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Koe no Katachi – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Tue, 13 Apr 2021 14:58:43 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Koe no Katachi – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “To Your Eternity” é uma resposta à pergunta que move a humanidade https://www.finisgeekis.com/2020/02/10/to-your-eternity-e-uma-resposta-a-pergunta-que-move-a-humanidade/ https://www.finisgeekis.com/2020/02/10/to-your-eternity-e-uma-resposta-a-pergunta-que-move-a-humanidade/#comments Mon, 10 Feb 2020 19:48:47 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22174 Quando li To Your Eternity pela primeira vez, nada me surpreendeu mais que saber que vinha da mesma pena que nos trouxe A Voz do Silêncio.

O que levaria a autora de um mangá intimista sobre bullying decidir continuar seu sucesso com uma saga sobre o destino da humanidade e o sentido da vida? Em que momento, durante a criação de sua fábula escolar, Yoshitoki Ooima entendeu que apenas um épico dessa escala seria capaz de dar conta das histórias a que ela precisava dar vida?

A resposta, provavelmente, apenas Ooima sabe. Mas sua última obra traz algumas pistas. Em publicação desde 2016, To Your Eternity é o melhor trabalho de sua carreira, um dos melhores mangás dos últimos quatro anos; possivelmente, um dos enredos mais ambiciosos na história da mídia.

Com uma adaptação às telas confirmada para outubro, não há momento melhor para explorarmos o que torna esse épico tão especial.

À você, o imortal

Como indica o título, To Your Eternity (também conhecido como Fumetsu no Anata e ou To You, the Immortal)  é uma obra sobre alguém incapaz de morrer. É, também, uma história sobre muitos que de fato morrem: velhos e jovens, impulsivos e precavidos, inocentes e bandidos, entes amados e desconhecidos. É uma história sobre as medidas desesperadas – e nem sempre bem-sucedidas – com que tentamos nos agarrar à vida. E sobre o sentido que podemos – ou não – dar a estas tragédias.

Nosso protagonista é uma consciência sem corpo ou origem definidos, que desce à Terra e depara-se com um cachorro morto. Sem completamente entender seus poderes, ele se transforma no animal, e, com o sopro da vida, vem também a curiosidade para entender sua condição. Ele é encontrado pelo dono do cachorro, um garoto cujo sonho é abandonar a fronteira e conhecer a civilização.

Um acidente tolhe sua vida pouco depois de se conhecerem. Tão cedo ele morre, a consciência se transforma no garoto – e, com ela, herda ainda mais sentimentos e experiências que não entende. Não demora para que seja encontrado por outros humanos, que vêem na entidade imortal um mistério tão fascinante quanto é, para ele, o mundo efusivo, complexo e cruel que o rodeia.

As pessoas que encontra lhe dão um nome – Fushi (japonês para “imortal” ou “morto-vivo”) – e o ensinam, lentamente, a se comunicar. Conforme o tempo passa, Fushi também descobre a verdadeira natureza de seus poderes. Ele é capaz de adquirir o corpo de qualquer humano ou animal desde que seu dono original tenha morrido.

De corpo em corpo e encontro em encontro, Fushi passa de um Kaspar Hauser perdido num mundo de fantasia a membro de uma de uma família adotiva, prisioneiro e refugiado, até se tornar pivô de uma guerra religiosa que mudará para sempre o destino do mundo.

Como uma premissa como essa, não é preciso dizer que o mangá de Ooima é um melodrama capaz de fazer marmanjões chorarem. Histórias sobre imortais invariavelmente terminam em tragédia, pois seus protagonistas estão confinados a duas sinas. Primeiro, a de testemunhar a morte de todas as pessoas que ama. Segundo, a de saber que todas as vidas do mundo não seriam capazes de aliviar sua solidão.

Quando se vive para sempre, a apatia é o único futuro que nos resta.

Diferentemente dessas histórias, a tragédia de To Your Eternity nada tem a ver com a imortalidade de seu protagonista. Num cruel golpe de ironia, as pessoas que Fushi aprende a amar não morrem de velhice, mas no auge de sua juventude – às vezes, antes disto.

Morrem porque se acidentam, adoecem ou são assassinadas por seus pares. Morrem porque seu mundo é impiedoso, arbitrário ou, às vezes, apenas imprevisível. Para o bem e para o mal, morrem porque seu mundo é um mundo como o nosso.

Um sentido para a vida

Que sentido tirar de toda essa dor é uma angústia que aflige Fushi desde o momento em que aprende a formulá-la.

Cedo na história, Fushi é visitado por uma presença misteriosa que se diz seu criador. Esse “Homem de Preto”, como é chamado pelas outras personagens, diz que sua missão é proteger o mundo enfrentando os nokkers, estranhas criaturas que parecem tumores dotados de vida própria.

O que, exatamente, é esperado que ele faça não é tão claro, sobretudo porque os nokkers ficam mais poderosos conforme ele próprio amadurece. Tudo o que seu criador revela é que precisa “adquirir informação”.  Ao assumir a forma daqueles que morreram, Fushi aprende a ver o mundo com os seus olhos e amplia seu entendimento sobre a experiência humana.

É nesse entendimento, diz o Homem de Preto, que mora a salvação da humanidade.

Esse habilidade inusitada faz de Fushi uma espécie de herói com a empatia como superpoder. Assumir os corpos e pontos de vistas de outros permite que recorra a suas habilidades e talentos – poderes que, no mundo hostil em que viaja, mais de uma vez se provarão a diferença entre a vitória e a derrota.

A ironia não escapa a ele – nem a nós, leitores. Fushi não tem laços à “humanidade”, apenas às pessoas que encontra pelo caminho. Mas ele só é capaz de colecionar poderes daqueles que morreram, o que significa que só pode contar com a força dos seus entes amados depois destes terem lhe deixado. E cada vez que usa seus poderes, é lembrado de uma vida que tentou – e falhou – em proteger.

Viver, para Fushi, significa colecionar as dores de todos os lutos que já choramos.

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, escreveu Vinícius de Moraes. No Samba da Bênção, era uma mensagem de esperança. Para Fushi, bem poderia ser uma maldição.

Da sala de aula às portas do inferno

É na empatia de Fushi que Ooima mais se aproxima de seu trabalho anterior, A Voz do Silêncio. 

Em alguns momentos, o paralelo entre as duas obras é óbvio. É o caso de Gugu, um garoto desfigurado por um acidente e forçado a esconder o rosto sob uma máscara de camaleão. O preconceito que sofre por ser diferente e sua jornada de auto-aceitação lembram o percurso de Shouko, a heroína surda de sua fábula sobre bullying. 

Em outros, ele é mais sutil. Jananda, uma colônia penal isolada que involuiu a um inferno digno de O Senhor das Moscas, é uma versão exagerada da escola de seu mangá anterior, onde alunos e professores uniam forças para zombar dos mais fracos.

Num ambiente que premia a violência, sem ninguém que lhes ensine civilidade, é questão de tempo até que seres humanos se  transformem em sádicos opressores. Sejam eles gladiadores ou alunos do Fundamental; sejam suas crueldades chacinas ou brincadeiras de mal gosto.

 

A necessidade humana de ser tratado com bondade – e o desespero de não encontrá-la – parece ser um tema caro a Ooima. Em A Voz do Silêncio, garantir que ela triunfe é um trabalho que exige dois sacrifícios: do opressor, o remorso; da vítima, a generosidade de perdoá-lo.

Em To Your Eternity, as coisas são mais complicadas. Fushi, pela sua própria natureza, possui mais empatia que qualquer pessoa viva. Por outro lado, ter acesso ao coração de vários indivíduos também faz dele menos humano – e, portanto, menos capaz de entender os problemas que as pessoas, limitadas em sua existência, são incapazes de resolver.

Parte do que torna afeições humanas tão preciosas é o fato de que ela são especiais. Não amamos uma criança qualquer como nossa filha. Não fazemos a desconhecidos os sacrifícios que dedicamos à nossa alma gêmea.

Desta injustiça inevitável vem boa parte dos nossos defeitos – e, também, aquilo que nos faz humanos. Humanidade de que os amigos de Fushi sentem falta ao notar que ele, na medida em que cresce em poder, torna-se também mais frio e distante.

 

Uma entidade como ele, quase onisciente, teria mesmo o direito de “salvar” a sociedade humana, como manda seu criador?

Death Parade, outro anime sobre nossa relação com a morte, respondeu que não. Apenas um mortal é capaz de entender os erros de outro mortal – e os defeitos que levaram a eles. Mesmo que uma tal inteligência seja capaz de ver algo que não enxergamos, essa verdade escondida de nada nos importa se não fizer sentido na realidade física, finita e imperfeita em que somos obrigados a viver.

Se a trama do mundo for nada mais que um grande dominó cósmico, imprevisível, incontrolável, então não há porque nos preocuparmos com ela. A morte térmica do universo não é um problema de que somos responsáveis. A crueldade do próximo é.

Fushi discorda. Ele acredita que suas ações podem, sim, ajudar as pessoas. Aqueles que recebem sua graça, porém, nem sempre concordam. Em dado momento, uma mulher recusa violentamente uma oferta de esmola, argumentando que não quer ser controlada.

O problema ganha uma dimensão literal quando descobrimos que os nokkers usam os sentimentos para rastrear pessoas. Sentir tudo, neste sentido, significa saber de tudo, o que torna Fushi um Big Brother em potencial, capaz de oprimir os mortais como o Deus do Antigo Testamento.

As coisas se complicam ainda mais quando os nokkers revelam que eles, também, pretendem salvar a humanidade – não da morte, mas das agruras da vida terrena. Apenas ao morrer nossas almas poderão ser livres dos sofrimentos do mundo real.

Não é preciso muito para interpretar esse conflito como uma metáfora entre duas visões de mundo. Uma focada em aproveitar ao máximo nosso breve tempo sobre a Terra. Outra, em nos libertarmos da dor e do desejo, para que nossa morte – quando vier – seja a mais tranquila possível.

Não é preciso muito, tampouco, para enxergar a batalha entre Fushi e os nokkers como uma dúvida que mora no coração de todos os humanos. E que continuará a nos perturbar enquanto a humanidade existir.

Poucos criadores, em qualquer mídia, são versáteis a ponto de deixarem sua marca em vários gêneros diferentes. Se ícones como Ozamu Tezuka e Stanley Kubrick adquiriram status de lenda não foi apenas por seus méritos técnicos, mas também porque ousaram fazer perguntas sobre a condição humana que nenhuma divisão editorial dava conta de responder.

Com apenas trinta anos, Yoshitoki Ooima está apenas no início de sua carreira. O que apresentou até aqui, porém, deixa claro que ela tem tudo para se unir aos grandes. Em Mardock Scramble, em que participou como artista, ela mostrou ter a imaginação necessária para dar vida a um futuro exótico. Em A Voz do Silêncio, a compaixão para – literalmente – dar voz  aos que sofrem sozinhos. Em To Your Eternity, a coragem para abordar as grandes questões da filosofia – e a confiança em seus leitores para que cheguem a suas próprias conclusões.

Alguns entre aqueles que Fushi encontra ao longo da sua jornada o apoiarão, outros tentarão detê-lo. Alguns batalharão pela vida terrena, por mais curta que ela seja; outros, pela promessa de um paraíso. Outras ainda, como nós, encontrar-se-ão no escuro, divididos entre o desejo de que a vida tenha um sentido e o medo de nunca encontrá-lo.

Se To Your Eternity traz alguma mensagem é que a responsabilidade em encontrar esse sentido cabe a cada um de nós. Mesmo que a conclusão a que cheguemos é a de que ela não precise de sentido algum.

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“Koe no Katachi”: um novo olhar sobre o bullying https://www.finisgeekis.com/2016/06/20/koe-no-katachi-um-novo-olhar-sobre-o-bullying/ https://www.finisgeekis.com/2016/06/20/koe-no-katachi-um-novo-olhar-sobre-o-bullying/#comments Tue, 21 Jun 2016 00:09:13 +0000 http://finisgeekis.com/?p=6944

Quem acompanha a cena de mangás já deve ter ouvido falar de uma pequena pérola que tem ganhado os holofotes nos últimos tempos. Koe no Katachi, conhecido em inglês como A Silent Voice, é um dos destaques mais badalados de memória recente.

Originalmente um one-shot, depois expandido a uma série completa, a obra faturou o Prêmio Osamu Tezuka para novos artistas em 2015, foi indicada para o Prêmio Eisner de 2016 e ganhou uma animação, que chegará aos cinemas em setembro. Tanto fora quanto dentro do Japão, o mangá da autora Yoshitoki Oima tem sido um sucesso retumbante.

Não havia como ser diferente. Koe no Katachi, afinal, de contas, trata de umas poucas questões que jovens de todos os países e culturas já devem ter testemunhado: o bullying.

O que torna o mangá tão excepcional (e diferente de tantos outros seriados sobre a adolescência) é o seu ponto de vista. Em vez nos introduzir ao cotidiano da vítima, Oima conta sua história sob os olhos, justamente, do bully.

Seu enredo soará familiar a qualquer fã de slice of life. Uma garota, Shouko Nishimiya, acaba de se transferir para uma nova escola. Tudo estaria bem, não fosse por um pequeno detalhe: Shouko é surda.

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Diferente, ela se torna o assunto da vez. Por não conseguir falar direito, o professor a dispensa das atividades orais. A turma sente que ela está sendo privilegiada e resolve atormentá-la.

Shouya Ishida, um garoto bagunceiro, dos que passam mais tempo na diretoria do que na sala de aula, vê em Nishimiya uma oportunidade de ouro. Com crueldade de sobra e vítimas de menos, ele vê na colega um alvo perfeito: fraca, impopular e vulnerável.

Insatisfeito em ignorá-la ou ridicularizá-la na frente dos outros, ele escreve insultos em sua carteira, joga seu caderno na água e destrói seus aparelhos de surdez.

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Para a surpresa de Ishida (e para a schadenfreude de todos que passaram por momentos parecidos) o feitiço se volta contra o feiticeiro. Nishimiya muda de escola. O colégio é obrigado a pagar indenização pelos aparelhos quebrados. A turma e os professores, que antes se divertiam com as peças que Ishida pregava, se voltam contra ele e fazem que com receba toda a culpa.

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O que se segue é algo que Ishida jamais imaginaria. Na falta de uma vítima óbvia como Nishimiya, seus antigos colegas o escolhem como o novo alvo de bullying. De garoto descolado, bad boy da sala, Ishida vive o inferno que preparara para Nishimiya. Ele termina a escola sem amigos, desprezado pelos professores e assediado dia após dia.

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Para a sorte do garoto, o destino tinha uma última brincadeira à sua espera. O que poderia ser uma lição de moral sobre o karma se transforma em uma história de redenção. Anos depois, já no ensino médio, o ex-bagunceiro amargurado se encontra com sua antiga vítima.

Atormentado pelo remorso, Ishida decide que se tornará uma outra pessoa. Ele aprende linguagem de sinais, retoma contato com seus colegas de infância e se compromete a reatar com Nishimiya. E, quem sabe, obter ele próprio um pouco de paz.

Justamente por ser um tema tão delicado, o bullying é muitas vezes tratado de forma sentimentalóide. Eu mesmo, que entrei em contato com Koe no Katachi na mesma época em que escrevi sobre The Gods Lie., demorei para me arriscar no mangá.

Ao ler a sinopse, tive a impressão de que a história degringolaria para uma repetição de clichês vazios sobre a importância da empatia ou alguma outra platitude.

Aqueles que sentem uma resistência parecida podem respirar aliviados. Koe no Katachi é uma história incrivelmente bem contada, sem vilões ou mensagens óbvias.

Como o que há de melhor na ficção, Yoshitoki Oima prefere mostrar a julgar. Em uma de seus decisões mais criativas (e sensíveis, em um mangá sobre surdez), ela deixa o visual contar a história.

Após ser eleito o novo bode expiatório da sala, Ishida se torna um adolescente quieto, solitário e revoltado. Sem saber quem responsabilizar pelo sofrimento, ele resolve culpar a todos e viver a vida por conta própria. Oima nos apresenta sua decisão como um “X” metafórico sobre os rostos das pessoas.

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Na medida em que Ishida muda e reata a amizade com seus antigos colegas, seus rótulos começam a cair.

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Em outro momento, Oima nos dá uma amostra do universo de Nishimiya. No espaço de algumas páginas, somos convivados a “escutar” o mundo como a garota: frases incompletas e entrecortadas, filtradas pelo seu aparelho de surdez.

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Bullying: um problema japonês? 

Não é difícil entender a popularidade de Koe no Katachi. Junto com as mortes por excesso de trabalho e os adultos que se recusam a sair de casabullying no Japão é um daqueles temas que ganha com frequência um espaço nas manchetes.

O país, que já tem um enorme índice de suicídio, registra um recorde de mortes de jovens em 1º de setembro, dia de volta às aulas após as férias de verão. Para alguns, o motivo é justamente a crueldade dos colegas de sala.

Bullying é um problema universal, mas os abusos que os jovens japoneses sofrem não são necessariamente iguais aos de seus colegas em outros países. O ijime (como a prática é conhecida no Japão) tem algumas peculiaridades.

Lá, o assédio é muito mais psicológico do que físico e geralmente acontece entre alunos de uma mesma turma. Ao contrário do clichê americano, ele não é praticado por um ou dois “valentões”, mas por grupos muito grandes de pessoas, quando não por uma classe inteira. Em alguns casos, com participação até mesmo do professor.

Curiosamente, a despeito da agressão física retratada em Koe no Katachi, essa versão “dissimulada” do Ijime parece muito mais próxima do que a própria autora se lembra de seus anos de colégio. Como ela disse em uma entrevista:

Kodansha Comics:  Você tem alguma experiência pessoal com bullying, ou com ser vítima de bullying?

Yoshitoki Oima: Na vida real, bullying não é muito visível na superfície. Às vezes você pode dizer que alguém está falando pelas suas costas, mas eu nunca fui longe o suficiente para confirmar. Então eu não sei. Eu não encararia aquilo como bullying, mas eu ainda tenho umas impressões negativas daquilo. Eu pararia por ali.

O ijime também pode durar muito mais tempo do que o bullying com que estamos acostumados. Enquanto que no Ocidente é comum que bullies se “cansem” ou escolham outras vítimas, no Japão um indivíduo pode ser abusado dia após dia durante toda a sua vida escolar.

Para alguns, esse tipo de bullying é um problema que vai além dos muros da escola. Há uma pressão tão grande para que pessoas se juntem ao grupo, sejam parecidas e se comportem do mesmo jeito que aqueles que se sobressaem se tornam  vítimas de ataque.

Como disse uma aluna entrevistada pela CNN:

No Japão, você precisa entrar na linha das outras pessoas. E se você não consegue fazer isso, você é ignorada ou sofre bullying. [Todo mundo] precisa ter uma opinião unificada, e isto destroi o que há de único em cada pessoa.

O problema, como Koe no Katachi mostra tão bem, é que essa mentalidade torna quase impossível combater o bullying. Em um lugar em que todos devem abaixar a cabeça e se misturar à multidão, chamar a atenção (ou mesmo tentar ajudar) uma criança que sofre ijime pode causar mais estragos do que não fazer nada.

É o que o mangá de Oima nos prova logo de início. Para tentar integrar Shouko à turma, uma das professoras de sua escola decide forçar os alunos a aceitá-la no coral da classe. Shouko, que é surda, não tem a menor capacidade de cantar e acaba estragando a performance da sala.

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Os alunos ficam com raiva e passam a odiá-la. O que era para ser uma tentativa de unir a turma acaba transformando Shouko na inimiga da sala, alguém que, aos olhos do colega “merece” tudo o que sofre.

Não é por acaso que, ao longo da história, Shouko continuamente pede desculpas a seus colegas e (quase) nunca deixa escapar a sua tristeza. O que pode parecer uma certa “nobreza de espírito” é, na verdade, a culpa por ter bagunçado o status quo. Shouko se sente perseguida menos por ser surda do que por ser aquela que, mesmo sem querer, foi a responsável por tanta confusão.

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Um excesso de disciplina?

Quando pensamos em comportamentos como esse, é fácil colocar a culpa na desordem. Afinal de contas, se tudo corresse segundo as regras, abusos como os sofridos por Shouko não aconteceriam.

Curiosamente, alguns estudiosos acreditam que o problema seja justamente o contrário. Por mais estranho que possa parecer, jovens japoneses torturam seus colegas porque seu ensino funciona (ao menos no papel) bem demais.

As escolas japonesas têm hierarquias muito fortes, regras em excesso e pouca intimidade entre estudantes e professores. Os alunos não devem cuidar apenas de seus estudos, mas do próprio colégio. Tarefas comuns, como limpeza, não são feitas por funcionários, mas pelos próprios jovens.

Se por um lado isso estimula um sentimento de comunidade, por outro cria a ideia de que o “bem da escola” é maior do que as preocupações de um único aluno. Com tantas obrigações e metas para cumprir, o desconforto de um único estudante se torna um problema “menor” dentro das preocupações do colégio.

Com os professores não é diferente. Como nos conta um americano que trabalhou dando aulas no Japão, os docentes têm tantas obrigações que simplesmente carecem de tempo para lidar com os problemas dos alunos.

Pior: em raros casos, eles ativamente encorajam o bullying para manter a turma em ordem. Diante de turmas bagunceiras e sem autoridade para dar um basta nas maldades, alguns professores elegem um “palhaço” e permitem que os alunos de divirtam às custas dele.

É justamente essa crueldade que Koe no Katachi nos mostra sem rodeios. A diretoria só toma providências em relação a Nishimiya quando a própria escola passa a correr risco de ser investigada. O professor a considera um problema e chama a mãe de “egoísta” por jogá-la nos braços dos outros. O bem da turma, afinal de contas, vem em primeiro lugar.

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Mesmo Ishida, o bully por excelência, não é um simples mau-caráter. O garoto é filho de uma mãe solteira que passa o dia inteiro trabalhando. Sem uma família que funcione como tal, ele não tem ninguém em quem se espelhar… ou  com quem passar o tempo.

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Oima provavelmente só estava pensando no seu enredo, mas fez um trabalho digno de uma tese de sociologia. Segundo alguns psicólogos, crianças criadas em famílias sem pais (em japonês, tanshinfunin) têm uma predisposição a virarem bullies.

Com a rotina de trabalho endiabrada do Japão e as pressões do mundo corporativo, famílias têm menos oportunidades para exercer autoridade.  Tal como os professores de Ishida e Nishiyima, filhos problemáticos são um fardo que são obrigadas a delegar.

É uma justificativa bem clemente dos bullies, mas talvez nisto esteja a maior força do mangá. É muito fácil tomar partido contra as injustiças, criticar a maldade, desejar dar as mãos aos nossos amigos e construir um mundo melhor.

Bem mais difícil é encarar o mundo pelos olhos dos próprios “injustos” e entender quão sutil é realmente a “maldade”. É desconfortável descobrir como mesmo pessoas boas são capazes de ferir outras, e pessoas ruins podem provocar um sofrimento imenso fazendo apenas bondades.

Não é fácil equilibrar essas nuances com toda a emoção de um slice of life de melodramaKoe no Katachi, felizmente, não é um mangá como qualquer outro.

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