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Marvel – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Mon, 25 Feb 2019 17:45:48 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Marvel – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Os super-heróis sempre foram politizados? https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/ https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/#respond Wed, 27 Jun 2018 12:16:19 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20248  

Temos que conceder aos quadrinhos. É fácil ser tachado de diversão vazia. Também é fácil ser acusado de panfletagem, provocação barata, veículo de doutrinação política.

Mais difícil, e o que os comics americanos vêm fazendo há décadas, é ser criticado pelas duas coisas ao mesmo tempo.

Todos nós já escutamos a acusação. HQs estão desesperadas atrás de relevância, agarrando-se a qualquer manchete para alavancar vendas. Da guerra na Síria à eleição de Donald Trump, não há um factóide que escape aos super sentidos dos heróis.

Mas teria sido sempre assim?

Críticos da politização os quadrinhos dizem que não. Segundo eles, quadrinhos estão se tornando mais politizados, histéricos e rasos. O fenômeno é novo – e poderia ser fatal. Se as coisas não voltarem rápido ao curso, o futuro da indústria poderia estar em risco.

Se isso é verdade, como explicar a palhinha de Barack Obama como personagem de Homem Aranha em 2009? Ou o retrato de um Doutor Destino em prantos após o atentado às Torres Gêmeas?  Ou ainda a HQ que transformou Magneto em um sobrevivente do Holocausto?

Causas mudam, pessoas envelhecem e partidos se renovam. Mas os quadrinhos parecem ter um flerte com a política que vai muito além do momento atual.

Essa é a opinião de Robert Jewett e John Lawrence no provocante Capitão América e a Cruzada contra o Mal. Escrito no calor do 9/11, mas ainda relevante aos dias de hoje, o livro argumenta que super-heróis sempre foram politizados – e ninguém deveria se orgulhar disso.

Para Jewett e Lawrence, a politização dos heróis não se deve à geração millenial, à Guerra ao Terror de Bush, ao Civil Rights Movement, nem mesmo à Guerra Mundial que deu vida a Capitão América e tantos outros. Ela vem de antes, muito antes de existirem quadrinhos. Muito antes, na verdade, até de existir um Estados Unidos.

As colônias inglesas na América, eles explicam, foram assentadas por Puritanos, uma facção radical dos cristãos britânicos que se viam na missão de reformar a sociedade – e, especialmente, o Novo Mundo.

Essa fé exacerbada deu origem a duas mentalidades muito diferentes entre si, mas que marcaram a história dos EUA até os dias de hoje.

A primeira foi a do realismo profético, a ideia de que a sabedoria de Deus está além do nosso alcance, e ninguém deve tomar para si o pedestal de executor de Sua vontade. É ideia de que demos julgar antes de agir e de que, não sendo oniscientes, precisamos tolerar os que pensam diferente.

Para os autores, essa é mentalidade por trás da tradição constitucional dos Estados Unidos, da desconfiança em relação a consensos e, posteriormente, do pensamento de autores que valorizavam a tolerância e a pluralidade intelectual.

A segunda foi a do nacionalismo zelota, a ideia de que os americanos seriam um povo escolhido, uma Nova Israel encarregada de purificar o mundo de hereges. É a ideia de que os valores que defendem não são apenas certos, mas divinos, e que preço nenhum é grande demais para protegê-los.

Foi do nacionalismo zelota, segundo eles, que veio a bagagem ideológica do Destino Manifesto, a conquista do Oeste, a Trilha das Lágrimas e a erradicação de povos indígenas. E, mais recentemente, o longo histórico de intervenções militares em nome do “bem”, da invasão das Filipinas à Guerra do Iraque, passando pelo Vietnã e as ditaduras na América Latina.

“Progresso Americano” de John Gast (1872)

As duas tradições ultrapassaram sua origem religiosa e ganharam espaço na cultura popular. O realismo profético deu origem a personagens como Atticus Finch de O Sol é Para Todos e o Jurado No 8 de 12 Homens e uma Sentença.

“Heróis” que não vestem capas e acreditam no jeito “certo” de se resolver as coisas. Que acham, como o Shepard “Paragon” de Mass Effect, que não podemos deixar o medo comprometer quem nós somos.

Gregory Peck como Atticus Finch em “O Sol é Para Todos”

O nacionalismo zelota, por outro lado, ganhou vida com os caubóis, justiceiros e vingadores encapuzados. São os pistoleiros de filmes de faroeste, policiais vigilantes como Dirty Harry e, é claro, super-heróis.

Eles acreditam que os fins justificam os meios e que o mal não merece tolerância. Aos vilões, só a violência.

O Complexo de Capitão América

Para Jewett e Lawrence, essa mentalidade deu origem ao que chamam de complexo de Capitão América: o uso de meios não-democráticos para defender valores democráticos.

O zelota faz a guerra em nome da paz, “matando milhares para salvar milhões”.  Ele apoia a censura em nome do diálogo, silenciando as pessoas “erradas” para dar voz às “certas”.

Como um delírio imaginado por George Orwell, ele é um duplipensamento ambulante, rebatendo ódio com ainda mais ódio, distribuindo socos, tiros e mísseis em nome do amor e tolerância.

O herói zelota acredita que seus excessos devem ser perdoados, pois ele luta em nome do bem, e seus inimigos são do mal. Ele não é o agressor, e sim a reação, a resistência contra as forças malignas da sociedade. Foram os vilões que atacaram primeiro, oprimindo fracos e silenciados, e agora eles terão o que merecem.

É por isso que o Capitão América usa um escudo, e não uma espada, bastão ou arma de fogo. É por isso que os heróis de Star Wars são da Rebelião ou da Resistência, e “Impérios” sempre são do mal.

Que o escudo antimísseis sugerido pelo presidente americano Ronald Reagan em 1983 se chamasse “Star Wars” não é mera coincidência. Essa é a lógica por trás da política externa dos EUA, que sempre se enxergaram como o defensor da luta contra uma conspiração maior, seja o nazismo, o comunismo ou o jihadismo.

Mas isso não é privilégio de uma única ideologia de governo. Jewett e Lawrence são cuidadosos em frisar que o mesmo pensamento pode ser visto em todos os lugares. Direita e Esquerda, Republicanos e Democratas vestiram a camisa dos zelotas em momentos diferentes da história. Seja para ajudar tolher direitos em nome da segurança ou para sacrificar regressistas nas chamas da revolução.

O importante, dizem eles, não é a causa defendida, mas seus meios. E é aí que super-heróis encontram a política, com consequências trágicas para todos nós.

Super-heróis e o “Fascismo Pop”

O mais fantástico nas histórias de herói não são os próprios heróis, mas o fato de que seu mundo não funciona sem eles.

No universo das HQs, o sistema opera mal. As leis servem para proteger bandidos e dificultar a vida dos justiceiros. Tribunais são corruptos. A polícia é fraca ou amedrontada. Afinal, que pode fazer um mero soldado contra super vilões e ameaças galácticas?

Para obter justiça de verdade, precisamos de pessoas excepcionais, mais fortes, mais capazes, mais corretas. Heróis que vem de fora e que conseguem resolver nossos problemas num piscar de olhos, desde que tiverem espaço para fazer seu trabalho.

Esses heróis têm o poder para destruir o mundo, mas eles não farão isso, pois sabem mais que a gente. Afinal, eles não são apenas mais poderosos que gente comum, mas também melhores como pessoas. E de tão melhores, e tão mais sabidos, esses Übermenschen são a última esperança contra o mal que nos aflige.

O universo dos heróis é um mundo de medo e submissão, em que as pessoas não têm escolha senão rezar por uma intervenção divina. Que vários heróis (e vilões) tenham sido interpretados como divindades de algum panteão é uma consequência obrigatória deste cenário.

O problema de se tirar essa delírio do Velho Testamento e aplicá-lo nos dias de hoje – de se fazer, enfim, política com super-heroísmo – é que essas ideias não se misturam. Pois elas já foram tentadas uma vez, e seus resultados foram devastadores.

Jewett e Lawrence chamam de “Fascismo Pop” a mistura de nacionalismo, vigilantismo e repúdio ao sistema que informa a ética dos super-heróis. Ela é, na sua opinião, um desenvolvimento extremo do Complexo de Capitão América e do motivo pelo qual o velho herói deveria pendurar o escudo.

Não errou a Marvel ao pintar o Capitão América com as cores da Hydra. No fundo, o herói sempre foi um fascista.

Se você, como fã de quadrinhos, ficou furioso ao ler isso, saiba que Jewett e Lawrence não foram os únicos a chegar nessa conclusão. A sacada não escapou a Michael Chabon, autor de um dos mais premiados romances sobre quadrinhos e um dos roteiristas de Homem Aranha 2.

Em sua fábula vencedora do Pullitzter, Chabon descreve um quadrinista judeu dos anos 1930 que percebe que seu herói se tornou a imagem daqueles que mais detesta:

“Joe Kavalier não foi o único dos pioneiros dos quadrinhos a perceber a imagem refletida do fascismo inerente no seu super-homem anti-fascista – Will Eisner, outro judeu quadrinista, deliberadamente vestiu Falcão Negro, seu herói dos Aliados, em uniformes modelados nas elegantes roupas com a cabeça da morte da Waffen-SS. Mas Joe foi talvez o primeiro a sentir a vergonha de glorificar, em nome da democracia e liberdade, a brutalidade vingativa de um homem muito forte. (…) Agora ocorria a Joe pensar se tudo o que eles haviam feito, desde o começo, não era ceder aos seus piores impulsos e fomentar a criação de uma nova geração de homens que veneravam a força e a dominação.”

O que isso diz sobre nós?

Capitão América e a Cruzada contra o Mal é um livro urgente, persuasivo e desconfortável. Mesmo assim, não pude afastar a impressão de que sua tese é um tanto convincente demais.

Jewett e Lawrence dizem que a febre dos heróis implica num culto a pessoas excepcionais, que estão acima das leis e não se integram ao mundo que salvam.

Como conciliar isso com a mensagem de empoderamento das histórias contemporâneas e o princípio, defendido por filmes, convenções, cosplayers e caridades, de que todos podemos ser heróis?

Heroes’ Alliance, grupo de cosplayers que visita crianças em hospitais infantis.

Ou o suposto nacionalismo de sua ideologia com o globalismo militado por tantos políticos e artistas mainstream? E que ganha, às vezes, contornos tão violentos quanto os dos zelotas de outrora?

Jewett e Lawrence publicaram seu livro em 2003, pensando nas consequências nefastas do contraterrorismo de George W. Bush. Foi o mesmo dilema que inspirou o célebre Guerra Civil da Marvel: a cilada 22 entre um governo tirânico e uma ameaça que ninguém sabia como enfrentar.

Seu objeto não são os quadrinhos em si, mas os desmandos da política americana – e suas similaridades com a cultura pop. Só que a cultura pop já não é mais a mesma, e sua mensagem, que já conta 15 anos, precisa de uma atualização.

O que nos resta daqui para a frente?

“Dois caminhos estão abertos para aqueles que gostariam de reformar a sociedade americana de hoje, ou aceitar sua missão de servir ao mundo. Há o caminho da violência redentora, que pode tomar a forma da grande revolução ou da cruzada. Este caminho promete despedaçar a injustiça com uma fúria virtuosa, punindo os malfeitores, emancipando os explorados e tornando o mundo seguro para a bondade. Mas também há o caminho do amor redentor. Sua promessa é menos definida, e seus resultados, mais imprevisíveis. Pois, quando o amor é exercitado, pessoas se tornam livres. Novos impulsos despertam que ninguém pode dominar em antecipação. Este, então, é o caminho dos audaciosos e generosos de espírito, aqueles que conseguem viver sem ídolos e encarar um futuro incerto sem medo.”

Jewett e Lawrence provavelmente apostavam na segunda opção. E, de fato, houve muito avanço. Não foram poucos os quadrinistas que reinterpretaram seus heróis, atentando às suas contradições.

Fora dos quadrinhos, o imaginário geek também conta com bons exemplos. Que uma personagem como Geralt de Rivia pôde nascer dos escombros do comunismo é prova de que o realismo profético tem voz na cena nerd.

Mas heróis zelotas – com ou sem capa – ainda existem, e a linguagem da violência, da fúria virtuosa contra os “do mal”, ainda persevera em quadrinhos, séries, filmes e tweets de criadores.

Num presente em que a coexistência é uma necessidade e os problemas não se resolvem mais com o porrete, esta retórica é tão problemática quanto é atrasada.

Sim, o futuro é incerto. Mas talvez, como dizem Jewett e Lawrence, seja essa a grande prova de nosso tempo. A capacidade de viver sem heróis, e sem deixar, tal qual Comandante Shepard, que o medo leve embora nossos princípios.

 

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O Japão de Frank Miller https://www.finisgeekis.com/2016/03/28/o-japao-de-frank-miller/ https://www.finisgeekis.com/2016/03/28/o-japao-de-frank-miller/#comments Mon, 28 Mar 2016 22:56:28 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3479

Há muito a se elogiar na segunda temporada de Demolidor, da Netflix. As cenas de luta são um espetáculo de coreografia. O tom consegue ser sombrio sem perder o charme. Elektra e o Justiceiro não são apenas excelentes coadjuvantes, mas estão fidelíssimos às suas raízes nas HQs.

Em adição a tudo isso, fãs de Frank Miller, a lenda-viva dos quadrinhos responsável por Sin City, O Cavaleiro das Trevas e 300, devem ter notado outra coisa. Tal como Batman v Superman, que chegou aos cinemas semana passada, Demolidor 2 é a adaptação de uma obra sua.

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A trajetória do Demolidor sob Miller teve muitos méritos. Porém, se houve um diferencial que a separou da maioria, foi o seu tributo ao universo japonês. Mais precisamente, o mundo obscuro dos ninjas, espadas e artes marciais.

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A inspiração não é uma coincidência. Muito embora Frank Miller seja um dos maiores ícones dos quadrinhos ocidentais, ele foi também um dos grandes divulgadores dos mangás no ocidente.

Em alguns dos melhores momentos de sua carreira, Miller cruzou caminho com shurikens, katanas e kimonos. O resultado, como se pode ver abaixo, foi uma reviravolta completa no jeito como HQs eram feitas.

Reinventando a Marvel: Wolverine e Demolidor

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Frank Miller em 1982

É conveniente que a última obra de Frank Miller a voltar aos holofotes tenha sido o Demolidor. Pois foi justamente trabalhando com o Homem Sem Medo que Miller, então um rapaz de 22 anos, deu início à sua ascensão meteórica nos quadrinhos.

O futuro criador de Sin City usou seu talento a serviço de Matt Murdock de 1979 a 1983, naquele que é considerado um dos arcos definidores da personagem. Se antes o herói não passava de uma cópia do Homem-Aranha (tão descarada que nem a capa escondia a semelhança), nas suas mãos (e na de seus colegas) ele se transformou em um dos nomes mais particulares da Casa das Ideias.

O diferencial, obviamente, foi o Japão. De terror dos assaltantes na Cozinha do Inferno, o Demolidor virou aprendiz de um velho artista marcial, amante de uma ex-ninja e rival do Tentáculo, uma ordem de assassinos milenares.

daredevil elektra hand

A novidade não passou batida. Em 1982, graças ao sucesso da HQ, Miller foi chamado para trabalhar com o roteirista Chris Claremont na primeira história solo do Wolverine. O baixinho canadense que começara como um coadjuvante na revista do Hulk seguiu caminho para se tornar um dos heróis mais populares da Marvel.

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Tudo graças ao Japão. Logan aprendeu japonês, viajou para a terra dos samurais, desafiou os ninjas do Tentáculo e até se casou.

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A influência da linguagem visual dos mangás já pode ser sentida nas longas cenas de luta, em que Claremont deixa o diálogo no segundo plano, e os golpes falam por si só.

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Miller teve boas referências. Pouco antes de desenhar Eu, Wolverine (como o arco foi conhecido aqui no Brasil), ele havia descoberto o clássico absoluto dos mangás de samurai.

Kozure Ookami

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Miller entrou em contato com a obra-prima de Koike e Kojima em 1980, antes mesmo de ter sido publicada nos EUA. O fato de não saber japonês era apenas um detalhe. A atmosfera violenta e cerebral da saga do ronin Ittou Ogami falava por si só.

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Miller estava disposto a fazer o mangá chegar até as pessoas. Ele desenhou as capas e escreveu prefácios para a edição americana quando a obra foi finalmente lançada, em 1987.

Leitores brasileiros não precisam de mim para saber disso. Afinal de contas, as ilustrações de Miller foram incluídas na bela edição lançada no Brasil anos atrás.

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É importante se lembrar de que, nos anos 1980, o anime e o mangá ainda não tinha decolado com toda a força nos EUA. Miller não estava apenas “seguindo moda”, como tantos quadrinistas ocidentais nos últimos anos. Ele estava criando seu estilo artístico em cima de referências que uma boa parte dos leitores nunca tinha visto.

O próprio Frank Miller, anos depois, admitiu que tentara construir uma “ponte” entre os dois estilos:

“Eu percebi quando comecei Sin City que eu achava quadrinhos americanos muito palavrosos, constipados, e os japoneses muito vazios. Então eu tentava fazer um híbrido.”

A trajetória do Lobo Solitário nas praias americanas é prova disso. O mangá acabou interrompido em 1991, quando sua editora entrou em falência. Foi apenas em 2000, graças à Dark Horse, que a série foi finalmente lançada por completo.

Se a situação na virada do milênio foi diferente da de 1980, os otakus americanos têm muito a agradecer ao próprio Miller. Quatro anos antes, ele publicou uma das maiores homenagens aos dois mestres japoneses.

Ronin

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Embora Frank Miller tenha feito sua fama na Marvel, com Demolidor e Wolverine, foi na DC que produziu seu maior tributo à cultura japonesa.

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Ronin é ao mesmo tempo uma de suas obras mais celebradas e menos conhecidas. No Brasil, a Editora Abril só se arriscou a trazê-la muitos anos depois, de carona no sucesso de O Cavaleiro das Trevas.

Não é difícil entender por quê. No papel, a graphic novel era uma receita para o desastre. Miller assinou tanto o roteiro e a arte e teve carta branca para fazer o que quisesse (segundo um ex-editor da Marvel, a liberdade artística foi o motivo que o levou a escolher a DC sobre a Casa das Ideias). A história se baseava em um universo próprio, sem personagens conhecidas para atrair os fãs. Como disse Marcelo Alencar, que escreveu o prefácio da edição brasileira, a HQ era um verdadeiro laboratório de testes.

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A história acompanha um samurai sem mestre em sua jornada para derrotar um demônio. Graças ao poder de uma espada mágica, eles se vêem transportados para uma Nova York pós-apocalíptica, onde preparam seu duelo final em meio a tecnologia avançada e às ruínas da civilização.

O resultado é uma mistura de Lobo Solitário com Ex Machina. Monstros do folclore japonês se misturam a andróides, armas laser e uma inteligência artificial rebelada.

ronin ex machina

ronin akuma

As referências a Lobo Solitário são tão explícitas que incluem duas personagens chamadas Koike e Kojima, em referência aos autores do mangá clássico. Isto em 1983, quatro anos antes da HQ ser lançada nos EUA pela primeira vez.

ronin kojima

O homem moderno é um ronin

Olhando toda a sua carreira, não parece mero acaso que o  “projeto autoral” do gigante dos super-heróis tenha sido inspirado no Japão. Como o próprio Miller disse certa vez em uma entrevista:

 “O aspecto do samurai que mais me intriga é o ronin, o samurai sem mestre, o guerreiro caído… Todo esse projeto vem da minha sensação de que nós, homens modernos, somos ronin. Nós estamos meio que soltos. Eu não tenho a sensação, nas pessoas que eu conheço, nas pessoas que eu vejo na rua, de que elas têm alguma coisa maior em que acreditar. Patriotismo, religião, seja lá o que for – tudo isso perdeu o sentido para nós.”

Para quem é fã do estilo mais sério e sombrio dos quadrinhos dos anos 1980, esse depoimento não é nenhuma surpresa. Como eu disse semana passada, o anti-herói dos quadrinhos surgiu justamente em uma geração que se achava perdida, sem fé em ideais.

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Se não fosse a decepção com a política, o cinismo com as “grandes verdades” e todas as dúvidas da vida contemporânea, nós provavelmente não teríamos o Batman de O Retorno do Cavaleiro das Trevas, o Marv de Sin City nem toda a atmosfera pesada que até hoje agrada tantos fãs de quadrinhos.

Frank Miller viu no ronin japonês uma nobreza – ou, pelo menos, uma sinceridade – que parecia faltar nos modelos ocidentais. De um pária empobrecido buscando se integrar, o samurai sem mestre virou para ele uma espécie de idealista, um sujeito que andava no fio da navalha entre o crime e o “sistema” por escolha própria. Nas palavras do comissário  Gordon, “um herói que Gotham merece”.

Ronin não foi o primeiro sinal dessa febre. Desde pelo menos os anos 1960 diretores de faroeste viram nos samurais sem mestre um paralelo ao cowboy americano: guerreiros individualistas, que fazem suas próprias regras e vivem com o suor de seus esforços.

Não é à toa que muitos dos maiores clássicos do gênero são, na verdade, remakes de longas japoneses. Por um Punhado de Dólares é uma adaptação de Yojimbo. Sete Homens e um Destino (que ganhará uma nova versão esse ano) é uma refilmagem de Os Sete SamuraisNão é uma coincidência que pelo menos um comentarista tenha comparado o Wolverine de Frank Miller a Clint Eastwood.

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A semelhança é inegável

Esse fascínio americano pelos samurais é uma daquelas coisas que parece normal até pensarmos nela com mais calma. Afinal de contas, é difícil imaginar uma figura mais incompatível com a mentalidade japonesa do que o cowboy.

Se cowboys são símbolo do individualismo, samurais são o ícone do serviço – que está até na origem do nome, o verbo saburau. Se cowboys são conhecidos pela falta de recato, samurais são a referência em sofisticação. Se cowboys às vezes trapaceiam para vencer, samurais preferem morrer com honra.

Donos do próprio destino

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A culpa, nesse caso, pode ser de Akira Kurosawa. Muito embora o diretor de Yojimbo e Os Sete Samurais seja um marco do cinema japonês, ele já foi considerado o diretor “mais ocidental” do Japão, a ponto de lhe render críticas de conterrâneos.

Segundo  Roger Ebert, Kurosawa realmente tinha um pé atrás com alguns elementos da mentalidade japonesa. Em especial, a ideia de sacrifício à autoridade, de papeis sociais imutáveis e de submissão do indivíduo à comunidade.

Para Ebert, a partir de Ikiru e depois com força total em seus filmes de samurai, Kurosawa tentou imaginar um mundo em que as pessoas fossem capazes de decidir seus próprios destinos.

Enquanto que Miller e outros ocidentais comentavam sobre a falta de rumo de sua geração, Kurosawa, que vivera em uma cultura com “rumos demais”, pareceria desejar, ele mesmo, uma vida sem mestre.

De todas as HQs “japonesas”  de Miller, a que melhor captura esse conflito é sem dúvida Eu, Wolverine. Na história, Logan descobre que o amor de sua vida, a japonesa Mariko Yoshida, foi casada contra a vontade com um gângster que a humilha e espanca.

Mariko pede que ele não se envolva, pois é assim que as coisas têm de ser. Ela deve obediência ao pai, ao clã, às tradições de seu país. O que ela “quer” não é importante.

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Wolverine (aqui, praticamente uma versão peluda e mortífera da Princesa Kaguya) se recusa a deixar barato. O que se segue não é apenas uma luta para proteger sua amada, mas uma batalha contra o sistema desumano de obrigações a que todos estão submetidos.

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Poucas coisas são mais fascinantes no entretenimento do que o fato de que um mesmo livro, filme ou gibi pode ser lido de várias maneiras diferentes. Eu já comentei no passado como mesmo obras mais simples podem virar símbolos das coisas mais díspares, dependendo do público pelo qual circulam.

O Japão de Frank Miller é um grande exemplo disso. No fundo, de “oriental” ele tem muito pouco. Ele revela bastante, no entanto, sobre o seu próprio criador. Tal como Wolverine, Miller parece acreditar que falta alguma coisa em seu mundo, e que a Terra do Sol Nascente pode ser a chave para encontrá-la. Ou, quem sabe, para reencontrar a si mesmo.

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De onde vieram os anti-heróis dos quadrinhos? https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/ https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/#comments Mon, 21 Mar 2016 23:15:41 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3083

Entre a nova (e violenta) adaptação de Demolidor, os ecos de Frank Miller em Batman vs. Superman, o status de “lenda cult” de Christopher Nolan e a vinda da Guerra Civil para os cinemas, tudo aponta para a mesma coisa: o anti-herói está na moda. E pretende ficar.

Por si só, isso não é uma surpresa. Seja na literatura, nos games ou nas séries de TV, o velho confronto do “bem” versus o “mal” parece ter sido substituído por algo mais sofisticado – e muito mais sanguinolento.

daredevil born again kingpin

Roteiristas, quadrinistas e desenvolvedores descobriram (como John Milton já havia feito muito tempo atrás) que personagens com defeitos e personalidades complexas são muito mais cativantes. Afinal de contas, ninguém é perfeito. E nada enriquece mais uma obra de arte do que heróis verossímeis.

Mesmo assim, seria um erro pensar que esses protagonistas tortos, interessantes e (pasmem) carismáticos simplesmente caíram do céu. Nos quadrinhos  americanos, em especial, eles foram trazidos por uma geração específica, tumultuada e muitíssimo criativa.

Seguem, abaixo, três das principais “mães” dos anti-heróis das HQs.

1- A decepção com a política

A coisa que não podemos esquecer sobre quadrinhos de super-heróis é que sua popularidade veio nos anos 1940, a década da Segunda Guerra Mundial, do ufanismo e da maior radicalização política já vista na história.

Para além de uma luta do “bem” contra o “mal”, a mensagem desses quadrinhos era a de que as coisas se resolviam dentro do sistema. Não era apenas o bom-mocismo que estava em jogo, mas todo um projeto de governo, sociedade e bons costumes.

Super-heróis até podiam ser cruéis e implacáveis, desde que obedecendo às ordens “de cima” ou, no mínimo, atendendo ao espírito de seu tempo.

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Ninguém tinha pena do Tojo

Se hoje esses quadrinhos nos parecem estranhos (quando não grotescos), a mensagem que passavam era extremamente popular. Diante da ameaça da guerra total, heróis que colocavam ditadores no seu lugar, colaboravam com a polícia e protegiam crianças era o que todos queriam ver.

A partir dos anos 1970, isso deixou de ser verdade.

Com o conflito no Vietnã, os americanos entenderam que a guerra nem sempre é para o “bem”, e que o combate é bem menos glorioso quando se está do lado perdedor. Com a Crise de Reféns no Irã e o Caso Watergate, o governo americano mostrou que podia errar e ser corrupto. A Crise do Petróleo jogou a economia para baixo, e a Guerra Fria trouxe o medo de um holocausto nuclear. Como confessou Frank Miller, “o mundo estava ficando louco”.

Desconfiadas da autoridade, as pessoas buscaram seus herois em outros lugares. Em Watchmen, Rorschach se recusa a abrir mão de seu código de conduta, mesmo que isso traga a promessa de paz mundial. Em O Retorno do Cavaleiro das Trevas, Batman prefere se tornar um criminoso a virar um novo Superman, um herói “do partido” que só luta as batalhas autorizadas pelo presidente.

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Porém, a mudança mais impressionante foi a do maior ícone do bom-mocismo patriótico: o Capitão América. “Ressuscitado” em 1964, Steve Rogers se sente mais e mais decepcionado com os rumos da política. Em 1974, ele  passa a combater o crime como o Nômade, um herói, como o nome já diz, sem pátria.

Seu momento definidor veio também das mãos de Frank Miller. Em Daredevil: Born Again, ele deixa claro que os Estados Unidos que defende são uma ideia, não um governo.

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De campeões do sistema, os super-heróis viraram outsiders. O herói não é mais um role model para servir de exemplo aos jovens. Agora, ele segue o seu próprio caminho, apontando a hipocrisia nos outros e mostrando como a prática do “bem” passa longe de seu ideal.

É por isso que, em sua primeira história pós-11/9, o Capitão América não esmurra Bin Laden como antes fizera com Hitler. Em vez disso, ele visita Dresden, cidade alemã que foi obliterada por bombardeios aliados na Segunda Guerra. Longe de ser um fanático patriota, ele se lembra de todo o sangue que já foi derramado em nome da “justiça”.

É por isso que na Guerra Civil – uma alegoria do Patriot Act, lei americana que reduziu a proteção constitucional de civis em nome da luta contra o terrorismo – Steve Rogers se posiciona contra a ideologia de que a segurança é preferível à liberdade.

E é por isso que, no filme Soldado Invernalele se rebela contra a tentativa da SHIELD de se tornar uma “polícia global”. No longa, tudo é obra da Hydra. Na vida real, é preciso bem menos. Basta olhar para o escândalo de espionagem da NSA, cujos alvos incluíram até a Presidência brasileira.

Novas ideias, no entanto, demandam novos públicos. E para conquistar novos públicos é preciso novas formas de se vender quadrinhos. O que nos leva à segunda “mãe” dos anti-heróis

 2- O surgimento das gibiterias

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Como quem já se aventurou pela arte sabe muito bem, a distribuição é a alma de qualquer obra de sucesso.

Quando os quadrinhos de superheróis surgiram nos anos 1930, ninguém pensava em ganhar o prêmio Pullitzer ou em escrever o mesmo personagem por 70 anos. Os gibis eram vendidos em qualquer lugar por onde meninos perambulassem: bancas de jornal, lojas de brinquedo, farmácias e até docerias.

Como não havia garantia de que a criança voltaria a comprar o mesmo título, a ideia era prezar a quantidade sobre a qualidade. Cada HQ tinha um começo, meio e fim e eram feitas para o maior público possível, sem continuidade nem, muitas vezes, coerência. Para chamar a atenção, não era raro uma editora publicar histórias estapafúrdias. Ou o que era pior: histórias estapafúrdias repetidas.

superman dragon

superman jimmy olsen

Com o passar do tempo, esse modelo perdeu popularidade. Com o envelhecimento do público alvo, o fim dos vilões óbvios da Segunda Guerra e a pressão de moralistas (vide o próximo tópico), o número de vendas mensais caiu de 59,8 milhões em 1952 para 18,5 milhões em 1979.

Para o hobby não morrer, alguma coisa precisava mudar. A volta por cima veio com Phil Seuling, um fã de quadrinhos e criador da Comic Art Convention de Nova York. Seuling desenvolveu um sistema de distribuição baseado em lojas especializadas, dirigidas ao fã. Assim, nasciam as primeiras gibiterias.

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Austin Books & Comics, no ramo desde 1977

Para os envolvidos, esse novo modelo (chamado de mercado direto) era muito mais interessante. Antes, gibis não vendidos eram devolvidos para os fornecedores, o que forçava as lojas a calcular bem a quantidade de HQs que achavam que venderiam (e, obviamente, não adquirir obras mais controversas). Na gibiteria, pelo contrário, números antigos simplesmente entravam para o catálogo.

Com menos risco, as editoras passaram a apostar em títulos mais trangressores. Não só isso, como produtores independentes finalmente conseguiram uma chance de entrar no mercado. O resultado foi um boom de histórias inovadoras e selos independentes capazes de rivalizar com a Marvel e DC.

Ao mesmo tempo, as gibiterias criaram uma “contracultura” dos quadrinhos, oferecendo espaço para fãs confraternizarem, montarem coleções e acompanharem artistas e personagens específicos. Pela primeira vez, a base do que se tornaria a “cena nerd” começou a ganhar força.

A capacidade de se enturmar com outros fãs e ficar “próximo” dos autores se mostraria fundamental para a sobrevivência do hobby. Isto porque, nessa mesma época, os quadrinhos se tornaram o campo de batalha de uma verdadeira guerra cultural.

 

1- A necessidade de chocar

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Quem vê a truculência do Rorschach em Watchmen ou a lista de baixas do Justiceiro já percebe que os anti-heróis não estão de brincadeira. Muito menos os seus autores.

Se essas HQs parecem às vezes desnecessariamente cruéis, é porque a intenção foi de fato chocar. E, se uma geração inteira de artistas sentiu a necessidade de chacoalhar o público, é porque eles tinham um inimigo em comum.

Quando os quadrinhos de super-herói surgiram nos EUA, eles foram imediatamente alvo da perseguição de moralistas. A Igreja, os políticos, intelectuais e até médicos criaram a narrativa de que histórias em quadrinhos estimulavam a violência, atentavam contra a moral e desvirtuavam as crianças.

Nos casos mais extremos, entidades justiceiras organizaram mutirões para remover gibis do comércio e queimá-los em fogueiras.

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Para os quadrinistas, a grande batalha foi “perdida” em 1954, com a publicação de A Sedução dos Inocentes, do psiquiatra Fredric Wertham. O livro dava um roupagem científica para a tese de que HQs eram uma influência ruim no desenvolvimento de crianças e se tornou a bíblia dos que buscavam proibi-las.

As evidências de Wertham eram completamente furadas, mas isso era irrelevante. Nos anos 1950, a delinquência juvenil se tornou um pânico moral. A Sedução dos Inocentes dizia aquilo que as pessoas queriam ouvir. Assim, se tornou uma sensação.

A consequência direta da repercussão foi a promulgação do Comics Code Authority, um código de conduta destinado a regular o conteúdo dos quadrinhos. A iniciativa foi obra da Comics Magazines Association of America (CMAA), um grupo de figurões da indústria que acreditou que uma auto-regulação mostraria a boa vontade do profissionais em aceitar as “críticas”. A alternativa seria uma censura oficial, o que enterraria as HQs de vez.

Num argumento ainda muito comum entre moralistas, o CCA dizia que os artistas tinham uma “responsabilidade” para a “cena cultural americana” e deviam “fazer uma contribuição positiva para a vida contemporânea”.

Approved_by_the_Comics_Code_AuthorityNa prática, isso significava “purificar” quadrinhos de tudo o que fosse considerado ofensivo, perigoso ou de mau gosto. Estava banido o uso das palavras “terror” ou “horror” (Parte B, 1), violência excessiva (Parte B, 3), apologia ao crime (Parte A, 4 e 5), excesso de gírias (Parte C, 3), nudez e sensualidade (Costume, 1 a 4) e mesmo incentivo ao divórcio (Marriage and sex, 1).

Ninguém era obrigado a usar o selo, mas distribuidores se recusavam a vender HQs que não o tinham. Depois de meses de perseguição (e inclusive uma audiência pública no senado), ninguém queria ser visto como um defensor da delinquência juvenil.

Para os artistas, isso não foi apenas um “mundo ficando chato” : foi um desastre que por pouco não afundou toda a indústria de quadrinhos. Frank Miller, um dos “pais” indisputáveis dos anti-heróis, nos diz isso com todas as letras no prefácio de Batman: O Cavaleiro das Trevas:

Não vale a pena citar o nome daquele psiquiatra lunático ou de seu livro absolutamente desprezível. Há muito o mundo se esqueceu dos dois.

No pequeno universo dos quadrinhos, entretanto, aquele lixo de livro causou tanto estrago quanto um ciclope. Ou Galactus. As vendas caíram mais e mais. Por algum tempo, os artistas de HQs sequer revelavam sua profissão. Não em companhia de pessoas cultas.

Deus sabe que não abordávamos temas políticos.

Mas nós apenas parecíamos irrelevantes. Apenas parecíamos mortos.

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Foi justamente o desejo de não ser irrelevante que motivou Miller e outros criadores (como Robert Crumb, Richard Corben e Neal Adams) a pisar nos calos. A partir dos anos 1970, com a popularização das convenções e o mercado direto, a cena de quadrinhos underground finalmente mostrou as suas garras.

Autores polêmicos agora sabiam que havia uma maneira de seus trabalhos chegarem aos fãs, com ou sem o selo de aprovação. Não demorou para as grandes editoras peitarem a CMAA, chegando, em casos extremos, a publicar gibis mesmo sem o aval do CCA.

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Amazing Spider Man #96, que teve o selo negado por mostrar Harry Osborne em crise de abstinência.

 

A consequência foi uma geração de heróis (e vilões) complexos, inclementes e repletos de defeitos. O Justiceiro e o Motoqueiro Fantasma deram as caras pela primeira vez. O Homem de Ferro virou um alcóolatra. E o Batman se tornou o líder de uma gangue sanguinária, fazendo com as próprias mãos a justiça que faltava ao governo.

Os anti-heróis dos anos 1970 e 1980 não desafiavam só as normas de seus mundos fictícios. Eles eram, também, símbolo do desafio de seus próprios criadores, lutando para que as HQs tivessem o mesmo tratamento de filmes ou livros.

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Esses artistas nunca deixaram de militar pela sua liberdade criativa. Em 1987, Alan Moore deixou a DC após a editora tentar implementar um sistema de classificação etária. Em 1997, Frank Miller, que nunca foi exemplo de sutileza, escreveu Tales to Offend.

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O criador de Elektra não tem nenhum remorso pela postura “in your face”. Como ele disse em um depoimento, “tudo o que se colocar entre meu pincel e minha mesa de desenho é meu inimigo”.

Os anti-heróis nos dias de hoje

É curioso, mas nem um pouco surpreendente, que os anti-heróis façam tanto sucesso nos dias atuais. Em muitas aspectos, nossa geração tem várias coisas em comum com o universo dos anos 1970 e 1980 de onde eles surgiram.

Tal como há 30 anos, nossa época é marcada por um enorme niilismo político. De protestos nas ruas ao sucesso de candidatos implausíveis (veja apenas Trump nos EUA) há uma sensação generalizada de que o jogo está viciado, e que a resposta se encontra em outro lugar.

Tal como nos tempos de Phil Seuling, temos a nosso dispor uma imensidade de formas alternativas de produção e distribuição de quadrinhos: de serviços como o Comixology ao cenário do crowdfunding, da cena efervescente das fanzines aos webcomics. Os quadrinhos nunca foram tão diversos e acessíveis a tantas pessoas (leitores e criadores).

Tal como na época do CCA, pânicos morais continuam estourando na cena nerd, e a ideologia de que artistas têm uma “responsabilidade social” de produzir obras de bom gosto parece ter renascido das cinzas. O site da CBLDF, uma ONG dedicada à proteção da liberdade de expressão de quadrinistas, contém uma lista de obras que têm sido atacadas por moralistas nos últimos anos. Os títulos são surpreendentemente variados, e incluem desde Dragonball até Persépolis.

Qual será o futuro do nosso novo “culto ao anti-herói”, só o tempo nos dirá. Uma coisa, no entanto, podemos afirmar com certeza: se as nossas turbulências trouxerem novos gigantes do calibre de Miller, Moore, Crumb e Gaiman, estamos em boas mãos.

 

 

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A cultura geek está em decadência? https://www.finisgeekis.com/2015/11/03/a-cultura-geek-esta-em-decadencia/ https://www.finisgeekis.com/2015/11/03/a-cultura-geek-esta-em-decadencia/#comments Tue, 03 Nov 2015 16:24:57 +0000 http://finisgeekis.com/?p=820

Eu geralmente prefiro falar de coisas agradáveis. Há muito de positivo no mundo nerd para perdermos a cabeça com os problemas. Na semana passada, no entanto, terminei minha coluna com uma reflexão um pouco angustiada. Para resumir, disse que estou apreensivo sobre o futuro da série Star Wars agora que sua máquina de hype na Disney começou a funcionar a todo vapor.

Como eu mesmo citei brevemente, não é de hoje que nerds desconfiam de grandes corporações do entretenimento. Basta olhar para a EA, campeã de reclamações de gamers, que foi votada pior companhia dos EUA diversas vezes. Com sua entrada no mundo mainstream, a cultura geek começou a depender de coisas que antes não precisava, ou ao menos não na mesma escala. Produtores, orçamentos bilionários, interesses externos. Há quem acredite que ter assinado esse contrato, para usar o corporativês, foi uma decisão ruim.

Para o leigo, farpas como essa são mero fanboyismo, coisa de quem tem problema de menos e tempo de sobra. Contudo, para além das picuinhas, há muito de estranho no atual mundo do entretenimento que já assustou até mesmo insiders. De medidas anti-pirataria com terríveis efeitos colaterais aos reboots pragmáticos feitos para que franquias não caiam nas mãos de rivais, existem motivos para pensar que os tomadores de decisão da grande mídia nerd não tem o bem da subcultura em seus melhores interesses.

Terra queimada

A Marvel, recém-comprada pela Disney, deu um dos piores exemplo dessa mentalidade. Para evitar que os filmes da Fox ganhassem ibope, a ordem foi de jogar os X-Men para debaixo do tapete e promover selos até então obscuros como os Guardiões da Galáxia e os Inumanos. Ninguém precisa da Feiticeira Escarlate quando é possível acabar com mutantes apenas com executivos.

No mundo dos games, esse tipo de queixa tem uma tradição mais velha do que andar para trás, e não é difícil entender por quê. A vontade de capitalizar em cima de modinhas trouxe algumas das práticas mais abusadas dos últimos tempos: Day 1 DLC (algumas vezes, com ads dentro do próprio jogo), microtransações, internet obrigatória, mods pagos e DRMs paranoicos.

Isso sem contar a refabricação completa de alguns gêneros para se tornarem convidativos a um público mais amplo.  Vide, por exemplo, a metamorfose de regras baseadas em D&D por ação em tempo real no estilo MMORPG que tomou RPGs ocidentais de assalto na década passada. Uma mudança tão profunda, diga-se de passagem, que saiu dos monitores direto para os livros de D&D e fez com que conceitos como tanque, suporte  e DPS invadissem (com nomes parecidos) o Livro do Jogador da 4ª Edição.

De um ponto de vista comercial, é difícil dizer que essas medidas não cumpriram seu objetivo. Desapontar fãs de nicho para conquistar o público mainstream é um sacrifício mais do que aceitável. Mais: isto pode ser necessário para que a franquia sobreviva. Fanbases só existem enquanto tiverem fãs. Se o meio em questão estiver perdendo popularidade, a mudança é a única forma de impedir que desapareça.

Para o fã de carteirinha, obviamente, isso interessa pouco. Apelar para todo mundo (algo que fica implícito com os dizeres de que “somos todos geeks”) traz o risco de nivelar as coisas por baixo e acabar com aquilo que faz de algumas obras especiais. FPSs sempre venderão mais do que RPGs isométricos, e sucessos da Shounen Jump sempre terão mais ibope do que mangás autorais. Se uma escolha tiver de ser feita, os últimos sempre serão cortados. Prova: a geração inteira de veteranos dos games que saiu da grande indústria para ressuscitar gêneros considerados mortos.

Porém, tudo isso ainda diz respeito a perdas concretas. Há ainda um outro nível de angústia, mais difícil de enxergar. Ele diz respeito à própria natureza das fanbases.

A convergência de públicos

Na semana passada, eu mencionei que vivemos em uma cultura de convergência. A ideia foi desenvolvida com a mente no mundo das fanbases e nas maneiras (muitas vezes novas) que fãs e produtores encontraram para se relacionar.

Em uma casca de noz, o fenômeno diz respeito a uma nova geração de consumidores ativos, que não espera que seu entretenimento lhe seja entregue nas mãos, mas que vai atrás daquilo que gosta, independente de onde esteja. Ele diz respeito a uma também nova geração de produtores que, de olho nesse mercado, investem em franquias multimídia, exploram canais distintos e cooperam com outros produtores em níveis diferentes, do gigante das action figures ao vlogueiro de YouTube.

Enquanto estivermos falando de multiversos cinemáticos, spin-offs em quadrinhos, webseries de fãs e serviços como o Crunchyroll, tudo ótimo. O problema é que há um medo de que a convergência de conteúdo leve para uma convergência de audiência. Ou seja, que ao espalhar uma franquia sobre várias mídias, com vários públicos diferentes, acabe-se produzindo um público homogêneo. Para o fã de nicho, a preocupação é a mesma: produtores irão investir no que é mais “traduzível” a outras audiências, e não no que é bom ou original.

Opositores dizem que isso não passa de elitismo, da vontade de certos fãs de formar um clubinho e se acharem superiores aos demais. Eles dirão que ser “bom” é relativo, e que as franquias “das antigas” são tão ruins ou piores que as novidades que tanto criticam.

É inegável que em toda fanbase há esse tipo de mentalidade, e que todos nós (sem exceção) sofremos de nostalgia pelas coisas que curtimos na juventude. No entanto, eu acredito que as coisas não sejam tão simples assim. Mesmo entre os geeks, há uma diferença na forma como interagimos com nossos hobbies. E ela diz respeito a uma ideia bem comum, mas muito polêmica.

A diferença entre “hardcore” e “casuais”

Eu sei, essas palavras já foram abusadas tanto que muitos têm até medo em empregá-las. Felizmente, há um jeito de contornar as flamewars. Um grupo de estudiosos especialistas em fanbase se debruçou sobre os vários tipos de fã e lhe deram nomes menos controversos.

De um lado, há aqueles que praticam o hanging out. Eles vêem o entretenimento como um meio para se divertir e se relacionar com outros. As atividades que praticam – assistir séries, ir a convenções, fazer cosplay – são importantes na medida em que permitem que socializem com outros e abram assunto para conversa. Do outro lado, há os que fazem geeking out. Eles têm nos seus hobbies um fim em si, uma prática com a qual se identificam e ao redor da qual criam uma comunidade. Se você já se pegou pensando em Sailor Moon, Star Wars, Metal Gear ou sua banda favorita e sentiu que você faz parte daquilo de alguma forma, essa é a marca do “hardcore”.

“Casuais” praticam o hanging out, o sair com amigos, enturmar-se e se divertir. Eles não se incomodam com modinhas e não devem satisfação a ninguém. Enquando uma atividade estiver cumprindo seu papel, está valendo.

 “Hardcore”, por outro lado, fazem geeking out, um entretenimento todo voltado para seus hobbies, seja passando meses construindo um prop de cosplay, tirando religiosamente o domingo para jogar bola com o time ou virando a noite preparando a campanha que mestrará para os colegas.

O problema é que quem busca um hobby apenas para relaxar pode muito bem escolher outro. Se toda uma indústria se voltar a esse público e ignorar os bravos fãs que vivem e respiram suas franquias, o resultado serão produções vazias, feitas para chamar a atenção e apelar para o que há de mais chamativo no momento. Se ninguém olhará por tempo suficiente para perceber a qualidade, para que fazer coisas que prestem?

Uma guerra civil?

fanboy wars

Quer dizer, então, que não há solução? Estarão os fãs “hardcore” em uma cruzada contra os “casuais”? Estariam os criadores forçados a escolher entre fazer uma produção viável ou depender de um nicho que pode um belo dia desaparecer?

Felizmente, não é bem por aí. Aqueles que estudam fãs e seus hábitos chegaram à conclusão que o problema (para a nossa surpresa!) não são os outros. Mais do que isso: “hardcore” e “casual” não excluem um ao outro. É possível ser “hardcore” sobre um hobby e “casual” sobre outro, ou “casualmente” curtir algo que levamos a sério – um fã de Civilization jogando Dance Dance Revolution com os amigos no fim de semana.

As farpas geralmente aparecem quando uma coisa entra no caminho da outra. Quando games bloqueiam mods para enfiar um novo modo multiplayer. Quando produtoras cedem a pressões externas porque não querem a dor de cabeça de enfrentar a mídia frente a frente. Quando livros, filmes, ou quadrinhos clássicos saem de circulação e deixam de ser editados, ou quando são substituídos por revisões mais recentes. Quando mecânicas populares são forçadas dentro de jogos que não têm nada a ver com elas. Quando executivos mandam as pessoas pastarem por se oporem às suas ideias absurdas.

Nos anos 2000, quando criou o termo “cultura de convergência”, Henry Jenkins disse que havia um “cabo de guerra” entre fãs e produtores de conteúdo. Na década passada, os fãs pareciam estar ganhado. Hoje, os produtores parecem ter levado a melhor.

Esse problema não é insolúvel, mas resolvê-lo – e evitar que ele nos divida – será o grande desafio da próxima década.

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