Warning: Use of undefined constant CONCATENATE_SCRIPTS - assumed 'CONCATENATE_SCRIPTS' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/finisgeekis/www/wp-config.php on line 98

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/feed-rss2.php on line 8
Mamoru Oshii – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Mon, 25 Feb 2019 18:22:18 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Mamoru Oshii – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 Existe anime fora do Japão? https://www.finisgeekis.com/2015/11/09/existe-anime-fora-do-japao/ https://www.finisgeekis.com/2015/11/09/existe-anime-fora-do-japao/#comments Mon, 09 Nov 2015 19:12:39 +0000 http://finisgeekis.com/?p=844

Da lista de perguntas que causam flamewars com maior frequência, essa com certeza está no Top 10. Os animes conquistaram o mundo faz já algum tempo, e de lá para cá são vários os artistas que se inspiraram no estilo para criar seus próprios trabalhos. Mas seriam essas obras “animes”, também?

Se trocássemos “anime” por “mangá”, creio que poucos discordariam. Muitos cartunistas ocidentais já se puseram a escrever seus próprios mangás. Apenas no Brasil, a Editora JBC já realizou concursos brasileiros, cujos ganhadores foram publicados pela revista Henshin. E isso sem mencionar todo o mercado de fanzines.

Mesmo na animação, há quem argumente que o nome “anime” pode ser aplicado a animações ocidentais que emprestam fórmulas e visuais dos desenhos japoneses. Elas incluiriam séries como Avatar, A Lenda de KorraTeen Titans, Samurai Jack e mesmo Meninas Super Poderosas.

Encontre o anime

Encontre o anime

Problema encerrado? Nem de longe. Muita gente discorda dessa posição. O Anime News Network, maior portal de anime e mangá em língua inglesa, define “anime” exclusivamente como animação produzida no Japão. Com o mangá é a mesma coisa. Criações ocidentais inspiradas na estética nipônica são chamadas pelo site de “mangás do mundo.”  O nome é inspirado na categoria dos “mangás globais”, criada pela editora Tokyopop para a sua linha de “mangás” ocidentais.

Quem estaria com razão? Haveria alguma razão, ou seria esse um assunto melhor deixado às flamewars da vida?

Eu acredito que haja pontos bons de ambos os lados. Porém, para chegarmos até eles, precisamos desbravam as opiniões mais a fundo.

Anime: uma denominação de origem.

Chris O’Brien, em uma coluna para o Escapist, fez uma das defesas mais apaixonadas da universalidade do anime. Ele aponta A Lenda de Korra como um perfeito exemplo da mídia, e justifica seu ponto com um paralelo com o mundo das bebidas. Em especial, com o conceito de denominação de origem controlada, ou DOC.

docUma DOC é uma categoria de bebidas padronizadas, cuja produção precisa cumprir uma série de requisitos para garantir o selo. Elas podem ser mais ou menos rígidas – nos casos mais famosos, controlam até mesmo como os produtores devem plantar a matéria prima. Se uma bebida não respeitar as regras, não pode levar o nome da DOC.

A característica mais marcante de uma DOC é a necessidade de ser produzida em uma determinada região. Assim, só espumantes da região de Champagne podem se chamar champagne, só os portugueses podem fazer vinho do porto, só os americanos podem fazer Bourbon e só os brasileiros têm direito a produzir cachaça.

O’Brien muito libertariamente diz que isso é tudo um grande conchavo de políticos para estufar os bolsos de dinheiro e acabar com a livre-concorrência. Para ele, o consumidor não está nem aí para a origem da bebida ou para o jeito como ela é feita. Ele só deseja beber e se divertir.

Com a animação seria a mesma coisa. O rótulo “anime”, tal como DOC, estaria aí apenas para evocar um falso senso de purismo e depreciar as excelentes animações em estilo japonês produzidas fora da Terra do Sol Nascente.

Eu tenho simpatia por alguns pontos de O’Brien. No entanto, se existisse um prêmio de comparação mais descabida da internet, ele com certeza o levaria. Em primeiro lugar, DOCs não são decretos de cima para baixo, mas fruto da pressão dos próprios produtores para valorizar aquilo que fazem. Na maioria das vezes, elas servem para oficializar práticas tradicionais que, em alguns lugares, têm sido feitas informalmente há séculos.

Elas cumprem sim, a função de proteção, mas não a proteção dos consumidores contra os “imitadores” de meia tigela. Antes, elas servem para proteger os próprios estilos frente à popularidade de novas formas de se fazer bebida que surgiram no Novo Mundo. Elas não só não “reduzem a criatividade” como são, elas mesmas, resultados de um mundo globalizado em que todo mundo têm direito de fazer o que quer e vender para quem quiser.

Mais: nenhum produtor é “forçado” a produzir dentro da DOC, mesmo se viver na zona de origem. Um exemplo são os supertoscanos, vinhos  “rebeldes” da região de Chianti que se tornaram alguns dos melhores da Itália.

Dizer que anime é um rótulo como a DOC é dizer que os japoneses estão com medo de serem “ocidentalizados” pela animação gringa e criaram um rótulo para proteger sua produção nacional, forçando seus profissionais a desenharem sempre do mesmo jeito. Dada a imensa popularidade da estética anime no mundo e a receptividade dos japoneses às influências estrangeiras, a explicação não tem pé nem cabeça. Ainda mais se considerarmos que a própria “cultura otaku” que os animes promovem foi feita com base em elementos ocidentais.

O’Brien também parece esquecer uma coisa muito importante. Ao contrário do que ele diz…

As pessoas não pagam apenas pelo produto

figures

Há um motivo que leva as pessoas a pagarem R$350,00 numa garrafa de Veuve Clicquot em vez de beber um espumante do Vale do São Francisco por R$20,00. E não é a qualidade (a título de curiosidade, os espumantes brasileiros são referência mundial).

O champagne é uma bebida histórica, estilosa, que “agrega no camarote”, como disse um certo meme-humano. Quem paga uma pequena fortuna em um champagne não o faz apenas pelas bolinhas. Eles querem algo mais.

E não digo isso apenas pela “ostentação”. Criações tradicionais atraem pessoas porque o público já sabe o que esperar delas. Elas têm uma fama e um propósito que vai além da experiência.

Animes – tais como outras “escolas” de animação – tem suas próprias convenções, o seu próprio “banco de dados” de personagens, cenários e histórias que atiça a memória do fã. Isso sem contar toda a fascinação com a cultura japonesa, que normalmente leva jovens e estudantes de língua a tornaram-se espectadores assíduos.

Quem busca esse tipo de entretenimento pode muito bem se divertir com outros tipos de animação – afinal de contas, ver uma coisa não nos proíbe de assistir outra também. No entanto, o que ele busca no momento em que deseja assistir ao anime é algo que acha que só o anime é capaz de dar.

Ou, ao menos, é o que certos fãs dizem. Na prática, a coisa é um pouco mais complicada, pois…

Não há, no Japão, um consenso sobre o que seja “anime”

Logo do Studio Ghibli. A palavra

Logo do Studio Ghibli. A palavra “anime” (アニメ) não aparece.

Aqui quem nos ilumina é Brian Ashcraft, o correspondente da Kotaku no Japão. Segundo ele, os japoneses nunca tiveram uma única palavra para definir a arte que faziam. Mesmo o termo “anime” só se tornou popular a partir dos anos 1970. Ou seja: os clássicos do Osamu Tezuka dos anos 1960, tidos por alguns como a origem do anime, só ganharem esse nome depois de terem sido produzidos.

Para complicar, se o termo “anime” acabou se tornando uma marca para a animação japonesa no exterior, no Japão isto não aconteceu. O nome é usado para se referir a Sailor Moon e Samurai X  tanto quanto para animações ocidentais como os Looney Toons:

anime antique collection

Não fosse o bastante, muitos animadores japoneses não utilizam o termo “anime” para suas próprias obras. O próprio Studio Ghibli, talvez a maior referência em animação japonesa, muitas vezes opta apenas pelo termo sakuhin (“obra”), o mesmo usado pela Disney em seus lançamentos no Japão. E, se a estética do Ghibli está indiscutivelmente dentro do que chamamos de “anime”, o mesmo não pode ser dito de muitas outras séries que não obstante levam o nome do estilo:

shin chan

Se nem mesmo os japoneses estão preocupados em preservar sua “marca”, haveria sentido em definir anime como uma produção exclusivamente oriental? Em um mundo cosmopolita em que todos se influenciam mutuamente, não seria melhor nos guiarmos apenas pela estética?

O que dizem os contrários

O blog Animenation acha que não, e apresenta um argumento compartilhado pelo Anime News Network, que citei acima. Segundo seu autor, é justamente por vivermos em ambiente interconectado em que todos se influenciam que é necessário definir com precisão o que significa “anime”.

Hoje em dia, a estética da animação japonesa já está tão difundida que é possível encontrar referências em filmes e séries que nada têm a ver um com o outro. Mais: o próprio estilo exagerado do anime, com seus olhos gigantescos e gestos extravagantes, não foi criado no Japão, mas “importado” por Osamu Tezuka e seus contemporâneos de personagens famosas dos Estados Unidos, como a Betty Boop.

betty boop

Se fôssemos, seguindo O’Brien, levar apenas o estilo em consideração, logo  “anime” se tornaria quase sinônimo de “animação”. E, se é verdade que animadores de toda parte têm seus pontos em comum, às vezes queremos nos referir especificamente à mídia popularizada no Japão. Para fins analíticos – dizem essas páginas – não há alternativa melhor do que definir anime pelo seu país de origem.

E quando ao uso casual? Neste caso, tanto o Animenation quanto o Anime News Network acreditam que não haja diferença em adotar o nome “anime” para tudo. Afinal de contas, se não estamos escrevendo um artigo acadêmico ou calculando uma estatística de mercado, por que isso seria importante?

Por que, como tudo na vida, mesmo as coisas complicadas podem ficar ainda mais complicadas.

O anime é uma expressão da cultura japonesa

Space-Battleship-Yamato

Para a maioria dos otakus ocidentais, a frase acima é suficiente para fazê-los revirar os olhos. Aqueles que fazem cosplay talvez se lembrem das peças raras na internet que dizem que apenas japoneses podem encarnar personagens de anime, já que eles foram “feitos para japoneses.”

Acreditem em mim, no entanto, quando digo que essa frase não tem a ver com nenhum discurso do tipo. Mais do que isso: ela não foi dita por um troll nos fóruns do Crunchyroll, mas por dois dos maiores gênios do meio: Satoshi Kon e Mamoru Oshii.

Exatos dez anos atrás, os dois diretores integraram um número de profissionais da indústria entrevistados pela Tokyo Foundation. Os textos originais já saíram do ar, mas felizmente as páginas foram preservadas no archive.org.

Para os dois diretores, o anime não é qualquer animação – mesmo que o termo, casualmente, seja usado desta forma. Também não é uma estética, um grupo de convenções ou uma fanbase. É uma expressão autêntica da mente japonesa, que nenhuma outra cultura é capaz de imitar.

Sobre os empréstimos entre Hollywood e o cinema japonês e a possibilidade de uma arte universal, Satoshi Kon foi bastante categórico:

– Você acredita que a arte ou o estilo são universais? Que as linhas que separam a animação norte americana da japonesa estão se apagando?

Satoshi Kon: Não. Eu acho que não. A estética americana, não importa de que lado você olhe, é americana. Por exemplo, a Disney ou a Dreamworks poderiam usar técnicas da animação japonesa para fazer um fime. Mas não há como alguém dizer que o resultado é “animação japonesa”.

(…)

Mas Hollywood ainda tenta – e com teimosia, alguns diriam.

Satoshi Kon: A cultura da animação e dos quadrinhos japoneses é e foi construída sobre a experiência, mentalidade e nuances do povo japonês, então alguém que não tenha essa mentalidade não consegue criar a mesma coisa. Ela se torna apenas uma imitação. É a mesma coisa com os japoneses. Se nós tentarmos fazer algo “ocidental”, ele se tornará só uma imitação. Claro que nós podemos nos influenciar, mas apenas imitar não saudável e não é bom.

Mamoru Oshii,  tem uma opinião semelhante, muito embora (como em toda a sua obra) ele a coloque de forma bem mais dramática:

– (…) Como você se sente em relação à popularidade do anime e do mangá no exterior?

Mamoru Oshii: Eu não acho que a animação pode ser descrita de forma tão simples. Animação japonesa, animação americana, animação europeia, elas têm suas diferenças. O formato é similar. Mas, por exemplo, quanto que uma pessoa japonesa pode entender da Guerra do Vietnã? Quanto que nós podemos transmitir sobre a guerra em um filme, de qualquer maneira? Se nós tivermos um impacto no público, isto é ótimo. Na América do Norte e na Europa, meus filmes podem ser uma forma de entretenimento, mesmo que haja partes com que eles possam se relacionar porque nossas histórias estão entrelaçadas. Mas no Oriente Médio ou em outros lugares no mundo islâmico, eu não acho que o público responderia bem aos meus filmes porque eles são muito diferentes. Há uma barreira que precisamos ultrapassar. Eu não acho que exista uma cultura global. Há culturas diferentes com crenças diferentes, e isto nós não podemos esquecer. A [Guerra do] Iraque está acontecendo porque as pessoas não entendem isso.

mamoru oshii

Oshii toca num ponto interessante, e no qual geralmente não pensamos. Para ele, o que define uma “arte” não é só seu estilo, mas sua escolha de conteúdo. Não há animação como a japonesa porque apenas os japoneses falam das coisas de que falam do jeito como falam.

Há, obviamente, exceções. O Studio Ghibli, com seu universalismo, está muito mais próximo da Disney da velha guarda do que de muito do que se produz no âmbito do anime. Mesmo sim, é difícil olhar para os animes e não ver reflexões de uma sociedade que não é a nossa.

Sky Crawlersdo próprio Oshii, já foi interpretado como um ataque aos otakus japoneses, que preferem permanecer eternas crianças a se tornarem cidadãos produtivos. Paranoia Agent fala sobre o ritmo alucinado dos trabalhadores no Japão e como muitos descambam para a loucura e o suicídio. Mawaru Penguindrum é um drama sobre o ataque de gás sarin no metrô de Tóquio em 1995, um atentado terrorista completamente diferente daqueles com o qual o ocidente está acostumado. E eu já falei diversas vezes de como o trauma da Segunda Guerra e as questões sem resposta daquele época são um tema recorrente em vários animes e mangás.

paranoiaagent

E isso para citar apenas os títulos “cabeça”. Mesmo nos lançamentos comerciais nós vemos sinais inconfundíveis de que estamos lidando com algo feito em outro país. Os uniformes escolares que adolescentes usam o tempo todo, não importa se estejam em aula ou pilotando um mecha no espaço. A reverência ao senpai. As personagens que falam de costas umas para as outras para efeito dramático. As vending machines que vendem pocky e kit kats de sabores estranhos. Os baito dos jovens adultos. Os apartamentos minúsculos de um quarto só, com chão de tatame e um kotatsu para os dias frios.

kotatsu

É possível separar o anime de toda essa carga cultural? Para Mamoru Oshii, não. É possível para um criador ocidental fazer uma obra que lide com tudo isso? Possível é, mas como disse Satoshi Kon, isso seria uma imitação, e quem deseja uma imitação? Os gaikokujin têm suas próprias histórias para contar. Eles não precisam copiar as japonesas.

Independente do lado que cada um tome, há um ponto com o qual todos concordam. A boa animação pode vir de qualquer lugar, não importa o nome que damos a ela.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2015/11/09/existe-anime-fora-do-japao/feed/ 3 844
Antes de ‘Perfect Blue’: os mangás esquecidos de Satoshi Kon https://www.finisgeekis.com/2015/08/24/antes-de-perfect-blue-os-mangas-esquecidos-de-satoshi-kon/ https://www.finisgeekis.com/2015/08/24/antes-de-perfect-blue-os-mangas-esquecidos-de-satoshi-kon/#comments Mon, 24 Aug 2015 18:31:12 +0000 http://finisgeekis.com/?p=597 Satoshi Kon, morto aos 46 anos em 2010, foi um dos maiores nomes da animação japonesa. Mais do que qualquer outro diretor, ele conseguiu traduzir às telonas a vibe histérica e surrealista de autores como Haruki Murakami e de movimentos como o Superflat.

Seus fãs geralmente o conhecem por seus quatro longa-metragens: Perfect Blue (do qual Cisne Negro é uma adaptação), Millenium Actress, Tokyo Godfathers Paprika, e também por sua série, Paranoia Agent. Poucos sabem, no entanto, que antes de sua estreia no cinema Kon escreveu e desenhou uma série de mangás tão inovadores e adultos como o trabalho que o tornou famoso.

À primeira vista, parece óbvio que um figurão do anime tivesse um pé nos quadrinhos nipônicos. As duas indústrias têm uma relação tão forte que o mangá é geralmente a porta de entrada mais fácil para aspirantes ao universo da animação. Satoshi Kon, entretanto, não era um diretor lá muito comum, e seus quadrinhos deixam isso claro. Para nós, órfãos do grande mestre, essas obras (a maioria inacabada) são uma chance inédita de conhecer a mente do criador que virou de ponta cabeça a arte de Miyazaki e Tahakata.

Abrindo o baú

Eu me considero um fã hardcore do trabalho de Kon (a ponto de ter visto Paprika Millenium Actress vezes suficientes para ter quase memorizado o roteiro). Mas mesmo eu até pouquíssimo tempo atrás não fazia a mínima ideia de que o diretor tinha uma produção significativa no mangá. Foi preciso fuçar em uma prateleira esquecida em uma loja nerd em Helsinki, onde estive para um curso sobre videogames, para encontrar Kaikisen, ou Tropic of the Sea, um volume único publicado pela primeira vez em 1990.

Kaikisen

Também conhecido como “O Retorno ao Mar” em algumas traduções

Com exceção do traço característico de suas personagens femininas (onde já podemos ver a semente de Paprika e Chiyoko), é difícil acreditar que o mangá saiu da mesma cabeça que nos deu Paranoia Agent. Trata-se de uma história tradicional de temática ecológica sobre um jovem cuja família foi escolhida para proteger um ovo de sereia. Quando o bairro em que vive é vendido para a construção de um resort, ele se vê lutando contra uma empreiteira para evitar a ira dos tritões.

Em mensagem, Kaikisen é um história à la Miyazaki sem a exuberância visual que tornou o diretor famoso. Se o mangá nos faz coçar a cabeça ao compararmo-lo às suas obras mais célebres, é visível aqui o tom enxuto e despretensioso de Tokyo Godfathers. O espírito ousado que o levaria mais tarde ao estrelado ainda estavam por vir.

Para isso, seria preciso a ajudinha de um peso-pesado.

Sobre os ombros de gigantes

Um ano depois de sua fábula sobre sereias e meio-ambiente, Satoshi Kon se debruçou sobre World Apartment Horror, uma trama sobrenatural envolvendo mafiosos da Yakuza e espíritos maléficos. A obra merece destaque não apenas pelo conteúdo, mas pela companhia: o mangá é uma adaptação de um filme de mesmo nome de ninguém menos que Katsuhiro Otomo, o deus da animação que nos trouxe Akira. Kon, não fosse o bastante, escreveu também o roteiro do longa. Ombro a ombro com os maiorais da animação, não demoraria para ele ganhar seu ticket de entrada na elite da indústria.

WAH

O mangá não seria a última colaboração de Kon com artistas renomados. Entre 1994 e 1995, ele teve a oportunidade de trabalhar a quatro mãos com aquele que é tal vez o nome mais conhecido do universo do anime depois de Miyazaki.

Sim, é ele mesmo: Mamoru Oshii

Sim, é ele mesmo

Satoshi Kon cuidou da arte. Mamoru Oshii, que a essa altura já tinha Patlabor Urusei Yatsura no currículo, assinou o roteiro. Seu toque autoral pode ser sentido em toda a trama. Fugindo do surrealismo e da explosão de referências que viriam a marcar o trabalho de Kon, Seraphim é uma odisseia em um mundo pós-apocalíptico, acompanhando uma jovem que busca salvar a humanidade de uma doença terrível.

seraphim

A arte é de tirar o fôlego e traz à vida o mundo cruel, alienígena e chocante que Oshii concebeu. Além do mais, digno do criador de Ghost in the Shell, o mangá está repleto de referências filosóficas e religiosas.

seraphim collage

Se hoje a mera menção da dupla é suficiente para provocar orgasmos mentais em qualquer otaku, nos anos 1990 a coisa era diferente. Seraphim é um título surpreendentemente obscuro, que nunca recebeu qualquer destaque e acabou descontinuado. O processo de criação foi tão conturbado que foi até objeto de uma piada de Satoshi Kon em um de seus trabalhos posteriores:

seraphim opus

Encontrando a própria voz

opus-satoshi-kon

É, no entanto, em 1995 que o Satoshi Kon que conhecemos finalmente abriu as asas. Opus, serializado na Comic Guys entre 1995 e 1996, faz juz ao título: trata-se sem sombra de dúvida de seu magnum opus (obra-prima). Aqui, toda a irreverência e verve cerebral de seus longas recebe o desenvolvimento que merece.

Em um enredo típico da ficção pós-moderna japonesa, o título conta a história de um personagem de mangá que, percebendo que sua morte está próxima, se rebela contra seu criador. O desenhista se vê então lançado ao próprio mundo fantástico que criou e se une à protagonista para colocar ordem na bagunça.

opus 2

opus 1

Ironicamente, tal como SeraphimOpus nunca foi concluído. Quem tiver a sorte de encontrar a edição da Vertical de Tropic of the Sea vai poder ler um pósfacio em que Kon conta um pouco do ritmo endiabrado da rotina de mangaká. Sempre um perfectionista, o animador preferia fazer tudo (ou quase tudo) sozinho, o que lhe exigia virar noites a fio trabalhando. Com a fama dos filmes e a necessidade de cuidar dos longas, essa vida simplesmente lhe ficou impossível. Em seu depoimento, ele diz:

No meu ponto de vista eu tenho usado os chapéus tanto do mangaká quando do animador, mas quando sou apresentado em revistas e coisas do tipo eles se referem a mim como “diretor de anime”, com meu chapéu de “mangaká” relegado ao esquecimento. Eu não me lembro de ter jogado fora aquele chapéu ou fechado aquele negócio, mas eu não posso lutar contra a avaliação objetiva da sociedade. Esses dias eu mesmo tenho depreciativamente me contentado com “mangaká em minha encarnação passada.”

De certa maneira, Satoshi Kon foi vítima de seu próprio sucesso. Felizmente, este mesmo sucesso fez com que suas obras escritas, outrora obscuras, fossem publicadas novamentes em edições de luxo. Para o fã desolado que queira gabaritar a produção de seu “mangaká na vida passada” favorito, recomendo ainda dois outros títulos. O primeiro é Dream Fossil, coletânea de contos de quadrinhos que escreveu ao longo dos anos 1980 e 1990. O segundo é Kon’s Works 1982-2010um belíssimo art-book com pôsteres, artes conceituais e ilustrações variadas de toda sua carreira.

kon collage

Nada disso nos cura da trauma de sua morte prematura. Porém, se nada mais, esses mangás nos trazem uma pontada de nostalgia e avivam nossa esperança de um dia assistirmos ao seu filme póstumo nos cinemas.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2015/08/24/antes-de-perfect-blue-os-mangas-esquecidos-de-satoshi-kon/feed/ 2 597
Miyazaki e Oshii na mesma página? https://www.finisgeekis.com/2015/01/31/miyazaki-e-oshii-na-mesma-pagina/ https://www.finisgeekis.com/2015/01/31/miyazaki-e-oshii-na-mesma-pagina/#respond Sat, 31 Jan 2015 21:45:05 +0000 http://finisgeekis.com/?p=15

Hayao Miyazaki, a grande lenda viva do mundo do anime, deu recentemente uma declaração bombástica: a indústria de animação japonesa vai mal porque está “cheia de otakus”. Aos fãs de plantão: não se assustem. O mestre do Studio Ghibli não os odeia. A sua queixa, na verdade, é bem específica, e sem dúvida é partilhada por uma boa fatia de seu público alvo.

Miyazaki critica criadores que não sabem como humanos de verdade funcionam. Obcecados pela cultura interna do mundo otaku, não passam tempo suficiente “observando pessoas reais”, e vivem a vida “interessados apenas em si mesmos”. O problema é o excesso de auto referência; uma indústria com olhos apenas para si mesma e que, por consequência, reduz mais e mais o rol de coisas que sabe representar. Daí as hordas de garotas moe, heróis shounen estereotipados e a oferta infindável de personagens idênticos em histórias idênticas em revistas e séries de alta circulação.

Válido ou não, não pude deixar de sorrir com o comentário do diretor. Primeiro porque as diferenças de Miyazaki com a animação de seu país não são de hoje. Desde os longínquos anos 1980 ele nunca hesitou em olhar para fora, para a fartura visual de estúdios como a Disney, em vez de improvisar uma linguagem com poucos recursos e baixo orçamento, como fizeram, por exemplo, os visionários do gênero mecha. Mas, sobretudo, porque seu resmungo é quase idêntico à alfinetada que recebeu anos atrás de seu antigo colaborador, Mamoru Oshii.

Sky Crawlers e os adultos-criança

Criador de Ghost in the Shell, inspiração de Matrix (na minha opinião, um melhor contraponto para Blade Runner), Oshii é quase tão famoso quanto o criador de Viagem de Chihiro. A diferença, óbvia para os familiares com sua obra, é o tom mais adulto, sério e socialmente crítico que adota em seus filmes.

Em uma entrevista de 2008, quando seu filme Sky Crawlers foi indicado para o festival de Veneza, Oshii deixou isso bem claro. Os filmes de Miyazaki são ótimos de se ver, ele disse, mas são maravilhosos, otimistas, bonitos. O problema é que nem só de beleza é feito o mundo. A fantasia glamorosa de Miyazaki, conquanto um “doce para os olhos”, não é real o suficiente.

A crítica não poderia ter vindo em momento melhor. Sky Crawlers é uma metáfora da infantilização na era contemporânea, do mito do “adolescente eterno” e da cultura otaku, especificamente. O argumento é o de uma sociedade que produz adolescentes que não crescem, e que os emprega como bucha de canhão em batalhas aéreas encenadas. Os jovens (chamados Kildren) vivem vidas ocas, com muito álcool, sexo e violência, até o momento em que são abatidos em frente às câmeras às custas de uma boa audiência. Quando mortos, são substituídos por outros jovens idênticos em aparência e comportamento: nesta sociedade, tal como na nossa, o importante não é ser criativo, mas se misturar à tribo.

Em seus reality shows aéreos, há apenas um piloto que jamais foi derrubado. Ele é, sugestivamente, um adulto. Mais sugestivamente ainda, seu codinome é Teacher. Os Kildren são livres para curtir uma breve vida de libertinagem, mas sabem que, cedo ou tarde, seu destino é morrer nas mãos do Teacher. A trama acompanha o drama de um casal, Kusanagi e Yuuichi, que se desesperam com o vazio da adolescência e desejam crescer. Kusanagi tornou-se mãe e se angustia com o fato de que, em alguns anos, suas filhas serão adultas e ela continuará uma criança. Em um final que só poderia ser mais didático se Oshii nos explicasse com um quadro negro, Yuuichi larga tudo e parte para um duelo com Teacher, argumentando que, para se libertar de sua prisão adolescente, precisa “matar o seu pai.”

Sky Crawlers é um soco no estômago para adolescentes e jovens adultos, e sua mensagem só ficou mais forte pelo fato do filme ter sido lançado junto ao levíssimo Ponyo. Mas eu me pergunto se Miyazaki, ou pelo menos o Miyazaki de 73 anos, que se aposentou com uma reflexão sobre o complexo militar-industrial japonês da Segunda Guerra, discordaria da conclusão. Mais do que nunca, os dois gênios parecem estar na mesma página.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2015/01/31/miyazaki-e-oshii-na-mesma-pagina/feed/ 0 56