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internet – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Sun, 17 Nov 2019 15:02:22 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 internet – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Black Mirror”: nosso maior pesadelo é o passado, não o futuro https://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/ https://www.finisgeekis.com/2016/10/31/black-mirror-nosso-maior-pesadelo-e-o-passado-nao-o-futuro/#respond Mon, 31 Oct 2016 20:49:50 +0000 http://finisgeekis.com/?p=12378

Se eu tivesse que apostar que uma série britânica underground como Black Mirror um dia ganharia os aplausos da multidão, perderia meu dinheiro.

É verdade que a obra, que está agora em sua terceira temporada, sempre deu sinais de que brilharia. Gigantes do entretenimento como Stephen King e Robert Downey Jr. se disseram seus fãs. Seu especial de natal contou com a participação de Jon Hamm, o Don Draper de Mad Men.

Desde o princípio, Black Mirror foi uma excelente ideia à espera de alguém que a comprasse. Para sua sorte, a honra veio de ninguém menos que do Netflix.

Aos que não a conhecem, a série é uma coleção de curtas sobre a relação do homem com a tecnologia. Apesar de referências a uma cronologia comum, cada episódio é independente, dirigido por um diretor diferente, com seu próprio elenco e enredo.

Às vezes sarcásticos, quase sempre distópicos, raramente otimistas, seus contos são ficções especulativas ambientadas “15 minutos no futuro”: distantes a ponto de serem diferentes do nosso mundo, mas próximas o suficiente para nos fazer temer suas consequências.

Em The Entire History of You, por exemplo, um dispositivo permite que as pessoas gravem e assistam a todas as suas memórias. O que parece uma bênção logo se mostra uma maldição. Como as personagens de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, seu protagonista aprende que num mundo sem esquecimento nossos erros nos assombrarão para sempre.

Em White Christmas, por sua vez, pessoas podem ser “bloqueadas” na vida real como no Facebook. Uma vez que isso aconteça, não podem ser vistas ou ouvidas por aqueles que o bloquearam. Criminosos são punidos com um “bloqueio universal”, que os impede de interagir com os outros pelo resto de suas vidas.

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Em Nosedive, estreia da nova temporada, pessoas avaliam umas às outras no estilo do Uber. Tal como no aplicativo de caronas, uma nota muito baixa implica na perda de benefícios – neste caso, direitos civis.

O lado negro da tecnologia

O “espelho negro” que dá nome à série é uma referência às telas de smartphones. Por um lado, são uma fixação que parecemos não ser capazes de largar. Por outro, como todo espelho, nos mostram o reflexo (distorcido) de quem realmente somos.

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Quem revira os olhos com imprecações contra os “males da modernidade” pode respirar aliviado. Black Mirror não é hard sci fi. Suas “profecias” tecnológicas beiram o fantasioso. Seu worldbuilding, até pela proximidade com o presente, é mínimo.

Um mundo inteiro jamais poderia ser sustentado apenas por humanos gerando energia em bicicletas ergométricas, como sugere Fitfteen Million Merits. Já Hated in the Nation, em que abelhas robóticas caçam pessoas com o poder do Twitter, parece um argumento de filme B.

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Cena de “Fifteen Million Merits”

Criticar a série por causa disso, obviamente, é deixar de lado o mais importante. Black Mirror não é uma “profecia” tecnológica, mas uma redução ao absurdo, uma suposição do que aconteceria se os problemas da vida contemporânea fossem alargados ao extremo.

Seus contos são tão irreais quanto os pesadelos em que ficamos pelados em público, ou em que descobrimos que nossos pais são impostores. Porém, tal como estes pesadelos, é justamente por tocar em medos tão viscerais que a série nos sacode emocionalmente.

Como disse seu criador, Charlie Brooker, a ideia não foi escrever uma ode contra a tecnologia, mas avisar sobre o que ela pode nos trazer.

Brooker é otimista, ou apenas muito ingênuo. Pois, como outros já apontaram, a distopia de Black Mirror está longe de ser um palpite. Os terrores da tecnologia que a série nos apresenta são problemas com que convivemos há muito tempo.

E por “muito”, não penso em anos, mas em séculos.

A tirania da comunidade

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Revoltados de plantão passam uma boa parte de seu tempo defendendo a liberdade de pensamento, a privacidade e o princípio da ampla defesa. Fazem bem. Essas garantias, afinal de contas, são os pilares da sociedade que conhecemos.

O que talvez os surpreenda é que o statu quo que gostam de proteger é muito mais novo do que imaginam.

Até cerca de 200 anos atrás (em alguns lugares, por muito mais tempo), pessoas viviam em comunidades minúsculas, em que todos se conheciam. O problema, como notaram pesquisadores, é que sociedades fechadas não são apenas diferentes. Elas também funcionam de uma outra forma.

Como a informação circula pouco, manter segredo se torna difícil. Fofoca é um esporte popular. O que cada um faz, com quem cada um se relaciona e mesmo o que cada um pensa logo vira assunto público.

Como a lei é fraca e o tribalismo forte, os conflitos são resolvidos entre as pessoas. O que a comunidade achar errado, nem que apenas uma desfeita após a missa de domingo, é suficiente para arruinar uma pessoa. Não importa se a punição é desumana: enquanto for o desejo da maioria, ela será merecida.

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Em uma sociedade onde a vontade da turba é a que manda, é questão de tempo até que as pessoas comecem a viver pelas aparências. Afinal, é justamente por elas que serão julgadas – e condenadas. Máscaras se tornam tão importantes quanto rostos.

Daí que, para manter a “ordem” e “fazer o que é justo”, não basta exigir o troco. É preciso assassinar suas reputações, humilhá-las, desumanizá-las.

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É a filosofia de A Letra Escarlate, em que uma adúltera é obrigada a vestir uma marca para que os demais reconheçam seu pecado de longe.

É o que, entre 1692 e 1693, levou 25 pessoas à morte em Salém, Massachusetts, vítimas da fofoca de um grupo de garotas. É o que fazia com que, na Versailles do Ancien Régime, brigas, rivalidades políticas e até mesmo duelos fossem provocados pelos mais fúteis dos motivos.

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Foi apenas com a explosão populacional e o surgimento das grandes metrópoles que outro caminho começou a se abrir. Na nova sociedade urbanizada, fria e superpovoada, pessoas se tornam estranhas. A cidade é o império do anônimo.

Na multidão, o indivíduo não precisava mais ser escravo de sua comunidade. Podia ir aonde desejasse, relacionar-se com quem quisesse, experimentar o que lhe desse na telha.

Se essa utopia parece fresca, é porque foi apropriada pela retórica da globalização e da revolução digital. O cidadão internacional não deve mais obediência à pátria: o mundo é seu playground. Comunidades virtuais, de fandoms a praticantes de fetiches sexuais, permitem que as pessoas escolham suas tribos – e se “desconectem” sempre que quiserem.

Que Black Mirror nos choque tanto é prova de que esse sonho ainda segue firme. Mesmo que a realidade, cada vez mais, conte outra história:

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Na sanha de nos aterrorizar com o futuro,  Black Mirror nos apresenta um mundo que a humanidade conhece muito bem. De uma utopia infinita e interconectada, a sociedade ameaça se tornar tão fechada, provinciana e inclemente quanto foi durante a maior parte da história.

Infelizmente para os “pessimistas” de  Black Mirror, virar essa mesa é uma tarefa muito mais complicada do que nos livrarmos dos últimos gadgets.

O que desejamos apagar

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À primeira vista, é fácil supor que a série de Brooker seja uma fábula sobre os excessos da tecnologia. Desafetos da Apple, compartilhadores de correntes nostálgicas no Facebook e metidos a politizados em luta contra a “alienação” encontraram na série um prato cheio para esbanjarem as próprias certezas.

Porém, há pouquíssimo nessa distopia futurista que não seja superado pelo que a era pré-digital, sem pompa ou circunstância, era capaz de fazer.

A “likecracia” de Nosedive pode parecer uma histeria tirânica. Porém, é inacreditavelmente mais branda do que o higienismo do século XIX, quando presídios inteiros eram construídos para prender e torturar pessoas desfavorecidas, deslocadas ou inconvenientes.

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Antiga prisão de Cork. No final do século XIX, uma mulher chegou a ser presa por “bebedeira” e “linguagem obscena”.

Já em Men Against Fire, soldados recebem implantes cibernéticos que fazem com que enxerguem seus inimigos como monstros. Assim, podem atirar sem sofrer com o dilema moral em matar outras pessoas.

Com o jargão típico da geração 11/09, uma colunista do The Mirror disse que o episódio fala sobre “as consequências filosóficas da guerra de alta tecnologia”.

Mas Nathan Bedford Forrest, oficial confederado e primeiro grão-mago da KKK, não precisou de implantes para chacinar prisioneiros negros no Massacre do Forte Pillow. Nem soldados japoneses para sequestrar e baionetar bebês durante a invasão da China (CUIDADO, NSFW).

Será que essas guerras eram menos “filosóficas” que as nossas?

Ironicamente, se existe algo próximo da guerra “humanizada” que o episódio parece defender, ela está justamente na matança “futurista” que tanto critica. Entre o desenvolvimento de tecnologias para reduzir danos colaterais e uma opinião pública horrorizada como nunca antes com a violência, o combate se torna cada dia menos letal.

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Resultado de ‘Gyokusai’ ou Carga Banzai, 1942

As visões de progresso pregam que a humanidade pode sempre transcender suas barreiras. Nada está escrito na pedra. O amanhã será melhor que o ontem. Nenhum vício é inconsertável, e nenhuma virtude inatingível. Com determinação suficiente, é possível ultrapassar qualquer barreira: a política, a linguagem, o preconceito e mesmo a biologia.

O grande pavor dessas visões não é pensar que suas boas intenções possam edificar uma distopia. É imaginar que, não importa o que façamos, algumas coisas se recusarão a mudar.

É descobrir que nossas piores depravidades vão nos acompanhar até o final dos tempos. E que há, no seio de cada um, uma natureza humana que engenharia social nenhuma será capaz de apagar.

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3 passos para entender ‘Serial Experiments Lain’ https://www.finisgeekis.com/2016/10/18/3-passos-para-entender-serial-experiments-lain/ https://www.finisgeekis.com/2016/10/18/3-passos-para-entender-serial-experiments-lain/#comments Tue, 18 Oct 2016 16:03:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=11375 Poucas animações dividem tanto seu público quanto Serial Experiments Lain.

O clássico cult de  Yasuyuki Ueda dificilmente falha em causar uma impressão. Não, necessariamente, pelos mesmos motivos.

Na semana passada, meu colega Diego Gonçalves do É Só um Desenho recebeu Lain como sua indicação para a Corrente de Reviews 2016 do Anikenkai. Apesar da ótima análise, o texto deixa claro seu desconforto. Diego diz que Lain ocupa o hall da fama das séries “mindfuck“, vencendo com folga Evangelion, Utena ou mesmo Mawaru Penguindrum.

Conhecendo-o, posso até dizer que segurou sua língua. Não sem motivo. Se quem gosta de experimentalismo curte de pronto a vibe avant-garde de Lain, fãs de narrativas mais convencionais podem revirar os olhos. Seja por sua trilha sonora minimalista, seja em sua estrutura fragmentária, a obra-prima de Ueda parece gritar “too deep for you” a plenos pulmões.

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“plebs”

Injusto, pois o anime é muito mais que isso. A despeito de seus defeitos, Lain faz todo o sentido, e suas eventuais confusões são perdoadas (quando não explicadas) dentro de seu propósito geral.

Não se trata de ser “adulto” ou “profundo”. O anime de Ueda é não apenas uma série antiga, mas também invoca um repertório de referências (visuais e intelectuais) que perdeu muito de sua relevância depois do ano 2000. Lain envelheceu mal.

Se você, como o Diego, não consegue se conformar com o que assistiu ou quer um incentivo para dar uma segunda chance à série, abaixo segue um pequeno primer com temas que facilitarão a experiência.

(Aviso: contém SPOILERS para Serial Experiments Lain)

1) Transhumanismo e o ‘Cérebro Global’

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De início, Lain parece ser apenas uma fantasia sobre os primórdios da era digital. É apenas no episódio 6 que a série abre suas asas como ficção científica.

Após ser misteriosamente contatada por uma colega que cometeu suicídio, nossa protagonista, Lain Iwakura, começa a se interessar por computadores. Na medida em que se familiariza com o Wired – o equivalente da internet no anime – percebe que as fronteiras entre os mundos real e virtual parecem estar ruindo. Coisas estranhas começam a acontecer.

Muito estranhas.

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Investigando os acontecimentos bizarros que testemunha ao seu redor, Lain se “encontra” virtualmente com o Prof. Hodgeson, idealizador de um experimento para estudar poderes sobrenaturais em humanos.

Hodgeson descobriu que temos habilidades psíquicas natas, que se perdem naturalmente com o passar do tempo. A partir de um dispositivo chamado KIDS, ele conseguiu coletar e amplificar os poderes de um grupo de crianças para manipular a realidade.

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As ocorrências macabras com que Lain se depara sugerem que alguém colocou as mãos na pesquisa. Pior: eles parecem ter aprimorado a tecnologia, pois conseguem manipular o mundo sem o auxílio da KIDS.

A ideia de transcender os limites do nosso corpo não é nem um pouco nova. O princípio de que há algo de científico por trás daquilo que chamamos de “magia” é uma das convenções mais tradicionais da ficção científica.

Não que a própria vida real não tenha, aqui e ali, tentado provar que a vida imita a arte. Há rumores de que na Guerra Fria tanto os USA quando a URSS estudaram fenômenos paranormais para tentar usá-los militarmente.

Essas histórias inspiraram toda sorte de obra, do clássico Arquivo X ao recente Stranger Things, passando pelo mangá Astral Project e o game Mass Effect.

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Se tudo isso parece meio fora da proposta para um anime cyberpunk – ou, como meu colega Diego carinhosamente colocou, “uma bullshit atrás da outra” – pense de novo. Foi justamente na virada do milênio, na mesma época em que a revolução digital sacudia o mundo, que essas ideias tiveram seu grande momento de fama.

Nos anos 1990, o início do Projeto Genoma e a clonagem da ovelha Dolly inspiraram vários pensadores a recalcular os limites do potencial humano. O frisson não se limitou à ciência. Pelo contrário, inspirou até seitas religiosas.

Chamada de transhumanismo, essa visão de mundo pregava o recurso à tecnologia para nos elevar a um novo patamar de existência.

Para os otimistas, isto significava a vitória sobre a velhice, as doenças e os defeitos de nascença. Já para seus críticos, era uma loucura sem tamanho, que acarretaria no domínio biotecnológico dos mais fortes sobre os mais fracos.

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Embora genética nos remeta a ciborgues e superhumanos, as profecias mais ousadas foram justamente aquelas que buscavam, tal como Lain, abrir mão do físico.

A possibilidade de que pessoas pudessem ser “software” – nas palavras de Eiri Masami, auto-declarado “Deus do Wired” em Lain – ameaçou virar nosso mundo de ponta cabeça.

Se nosso corpo for apenas um veículo que podemos trocar sempre que quisermos, a própria ideia de “morte” perderá o sentido. É o fim da nossa filosofia, da ética e de nosso próprio entendimento sobre a vida.

“Humanidade” deixaria de existir. O que viesse em seguida seria tão diferente que não pertenceria ao mesmo universo.

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Para muitos, isso seria um desastre sem tamanho. Considerando, é claro, que a humanidade já não estivesse perdida desde o começo:

2) Hiperrealidade e Simulacro

Lain eventualmente descobre que o experimento do Prof. Hodgeson foi apropriado pelos Knights of the Eastern Calculusuma seita de hackers que busca fundir o mundo virtual ao real. Seu “líder” é Eiri Masami, um engenheiro que transplantou sua consciência para um protocolo do Wired.

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Apresentando-se como o “Deus do Wired”, Masami quer ajudar a humanidade a se libertar de sua prisão de carne e osso.

Se Lain bate tanto nessa tecla é porque, nos anos 1980 e 1990, isso realmente foi uma histeria. Ao mesmo tempo em que biólogos e futuristas promoviam o transhumanismo, estudiosos da comunicação alertavam que havia um jeito muito mais fácil de sair do real.

Pois o “mundo real” não existia mais.

Para o filósofo Jean Baudrillard, o mundo contemporâneo está tão dominado pelo entretenimento e publicidade que temos dificuldade em separar o que existe do que não existe. Pior: os meios de comunicação se tornaram tão bons em entregar aquilo que queremos enxergar que parecem mais reais do que a própria realidade.

Desde a nossa juventude e cada vez mais cedo, nosso contato com o mundo se dá por meio de uma tela. Cultivamos amizades na web que nunca vimos em carne e osso. Emocionamo-nos com pessoas que não existem em histórias que nunca aconteceram.  Conhecemos mais os corpos de estranhos em vídeos pornôs do que de nossos próprios parceiros.

Nessa hiperrealidade, como a chama Baudrillard, as coisas são reduzidas a simulacros: imitações baratas com que nos acostumamos a ponto de ignorar as originais.

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No anime de Ueda, a hiperrealidade é a chave para um de seus aspectos mais complicados : as múltiplas identidades de Lain.

Quando começa a se interessar por informática, Lain descobre que existe uma outra “Lain” no Wired, aparentemente dotada de vontade própria. A coisa se complica quando o anime dá a entender que a Lain do Wired surgiu antes da Lain “física” da qual é uma cópia.

Ou será que não? Não seria a Lain de carne e osso uma cópia da Lain virtual? É possível um ser humano se tornar o avatar de seu “eu” virtual? Se não é, porque os pais da garota agem como uma família de faz-de-contas? E seus colegas de escola deixam de enxergá-la?

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O “twist” é uma das sequências mais confusas do anime. O próprio Diego o interpreta como um festival de inconsistências e furos de roteiro.

Felizmente, tudo é muito mais simples do que parece. Como a própria Lain nos explica no episódio 12:

Humanos só podem realmente existir na memória de outros humanos. Muitas versões de mim existiam. Não é porque existiam muitas de mim lá fora. Eu só estava dentro de muitas pessoas.

Lain não “existe” de verdade porque, como todo simulacro, sua “realidade” está nos olhos de que vê. Cada um tem seu próprio ponto de vista e cria suas próprias versões das coisas. Para o casal em sua residência, essa versão foi uma filha comportada. Para os Knights e seus fãs, uma deusa da internet.

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A percepção da realidade é a própria realidade. Não conhecemos nada do mundo; apenas o que filtramos pelos nossos olhos. Estamos todos presos na caverna de Platão que chamamos de “mente”.

Se a ideia é desesperadora, as suas consequências são ainda mais sérias. Se tudo o que existe é uma cópia criada por nós mesmos, o que nos impede de concebermos as coisas como gostaríamos que fossem, e não como são de verdade? Existiria “verdade” num mundo desses?

Por que não “esquecer” coisas desagradáveis? “Ignorar” picuinhas como as leis da economia e da natureza? “Desconstruir” a sociedade e criar uma utopia alinhada com nossos ideais?

Para Eiri Masami, o “Deus do Wired”, isso é exatamente o que deveríamos fazer. No episódio 10, ele conta a Lain que deseja usar a rede para conectar permanentemente todas as pessoas.

Deixaríamos de ser indivíduos para sermos células de um mesmo organismo. Tal como os geth de Mass Effect ou os cranium rats de Planescape: Torment, nossos “softwares” pessoais seriam unidos por um únido “hardware”.

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Um dos pontos inescapáveis da filosofia política é o fato de que o ser humano é egoísta por natureza. Thomas Hobbes, autor de Leviatã, chegou a afirmar que “homens não são abelhas” como justificativa para seu projeto de Estado absoluto.

Um “cérebro global” jogaria todas essas ideias por terra. O mundo de Masami seria a mais perfeita das utopias.

Argumentar que tudo isso é um grande absurdo é perder de vista o mais importante. Lain não é uma defesa de um ponto de vista, mas um retrato de como as pessoas pensavam. E, muito antes de “desconstruções” virarem a seara de militantes de Facebook e professores jurássicos de Humanas, foram uma histeria que prometia revolucionar o mundo.

Quem nos conta é o teórico da mídia Douglas Rushkoff:

“A experiência cibernética empodera pessoas de todas as idades a explorar a nova paisagem digital. Com apenas um PC e um modem, qualquer um pode agora acessar a datasfera. Novas tecnologias de interface como a realidade virtual prometem transformar a datasfera em um lugar onde podemos levar não só nossas mentes, mas também nossos corpos.

As pessoas que você conhecerá agora interpretam o desenvolvimento da datasfera como a formação de um cérebro global. Este será o estágio final no desenvolvimento de “Gaia”, o ser vivo que é a Terra, para o qual humanos servirão como neurônios.”

Douglas Rushkoff é explicitamente mencionado no episódio 9 de Lain. E seu livro-manifesto sobre as possibilidades do virtual inspirou um dos lugares-chave do anime:

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3) O fim da utopia digital

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Se tudo isso parece bonito no papel, a “realidade”(com o perdão do trocadilho) é bem diferente.

Com o tempo, “profetas” da internet entenderam que o admirável mundo novo que buscavam trazia consigo problemas tão novos, imprevisíveis e complexos quanto suas supostas soluções.

Lançadoo em 1998, Lain é anterior aos maiores choques que abalaram a utopia da internet.  A bolha Dot-com, que levou várias companhias do ramo à falência, estouraria entre 1999 e 2001. O Grande Firewall da China, que provou que a internet não estava livre do poder do Estado, foi documentado em 1997, mas só tomou força nos anos 2000.

Um dos motivos que fazem de Lain genial é que não se esquiva de antecipar essas agonias. Em um dos primeiros episódios, crianças começam a morrer devido a um jogo virtual claramente inspirado pelos FPSs da Id Software. Os mesmos que, um ano depois, seriam implicados como causa do Massacre de Columbine.

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Já Arisu, amiga de Lain, tem a consciência “hackeada” pela colega enquanto se masturba fantasiando com o professor. O episódio fala mais alto hoje do que em 1998, após o advento das câmeras digitais e da banda larga ter levado à proliferação de nudes e do revenge porn.

Ao mesmo tempo em que divulga sua utopia digital, Lain nos mostra o seu lado mais sombrio. Um mundo interconectado, sem solidão ou egoísmo, é um mundo sem privacidade – ou pior, sem individualidade. O “Deus do Wired” é um “deus” em mais de um sentido: em um “cérebro global”, somos todos escravos da vontade da web.

Se a série não é explícita sobre isso, é porque faz uso de um dos mais antigos truques do repertório: o “show, don’t tell“.

Ao longo do anime, momentos dramáticos são justapostos com tomadas de cabos de energia e sombras com manchas estranhas. A trilha sonora quase inexistente consiste em zumbidos de eletricidade.

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Quando Mika, a irmã de Lain, é puxada para o mundo virtual, sua “casca” humana se transforma num modem, produzindo ruídos de internet discada.

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No mundo dos humanos, o Wired reina soberano. Não é a toa que hackers como os Knights buscam controlá-lo. Nem que seus inimigos – como o líder dos misteriosos Homens de Preto – parecem disputar seus planos megalomaníacos.

Conclusão

O escritor e ganhador do Pulitzer Adam Johnson certa vez disse numa entrevista:

adam-johnsonO que me parece falso é quando romances embelezam tanto o seu assunto que tudo pode ser articulado com o mesmo tom modulado. (…) Para um autor de ficção, como [as histórias] são escritas é tão importante quando o que elas contêm. (…) O maior erro teria sido forçar [minha] história às expectativas de um leitor ocidental – você, sabe, aquela coisa bonitinha de começo, meio e fim.

A experiência humana não cabe em uma única história, e cada história exige uma forma diferente.

O “mundo sem Deus” da modernidade fez com que a epopéia desse lugar ao romance. Os horrores da Primeira Guerra Mundial – e toda a loucura que os precederam – levaram artistas de toda sorte a abandonarem o figurativismo e os preceitos da academia.

Às vésperas do ano 2000, uma outra era parecia estar por chegar. Um período confuso, em que ideologias caíam por terra, bugs do milênio ameaçavam nosso bem estar e a Lei de Moore entrava no vocabulário popular.

Uma época em que a tecnologia crescia por todos os cantos, e começavamos a duvidar se estávamos mesmo no comando.

A narrativa desconjuntada de Lain e de outras obras parecidas foi uma das respostas a essa percepção. Na ficção pós-moderna, como veio a ser chamada, o questionamento da realidade exterior se tornou um verdadeiro espírito de nossos tempos.

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Lain não é um anime perfeito. Sua overdose visual vai além do que seus valores de produção permitiam entregar. Algumas de suas referências (como as ao Incidente de Roswell) soam gratuitas. Suas tramas secundárias  apresentam erros de continuidade.

Uma joia imperfeita, Lain mesmo assim fala mais alto do que muitas obras-primas. Em uma mídia formulaica e escapista, Ueda e sua equipe traduziram as apreensões de uma geração que foi contra a própria ideia de fórmulas, para a qual “escapismo” significava não fugir, mas mergulhar no cerne da escuridão humana.

Como eu não canso de dizer, anime também é cultura.

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