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Netflix – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Mon, 25 Feb 2019 17:41:07 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Netflix – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Afinal, qual é a graça de séries sobre comida? https://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/ https://www.finisgeekis.com/2017/07/25/afinal-qual-e-a-graca-de-series-sobre-comida/#comments Tue, 25 Jul 2017 13:10:08 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17563

Um jovem e um velho estão sentados num balcão. A comida que pediram, duas tigelas de lamen, acaba de chegar.

Sensei” pergunta o jovem “O que se come primeiro? O caldo ou o macarrão? ”

“Primeiro” responde o velho “Nós observamos. Pegue o hashi e acaricie a superfície. Admire o brilho da gordura, as raízes de menma, a alga que afunda lentamente. Concentre-se nas três fatias de tyashu. E então…”

“Nós comemos?”

“Não. Nós pedimos desculpas ao porco”. Ele se aproxima tyashu e sussurra “Nós nos veremos em breve”.

Poderia ser um esquete de Isekai Shokudou, o anime gastronômico da temporada. Mas é uma cena de Tampopo, filme de 1985 e um dos clássicos do cinema japonês.

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Começo mencionando essa cena porque, se não a tivesse assistido, não entenderia nada da última tendência que venho observando em séries japonesas.

Falo, aqui, de séries sobre comida. Não sobre culinária, ingredientes exóticos ou duelos gastronômicos com pratos que deixam as pessoas nuas. Sobre o simples ato de comer.

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Afinal, qual seria o ponto de um anime que se resume a personagens de RPG curtindo a hora do almoço? Em especial quando os pratos não são maravilhas da haute cuisine, mas o PF nosso de cada dia?

Onde termina a ficção e começa o food porn?

Aparentemente, na audiência. Dois desses mangás, afinal, não só foram adaptados ao live action, como ganharam espaço na grade da Netflix.

Assistir aos outros comendo parece ser tão popular na Terra do Sol Nascente que foi o entretenimento que escolherem para exportar ao mundo.

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Gourmet mangá

Pode parecer sarcasmo, mas não é. No Japão, mangás sobre comida são tão bem estabelecidos que já conquistaram um gênero próprio

Não falo de Shokugeki no Souma, que usa a gastronomia como mera roupagem para um shounen de esporte. Nem de tantos slice of life cujas personagens cozinham ou trabalham em padarias.

Chamados de gourmet manga ou ryori manga, são histórias cujo foco não está no ato de cozinhar, mas no simples prazer da refeição.

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Não existe ação ou reviravoltas – em alguns casos, nem mesmo um enredo. Kodoku no Gourmet, referência do gênero, nos traz a “emocionante” história de um funcionário de escritório desbravando o almoço de cada dia.

Alguns, nem mesmo isso. Ekiben Hitoritabique o ANN desenterrou do arco da velha, é uma propaganda gratuita para bentôs de estação de trem. Que se estendeu por 15 tankobons

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Isso sim é publicidade

Como que um gênero como esse pode fazer tanto sucesso? E como essas histórias, muitas vezes, acabam sendo legitimamente cativantes?

É o que eu me aventurei a descobrir.

Tóquio, a capital da gastronomia

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O Japão pode ser conhecido como a “terra do peixe cru”, mas sua culinária há muito já superou o bairrismo. Apenas Tóquio possui 304 estrelas do Guia Michelin, a publicação mais respeitada do ramo.

Isso é mais que o dobro de Paris (134) e o triplo de Nova York (99). Outras grandes cidades japonesas, como Kyoto e Osaka, também estão no top 10.

Se entrarmos na cozinha do dia a dia, não há sequer comparação. Em São Paulo, existem cerca de 111 restaurantes para cada 100 mil habitantes. Em Tóquio, são 1122, dez vezes mais.

Shokugeki no Souma não mentiu. O Japão é, sem sombra de dúvida, a capital mundial da gastronomia.

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É de se esperar que um país com essa aptidão fosse projetar seu entusiasmo na cultura.

De fato, como lembra a revista Hashitag, os gourmet mangás se tornaram um apêndice importante da indústria gastronômica nipônica. A influência das séries é tamanha que chegou a influenciar o mercado culinário, ditando tendências e popularizando ingredientes.

Não é de se espantar. Afinal de contas, não há nada melhor para atiçar o apetite do que ver um bife marmorizado na nossa leitura de cada dia.

Porém, isso não responde tudo.

A “Década Perdida”

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Os gourmet mangás, afinal de contas, não acompanham qualquer tipo de comida – nem qualquer tipo de comedor. Ao contrário do que o título indica, seus “heróis” não estão interessados em gastronomia fina, mas na comida do dia-a-dia.

Para Jason Thompson do ANN, isso tem a ver com a chamada Década Perdida, um período de recessão econômica que sacudiu o Japão nos anos 1990.

Em 1991, o estouro de uma bolha imobiliária encerrou o período de vagas gordas que o país curtiu no pós-guerra. Em 1995, com o Terremoto de Kobe e o Atentado ao Metrô de Tóquio, pairou sobre o Japão uma nuvem ainda mais densa de pessimismo, com forte influência para a cultura e os animes.

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Os gourmet mangás, para Thompson, foram um fruto dessa nuvem. Eles são uma ode ao “copo meio cheio”: um lembrete às pessoas de que, por mais duro que seja abandonar os luxos, é possível encontrar felicidades nas pequenas coisas.

Nobushi no Gourmet, lançado internacionalmente como Samurai Gourmet, encapsula perfeitamente essa mentalidade. Sua trama acompanha um ex-funcionário que descobre que sua vida não faz sentido.

Aos 60 anos, forçado a se aposentar, constata que seu mundo era o escritório. Impossibilitado de trabalhar, sente-se como um samurai sem mestre, à espera do seppuku.

Felizmente, é na macheza do próprio ronin que ele encontra sua redenção. Espécie de Walter White nipônico e bom caráter, o protagonista emula a fanfarronice do guerreiro para voltar a se respeitar como homem: comendo sem pressa, bebendo à vontade, repetindo sem remorso.

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A mensagem não poderia ser mais clara. Samurai Gourmet é um retrato perfeito da ética de trabalho japonesa – sintoma de um país, como diz meu amigo Fábio do Anime21, em que é esperado que pessoas vivam para trabalhar, e não trabalhem para viver.

Mas seria apenas isso? Eu acho que não.

A gula é eterna

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Por mais que goste do argumento de Thompson, ele não me convence 100%.

Ele não explica Tampopo, lançado em 1985, muito antes da crise, quando o Japão ainda era visto como a próxima nova potência. Nem Oishinbo, primeiro grande sucesso do gênero, em publicação desde 1983. De fato, como bem mostra a Hashitag, os gourmet mangás remontam aos anos 1970.

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Oshinbo, primeiro gourmet mangá de sucesso

Tampopo, aliás, talvez traga uma pista para o mistério.

O filme é uma série de esquetes cômicas, com níveis exponenciais de absurdo, sobre um caminhoneiro que busca salvar um restaurante decadente.

Há uma professora de etiqueta, que tenta a duras custas ensinar seus alunos a comer macarrão em silêncio (no Japão, fazer barulho é sinal de educação). Há um mendigo que pede esmola na rua dos restaurantes chiques, e de tanto beber restos de vinho que os clientes jogam fora, tornou-se um sommelier nato. Há uma mãe moribunda que, no lugar do último suspiro, faz um último yakimeshi para sua família.

 

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O que os esquetes têm em comum é um tributo à comida, e a seu papel central nas relações humanas.

É o espírito de Shinya Shokudou, talvez o ryouri mangá que melhor se internacionalizou. A série foca no dono de um boteco da madrugada e suas relações com seus clientes: yakuza, prostitutas, atores pornôs, excêntricos em geral.

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Seus comensais podem não ter chifres ou escamas como os seres de Isekai Shokudou, mas também são de outro mundo, à sua própria maneira. Estas são pessoas que, por pressões sociais ou decisões de vida, acabaram relegadas à marginalidade, condenadas à noite.

Tal como Aletta, a garçonete-demônio de Isekai, eles são párias, salvos do ostracismo pela beleza da gastronomia.

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Na vida cotidiana, comer se tornou uma obrigação. Engolimos tudo o mais rápido possível. Fast food e congelados são o combustível que nos mantém vivos.

Não estou julgando, só citando os fatos. Quem, afinal, tem tempo para filetar um peixe?

Opõe-se a esse paradigma os ativistas do slow food. Inspirados pela culinária italiana e espanhola, pregam a refeição como um ritual, uma forma de agregar as pessoas e unir gerações.

É a criação que eu recebi da minha vó calabresa, e razão pela qual não abro mão de meus almoços com a família.

Os gourmet mangás parecem advogar uma terceira via. A refeição rápida, porém digna. A comida simples (e nem tão saudável), mas degustada com paixão. O ritual solitário.

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É uma mentalidade, quiçá, tão japonesa quanto uma tigela de lamen. Porém, que toca em algo tão elementar que cumpre a função última da arte: transformar o específico em universal.

Não é preciso saber o que é um naruto ou um tonkatsu para simpatizar com um sorriso de saciedade. Cardápios vêm e vão; a gula é eterna.

 

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“The Crown”: Por que Elizabeth II é tão importante https://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/ https://www.finisgeekis.com/2016/12/06/the-crown-por-que-elizabeth-ii-e-tao-importante/#respond Tue, 06 Dec 2016 21:10:01 +0000 http://finisgeekis.com/?p=13402

Algumas heroínas são óbvias. Outras, nem tanto.

Todos nós estamos acostumados a garotas mágicas e guerreiras de capa e collant. Nos últimos tempos, anti-heróinas e vilãs carismática também marcaram presença. Não parece ter sido o suficiente para a Netflix, que resolveu pensar fora da caixa.

E nos trazer uma heróina bastante diferente.

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À primeira vista, Elizabeth II não parece ser uma pessoa muito emocionante. Para nós, que nos acostumamos a encará-la como uma velhinha simpática, é difícil imaginá-la fora das colunas sociais. Muito menos como protagonista de uma nova série, prevista para durar seis temporadas.

Apenas à primeira vista.

Como nos mostra o seriado The Crown (que contém até um brasileiro entre os produtores), Elizabeth II foi (e ainda é) uma das mulheres mais poderosas da atualidade, com um dedo em vários dos mais importantes episódios históricos do século XX.

Não deixem os vestidos, jóias e corgis enganá-los. A rainha é badass.

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Bem, não exatamente desse jeito

“Mas como?” muitos, inclusive eu próprio, já devem ter perguntado. O cargo de monarca não é apenas cerimonial? O que as fofocas sobre o Príncipe William têm a ver com grandeza e heroísmo? Porque os britânicos insistem na monarquia, enquanto que tantos outros países já a abandonaram?

Acontece que há muito mais na rainha do que coroas e palácios. A “Coroa” que dá nome ao seriado é muito mais que uma jóia. É um princípio tão importante que, sem ele, o Reino Unido não consegue funcionar.

É o que me conta meu grande amigo Rafael Andrade, que conhece o assunto melhor que ninguém.

Intrigado pela série, resolvi procurá-lo para escrever um artigo especial para o finisgeekis, nos contando porque Elizabeth II é tão importante – e porque nós, ao assistir The Crown, estamos perdoados se terminarmos de queixo caído.

Confiram abaixo:

A heroína que a Inglaterra merece

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Qual, afinal, é a função da rainha? A resposta mais simples é que ela desempenha um papel constitucional na Inglaterra.

Claro, antes de comentar isso, é preciso entender o que é exatamente, a constituição britânica.

Ao contrário da maioria das monarquias constitucionais do mundo, o que torna o Reino Unido um caso ainda mais sui generis é que o país não possui uma constituição formal. Aí você pode se perguntar: mas pera aí, o tempo todo eles falam na constituição durante a série, o que isso quer dizer?

Pois bem, o que quer dizer é que, no Reino Unido, ao invés de um só documento constitucional rígido, como funciona nos Estados Unidos, no Brasil e praticamente todos os outros países do mundo, quatro fontes de entendimento constitucional são adotadas:

Elas são a common law (leis baseadas na tradição e nas decisões tomadas anteriormente por juízes e cortes de justiça), a statute law (leis estabelecidas para legislar pontos importantes que contrariem a common law ou que precisem de legislação mais rígida), convenções parlamentares (que tratam do funcionamento do parlamento) e, por fim, os works of authority (uma coleção de obras fundamentais para o entendimento da lei, incluindo “A Constituição Inglesa” de Bagehot, que é citada o tempo todo na série e que é uma das obras estudadas por todos os herdeiros do trono inglês, como também vimos na série).

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Como não poderia deixar de ser, todas as quatro fontes de poder  são intimamente ligadas à figura do soberano.

A common law vem diretamente da sua autoridade como representante das tradições inglesas, chefe da Igreja Anglicana e, até 2005,  por ter a prerrogativa de apontar o chefe do sistema judiciário inglês, sob aconselhamento do primeiro ministro.

A statute law, assim como a common law, também provém da autoridade do soberano, mas de maneira diferente. Apesar de serem aprovadas em última instância pelo monarca, essas leis tradicionalmente limitam o poder que ele exerce.

Esse tem sido o caso desde a Magna Carta de 1297 até o recente ato parlamentar de 2011. Apesar disso, é a autoridade e continuidade da instituição da monarquia que permite que documentos do século XIII ou XVII sejam citados em tribunais britânicos até os dias de hoje.

As convenções do parlamento e os works of authority, apesar de não serem ligados diretamente à monarquia, também dizem respeito ao soberano, na medida em que discutem suas prerrogativas e a própria natureza do poder real.

Não é pouca coisa, e não é à toa que George VI exige que Elizabeth passe toda a sua infância estudando apenas esses fundamentos. A jovem rainha pode se incomodar por não  ter estudado conhecimentos gerais, mas tudo existe por um motivo.

Poder apenas simbólico, mas nem tanto

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Mas como funciona o poder real? O que Elizabeth pode e não pode fazer?

Os direitos constitucionais mais importantes do soberano, aqueles que são aplicados com maior frequência, são: o direito de ser consultado, o direito de encorajar e o direito de avisar (que também foram teorizados por Bagehot).

Esses direitos representam a influência pessoal que o monarca, símbolo das instituições do Reino Unido pode ter em suas reuniões com o primeiro-ministro, chefe do governo de Sua Majestade e são vistos com clareza durante a série.

Ao longo dos episódios, Elizabeth se reúne diversas vezes com Churchill, que acaba se considerando uma espécie de professor da jovem rainha.

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Quanta influência que o monarca de fato exerce no governo do país é difícil de medir. Afinal, nós, meros mortais, não temos acesso exato ao que é conversado entre as quatro paredes do Palácio de Buckingham entre o primeiro-ministro e seu soberano.

Temos, no entanto, vários indícios de um poder de influência forte, apesar de exercido com parcimônia.

Por exemplo, durante a Crise da Rodésia, quando o país africano, (atual Zimbábue) declarou-se independente da Coroa, a rainha teve uma atuação extremamente importante, cooperando com o gabinete para lidar com a ex-colônia rebelde.

É, aliás, nas relações exteriores em que o poder simbólico do monarca fica ainda mais aparente. Como Chefe de Estado e representante do poder emanado pelo governo britânico, o soberano desempenha papéis cerimoniais em vários eventos, espalhados pelo território da Commonwealth, assim como visitas de estado em vários países, como o próprio Brasil, que foi visitado pela ilustre Rainha em 1968.

Em The Crown, não é por acaso que George VI coloca tanta importância na Commonwealth Tour, a rodada oficial de visitas às colônias britânicas. Nem que Elizabeth, quando vista a sua coroa, faça o mesmo.

No episódio 8, Orgulho e Alegria, sua relação com o marido ameaça degringolar porque se recusa a encurtar a viagem. Tudo por uma boa causa: como diz um de seus assessores, os “ventos da independência” sopram pelo continente.

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Além das funções cerimoniais, o poder de influência é claríssimo, como demonstrado pela própria série no episódio em que o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, é forçado a aceitar o convite da rainha para um banquete de Estado.

Apesar de não ser um mais um colosso diplomático como foi sua trisavó, a Rainha Vitória, apelidada carinhosamente de “avó da Europa”, em uma era onde as monarquias são cada vez mais raras e as oportunidade para o monarca de influenciar diretamente a diplomacia do país por via de casamentos reais são, consequentemente, cada vez mais escassas, a influência exercida pela atual Rainha é sentida e impõe um respeito intangível nos Chefes de Estados estrangeiros.

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O staff do Palácio de Buckingham que o diga

A parte mais importante do poder simbólico real, entretanto, é o senso de continuidade passada pela instituição. Ele é refletido nas cerimônias oficiais, como a coroação e a abertura do parlamento.

A série passa bem isso na cena da coroação, apesar de não entrar em todos os pormenores que os amantes da monarquia adoram discutir.

Por exemplo, você sabia que o trono de madeira simples  no qual a Rainha sentou durante sua coroação, o que foi replicado fielmente na série, é um trono comissionado pelo Rei Eduardo I (sim, ele mesmo, o “Martelo dos Escoceses”, vilão do filme Coração Valente) e contém uma pedra ancestral capturada pelo Rei durante suas guerras na Escócia e antes utilizada nas cerimônias de coroação dos reis escoceses?

Quem assistiu ao filme O Discurso do Rei deve se lembrar de uma cena engraçada envolvendo ele. No longa, o fonoaudiólogo do rei George VI se senta no trono para motivar o monarca, que é gago, a falar.

O truque dá certo, e o soberano, fulo com a insolência, consegue superar sua gaguice.

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E essa é apenas uma de tantas relíquias utilizadas na cerimônia, que visa a acentuar ainda mais esse senso de continuidade.

Se um dia você, leitor, tiver a oportunidade de visitar a Abadia ou o Parlamento de Westminster (a sede do governo britânico), repare em como o ambiente é construído para valorizar a continuidade. Tudo foi extremamente pensado para te passar a impressão da monarquia é a mesma instituição inquebrantável da Inglaterra Anglo-Saxã medieval até os dias de hoje.

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Abadia de Westminster, em Londres

Minha cena favorita na série, inclusive, diz respeito a isso. No episódio 4, Elizabeth procura o conselho de sua avó, Mary, e as duas conversam sobre o “direito divino”. A jovem rainha acaba mencionando que, para seu marido, nas monarquias modernas há de existir uma separação entre Igreja e Estado (o que muitas vezes não cai tão bem na monarquia, mas essa é uma história para outra ocasião).

Ao ouvir isso a Rainha Mary, do alto de sua dignidade, dispara: “Sim, mas ele representa uma Família Real de aventureiros e novos-ricos que remonta o quê? 90 anos?  O que ele sabe de Alfredo, o Grande, o Cetro da Igualdade e Caridade, Eduardo, o Confessor, Guilherme o Conquistador ou Henrique VIII?”

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A noção de que uma instituição representa, e tem representado a nação durante toda sua história é extremamente poderosa.

Poder real, mas nem tanto

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Além do poder simbólico, a Coroa ainda possuí uma gama de prerrogativas que utiliza para exercer poder de fato sobre o governo.  O problema é que, como já falamos antes, a natureza da constituição britânica não é formal e escrita, o que torna muito, mas muito difícil saber até onde vão as prerrogativas.

Em 2004, o governo britânico tornou algumas delas públicas. Entre as mais importantes são a prerrogativa da misericórdia (o famoso “perdão real”), a prerrogativa de declarar guerra (na prática é sempre exercida pelo primeiro-ministro em nome do monarca, e foi objeto de polêmica quando utilizada por Tony Blair em 2002 na participação britânica na guerra do Iraque) e a prerrogativa de demissão de um primeiro ministro.

Em The Crown, vemos Elizabeth tentada a fazer uso dessa última prerrogativa para demitir Churchill durante o Grande Nevoeiro de 1952. Não é à toa que ela pensa duas vezes: ela é extremamente poderosa. Da última vez em que foi utilizada (em 1834!) resultou em desastre político.

Como os monarcas sabem muito bem, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

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Há ainda a prerrogativa mais poderosa de todas: o consentimento real. Ela é importante porque é a base do poder do monarca. Basicamente, quando uma das casas do parlamento (Casa dos Lordes ou Casa dos Comuns) deseja passar uma lei, ela primeiro tem que ser votada na casa que a iniciou, depois na outra casa e, por fim, passar pelo aceite real.

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O caminho da lei até ser aceita. Fonte

Por convenção, a rainha aprova todas as leis que saem do parlamento. No entanto, o direito de veto é uma das prerrogativas reais. Ou seja: em teoria, o soberano tem direito constitucional de vetar uma lei que considere contrária ao interesse nacional. Isso é absolutamente poderoso e a última vez que aconteceu no Reino Unido foi no longínquo ano de 1704.

Mesmo assim, temos um exemplo recente de uso do veto em outra monarquia constitucional: o Grão-Ducado de Luxemburgo.

Em 2008, o  Grão-Duque Henri se recusou a dar o consentimento a uma lei que legalizava a eutanásia no país, alegando que assinar uma lei dessas ia contra sua liberdade de consciência. Comprou uma briga com seu parlamento e perdeu. Depois de 60% da população se declarar contrária à sua atitude, foi aberta uma sessão para emenda constitucional no parlamento luxemburguês e o Grão-Duque perdeu seu direito de veto.

Portanto, é difícil saber se as prerrogativas conhecidas são meramente teóricas ou se teriam utilidade prática se fossem usadas à revelia do parlamento. Em todo o caso, elas são estritamente controladas e servem mais como um poder extra em caso de grave crise nacional ou guerra.

Caso um monarca faça mal uso delas, certamente enfrentará uma crise constitucional de enormes proporções e porá em risco não só sua própria posição como a própria monarquia.

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Pois é, Margaret. Não adianta chorar

Apenas em momentos de atrito entre o governo e a coroa, como o ocorrido em Luxemburgo, descobriremos se a maioria das prerrogativas realmente tem efeito no mundo moderno (além do uso como poder de exceção durante crises, que já foi comprovado).

Enquanto isso, os ingleses rezam para que esse dia nunca chegue, pois um confronto entre Sua Majestade e seu governo traria resultados catastróficos para o país – qualquer que fosse o resultado.

A protagonista de The Crown pode não usar uma capa. Mesmo assim, é evidente que, em termos de responsabilidade, não perde de nenhuma super-heroína.

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E aqui chega ao fim esse post especial. Gostaria de fazer um agradecimento especial ao Rafael pela colaboração. E a você, leitor e fã de The Crown, por ter chegado até aqui. Até a próxima!

Ou, como diriam os britânicos, godspeed!

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“Black Mirror”: nosso maior pesadelo é o passado, não o futuro https://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/ https://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/#respond Mon, 31 Oct 2016 20:49:50 +0000 http://finisgeekis.com/?p=12378

Se eu tivesse que apostar que uma série britânica underground como Black Mirror um dia ganharia os aplausos da multidão, perderia meu dinheiro.

É verdade que a obra, que está agora em sua terceira temporada, sempre deu sinais de que brilharia. Gigantes do entretenimento como Stephen King e Robert Downey Jr. se disseram seus fãs. Seu especial de natal contou com a participação de Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men.

Desde o princípio, Black Mirror foi uma excelente ideia à espera de alguém que a comprasse. Para sua sorte, a honra veio de ninguém menos que do Netflix.

Aos que não a conhecem, a série é uma coleção de curtas sobre a relação do homem com a tecnologia. Apesar de referências a uma cronologia comum, cada episódio é independente, dirigido por um diretor diferente, com seu próprio elenco e enredo.

Às vezes sarcásticos, quase sempre distópicos, raramente otimistas, seus contos são ficções especulativas ambientadas “15 minutos no futuro”: distantes a ponto de serem diferentes do nosso mundo, mas próximas o suficiente para nos fazer temer suas consequências.

Em The Entire History of You, por exemplo, um dispositivo permite que as pessoas gravem e assistam a todas as suas memórias. O que parece uma bênção logo se mostra uma maldição. Como as personagens de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, seu protagonista aprende que num mundo sem esquecimento nossos erros nos assombrarão para sempre.

Em White Christmas, por sua vez, pessoas podem ser “bloqueadas” na vida real como no Facebook. Uma vez que isso aconteça, não podem ser vistas ou ouvidas por aqueles que o bloquearam. Criminosos são punidos com um “bloqueio universal”, que os impede de interagir com os outros pelo resto de suas vidas.

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Em Nosedive, estreia da nova temporada, pessoas avaliam umas às outras no estilo do Uber. Tal como no aplicativo de caronas, uma nota muito baixa implica na perda de benefícios – neste caso, direitos civis.

O lado negro da tecnologia

O “espelho negro” que dá nome à série é uma referência às telas de smartphones. Por um lado, são uma fixação que parecemos não ser capazes de largar. Por outro, como todo espelho, nos mostram o reflexo (distorcido) de quem realmente somos.

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Quem revira os olhos com imprecações contra os “males da modernidade” pode respirar aliviado. Black Mirror não é hard sci fi. Suas “profecias” tecnológicas beiram o fantasioso. Seu worldbuilding, até pela proximidade com o presente, é mínimo.

Um mundo inteiro jamais poderia ser sustentado apenas por humanos gerando energia em bicicletas ergométricas, como sugere Fitfteen Million Merits. Já Hated in the Nation, em que abelhas robóticas caçam pessoas com o poder do Twitter, parece um argumento de filme B.

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Cena de “Fifteen Million Merits”

Criticar a série por causa disso, obviamente, é deixar de lado o mais importante. Black Mirror não é uma “profecia” tecnológica, mas uma redução ao absurdo, uma suposição do que aconteceria se os problemas da vida contemporânea fossem alargados ao extremo.

Seus contos são tão irreais quanto os pesadelos em que ficamos pelados em público, ou em que descobrimos que nossos pais são impostores. Porém, tal como estes pesadelos, é justamente por tocar em medos tão viscerais que a série nos sacode emocionalmente.

Como disse seu criador, Charlie Brooker, a ideia não foi escrever uma ode contra a tecnologia, mas avisar sobre o que ela pode nos trazer.

Brooker é otimista, ou apenas muito ingênuo. Pois, como outros já apontaram, a distopia de Black Mirror está longe de ser um palpite. Os terrores da tecnologia que a série nos apresenta são problemas com que convivemos há muito tempo.

E por “muito”, não penso em anos, mas em séculos.

A tirania da comunidade

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Revoltados de plantão passam uma boa parte de seu tempo defendendo a liberdade de pensamento, a privacidade e o princípio da ampla defesa. Fazem bem. Essas garantias, afinal de contas, são os pilares da sociedade que conhecemos.

O que talvez os surpreenda é que o statu quo que gostam de proteger é muito mais novo do que imaginam.

Até cerca de 200 anos atrás (em alguns lugares, por muito mais tempo), pessoas viviam em comunidades minúsculas, em que todos se conheciam. O problema, como notaram pesquisadores, é que sociedades fechadas não são apenas diferentes. Elas também funcionam de uma outra forma.

Como a informação circula pouco, manter segredo se torna difícil. Fofoca é um esporte popular. O que cada um faz, com quem cada um se relaciona e mesmo o que cada um pensa logo vira assunto público.

Como a lei é fraca e o tribalismo forte, os conflitos são resolvidos entre as pessoas. O que a comunidade achar errado, nem que apenas uma desfeita após a missa de domingo, é suficiente para arruinar uma pessoa. Não importa se a punição é desumana: enquanto for o desejo da maioria, ela será merecida.

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Em uma sociedade onde a vontade da turba é a que manda, é questão de tempo até que as pessoas comecem a viver pelas aparências. Afinal, é justamente por elas que serão julgadas – e condenadas. Máscaras se tornam tão importantes quanto rostos.

Daí que, para manter a “ordem” e “fazer o que é justo”, não basta exigir o troco. É preciso assassinar suas reputações, humilhá-las, desumanizá-las.

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É a filosofia de A Letra Escarlate, em que uma adúltera é obrigada a vestir uma marca para que os demais reconheçam seu pecado de longe.

É o que, entre 1692 e 1693, levou 25 pessoas à morte em Salém, Massachusetts, vítimas da fofoca de um grupo de garotas. É o que fazia com que, na Versailles do Ancien Régime, brigas, rivalidades políticas e até mesmo duelos fossem provocados pelos mais fúteis dos motivos.

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Foi apenas com a explosão populacional e o surgimento das grandes metrópoles que outro caminho começou a se abrir. Na nova sociedade urbanizada, fria e superpovoada, pessoas se tornam estranhas. A cidade é o império do anônimo.

Na multidão, o indivíduo não precisava mais ser escravo de sua comunidade. Podia ir aonde desejasse, relacionar-se com quem quisesse, experimentar o que lhe desse na telha.

Se essa utopia parece fresca, é porque foi apropriada pela retórica da globalização e da revolução digital. O cidadão internacional não deve mais obediência à pátria: o mundo é seu playground. Comunidades virtuais, de fandoms a praticantes de fetiches sexuais, permitem que as pessoas escolham suas tribos – e se “desconectem” sempre que quiserem.

Que Black Mirror nos choque tanto é prova de que esse sonho ainda segue firme. Mesmo que a realidade, cada vez mais, conte outra história:

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Na sanha de nos aterrorizar com o futuro,  Black Mirror nos apresenta um mundo que a humanidade conhece muito bem. De uma utopia infinita e interconectada, a sociedade ameaça se tornar tão fechada, provinciana e inclemente quanto foi durante a maior parte da história.

Infelizmente para os “pessimistas” de  Black Mirror, virar essa mesa é uma tarefa muito mais complicada do que nos livrarmos dos últimos gadgets.

O que desejamos apagar

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À primeira vista, é fácil supor que a série de Brooker seja uma fábula sobre os excessos da tecnologia. Desafetos da Apple, compartilhadores de correntes nostálgicas no Facebook e metidos a politizados em luta contra a “alienação” encontraram na série um prato cheio para esbanjarem as próprias certezas.

Porém, há pouquíssimo nessa distopia futurista que não seja superado pelo que a era pré-digital, sem pompa ou circunstância, era capaz de fazer.

A “likecracia” de Nosedive pode parecer uma histeria tirânica. Porém, é inacreditavelmente mais branda do que o higienismo do século XIX, quando presídios inteiros eram construídos para prender e torturar pessoas desfavorecidas, deslocadas ou inconvenientes.

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Antiga prisão de Cork. No final do século XIX, uma mulher chegou a ser presa por “bebedeira” e “linguagem obscena”.

Já em Men Against Fire, soldados recebem implantes cibernéticos que fazem com que enxerguem seus inimigos como monstros. Assim, podem atirar sem sofrer com o dilema moral em matar outras pessoas.

Com o jargão típico da geração 11/09, uma colunista do The Mirror disse que o episódio fala sobre “as consequências filosóficas da guerra de alta tecnologia”.

Mas Nathan Bedford Forrest, oficial confederado e primeiro grão-mago da KKK, não precisou de implantes para chacinar prisioneiros negros no Massacre do Forte Pillow. Nem soldados japoneses para sequestrar e baionetar bebês durante a invasão da China (CUIDADO, NSFW).

Será que essas guerras eram menos “filosóficas” que as nossas?

Ironicamente, se existe algo próximo da guerra “humanizada” que o episódio parece defender, ela está justamente na matança “futurista” que tanto critica. Entre o desenvolvimento de tecnologias para reduzir danos colaterais e uma opinião pública horrorizada como nunca antes com a violência, o combate se torna cada dia menos letal.

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Resultado de ‘Gyokusai’ ou Carga Banzai, 1942

As visões de progresso pregam que a humanidade pode sempre transcender suas barreiras. Nada está escrito na pedra. O amanhã será melhor que o ontem. Nenhum vício é inconsertável, e nenhuma virtude inatingível. Com determinação suficiente, é possível ultrapassar qualquer barreira: a política, a linguagem, o preconceito e mesmo a biologia.

O grande pavor dessas visões não é pensar que suas boas intenções possam edificar uma distopia. É imaginar que, não importa o que façamos, algumas coisas se recusarão a mudar.

É descobrir que nossas piores depravidades vão nos acompanhar até o final dos tempos. E que há, no seio de cada um, uma natureza humana que engenharia social nenhuma será capaz de apagar.

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4 coisas a se esperar das futuras convenções nerds https://www.finisgeekis.com/2015/12/07/4-coisas-a-se-esperar-das-futuras-convencoes-nerds/ https://www.finisgeekis.com/2015/12/07/4-coisas-a-se-esperar-das-futuras-convencoes-nerds/#respond Mon, 07 Dec 2015 21:08:56 +0000 http://finisgeekis.com/?p=1116 Fonte da imagem

Nenhum indivíduo que adentrou a Comic Con Experience (CCXP) na semana passada provavelmente saiu da mesma forma.

“Vai ser épico” foi um dos slogans do evento. Memes à parte, a descrição não ficou muito distante da realidade. A CCXP trouxe aos brasileiros um modelo de convenção ao qual nosso país ainda não estava acostumado.

Como alguém que frequenta esse tipo de evento há cerca de dez anos, não pude deixar de notar a diferença entre as celebrações de fandoms de nossas convenções tradicionais e a escala industrial, maciça e corporativa emplacada pela CCXP. Os gigantes do mundo do entretenimento, que antes conhecíamos apenas via VHS piratas, merchandise bootleg e releituras em fanart, montaram seus estandes para se comunicar diretamente com o público.

Nas cerca de 8 horas que passei no evento, uma pergunta não saiu da minha cabeça: Depois de tanto glamour, convidados de peso, produtos de qualidade e atenção da indústria, seria possível voltar atrás?

Se a pompa e circunstância da CCXP vai se tornar o novo preto só o tempo nos dirá. No entanto, para o bem e para o mal, creio que ele sinalize uma mudança importante entre dois modelos de convenções nerds. E esse caminho, apesar de “épico”, traz desafios aos quais devemos nos preparar.

1- O modelo americano chegou em peso

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Quando pensamos em convenções nerds, os Estados Unidos são o primeiro país que nos vem à mente. Foi de lá, afinal, que o culto aos fandoms – e vários de seus rituais, inclusive o cosplay – foram exportados para o restante do mundo.

Observando os números astronômicos da San Diego Comic Com (SDCC), Anime Expo e Wondercon, é difícil imaginar que essas convenções nem sempre foram gigantescas. Pelo contrário, o fenômeno é recente. Até 2007, a SDCC vendia ingressos na entrada. Um ano depois, para garantir o passeio apenas com reservas antecipadas.

San Diego Comic-Con. Photo by Kendall Whitehouse

MUITO antecipadas

O que aconteceu foi uma mudança em todo o modelo de negócio. Após o sucesso do primeiro live-action de  X-Men, a indústria de entretenimento percebeu que o mundo nerd era uma mina de ouro. De artistas independentes e colecionadores de figures, as convenções deram espaço a painéis de produtoras de Hollywood e editoras de alcance global.

Se a CCXP é um indicativo do que está por vir, esse novo modelo acaba de chegar ao Brasil. Saem apresentações de karaokê e entram Dave Tennant, Krysten Ritter e Frank Miller. Saem banquinhas de DVD e entram estandes da Universal, Warner, Sony e Netflix.

Isso pode ser “épico”, como anunciou a organização do evento, mas tudo tem seu preço. Quanto mais dinheiro envolvido, mais caros se tornam os estandes, e mais acirrada é a competição por um lugar ao sol.

Isso aconteceu na SDCC. A trajetória de sucesso do evento – hoje, o mais importante do mundo geek – e a competição com os titãs do entretenimento acabou tornando impossível a participação de muitos expositores independentes. Isto inclui pessoas que apoiavam a convenção há décadas, desde quando era uma celebração sem fins lucrativos feita para dar ibope a eventos maiores.

Em tanque de tubarão, peixe pequeno não tem vez.

 

2- Os modelos de consumo dos brasileiros estão mudando

netflix

Poucos lugares comuns são mais “comuns” do que a máxima de que o brasileiro é corrupto. Para a maioria das pessoas, apostar na honestidade alheia na terra da Lei de Gérson é mais arriscado que jogar roleta russa.

A indústria de entretenimento prova que a realidade pode não ser mais bem assim. Dois grandes serviços de streaming, a Netflix e o Crunchyroll, montaram estandes na última CCXP. A participação não é apenas um indício de coisas por vir, mas o resultado de um processo. No Brasil, o modelo fez um sucesso sem precedentes.

Quem acha que um serviço de assinaturas não conseguiria competir com a pirataria precisa rever seus conceitos. O próprio criador do Netflix, Reed Hastings, declarou o Brasil como um “foguete” da empresa.

Para estudiosos da comunicação, o sucesso é explicável. Um trio de pesquisadores encabeçado por Henry Jenkins – de quem já falei aqui antes – chegou a observações similares em dois outros casos.

O primeiro é o do mercado de vídeos na Nigéria. Sem uma indústria cinematográfica forte, o país se tornou palco de um complexo mercado de fitas piratas, que eventualmente enraizou a cultura de se pagar pelo entretenimento.

O segundo é do nosso Tropa de Elite. O filme – o mais pirateado da história do país – deu origem a uma das mais rentáveis sequels do nosso cinema. A demanda criada pelo frisson da distribuição ilegal motivou as pessoas a investirem no segundo filme.

Não é de se espantar que algo parecido tenha acontecido na cena nerd. Tal como os cinéfilos nigerianos, os geeks brasileiros estão acostumados a suar para encontrar suas séries favoritas. O Crunchyroll tem muito a agradecer às velhas lojas de DVDs de anime.

 

3- As ‘guerras de copyright’ vão finalmente nos engolir

pirate logo

Se você é fã de algo, é muito provável que já tenha violado a lei. E não falo apenas de torrents, mas de coisas muito mais elementares.

Séries, filmes, personagens, figurinos e até nomes próprios são protegidos por direitos autorais. Se você fizer algum tipo de criação e não solicitou direitos de uso, então muito provavelmente você andará na corda-bamba do copyright.

Então por que cosmakers, vendedores de produtos não-oficiais e fanartists conseguem fazer seus negócios?

Porque, na maioria das vezes, é mais vantajoso para as corporações deixá-los quietos do que processá-los. Fãs-criadores ajudam a divulgar as obras melhor do que qualquer estande, e companhias que tratam bem suas fanbases tendem a ser amadas em retorno.

Em contrapartida, acionar os advogados costuma trazer repercussões negativas.  Não fosse o bastante, os meandros da internet tornam disputas de copyright bastante nebulosas. Na maioria das vezes, arriscar os custos legais por uma batalha que pode ser perdida (ou que renda uma indenização pífia) é um preço alto demais a se pagar.

No entanto, erra quem acha que a Disney, Warner, EA ou Universal não estão dispostas a punir criações de fãs quando as interessa. Alguns aprenderam isso do jeito mais difícil. Tempos atrás, a Nintendo declarou cerco a criadores de let’s plays, obrigando-os a dividir os lucros de publicidade para manter seus canais. Um pouco depois, quando Super Mario Maker foi lançado, a produtora japonesa derrubou vídeos de versões modadas de Super Mario no YouTube para forçar gamers a aderir à plataforma.

Enquanto nossa cena nerd se resumia a 3000 pessoas debaixo de uma barraca nos confins da cidade, não havia motivo para esse tipo de pressão. Já se nossas convenções se tornarem realmente “épicas”, podemos dar como certo que as grandes corporações desejarão ser as únicas a lucrar com seus produtos.

Para o visitante comum, duas grandes mudanças estão no horizonte. Em primeiro lugar, prepare a carteira. Camisetas oficiais de Star Wars podem sair a módicos R$80,00. Para ter sua nova Sakura, é bom ter os 500 e poucos reais para comprar a obra-prima da Kotobukiya, pois não encontrará nenhum bootleg à venda.

sakura kotobukiya

Mas que vale a pena vale

Em segundo lugar, esqueça os chaveirinhos, almofadas, chapéus e todo o tipo de merchandise não-oficial de séries obscuras que inundavam as convenções do passado. Com uma distribuição mais centralizada e os estandes dominados pelos big players,  os produtos privilegiarão as séries que suas empresas têm interesse em vender. Obras antigas, de pouco apelo econômico e cuja fanbase dependia da informalidade para “fazer nerdices” serão as mais afetadas.

 

4- Espere mais e mais assédios da imprensa

senhora meme

Quem acompanha grupos de cosplay no Facebook já deve ter tido contato com as polêmicas envolvendo a grande imprensa. Quando da última Anime Friends, uma matéria do UOL atribuiu o desejo de fazer cosplay a distúrbios psicológicos. Na sua cobertura da CCXP, o portal comentou sobre uma suposta “pobreza” dos cosplays no evento, fato que atribuiu à crise econômica.

Mais sério foi uma intervenção dos “repórteres” do Pânico. Com a sutileza que lhes é conhecida, o programa “entrevistou”, zombou, cutucou e lambeu cosplayers como parte de sua cobertura do evento.

Os praticantes do hobby reagiram em peso, e não sem sucesso. A torto e a direito, posts urgiam cosplayers a recusar entrevistas a jornalistas do UOL sob risco de terem suas palavras distorcidas. O portal retirou uma de suas matérias do ar e publicou uma errata. A CCXP baniu o Pânico de edições futuras, acusando-o de “desmanchar o encanto do hobby” e violar do “contrato social” esperado do evento.

Cosplay é um dos hobbies menos compreendidos da nerdsfera, e repostas com essas mostram a força que a comunidade ganhou nos últimos anos. No entanto, seria ingenuidade supor que estas medidas desencorajarão o jornalismo amarelo. Infiltrar-se em eventos proibidos, enganar entrevistados e distorcer informações são táticas centenárias que só tem a ganhar força.

Em parte, isso se deve ao império do click-bait que assola nossa época. A internet transformou todo mundo em um comentarista e, consequentemente, em competição para as páginas estabelecidas. Para garantir os cliques – e a verba de publicidade por trás deles – alguns canais apelaram para o sensacionalismo e a polêmica fácil. Este gênero de “jornalismo” poluiu a web de tal maneira que o Facebook chegou inclusive a criar um algoritmo para filtrá-lo dos feeds dos usuários.

A principal razão do problema, contudo, é a popularidade sem precedentes do mundo nerd. Como as celebridades dos tapetes vermelhos de Hollywood sabem muito bem, tornar-se mainstream atrai os abutres. E nenhum comunicado oficial contra os paparazzi os afastará de uma noite de gala.

O interesse de tais “comunicadores” não está na cultura geek, mas na visibilidade que ela traz. Um evento de grande porte que apele ao interesse geral é a ocasião perfeita para alavancar artigos click-bait. É por isso que os nerds vivem hoje seu auge, mas também estão sujeitos aos maiores ataques pseudo-eruditos desde o pânico pós-Columbine em 1999. Criticar os “problemas” do mundo geek – mesmo que seja preciso inventá-los primeiro – nunca garantiu tantos cliques em tão curto espaço de tempo.

O mesmo vale para o humor. O Pânico não teria nada a ganhar cobrindo um evento underground de 1500 visitantes. A mesma fama que traz convidados internacionais de peso traz apresentadores buscando o caos para atiçar sua audiência.

As reações dos fãs garantirão que esse tipo de oportunismo seja contestado, mas há um limite para o que eles, sozinhos, conseguem fazer. Em especial quando o páreo é um veículo midiático com um alcance muito maior do que qualquer comunidade virtual. Idealmente, a mídia especializada deveria tomar para si a função de porta-voz e defender os interesses dos nerds contra pressões externas. Não atacar seu público alvo, nem se unir ao coro advogando estas mesmas pressões seria um ótimo começo.

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