelo Rei durante suas guerras na Escócia e antes utilizada nas cerimônias de coroação dos reis escoceses?

Quem assistiu ao filme O Discurso do Rei deve se lembrar de uma cena engraçada envolvendo ele. No longa, o fonoaudiólogo do rei George VI se senta no trono para motivar o monarca, que é gago, a falar.

O truque dá certo, e o soberano, fulo com a insolência, consegue superar sua gaguice.

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E essa é apenas uma de tantas relíquias utilizadas na cerimônia, que visa a acentuar ainda mais esse senso de continuidade.

Se um dia você, leitor, tiver a oportunidade de visitar a Abadia ou o Parlamento de Westminster (a sede do governo britânico), repare em como o ambiente é construído para valorizar a continuidade. Tudo foi extremamente pensado para te passar a impressão da monarquia é a mesma instituição inquebrantável da Inglaterra Anglo-Saxã medieval até os dias de hoje.

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Abadia de Westminster, em Londres

Minha cena favorita na série, inclusive, diz respeito a isso. No episódio 4, Elizabeth procura o conselho de sua avó, Mary, e as duas conversam sobre o “direito divino”. A jovem rainha acaba mencionando que, para seu marido, nas monarquias modernas há de existir uma separação entre Igreja e Estado (o que muitas vezes não cai tão bem na monarquia, mas essa é uma história para outra ocasião).

Ao ouvir isso a Rainha Mary, do alto de sua dignidade, dispara: “Sim, mas ele representa uma Família Real de aventureiros e novos-ricos que remonta o quê? 90 anos?  O que ele sabe de Alfredo, o Grande, o Cetro da Igualdade e Caridade, Eduardo, o Confessor, Guilherme o Conquistador ou Henrique VIII?”

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A noção de que uma instituição representa, e tem representado a nação durante toda sua história é extremamente poderosa.

Poder real, mas nem tanto

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Além do poder simbólico, a Coroa ainda possuí uma gama de prerrogativas que utiliza para exercer poder de fato sobre o governo.  O problema é que, como já falamos antes, a natureza da constituição britânica não é formal e escrita, o que torna muito, mas muito difícil saber até onde vão as prerrogativas.

Em 2004, o governo britânico tornou algumas delas públicas. Entre as mais importantes são a prerrogativa da misericórdia (o famoso “perdão real”), a prerrogativa de declarar guerra (na prática é sempre exercida pelo primeiro-ministro em nome do monarca, e foi objeto de polêmica quando utilizada por Tony Blair em 2002 na participação britânica na guerra do Iraque) e a prerrogativa de demissão de um primeiro ministro.

Em The Crown, vemos Elizabeth tentada a fazer uso dessa última prerrogativa para demitir Churchill durante o Grande Nevoeiro de 1952. Não é à toa que ela pensa duas vezes: ela é extremamente poderosa. Da última vez em que foi utilizada (em 1834!) resultou em desastre político.

Como os monarcas sabem muito bem, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

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Há ainda a prerrogativa mais poderosa de todas: o consentimento real. Ela é importante porque é a base do poder do monarca. Basicamente, quando uma das casas do parlamento (Casa dos Lordes ou Casa dos Comuns) deseja passar uma lei, ela primeiro tem que ser votada na casa que a iniciou, depois na outra casa e, por fim, passar pelo aceite real.

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O caminho da lei até ser aceita. Fonte

Por convenção, a rainha aprova todas as leis que saem do parlamento. No entanto, o direito de veto é uma das prerrogativas reais. Ou seja: em teoria, o soberano tem direito constitucional de vetar uma lei que considere contrária ao interesse nacional. Isso é absolutamente poderoso e a última vez que aconteceu no Reino Unido foi no longínquo ano de 1704.

Mesmo assim, temos um exemplo recente de uso do veto em outra monarquia constitucional: o Grão-Ducado de Luxemburgo.

Em 2008, o  Grão-Duque Henri se recusou a dar o consentimento a uma lei que legalizava a eutanásia no país, alegando que assinar uma lei dessas ia contra sua liberdade de consciência. Comprou uma briga com seu parlamento e perdeu. Depois de 60% da população se declarar contrária à sua atitude, foi aberta uma sessão para emenda constitucional no parlamento luxemburguês e o Grão-Duque perdeu seu direito de veto.

Portanto, é difícil saber se as prerrogativas conhecidas são meramente teóricas ou se teriam utilidade prática se fossem usadas à revelia do parlamento. Em todo o caso, elas são estritamente controladas e servem mais como um poder extra em caso de grave crise nacional ou guerra.

Caso um monarca faça mal uso delas, certamente enfrentará uma crise constitucional de enormes proporções e porá em risco não só sua própria posição como a própria monarquia.

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Pois é, Margaret. Não adianta chorar

Apenas em momentos de atrito entre o governo e a coroa, como o ocorrido em Luxemburgo, descobriremos se a maioria das prerrogativas realmente tem efeito no mundo moderno (além do uso como poder de exceção durante crises, que já foi comprovado).

Enquanto isso, os ingleses rezam para que esse dia nunca chegue, pois um confronto entre Sua Majestade e seu governo traria resultados catastróficos para o país – qualquer que fosse o resultado.

A protagonista de The Crown pode não usar uma capa. Mesmo assim, é evidente que, em termos de responsabilidade, não perde de nenhuma super-heroína.

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E aqui chega ao fim esse post especial. Gostaria de fazer um agradecimento especial ao Rafael pela colaboração. E a você, leitor e fã de The Crown, por ter chegado até aqui. Até a próxima!

Ou, como diriam os britânicos, godspeed!

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“Tyranny”: uma fábula sobre o totalitarismo https://www.finisgeekis.com/2016/11/15/tyranny-uma-fabula-sobre-o-totalitarismo/ https://www.finisgeekis.com/2016/11/15/tyranny-uma-fabula-sobre-o-totalitarismo/#comments Tue, 15 Nov 2016 16:57:19 +0000 http://finisgeekis.com/?p=13010

Na semana passada, a Obsidian entregou uma das propostas mais ambiciosas de sua história: um RPG em que só podemos interpretar vilões, cujo objetivo é dominar fracos e oprimidos.

Eu mesmo escrevi sobre quão difícil era a ideia – e quais os truques que os criadores de Fallout: New Vegas poderiam usar para tornar a maldade divertida.

Quão errado eu estava.

Tyranny, lançado no último dia 10, é bastante diferente do que eu (e muitos outros, acredito) esperavam. O jogo passa longe de nos convencer a ser cruéis, ou de nos entregar vilões “com coração”.

Não porque fuja da sua proposta, mas porque a entrega bem demais. E, no caminho, faz algo que pouquíssimos jogos já foram capazes de fazer.

Tyranny é um retrato do totalitarismo, mais honesto, didático e pés-no-chão que até jogos ambientados nesses regimes, como Hearts of Iron, conseguiram oferecer.

Um RPG para entrar para a história

Antes de mais nada, as honras:

Tyranny é um RPG isométrico da Obsidian,  no estilo de clássicos como Icewind Dale Baldur’s Gate. Feito com a mesma engine de seu último sucesso, Pillars of Eternity, o jogo mesmo assim veste outra roupagem, com modelos estilizados, cores chapadas e uma identidade visual bastante característica.

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As semelhanças terminam por aqui. Enquanto que Pillars of Eternity se propunha um tributo a Baldur’s Gate, Tyranny nos desafia, do começo ao fim, com uma experiência que nunca jogamos antes.

Esqueça dragões, fetch quests, trupes de aventureiros e taverneiros sorridentes. O novo jogo da Obsidian se passa em um mundo fantástico pós-apocalíptico ambientado no fim da Era do Bronze. É um misto de Roma às sombras de Átila com os velhos pulps de ficção científica, em que hoplitas dividem espaço com entidades que manipulam as leis da física.

Quem se lembra da Black Isle em sua melhor forma sabe que o estúdio ganhou fama por sua criatividade. Planescape: Torment, sua obra-prima, chacoalhou uma geração acostumada com elfos, anões e hobbits ao apresentar NPCs inusitados, distantes dos clichês da fantasia medievalista.

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A Obsidian, que herdou muito de sua equipe após o fim do estúdio, não teve a mesma sorte. Embora tenha entregue excelentes jogos, trabalhou quase que inteiramente em franquias estabelecidas.

Star Wars: KotOR II e Fallout: New Vegas estão entre os melhores RPGs de suas gerações. Porém, pelas amarras de seu próprio cenário, são jornadas familiares.

A situação parece ter mudado. Tyranny traz o velho espírito da Black Isle com uma força inédita desde os anos 1990. Veja por exemplo Tunon, um juiz espectral sem rosto definido, com máscaras que variam de acordo com sua missão.

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Ou ainda Vozes de Nerat, uma entidade que usa um elmo com dois rostos, cada qual com uma personalidade diferente  .

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Tyranny é Obsidian na sua melhor forma. Longe das mordaças dos grandes publishers, a turma de Brian Heins finalmente conseguiu colocar as asas de fora.

Que seu cenário inovador seja apenas a ponta do iceberg é prova do seu talento – e de quanto nós, gamers, temos a ganhar com tudo isso:

O outro rosto da maldade

Tyranny se passa no mundo fantástico de Terratus, nos últimos momentos da guerra entre o bem e o mal. Kyros, o grande vilão, conquistou quase todo o globo, e os poucos rebeldes remanescentes lutam uma guerra desesperada que sabem ser impossível de vencer.

Em forma, tom e conteúdo, o jogo da Obsidian é indistinguível daquelas cronologias alternativas que nos mostram o que aconteceria caso os maus ganhassem. Estamos no território de The Man in the High Castle, Wolfenstein: The New Order e Dragon Age: Darkspawn Chronicles.

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A horde de Kyros, no entanto, é tudo menos unida. Dois exércitos rivais competem um com o outro para serem os primeiros a render o inimigo.

De um lado estão os Desfavorecidos, uma tropa de elite composta por fanáticos políticos. Unidos por uma devoção quase religiosa ao seu líder, prezam pela ordem, seguem a letra da lei e chacinam os derrotados.

Do outro lado está o Coro Escarlate, uma turba de criminosos, psicopatas e vira-casacas recrutados das fileiras inimigas. Mistura de bacantes com os assassinos do Massacre de Nanking, os soldados do Coro são imprevisíveis, sádicos e  psicopáticos.

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Como um agente independente, o protagonista de Tyranny não deve lealdade a nenhum dos dois. Porém, a maneira como soluciona os dilemas morais propostos pelo game irá cedo ou tarde jogá-lo aos braços de uma facção – em rota de colisão com a outra.

Não espere, contudo, o “relativismo moral” infantil de tantos RPGs “maduros” por aí. Em Tyranny, não existe “lado bom” nem “mal menor”. Nossa única escolha é a de decidir quais cachorros soltar sobre seus inimigos. A diligência de uma Gestapo ou de um Kempetai, ou o caos de uma turba violenta.

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Se parece angustiante, essa é justamente a intenção. Tyranny, afinal, não está interessado em uma maldade “leve” e juvenil, como a de  GTA ou Fable. Sua intenção é mostrar como funciona um dos regimes mais revoltantes já criados.

Mas o que, afinal, é o “totalitarismo”?

Hoje em dia,  “totalitarismo” se tornou uma palavra feia. Assim como tantos outros –ismos,  é o xingamento predileto em discussões sobre política com paixões demais e argumentos de menos.

Como bem dizia Millôr Fernandes, “democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim.” Nos últimos tempos, a piada nunca foi tão atual.

Embora sirva bem aos militantes de Facebook, esse relativismo é uma afronta àqueles que sofreram, de verdade, com o pior que a humanidade já pôs em prática. Acontece que “totalitarismo” é uma coisa BEM  específica.

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Hannah Arendt

Para a pensadora política Hannah Arendt, ele não está associado a nenhuma maldade específica. Nem é, tampouco, apenas um tipo mais “grave” de tirania. É um sistema político completamente novo e mais perverso.

A diferença está na fé em uma Lei da Natureza absoluta, que governa toda a nossa vida e não pode ser resistida. Ou então em uma História com H maiúsculo, que se move em uma direção específica e não pára para os que titubeiam.

Individualidade e liberdade viram obstáculos a ser emderrubados. Há o caminho Natural e aquele dos degenerados. Há o “lado certo da História” e o “lado errado”.  Em nome do serviço à Lei Suprema, não há prédio que não possa ser derrubado, ou pessoa que não possa ser executada.

Na sociedade que serve à Lei, existem apenas dois tipos de pessoa: os carrascos e a vítimas.

É algo que os rebeldes de Terratus entendem muito bem – e o que faz com que nos sintamos tal mal ao jogar Tyranny. Em todos os jogos, sempre há uma razão para tentar os mocinhos ao “lado negro”: poder, vingança, ordem. Kyros, no entanto, não deixa espaço para barganha. Seja meu escravo ou não seja mais nada.

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Como disse o autor de The Witcher Andrzej Sapkowski no livro A Torre da Andorinha:

Existem em todos os Estados fanáticos que desejam impor uma certa concepção de ordem pública. Dedicados em corpo e alma a esta ideia, eles estão dispostos a realizar qualquer coisa para defendê-la. Isto inclui cometer crimes, pois os fins, segundo eles, justificam os meios e invertem a moral. Eles não assassinam, eles preservam a ordem pública. Eles não torturam ou chantageiam: eles protegem a Razão de Estado e lutam pela paz. Para essas pessoas, a vida é uma entidade que não tem valor e não merece consideração quando se torna um obstáculo para a ordem estabelecida. Estas pessoas esquecem que a sociedade que elas servem é composta justamente por estas entidades. Elas têm uma visão “ampla”… o jeito mais seguro de ignorar as peças do quebra-cabeça.

Em Tyranny, Kyros é justamente essa “Lei”. No início do jogo, recém-chegados ao mundo de Terratus, temos até dificuldade para entender o que ele é.

Ele é chamado de “Líder Supremo”, mas poucos conhecem sua forma física. Seus subordinados são entidades sobrenaturais, menos humanos que personificações de ideais (a justiça, as sombras, o segredo).

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Seus poderes são absolutos e insensíveis, como os de Deus no Antigo Testamento. Logo na primeira missão do jogo, dois generais estão com dificuldade para tomar uma cidade rebelde. Para convencê-los a trabalhar juntos, Kyros manda um edito: se não tomarem a cidade em 8 dias, todos (generais, rebeldes e a cidade) serão apagados do mapa.

A banalidade do mal

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Kyros não é um “vilão”, no mesmo sentido de que o Nazismo não é Hitler, nem o Comunismo é Stálin. Tal como essas ideologias, ele é algo além, um princípio último inevitável, que seus defensores perseguem até o fim, pois não acreditam em alternativas.

Em vida, as ideias de Hannah Arendt lhe trouxeram uma enxurrada de críticas. Seus oponentes a atacaram por fazer pouco caso com o totalitarismo. No pior dos casos, em ser até “bondosa” com os piores criminosos que a humanidade já viu.

De fato, o vilão de Arendt não age por malícia. Ele apenas “faz o seu trabalho” da melhor forma possível, sem se importar (ou imaginar) as consequências de seus atos. O mal se torna “banal”.

É o que alguns críticos de games comentaram sobre o jogo da Obsidian. O protagonista de Tyranny seria apenas uma “engrenagem” no sistema, uma peça muito pequena dentro de uma máquina política incontrolável. Ele não é “responsável” pelo que faz porque age com a autoridade de outros. Não é ele o culpado: o mundo é que é perverso.

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O que os reviewers – e os críticos de Arendt – não conseguiram entender é que as coisas funcionam de outro jeito. Não é que regimes autoritários dependem de trabalhadores dedicados, nem que todos os seus criminosos sejam assim. Pelo contrário, tanto os ditadores da vida real quanto Kyros em Terratus não tem pudor em contratar psicopatas e facínoras.

O que acontece, segundo a autora, é que o totalitarismo cria esse tipo de pessoa.

Para atender à Lei Suprema, o indivíduo deixa de existir. Todos viram parte de um único povo, com uma única vontade e uma única mente.

O problema, obviamente, é que essa utopia é terrivelmente solitária.

Quando sentimos que nossa vida não tem sentido, que todos à nossa volta são idênticos a nós, as coisas perdem o propósito. Deixamos de ser humanos para nos tornarmos máquinas. Como disse Adolph Eichmann, o oficial nazista cujo julgamento Arendt assistiu, uma “engrenagem” no sistema.

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Adolph Eichmann

Tyranny não é um jogo fácil de absorver. De estupros a torturas de prisioneiros, nenhuma maldade fica de fora. No combate, inimigos choram e gritam ao morrer. Se a maioria dos games nos transforma em RamboTyranny é O Resgate do Soldado Ryan. O jogo é Nada de Novo no Front mais que Pearl Harbor; Até o Último Homem mais que Bastardos Inglórios.

Mesmo assim, o que mais choca não são as atrocidades. É ver as pessoas perdendo sua humanidade e transformando-se (literalmente) em máquinas.

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Barik, um dos party members, é um soldado de elite de Kyros. Atingido por uma tempestade mágica, acabou preso dentro de uma armadura de ferro. Não pode se lavar nem atender a seus desejos.  Precisa urinar e defecar dentro da couraça, e seu fedor aterroriza mais que sua aparência.

Barik não deixa isso afetá-lo. Ele é um soldado de Kyros e continuará a obedecer as ordens. A armadura é até mesmo uma “vantagem”. No campo de batalha, se tornou um verdadeiro colosso.

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Eb é uma maga da resistência. Seu marido e filhos foram mortos pelo Líder Supremo. Todo o mundo que conheceu foi destruído. Ela vive de vingança, preferindo a morte em batalha a obedecer o responsável pela sua dor.

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Em dado momento, tudo muda. Derrotada pelo protagonista, ela se curva e aceita a escravidão. Conformada – e até animada, – transforma-se no instrumento da vontade de Kyros. Da família, fala sem rancor. Eles são o passado. O presente agora é outro.

Ela, que prometia ser uma antagonista carismática, uma heroína a fazer frente ao nosso vilão, mostra que Tyranny não tem espaço para essas fantasias.

No totalitarismo não existem “heróis”. Apenas engrenagens e a sujeira entre elas. Que você, como agente de Kyros, tem o dever de limpar.

Não é uma experiência confortável, mas é isto em si é positivo. Se, ao jogar Tyranny, você se sentir angustiado consigo mesmo, leve para o bem. É sinal de que você ainda é humano.

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De onde vieram os anti-heróis dos quadrinhos? https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/ https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/#comments Mon, 21 Mar 2016 23:15:41 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3083

Entre a nova (e violenta) adaptação de Demolidor, os ecos de Frank Miller em Batman vs. Superman, o status de “lenda cult” de Christopher Nolan e a vinda da Guerra Civil para os cinemas, tudo aponta para a mesma coisa: o anti-herói está na moda. E pretende ficar.

Por si só, isso não é uma surpresa. Seja na literatura, nos games ou nas séries de TV, o velho confronto do “bem” versus o “mal” parece ter sido substituído por algo mais sofisticado – e muito mais sanguinolento.

daredevil born again kingpin

Roteiristas, quadrinistas e desenvolvedores descobriram (como John Milton já havia feito muito tempo atrás) que personagens com defeitos e personalidades complexas são muito mais cativantes. Afinal de contas, ninguém é perfeito. E nada enriquece mais uma obra de arte do que heróis verossímeis.

Mesmo assim, seria um erro pensar que esses protagonistas tortos, interessantes e (pasmem) carismáticos simplesmente caíram do céu. Nos quadrinhos  americanos, em especial, eles foram trazidos por uma geração específica, tumultuada e muitíssimo criativa.

Seguem, abaixo, três das principais “mães” dos anti-heróis das HQs.

1- A decepção com a política

A coisa que não podemos esquecer sobre quadrinhos de super-heróis é que sua popularidade veio nos anos 1940, a década da Segunda Guerra Mundial, do ufanismo e da maior radicalização política já vista na história.

Para além de uma luta do “bem” contra o “mal”, a mensagem desses quadrinhos era a de que as coisas se resolviam dentro do sistema. Não era apenas o bom-mocismo que estava em jogo, mas todo um projeto de governo, sociedade e bons costumes.

Super-heróis até podiam ser cruéis e implacáveis, desde que obedecendo às ordens “de cima” ou, no mínimo, atendendo ao espírito de seu tempo.

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Ninguém tinha pena do Tojo

Se hoje esses quadrinhos nos parecem estranhos (quando não grotescos), a mensagem que passavam era extremamente popular. Diante da ameaça da guerra total, heróis que colocavam ditadores no seu lugar, colaboravam com a polícia e protegiam crianças era o que todos queriam ver.

A partir dos anos 1970, isso deixou de ser verdade.

Com o conflito no Vietnã, os americanos entenderam que a guerra nem sempre é para o “bem”, e que o combate é bem menos glorioso quando se está do lado perdedor. Com a Crise de Reféns no Irã e o Caso Watergate, o governo americano mostrou que podia errar e ser corrupto. A Crise do Petróleo jogou a economia para baixo, e a Guerra Fria trouxe o medo de um holocausto nuclear. Como confessou Frank Miller, “o mundo estava ficando louco”.

Desconfiadas da autoridade, as pessoas buscaram seus herois em outros lugares. Em Watchmen, Rorschach se recusa a abrir mão de seu código de conduta, mesmo que isso traga a promessa de paz mundial. Em O Retorno do Cavaleiro das Trevas, Batman prefere se tornar um criminoso a virar um novo Superman, um herói “do partido” que só luta as batalhas autorizadas pelo presidente.

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Porém, a mudança mais impressionante foi a do maior ícone do bom-mocismo patriótico: o Capitão América. “Ressuscitado” em 1964, Steve Rogers se sente mais e mais decepcionado com os rumos da política. Em 1974, ele  passa a combater o crime como o Nômade, um herói, como o nome já diz, sem pátria.

Seu momento definidor veio também das mãos de Frank Miller. Em Daredevil: Born Again, ele deixa claro que os Estados Unidos que defende são uma ideia, não um governo.

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De campeões do sistema, os super-heróis viraram outsiders. O herói não é mais um role model para servir de exemplo aos jovens. Agora, ele segue o seu próprio caminho, apontando a hipocrisia nos outros e mostrando como a prática do “bem” passa longe de seu ideal.

É por isso que, em sua primeira história pós-11/9, o Capitão América não esmurra Bin Laden como antes fizera com Hitler. Em vez disso, ele visita Dresden, cidade alemã que foi obliterada por bombardeios aliados na Segunda Guerra. Longe de ser um fanático patriota, ele se lembra de todo o sangue que já foi derramado em nome da “justiça”.

É por isso que na Guerra Civil – uma alegoria do Patriot Act, lei americana que reduziu a proteção constitucional de civis em nome da luta contra o terrorismo – Steve Rogers se posiciona contra a ideologia de que a segurança é preferível à liberdade.

E é por isso que, no filme Soldado Invernalele se rebela contra a tentativa da SHIELD de se tornar uma “polícia global”. No longa, tudo é obra da Hydra. Na vida real, é preciso bem menos. Basta olhar para o escândalo de espionagem da NSA, cujos alvos incluíram até a Presidência brasileira.

Novas ideias, no entanto, demandam novos públicos. E para conquistar novos públicos é preciso novas formas de se vender quadrinhos. O que nos leva à segunda “mãe” dos anti-heróis

 2- O surgimento das gibiterias

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Como quem já se aventurou pela arte sabe muito bem, a distribuição é a alma de qualquer obra de sucesso.

Quando os quadrinhos de superheróis surgiram nos anos 1930, ninguém pensava em ganhar o prêmio Pullitzer ou em escrever o mesmo personagem por 70 anos. Os gibis eram vendidos em qualquer lugar por onde meninos perambulassem: bancas de jornal, lojas de brinquedo, farmácias e até docerias.

Como não havia garantia de que a criança voltaria a comprar o mesmo título, a ideia era prezar a quantidade sobre a qualidade. Cada HQ tinha um começo, meio e fim e eram feitas para o maior público possível, sem continuidade nem, muitas vezes, coerência. Para chamar a atenção, não era raro uma editora publicar histórias estapafúrdias. Ou o que era pior: histórias estapafúrdias repetidas.

superman dragon

superman jimmy olsen

Com o passar do tempo, esse modelo perdeu popularidade. Com o envelhecimento do público alvo, o fim dos vilões óbvios da Segunda Guerra e a pressão de moralistas (vide o próximo tópico), o número de vendas mensais caiu de 59,8 milhões em 1952 para 18,5 milhões em 1979.

Para o hobby não morrer, alguma coisa precisava mudar. A volta por cima veio com Phil Seuling, um fã de quadrinhos e criador da Comic Art Convention de Nova York. Seuling desenvolveu um sistema de distribuição baseado em lojas especializadas, dirigidas ao fã. Assim, nasciam as primeiras gibiterias.

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Austin Books & Comics, no ramo desde 1977

Para os envolvidos, esse novo modelo (chamado de mercado direto) era muito mais interessante. Antes, gibis não vendidos eram devolvidos para os fornecedores, o que forçava as lojas a calcular bem a quantidade de HQs que achavam que venderiam (e, obviamente, não adquirir obras mais controversas). Na gibiteria, pelo contrário, números antigos simplesmente entravam para o catálogo.

Com menos risco, as editoras passaram a apostar em títulos mais trangressores. Não só isso, como produtores independentes finalmente conseguiram uma chance de entrar no mercado. O resultado foi um boom de histórias inovadoras e selos independentes capazes de rivalizar com a Marvel e DC.

Ao mesmo tempo, as gibiterias criaram uma “contracultura” dos quadrinhos, oferecendo espaço para fãs confraternizarem, montarem coleções e acompanharem artistas e personagens específicos. Pela primeira vez, a base do que se tornaria a “cena nerd” começou a ganhar força.

A capacidade de se enturmar com outros fãs e ficar “próximo” dos autores se mostraria fundamental para a sobrevivência do hobby. Isto porque, nessa mesma época, os quadrinhos se tornaram o campo de batalha de uma verdadeira guerra cultural.

 

1- A necessidade de chocar

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Quem vê a truculência do Rorschach em Watchmen ou a lista de baixas do Justiceiro já percebe que os anti-heróis não estão de brincadeira. Muito menos os seus autores.

Se essas HQs parecem às vezes desnecessariamente cruéis, é porque a intenção foi de fato chocar. E, se uma geração inteira de artistas sentiu a necessidade de chacoalhar o público, é porque eles tinham um inimigo em comum.

Quando os quadrinhos de super-herói surgiram nos EUA, eles foram imediatamente alvo da perseguição de moralistas. A Igreja, os políticos, intelectuais e até médicos criaram a narrativa de que histórias em quadrinhos estimulavam a violência, atentavam contra a moral e desvirtuavam as crianças.

Nos casos mais extremos, entidades justiceiras organizaram mutirões para remover gibis do comércio e queimá-los em fogueiras.

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Para os quadrinistas, a grande batalha foi “perdida” em 1954, com a publicação de A Sedução dos Inocentes, do psiquiatra Fredric Wertham. O livro dava um roupagem científica para a tese de que HQs eram uma influência ruim no desenvolvimento de crianças e se tornou a bíblia dos que buscavam proibi-las.

As evidências de Wertham eram completamente furadas, mas isso era irrelevante. Nos anos 1950, a delinquência juvenil se tornou um pânico moral. A Sedução dos Inocentes dizia aquilo que as pessoas queriam ouvir. Assim, se tornou uma sensação.

A consequência direta da repercussão foi a promulgação do Comics Code Authority, um código de conduta destinado a regular o conteúdo dos quadrinhos. A iniciativa foi obra da Comics Magazines Association of America (CMAA), um grupo de figurões da indústria que acreditou que uma auto-regulação mostraria a boa vontade do profissionais em aceitar as “críticas”. A alternativa seria uma censura oficial, o que enterraria as HQs de vez.

Num argumento ainda muito comum entre moralistas, o CCA dizia que os artistas tinham uma “responsabilidade” para a “cena cultural americana” e deviam “fazer uma contribuição positiva para a vida contemporânea”.

Approved_by_the_Comics_Code_AuthorityNa prática, isso significava “purificar” quadrinhos de tudo o que fosse considerado ofensivo, perigoso ou de mau gosto. Estava banido o uso das palavras “terror” ou “horror” (Parte B, 1), violência excessiva (Parte B, 3), apologia ao crime (Parte A, 4 e 5), excesso de gírias (Parte C, 3), nudez e sensualidade (Costume, 1 a 4) e mesmo incentivo ao divórcio (Marriage and sex, 1).

Ninguém era obrigado a usar o selo, mas distribuidores se recusavam a vender HQs que não o tinham. Depois de meses de perseguição (e inclusive uma audiência pública no senado), ninguém queria ser visto como um defensor da delinquência juvenil.

Para os artistas, isso não foi apenas um “mundo ficando chato” : foi um desastre que por pouco não afundou toda a indústria de quadrinhos. Frank Miller, um dos “pais” indisputáveis dos anti-heróis, nos diz isso com todas as letras no prefácio de Batman: O Cavaleiro das Trevas:

Não vale a pena citar o nome daquele psiquiatra lunático ou de seu livro absolutamente desprezível. Há muito o mundo se esqueceu dos dois.

No pequeno universo dos quadrinhos, entretanto, aquele lixo de livro causou tanto estrago quanto um ciclope. Ou Galactus. As vendas caíram mais e mais. Por algum tempo, os artistas de HQs sequer revelavam sua profissão. Não em companhia de pessoas cultas.

Deus sabe que não abordávamos temas políticos.

Mas nós apenas parecíamos irrelevantes. Apenas parecíamos mortos.

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Foi justamente o desejo de não ser irrelevante que motivou Miller e outros criadores (como Robert Crumb, Richard Corben e Neal Adams) a pisar nos calos. A partir dos anos 1970, com a popularização das convenções e o mercado direto, a cena de quadrinhos underground finalmente mostrou as suas garras.

Autores polêmicos agora sabiam que havia uma maneira de seus trabalhos chegarem aos fãs, com ou sem o selo de aprovação. Não demorou para as grandes editoras peitarem a CMAA, chegando, em casos extremos, a publicar gibis mesmo sem o aval do CCA.

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Amazing Spider Man #96, que teve o selo negado por mostrar Harry Osborne em crise de abstinência.

 

A consequência foi uma geração de heróis (e vilões) complexos, inclementes e repletos de defeitos. O Justiceiro e o Motoqueiro Fantasma deram as caras pela primeira vez. O Homem de Ferro virou um alcóolatra. E o Batman se tornou o líder de uma gangue sanguinária, fazendo com as próprias mãos a justiça que faltava ao governo.

Os anti-heróis dos anos 1970 e 1980 não desafiavam só as normas de seus mundos fictícios. Eles eram, também, símbolo do desafio de seus próprios criadores, lutando para que as HQs tivessem o mesmo tratamento de filmes ou livros.

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Esses artistas nunca deixaram de militar pela sua liberdade criativa. Em 1987, Alan Moore deixou a DC após a editora tentar implementar um sistema de classificação etária. Em 1997, Frank Miller, que nunca foi exemplo de sutileza, escreveu Tales to Offend.

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O criador de Elektra não tem nenhum remorso pela postura “in your face”. Como ele disse em um depoimento, “tudo o que se colocar entre meu pincel e minha mesa de desenho é meu inimigo”.

Os anti-heróis nos dias de hoje

É curioso, mas nem um pouco surpreendente, que os anti-heróis façam tanto sucesso nos dias atuais. Em muitas aspectos, nossa geração tem várias coisas em comum com o universo dos anos 1970 e 1980 de onde eles surgiram.

Tal como há 30 anos, nossa época é marcada por um enorme niilismo político. De protestos nas ruas ao sucesso de candidatos implausíveis (veja apenas Trump nos EUA) há uma sensação generalizada de que o jogo está viciado, e que a resposta se encontra em outro lugar.

Tal como nos tempos de Phil Seuling, temos a nosso dispor uma imensidade de formas alternativas de produção e distribuição de quadrinhos: de serviços como o Comixology ao cenário do crowdfunding, da cena efervescente das fanzines aos webcomics. Os quadrinhos nunca foram tão diversos e acessíveis a tantas pessoas (leitores e criadores).

Tal como na época do CCA, pânicos morais continuam estourando na cena nerd, e a ideologia de que artistas têm uma “responsabilidade social” de produzir obras de bom gosto parece ter renascido das cinzas. O site da CBLDF, uma ONG dedicada à proteção da liberdade de expressão de quadrinistas, contém uma lista de obras que têm sido atacadas por moralistas nos últimos anos. Os títulos são surpreendentemente variados, e incluem desde Dragonball até Persépolis.

Qual será o futuro do nosso novo “culto ao anti-herói”, só o tempo nos dirá. Uma coisa, no entanto, podemos afirmar com certeza: se as nossas turbulências trouxerem novos gigantes do calibre de Miller, Moore, Crumb e Gaiman, estamos em boas mãos.

 

 

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Shigeru Mizuki: O soldado que inventou o mangá moderno https://www.finisgeekis.com/2015/08/31/shigeru-mizuki-o-soldado-que-inventou-o-manga-moderno/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/31/shigeru-mizuki-o-soldado-que-inventou-o-manga-moderno/#comments Mon, 31 Aug 2015 22:49:37 +0000 http://finisgeekis.com/?p=625 Quando pensamos em “pai do mangá”, o primeiro nome que vem à cabeça é quase sempre Osamu Tezuka. Entre seu pioneirismo em praticamente todos os gêneros, a influência de seu trabalho nos filmes da Disney e as inúmeras graphic novels premiadas, é impossível olhar para uma gibiteca e não ver a marca do autor de Astro Boy em praticamente tudo.

De que sua fama é merecidíssima não há nenhuma dúvida. Contudo, Tezuka é um daqueles artistas que, de tão famosos, acabam ofuscando até mesmo os outros gênios. É o caso de seu contemporâneo Shigeru Mizuki, outro pioneiro do mangá que ganhou destaque nos anos 1950 e não parou de brilhar.

Dizem que uma imagem vale mil palavras. No caso de Mizuki, isso é triplamente verdade.

shigeru mizuki

Sim, esse senhorzinho com idade para ser seu bisavô é um dos pais dos mangakás. Nascido em 1922, ele é seis anos mais velho que o próprio Tezuka. Sim, ele está segurando um prêmio Eisner, o Oscar dos quadrinhos. E este não é o único: até hoje, três obras suas faturaram estatuetas. Sim, ele não tem um braço. Em 1942, Mizuki foi convocado à guerra pela marinha japonesa. Na Batalha de Rabaul, a cabana em que dormia foi atingida por um bombardeio aliado. Ele voltou com vida, mas não inteiro.

O episódio ganharia vida pela sua própria pena, décadas depois:

braço amputado

Como todo veterano de guerra, é de se esperar que suas experiências mais traumáticas fossem inspirar alguns de seus trabalhos. Souin Gyoukusai Seyo!, ou Onward Towards Our Nobles Deaths, na tradução americana, foi seu primeiro (e muitíssimo bem recebido) relato de seus anos de combate. Contudo, Mizuki é muito mais do que um sobrevivente com histórias para contar. De certa forma, suas maiores batalhas foram travadas depois do fim da guerra. Vivendo na pobreza de um Japão em ruínas, o artista foi um dos pioneiros que decidiu transformar o desenho japonês em um meio artístico completamente novo.

Do teatro popular à cultura otaku

Nos anos 1950, sem um tostão nos bolsos e muito talento para esbanjar, Shigeru Mizuki começou a trabalhar com kamishibai. Trata-se de um estilo de performance tradicional em que um narrador conta uma história amparado por uma série de ilustrações. A prática surgiu em templos budistas como forma de pregação, mas eventualmente ganhou vida própria como um entretenimento de rua. Para quem está curioso, várias apresentações podem ser encontradas no YouTube, tanto em japonês como em inglês:

Mizuki passou seus primeiros anos após a guerra desenhando esses cartazes de papel. Para seu desespero, o kamishibai logo não se mostrou suficiente para fechar as contas no fim do mês. Felizmente, outra forma de entretenimento conquistava espaço entre a população de Tóquio.

comic books

Assim, quase que por acaso, o ex-soldado se tornou um dos pioneiros do mangá. Seu sucesso na nova arte não significou o abandono da tradição com que crescera. Pelo contrário, Mizuki viria a se tornar um dos mais conhecidos autores de quadrinhos de youkai, monstros típicos do folclore japonês. Suas ilustrações combinaram um traço estilizado, debochado e um detalhismo digno das gravuras do Período Edo (1603-1868)

gegege kitaro

Se eu fosse listar e comentar toda a sua obra, é muito provável que esse post jamais terminasse. Em cinco décadas de carreira, é mais fácil mencionar os prêmios que Mizuki não recebeu do que contar as estátuas, medalhas e diplomas que já passaram por sua mão. Quem visitar Sakaiminato, sua cidade natal, encontrará a Rua Shigeru Mizuki, batizada em tributo a ele e decorada com estátuas de bronze de suas personagens.

statues mizuki road

Sua criação mais famosa, Hakaba Kitarou, mais conhecido como GeGeGe Kitarou, tornou-se um dos clássicos mais adaptados da história do mangá, com 6 animes e 15 games, do Famicom ao Nintendo DS.

É justamente sua versatilidade e irreverência que fazem de seus trabalhos autobiográficos tão impressionantes. Guerra é sempre um assunto delicado, em especial um conflito que matou 70 milhões de pessoas e culminou em dois ataques nucleares. Não há falta de pessoas que se puseram a desenhar sobre o assunto, mas o resultado sempre anda no fio da navalha entre o ridículo e o horrorosamente chato. Neste sentido, Mizuki não só fez um dos melhores quadrinhos de guerra que já vi, como nos deu uma lição de vida.

Como já disse várias vezes, o Japão tem um problema com sua história. O governo até hoje reluta em admitir os crimes contra a humanidade cometidos por Hirohito. Figurões do estado maior da cúpula fascista foram sepultados com honras de Estado e até hoje recebem visitas oficiais. Se está difícil mentalizar o absurdo, imagine a Angela Merkel abrindo o ano legislativo com uma cerimônia no mausoléu de Adolf Hitler. Colocando lenha na fogueira, uma parcela de intelectuais (incluindo mangakás) defendem que o Império do Japão estava “certo”, que as proezas da Marinha Imperial devem ser relembradas com orgulho e que as ocupações da China, Coreia, Indochina e quase todo o Pacífico foram uma guerra “defensiva” para proteger os pobres asiáticos do imperialismo ocidental.

Shigeru Mizuki, ele mesmo um fuzileiro da Marinha Imperial, tinha todos os motivos para seguir na linha. Se nada mais, sua biografia tica todos os quadrados de melodramas patrióticos sobre “o sofrimento de nossos veteranos” como Zero Eterno. Mizuki, no entanto, fez exatamente o contrário.

A época em que a vida não pertencia às pessoas

tojo

Showa: A History of Japan é a versão do ex-soldado sobre esse período tão conturbado. É uma apaixonante autobiografia, de onde vieram as ilustrações das anedotas de sua vida que usei acima. É, também, uma das mais longas, tocantes e sinceras histórias do Japão moderno.

showa covers

Showa é tanto um relato pessoal quanto uma biografia coletiva das mais de 70 milhões de pessoas que viveram (e, em muitos casos, morreram) entre o Grande Terremoto de Kanto e o final dos anos 1980 – a época, como o título já entrega, conhecida como Era Showa. Em seu estilo característico, Mizuki mistura paineis ultrarrealistas, baseados em fotos de época, ao traço irreverente de seus mangás sobre youkai. Quem puxa a história é Nezumi-Otoko, um espírito trapaceiro do universo de GeGeGe Kitarou. Ao longo de mais de 2000 páginas, nós o vemos ora como um narrador onisciente, ora como uma aparição, conversando com personagens como Hideki Tojo e Yosuke Matsuoka.

O resultado é uma fusão entre a densidade de Notas Sobre Gaza de Joe Sacco com a leveza de Maus de Art Spiegelman. Mizuki conseguiu criar um comentário sobre o totalitarismo no Japão que é complexo tanto quanto é acessível. Showa nos mostra com riqueza de detalhes como uma nação empobrecida por uma crise econômica gradualmente cede a um extremismo político que terminaria por destrui-la. Em suas páginas, vemos como a bravata das autoridades levou um país economicamente insignificante a travar uma guerra que jamais poderia ganhar – e seu povo a pagar o preço amargo da derrota.

Mizuki conta mais do que julga, e nisso está a maior força de seu trabalho. Ele não acredita no “pacifismo poliana” de Miyazaki e na sua visão da guerra como um mal inconcebível. Ao longo dos volumes, vemos como uma série de fatores – político, econômicos e ideológicos – se combinam para trazer o conflito, e como uma boa parte da população (incluindo seu próprio pai) era favorável ao fascismo. Mais tarde, ele argumenta ainda que a ocupação militar americana e o envolvimento do Japão na Guerra da Coreia enriqueceram o país.

Ele não compra a apologia ao heroismo de Naoki Hyukuta. Pelo contrário, deixa claro que a guerra foi um castelo de cartas erguido com mentiras. Mizuki narra como o exército japonês sabotou suas próprias operações para culpar inimigos imaginários e justificar uma invasão contra a China, como estatísticas propagandísticas levaram a derrotas desnecessárias e como comandantes forçavam suas tropas ao suicídio mesmo quando a vitória era possível.

Por fim, ele é apaixonadamente contrário a Yoshinori Kobayashi, que prega que as atrocidades cometidas pelos japoneses são invenções do Ocidente. Mizuki não poupa tintas para descrever o Massacre de Nanking ou a Marcha da Morte de Bataan. Ao mesmo tempo, ele não tem medo de colocar sua opinião quando acredita que há dúvidas sobre os verdadeiros culpados. De certa forma, a questão é pessoal. Seu próprio irmão, também soldado, foi condenado e preso como criminoso de guerra por executar um prisioneiro aliado.

Shigeru Mizuki e seu pai

Shigeru Mizuki e seu pai na época da guerra

As intervenções de seu narrador youkai e o tom leve com que narra a sua própria trajetória não prejudicam a mensagem do livro. Pelo contrário, só fazem da tragédia ainda mais assustadora. Em dado momento, um companheiro de Mizuki é ferido em combate. Sem chances de resgatá-lo, Mizuki recebe ordens para decepar o dedo do moribundo. É costume japonês que ao menos um osso do morto seja guardado para as cerimônias fúnebres. Se ele vai morrer de qualquer jeito, que pelo menos sua família tenha um funeral digno.

funeral

Um pouco antes, logo após a guerra ser declarada, acompanhamos Mizuki largando a escola. Sem a mínima vontade para estudar ou trabalhar, ele passa todo o seu tempo no quarto lendo filosofia. Quando lhe cobram satisfações, sua resposta é de dar frio na espinha:

filosofia

Showa está recheado de episódios como esse. Em dado momento, Mizuki nos conta que as “Três Balas Humanas“, um trio de jovens soldados que tiraram a própria vida para explodir uma trincheira chinesa, só fizeram o que fizeram porque esperavam voltar com vida: o pavio da bomba havia sido acidentalmente cortado mais curto do que deveria. Em outro, ele relata como, ao saber da sobrevivência de sua unidade, seus oficiais superiores tentaram executá-los. Como eles já haviam comunicado o “suicídio glorioso” ao Imperador, ficava mais fácil matá-los do que explicar o erro.

being aliveAqui está talvez o maior mérito do mangá. Mizuki não nos mostra apenas como é viver em um regime totalitário, mas o que, de fato, significa o totalitarismo. Sob uma ideologia que prega o controle do Estado sobre tudo, a vida humana se torna apenas mais um recurso – como dinheiro ou combustível – a ser “gasto” conforme as necessidades.

Hoje, setenta anos depois, esse mundo nos parece um pesadelo. Muitos, se sujeitos a essas condições, apelariam ao revanchismo. Shigeru Mizuki preferir contar histórias. Há uma certa poesia em sua atitude que vai além da própria beleza de seus mangás.

Cerca de 3 milhões de japoneses morreram na Segunda Guerra Mundial, mais ou menos 4% da população do país. Nada garantia que Mizuki não se tornasse um deles. Para um jovem combatente servindo no final da guerra os números eram ainda piores. Contra todas as expectativas, Mizuki não só sobreviveu como viveu mais que o próprio imperador, morto em 1989. Seu mangá é mais que uma lição de história: é um ato de liberdade de um homem que, à sua maneira, triunfou sobre a Era Showa.

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‘Zero Eterno’: Eram os kamikaze terroristas? https://www.finisgeekis.com/2015/07/27/zero-eterno-eram-os-kamikaze-terroristas/ https://www.finisgeekis.com/2015/07/27/zero-eterno-eram-os-kamikaze-terroristas/#comments Mon, 27 Jul 2015 20:56:03 +0000 http://finisgeekis.com/?p=516 Convenções de anime têm muito atrativos, mas poucos, na minha opinião, são tão legais quanto varar um estande de sebo ou livraria de mangás e achar algo que não sabia que existia. Nesse ano, o “achado” foi Eien no Zero, ou Zero Eterno, uma minissérie bonitona lançada pela JBC como parte de seu selo “especial”, com direito a papel off-set e orelhas. Se o título já não entrega, a capa sem dúvida o faz: Zero Eterno é uma mangá sobre caças. Mais precisamente, sobre a segunda coisa que vem à mente quando pensamos no Japão em guerra: os kamikaze.

A primeira dispensa comentários

A primeira dispensa comentários

O mangá é baseado em um romance bestseller do escritor Naoki Hyakuta, lançado em 2006. O  sucesso do livro foi tão grande que inspirou também uma superprodução cinematográfica em 2013, que se tornou um dos filmes mais vistos da história do Japão. A trama acompanha Kentaro, um jovem que decide pesquisar sobre a vida de seu avô, um piloto de Zero (o caça japonês da Segunda Guerra) que se suicidou em um ataque kamikaze.

Tudo estaria certo, não fosse um encontro que tem com um jornalista. Segundo ele, os kamikaze não eram pessoas normais obrigadas a se matar por uma guerra sem sentido, mas guerreiros fanáticos que se voluntariavam para servir ao Imperador. Eram pessoas doutrinadas a valorizar suas causas políticas mais do que a própria vida, não muito diferente dos militantes da Al Qaeda ou do Estado Islâmico. Em suma, eram terroristas.

Incomodado ao pensar no avô como um predecessor dos homens-bomba, nosso protagonista parte em uma jornada entrevistando veteranos que o conheceram. O que ele descobre muda completamente sua visão. Kyuzo Miyabe, seu avô, era um piloto habilidoso, porém tinha fama de covarde. Ao contrário de seus comandantes, que pregavam o sacrifício pela pátria, ele buscava sobreviver a todo custo. Sua mentalidade (ao menos à primeira vista) era “contemporânea”: sua vida, e o bem-estar de sua família, falavam mais alto que qualquer imperador.

Contudo, o depoimento não entrega o maior dos mistérios: como um sujeito desses decidiu se voluntariar para um ataque suicida? Teria ele sido forçado? Teria ele mudado de ideia? Por quê?

A complicada memória japonesa

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Eu não me canso de ler (ou assistir) japoneses falando sobre a Segunda Guerra. Na mídia ocidental, o conflito de 1939 a 1945 é quase sempre retratado como uma luta simbólica entre o bem e o mal, entre os defensores da nossa liberdade e os monstros responsáveis por todos os males do mundo, do aquecimento global às flame wars do Facebook.  Às vezes, para efeito dramático, colocamos heróis superpoderosos do lado dos aliados e transformamos nazistas em zumbis. A diferença é apenas estética: a Segunda Guerra foi um morticínio, mas nem por isso deixou de ser a “boa guerra”, a “guerra honesta”, a guerra “necessária”.

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Já no Pacífico, qualquer obra sobre o conflito global é um chute no vespeiro. Ao contrário da Alemanha, o Japão manteve seu imperador, vivo e no poder, até sua morte em 1989. Para quem viveu essa época, fica difícil enxergar o fim da Segunda Guerra como um divisor de águas. O fato dos anos 1980 terem sido um auge da economia do país só complica as coisas. Para o japonês baby boomer, a Era Shouwa, do imperador Hirohito, foi a era da prosperidade.

Para piorar, os ocidentais antiamericanos, que adoram pregar que o Ocidente é culpado por tudo o que tem de errado no planeta, têm dificuldades para entender que o Império do Japão foi uma das ditaduras mais sangrentas da história. Ainda mais quando a maior parte da sua “resistência de oprimido” foi dirigida contra outros povos asiáticos: chineses, filipinos, indonésios. Os ultranacionalistas japoneses (pensem nos defensores da nossa ditadura) foram rápidos em agarrar a deixa. Segundo eles, o Japão foi uma “vítima” que lutou para se defender, e os crimes contra a humanidade que cometeu não passam de  “propaganda comunista”.

Assim, não é de se espantar que obras japonesas sobre a guerra gerem debates acalorados. Zero Eterno não fugiu à regra. Hayao Miyazaki, que abordou questões similares em seu Vidas ao Vento, chamou a obra de “uma pilha de mentiras” que induz jovens a se orgulharem dos pilotos de Zero.  Quando o premiê japonês Shinzo Abe disse que se emocionou com a adaptação à telona, a mídia não perdoou. Os veículos chineses acusaram a obra de ser “propaganda para o terrorismo”. A Economist, num artigo provocativo intitulado “A direita japonesa: missão cumprida?” diz que seu autor, Naoki Hyakuta, é um extremista político que prega que o Massacre de Nanquim em 1937 nunca aconteceu.

O que mais parece ter incomodado em Zero Eterno é a ideia de que os kamikaze teriam sido patriotas, que lutavam e se sacrificavam por convicção. Na realidade, dizem os críticos, a maior parte dos pilotos se alistava contra a sua vontade.

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Tenho minhas dúvidas de que as coisas sejam assim tão simples. A visão dos críticos é mais confortável, e mais parecida com a história “Capitão América vs Caveira Vermelha” que virou regra no ocidente. Todos são “vítimas” de uma ideologia malvada que não existe mais, e tudo o que foi feito em nome dela é errado.

O problema, infelizmente, é que fanáticos existem, e eles não são um ponto fora da curva. Décadas atrás, Haruko e Theodore Cook lançaram Japan at War: An Oral History, uma compilação de entrevistas com vários sobreviventes da Segunda Guerra. Basicamente o mesmo tipo de livro que o protagonista de Zero Eterno busca escrever. A variedade dos testemunhos é enorme, mas neles podemos separar claramente os alistados contra a própria vontade daqueles que se voluntariaram para morrer.

Um deles, piloto de kaiten (submarino suicida), diz que até hoje se sente envergonhado por não ter morrido pela glória do Imperador. Outro, que servira no exército, disse que as bombas atômicas foram apenas um arranhão, e que o Japão teria vencido a guerra caso não tivesse se rendido.  Os pacifistas que me perdoem, mas esse é o tipo de depoimento que eu espero de um homem-bomba.

Os “patriotas” da obra de Hyakuta existiram de fato. Que não fossem todos patriotas, obviamente, é outra história. No entanto, mesmo aqui acho que os detratores do Zero Eterno pegaram pesado demais. O autor é bem insistente ao dizer que os motivos que levavam cada um daqueles jovens a se tornar kamikaze eram muito diferentes. Um dos veteranos que Kentaro entrevista era um garoto pobre, forçado a trabalhar desde criança e que apanhava de todo mundo. A glória da aviação lhe dava aquilo que ele nunca teve: reconhecimento, fama, e – acima de tudo – um jeito de fugir dos espancamentos.

Ele não é um exemplo único. Em toda sociedade há uma multidão de jovens sem propósito, que se acham um lixo e são odiados ou ignorados pelos outros. Nenhum filme retratou isso melhor do que o alemão A Onda, em que um professor cria acidentalmente uma seita fascista na intenção em ensinar a seus alunos como o fascismo funciona. A garota popular da sala, amiga de todo mundo, é a primeira a perceber que há algo errado e pular fora. Já aquele que leva a doutrina às suas últimas consequências é justamente o excluído, o “estranho”, o sem amigos. Convença uma pessoa de que ela é infeliz, de que a culpa é dos outros e de que ela tem direito de odiá-los e o caminho para o fanatismo está aberto. Não é a toa que os extremismos foram (e sempre serão) tão populares.

O certo, o errado e o badass

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Resta aqui a crítica de Miyazaki, a mais simples e ao mesmo tempo mais incisiva de todas. O feedback negativo da lenda viva do Ghibli parece ter incomodado Hyakuta. Em uma troca que parece saída de uma briga na pré-escola, ele respondeu que “Miyakazi não bate bem da cabeça” e que Vidas ao Vento é que é cheio de mentiras. O criador de Nausicaa pode ser muitas coisas, mas incoerente ele não é. Como aqueles que assistem seus filmes já sabem de cor e salteado, para ele qualquer glorificação de batalha é errada. A guerra é ruim e ponto final. Não há “males menores”. Não há “causas justas”. Não deveria haver beleza alguma nas coisas que matam (daí o conflito do protagonista de Vidas ao Vento).

Infelizmente para Miyazaki, essa não é uma luta (com o perdão do trocadilho) que ele tem chances de ganhar, ao menos não em seu nível mais abstrato. O combate aéreo da Segunda Guerra Mundial tem um glamour que Castelo Animado nenhum é capaz de apagar. Antes dos mísseis teleguiados e jatos supersônicos, o combate nos céus era uma questão de habilidade. A dogfight do século XX era um duelo de perícia, inteligência e familiaridade com a máquina. Não é por acaso que elas serviram de base para as eletrizantes batalhas de Star Wars e para alguns dos videogames mais memoráveis de todos os tempos.

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Dá para entender porque as lembranças desses combatantes soam tão entranhas aos nossos ouvidos. Eugene Sledge, fuzileiro naval americano cujas memórias inspiraram a série The Pacific, narra que a guerra terrestre era tão cruel e violenta que soldados de ambos os lados chegavam a profanar cadáveres em busca de troféus. Cabeças, dedos e orgãos genitais eram decepados e mostrados aos outros por orgulho. O próprio Franklin Roosevelt chegou a ganhar de presente um abridor de cartas feito com ossos de um japonês. O inimigo era tão odiado que deixava de ser visto como ser humano.

Nos céus, a coisa era outra. Pilotos de caça não viam sangue, apenas explosões. Não havia massacres de prisioneiros, apenas confrontos com oponentes armados. Não havia baixas de civis, pois as batalhas eram travadas em alto-mar, com aviões pousando e saindo de porta-aviões ou de pistas em ilhas isoladas. A impressão, pelo menos, era de uma “guerra limpa”.

O exemplo mais chocante é o de Saburo Sakai, um ás da aviação japonesa que até faz uma ponta em Zero Eterno. Sakai foi um dos combatentes mais entrevistados da Segunda Guerra, e seus depoimentos podem ser encontrados na internet às dúzias. As histórias que ele conta são muitas vezes inacreditáveis. Em uma batalha, ele derrubou um grupo inteiro de bombardeiros, com exceção de um avião: por acaso, era aquele no qual servia Lyndon B. Johnson, futuro presidente dos EUA. Em outra, ele foi metralhado em vôo, perdeu um olho e conseguiu pousar em segurança. Depois da guerra, ele procurou, encontrou e ficou amigo do artilheiro que o havia atingido.

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Saburo Sakai é um homem que nos faz coçar a cabeça em confusão. Ele nunca guardou mágoas pela guerra e se tornou um grande fã da cultura americana, a ponto de mandar seus filhos estudarem nos EUA para “aprenderem o que é democracia”.  Ele era presença garantida em encontros de veteranos americanos, e morreu em 2000 durante um jantar com seus ex-inimigos na base militar americana de Atsugi. Sakai também teve um pé no mundo geek, servindo de consultor para o videogame Combat Flight Simulator 2.

Ao mesmo tempo, ele dizia que as atrocidades cometidas pelo seu país eram “exageros” feitos por oportunistas em busca de indenização do governo japonês. Pior ainda, em um episódio para dar “tela azul da morte” a qualquer militante antiamericano, ele disse que Paul Tibbets, piloto do avião que lançou a bomba em Hiroshima, foi um “grande herói dos EUA” e que teria feito a mesma coisa se estivesse em seu lugar.

Quem está certo em toda essa história? Eu não faço ideia e às vezes tenho medo de saber. Mas é justamente por tocarem em assuntos tão complicados, contraditórios e espinhosos como esse que obras como Zero Eterno me fascinam tanto.

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O titã da militância https://www.finisgeekis.com/2015/03/16/o-tita-da-militancia/ https://www.finisgeekis.com/2015/03/16/o-tita-da-militancia/#respond Mon, 16 Mar 2015 12:41:32 +0000 http://finisgeekis.com/?p=89 Dentro de breve chegará aos cinemas a adaptação live-action de Shingeki no Kyojin, ou Attack on Titan, um dos animes de maior sucesso dos últimos anos. Uma segunda temporada está para vir em 2016. Para os muitos fãs internacionais que se identificaram com sua trama de heroísmo e sacrifício, pode soar uma surpresa o fato de que, em sua terra natal, a obra foi recebida por certa controvérsia.

A série foi acusada de passar uma mensagem pró-militarista e de fomentar nostalgia pelas morais do regime de Hirohito. Mais precisamente, pelas fantasias de poder que instigaram a expansão do império japonês e culminaram no ataque aos aliados na Segunda Guerra Mundial.

A acusação é de coçar os olhos, e precisa de um certo contexto para quem, como nós, ocidentais, não acompanha a coisa de perto. O Japão tem uma relação complicada com sua memória histórica. Sua trajetória no século XX, pouco comentada no ocidente, envolve de invasões a países rivais ao uso de cobaias humanas para o desenvolvimento de armas bacteriológicas. Não é um histórico de se ter orgulho, e, após a bomba de Hiroshima, poucos se sentem confortáveis em colocar o dedo na ferida. Para o resto do mundo, o Império do Japão entra (e sai) dos livros de história como o lugar onde o pavor do apocalipse nuclear  começou. O que não consola em nada as antigas vítimas do regime. Como nossa própria ditadura mostrou, é difícil acreditar em justiça quando os culpados vivem uma vida confortável e morrem de velhice ainda no poder. Ou quando são sepultados com pompa em um mausoléu do Estado, com direito a visitas oficiais de políticos importantes. Ou ainda quando, graças a disputas territoriais, líderes de estado apelam à história para insultar seus adversários.

A troca de farpas não é nova, nem a acusação ao meio. Do popularíssimo Space Battleship Yamato ao obscuro Shin Gomanism Sengen, mangás já se viram várias vezes no balaio de revisionistas, com maior ou menor razão. Não é, portanto, nenhuma surpresa que críticos tenham voltado as armas (com o perdão do trocadilho) contra a vibe “vamos à luta!” de Shingeki. Ainda mais depois de seu criador, Hajime Isayama, dizer ter baseado um dos personagens em Akiyama Yoshifuru, general do exército imperial japonês. Se isso não fosse o suficiente, os pôsteres do live-action escancararam a referência ainda mais, adotando um visual “Segunda Guerra” que deve ter deixado fãs confusos. O material tem direito a tanques de guerra, mochilas de campanha e até o filtro amarronzado que O Resgate do Soldado Ryan tornou marca registrada de dramas militares. Estaria Isayama realmente mostrando nostalgia pelo Japão de Pearl Harbor e do Massacre de Nanquim?

shingeki collage

Críticas às “mensagens” de obras de arte dificilmente acabam bem. Talvez pelos críticos em questão reagirem mal quando alguém lhes informa que estão errados. Ou talvez pelas discussões estarem sempre a um passo do “se não concorda comigo, você foi manipulado e não sabe.” Pois bem, manipulação é algo difícil de se ver, mas desdobramentos não. E quais seriam os desdobramentos?

Pelo visto, o Curinga e os Vingadores também participaram

Pelo visto, o Curinga e os Vingadores também participaram

Em Hong Kong, manifestantes compararam a situação da cidade diante da China com a de Eren e Mikasa dentro da Muralha Rose. Um protesto chegou a contar com um boneco do titã colossal para dar inveja a muitos cosplayers amadores. No Brasil, os que participaram do alvoroço de 2013 devem se lembrar do “Attack on Dilma” e dos memes com o “gigante que acordou”.

0attackondilmaO número de paródias usando material do anime para defender causas políticas é enorme. Internet afora, podemos achar desde o calote da Grécia à União Europeia:shingeki greece

Até uma crítica ao Obama (ou sátira aos republicanos, é difícil dizer):

O anime parece ter entrado a contragosto em disputas mais sérias do que a maioria dos otakus talvez ache confortável. Ver o nome de sua série favorita em meio a posts zangados e bombas de efeito moral não é, sem dúvida, a primeira coisa que passaria na cabeça dos fãs (embora não seja lá tão incomum). Mas se isso faz de Shingeki no Kyojin mais do que um “simples anime”, em nada carrega da polêmica que sofreu no Japão.

Os espectadores que vibram com a guerra aos gigantes nada sabem (nem querem saber) do legado ideológico do Império do Japão: é a simplicidade da série, a força de sua exposição e o reconhecimento nas personagens que nos move a torcer pelo seu sucesso. Todos apanhamos da vida, do governo e dos outros, e se nossos reveses não devoram gente, nem por isso são menores que os gigantes, ou nos fazem menos impotentes. Shingeki é, sim uma “fantasia de poder”: o poder de revidar quando sabemos ser impossível vencer.

Afinal de contas, “mensagens”, tal como a beleza, muitas vezes estão nos olhos de quem vê.

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