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Inio Asano – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Sat, 02 Mar 2019 19:35:49 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Inio Asano – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “A Cidade da Luz”: algumas coisas pertencem à escuridão https://www.finisgeekis.com/2017/07/31/a-cidade-da-luz-algumas-coisas-pertencem-a-escuridao/ https://www.finisgeekis.com/2017/07/31/a-cidade-da-luz-algumas-coisas-pertencem-a-escuridao/#respond Mon, 31 Jul 2017 22:08:28 +0000 http://finisgeekis.com/?p=17699

Tasuku é um “acompanhante de suicidas”. Por um módico pagamento, ajuda pessoas que desejam se matar a planejar sua partida – e a não mudar de ideia na hora H.

Tasuku não parece ter remorsos. Pelo contrário, leva seu “trabalho” com uma frieza assassina.  Porém, o que faria se um de seus “clientes” fosse alguém que conhecesse?

Essa é a pergunta que faz Inio Asano em A Cidade da Luz, recém-publicado no Brasil. Na verdade, apenas uma das perguntas.

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Muitos mangakás têm estilos autorais. Poucos já foram chamados de “vozes de uma geração”. Asano pertence ao segundo grupo, e sua obra de 2004, lançada pela Panini, nos mostra o embrião de quem veio a se tornar um dos maiores nomes dos quadrinhos contemporâneos.

Asano não é um escritor simples, tampouco escreve sobre coisas fáceis. Como outras de suas obras, Hikari no Machi é um labirinto de voyeurismo, sofrimento e coincidências macabras.

Hikari no Machi

Hikari no Machi (em japonês, “A Cidade da Luz”) é um bairro atravessado por típicos prédios residenciais japoneses: quadrados, gigantescos e opressivamente cinzentos.

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É um cenário tão comum quanto assustador, um contraponto perfeito às casas de madeira e paredes de papel que marcam o Japão bucólico.

São um dos símbolos mais icônicos da faceta moderna do país – e dos problemas que a tornaram famosa: estresse, rotinas de trabalho insanas, suicídio.

Não por acaso, é o mesmo pano de fundo de Kara no Kyoukai 1 e Paranoia Agent, duas contundentes (e assustadoras) fábulas sobre a histeria urbana.

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Tasuku, o “acompanhante de suicidas”, é um morador do bairro. Decidiu se tornar um “profissional” da área após topar com sites sobre o assunto no computador do pai.

Nos quadros de Asano, acompanhamos como sua “profissão” depravada o entrelaça à vida de outros: aqueles que o ajudam, que tentam impedi-lo, que são por ele destruídos.

Seu pai é um recluso emasculado pela demência. Vive em um apartamento decrépito, coberto de lixo, aguando um tomateiro que há muito já secou.

Haruko é uma garota da sua idade, que teve o corpo horrorosamente mutilado em um ataque com faca. Seu agressor, um gângster chamado “Terceiro Olho”, não é um psicopata, mas um esforçado pai solteiro.

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Não é preciso spoilers para notar que a fábula de Asano caminha por estradas bem sombrias. Que sua cidade tenha o nome de “Luz” pode parecer uma ironia, mas ela atende a uma verdade maior.

Ao longo das páginas, as fachadas cinzentas realmente “iluminam” a vida de seus habitantes mais do que gostaríamos de ter visto. Como a parte de baixo de uma pedra, escondendo insetos, vermes e outras criaturas nojentas, temos a impressão de que certas coisas pertencem à escuridão.

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Existem, é verdade, arroubos de esperança aqui e a li. Uma das personagens luta para restaurar A Cidade da Luz ao que era antes: uma vila bucólica, afastada do estresse da cidade grande.

Tasuku justifica seu “trabalho” como um dever moral, “limpando” a terra de suicidas covardes. Contudo, quando sua conduta coloca em risco sua própria família, ele é forçado a rever seu caminho.

Não se trata do teor das ações, mas da mentalidade por trás delas. A tensão é ilustrada por uma das tramas paralelas, envolvendo um mangaká workaholic. Atormentado pelos seus colegas baderneiros, o artista sofre um dilema que sem dúvida já tirou o sono do próprio Asano.

Para que trabalhar tanto, ver os anos passarem debruçado contra a escrivaninha, se no final cada dia é igual ao outro?

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Se o mundo está fadado a acabar, para que se importar em “fazer bem” em vida?

Mais do que outros de seus mangás já publicados no país, A Cidade da Luz traz o niilismo de Asano na sua forma mais concentrada.

A perseverança de Meiko em Solanin, ou a metamorfose final de Punpun não encontram espaço aqui. As personagens da Hikari no Machi têm sonhos modestos de um futuro melhor. Porém, vivem um dia após o outro, à mercê de um universo indiferente.

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Um diamante bruto

Se não digo mais de sua trama é porque A Cidade da Luz, de certa forma, é uma obra imune a descrições.

O mangá é uma construção estranha. Em certos momentos, parece menos uma história que uma coleção de leitmotivs desenvolvidos em outras obras de Asano.

Sua trama é um ensemble cast igual ao de Nijigahara Holograph: uma teia de histórias pessoais unidas pelo acaso. Tal como Nijigahara, conta com um prólogo que age como chave, estimulando e valorizando leituras futuras.

Suas histórias, porém, são muito mais inteligíveis, e suas intersecções, mais evidentes.

Nijigahara era um nó górdio de narrativas fragmentadas, que dependia da surrealidade para guiar o leitor. Enxames de borboletas misteriosas nos indicavam que esta ou aquela cena eram importantes – e que, juntas, compunham uma espécie de código.

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Em A Cidade da Luz, os contos se sustentam (na sua maioria) com seus próprios pés. A surrealidade, outrora essencial, se transforma em  gimmick.

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Haruko, a menina mutilada, é uma progressão do que foi Akie  em Nijigahara e uma ponte do que se tornaria Aiko, a grande heroína trágica do autor.

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Em Tasuku, também, há o germe de Masumi de Punpun e Keisuke de Umibe no Onnanoko. O primeiro é sua versão mais elaborada; o segundo, mais prosaica  – e, por isso mesmo, mais crível.

A Cidade da Luz é um apinhado de ideias que o leitor de Asano reconhecerá de outros lugares, lá executadas de forma melhor.

Isto não significa que seja um mangá ruim. Antes, é sinal da própria excelência do autor, cuja obra vibra com tanta originalidade que eclipsa até seus trabalhos sólidos.

Muitos, com o devido esforço, sabem entregar uma narrativa competente, polvilhada com dramas psicológicos, surrealismo e crítica social. 18if, anime da temporada, é apenas o exemplo mais recente. De Inio Asano, esperamos mais.

 

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Entendendo “Nijigahara Holograph”: Inio Asano e o ensemble cast https://www.finisgeekis.com/2016/12/19/entendendo-nijigahara-holograph-inio-asano-e-o-ensemble-cast/ https://www.finisgeekis.com/2016/12/19/entendendo-nijigahara-holograph-inio-asano-e-o-ensemble-cast/#comments Mon, 19 Dec 2016 19:06:32 +0000 http://finisgeekis.com/?p=13804

Nijigahara Holograph, de Inio Asano, é um soco no estômago.

Com uma narrativa não-linear, temas pesados, usos e abusos do “show, don’t tell”, o mangá, que chegou ao Brasil recentemente, é um clássico cult de cair o queixo.

Para a mente acostumada a obras serializadas ou one-shots quadradinhos, é também uma história que nos faz sentar direito na cadeira, franzir o cenho e pensar:

O que, afinal, acabamos de ler?

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Não é meu lugar dizer por que o quadrinho de Asano é imperdível. Várias excelentes reviews, escritas  antes do lançamento da obra no Brasil, já fizeram esse trabalho.

Esse post fala de algo além. Dos caminhos tortuosos que o mangá toma para nos passar sua mensagem. E de porque estas escolhas fazem dele uma obra tão única – e tão confusa.

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Não se trata apenas de entender seu enredo. Aos curiosos, há na internet linhas cronológicas comentadas, para que leitores perdidos consigam decifrar “tudo o que aconteceu”, para além da overdose de estilo de seu autor.

Porém, como aqueles que já leram ou folharam o mangá aprenderam do jeito difícil, conhecer a trama ajuda muito pouco. Nijigahara Holograph não é uma obra de enredo mais do que de linguagem. Seus cortes narrativos, saltos temporais e mensagens vagas são tão responsáveis por transmitir sua “história” quanto os balões de diálogo.

Felizmente para nós, por trás de toda essa invencione há uma narrativa bem clássica, com fórmulas conhecidas e uma longa tradição que todos, sabendo ou não, conhecem. Para descobri-la, é preciso dar uma volta pelo mundo dos romances… e do cinema.

O holograma do campo de arco-íris

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 Antes de mais nada, um contexto aos perdidos:

Nijigahara Holograph é um mangá de Inio Asano publicando em 2003 e recém-lançado no Brasil pela JBC. Sua história acompanha um grupo de jovens e adultos de uma escola, assombrados por uma sucessão de tragédias.

A narrativa é acronológica. Entremeada por flashbacks, ela nos mostra como, durante mais de uma década, atos de crueldade, traumas e culpas mudaram irreversivelmente suas vidas.

O que os une é o campo de Nijigahara, onde vivem seus momentos mais dramáticos – e que guarda mistérios que os obrigarão a encarar sua própria natureza.

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Os detalhes vêm as poucos, e a verdadeira dimensão do horror é algo que o leitor monta em sua própria cabeça na medida em que lê.

Akie é uma jovem em coma. Seus colegas de sala tentaram matá-la jogando-a em um buraco. Suzuki é um garoto perdido, que em dado momento se atira da janela da escola. Maki é uma garota atormentada por ter colaborado com a tragédia de Akie. Kyoko é uma professora desfigurada, agredida após flagrar o estupro de uma aluna.

Se não dou mais detalhes é porque esse é o tipo de história que não permite.

Nijigahara Holograph é um grande quebra-cabeças. Cada página conecta uma peça, e o que parecia a princípio um conto surreal se mostra um retrato complicado, seco e emocionante da crueldade humana.

Nada por acaso. Nijigahara Holograph nos mostra um jeito de contar histórias muito específico, com uma longa tradição no cinema e na literatura.

Mais do que isso, uma fórmula que está na origem do próprio romance.

A narrativa de rede

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Narrativas de rede, como o nome já diz, são histórias focadas nas relações entre diversas pessoas. Ao contrário de enredos tradicionais, que acompanham um ou mais protagonistas, estas tramas priorizam os laços entre as personagens – muitas vezes, às custas do desenvolvimento pessoal de cada uma.

O estilo tem vários nomes. Manuais de roteiro (e a Wikipédia) os chamam de ensemble cast. O grande crítico Roger Ebert os chamava de “filmes de hyperlink”.

Mesmo que nunca tenha ouvido esses nomes, você com certeza já assistiu a algum deles. A fórmula pode ser vista em incontáveis filmes, de Crash a Love Actually; de Amores Perros a Babel, de Magnólia a Medos Privados em Lugares Públicos.

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Para quem tem familiaridade com a obra do Asano, não há aqui nenhuma novidade. Como já comentei em um artigo dedicado a ele, o autor de Oyasumi Punpun é um dos mangakás mais deliberadamente “cinematográficos”.

Sua quadrinização lembra um storyboard. Seus cenários são desenhados a partir de fotos reais. Suas páginas levam indicações de trilha sonora.

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Não é à toa que a Roberta Caroline do Elfen Lied Brasil comparou o mangá a Crash, nem que o tenha chamado de história de “efeito borboleta”. A imagem está tão enraizada nos ensemble casts que já ganhou até referência direta.

O título original de Happenstance (2000), ensemble cast com a Audrey Tautou, é literalmente Le Battlement d’Ailes du Papillon (o bater das asas da borboleta).

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As datas dos filmes não mentem. A narrativa de rede ficou popular justamente quando a “rede social” se tornou a deusa-cadela da nossa época. Com a globalização, a ideia de que nossos destinos estão ligados aos de pessoas que nem conhecemos se tornou sabedoria comum.

Não pensem, porém, que isso é tudo coisa nova. Como lembra o crítico David Bordwell, ensemble casts são escritos desde o surgimento das primeiras “redes” (as cidades) e estão na raiz do romance contemporâneo.

Guerra e Paz Les Misérables, a princípio, não parecem ter muito a ver com efeitos borboletas – nem com Inio Asano. No entanto, a fórmula já está lá: vidas separadas, independentes, que se cruzam em conflitos comuns – depois dos quais jamais serão as mesmas.

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Mas por que tudo é tão confuso?

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Tudo isso é muito interessante, mas há uma pergunta que não quer calar: para que tanto trabalho?

Há mesmo necessidade de dividir uma história em quatro, seis, dez histórias interconectadas? O final vago, narrativa não linear, o surrealismo realmente acrescentam alguma coisa? Onde termina a sofisticação e começa aquela coisa “meio-cult à la Legião Urbana”, como brinca a Roberta do Elfen Lied BR?

Por incrível que pareça, há uma razão muito boa para se tomar o caminho menos óbvio. E não se trata apenas de ostentar habilidade, mas de explorar um de nossos sistemas de recompensa mais poderosos.

Como lembra  David Bordwell (e como eu mesmo já disse aqui outras vezes) nosso cérebro sente prazer quando encontra padrões. Seja ver figuras em nuvens, builds em videogames ou mensagens subliminares em latas de Coca Cola, gostamos de enxergar soluções nas coisas mais aleatórias.

Ensemble casts têm um apelo grande porque combinam esse prazer com outra de nossas fissuras preferidas: a fofoca.

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Não é preciso ser vidente para adivinhar o que os outros pensam. É algo que fazemos naturalmente, uma das razões pela qual nossa espécie veio a dominar o globo.

A Thais do Nave Bebop diz que o julgamento é tão presente em Nijigahara Holograph que poderia ser uma personagem própria. Não poderia ter mais razão. E o ensemble cast brilha quando faz com que nós, leitores, sintamos como se julgássemos e fôssemos julgados também.

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É o que críticos de cinema chamam de exposição atrasada e distribuída.

Em vez de nos jogar a informação de uma vez, ou na ordem em que as coisas acontecem, algumas histórias brincam com nossa ignorância.

Às vezes, nos contam um segredo sobre as personagens que nem elas sabem. Em outras, nos escondem coisas elementares, fazendo com que comecemos a imaginar – e julgar – do ponto de vista de um recém-chegado.

Inio Asano faz isso com tanta frequência que Nijigahara Holograph parece um verdadeiro manual da técnica.

O mangá abre com a silhueta de uma menina com sangue entre as pernas. Imaginamos que ela foi estuprada, mas não as circunstâncias (nem mesmo seu nome!) Kyoko, a professora, possui uma atadura nos olhos, e nós sabemos, pela Arma de Chekov, que há uma história mórbida por trás do machucado.

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As duas tragédias estão relacionadas, mas nós não descobrimos isso até o momento fatídico. Asano poderia ter nos contado de uma vez, mas isto nos pouparia do impacto: o desespero de ver seres humanos fazendo o seu pior e enxergar, em suas ações, ainda mais depravidade por vir.

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Em outros momentos, somos nós quem temos a vantagem. Há um personagem que é um psicopata. Ele estupra uma garota da vizinhança, coloca fogo em sua própria casa, comete atos de violência contra todos à sua volta.

Nós acompanhamos sua trajetória cadáver a cadáver, crime a crime. Os personagens, seduzidos pelo seu carisma, não. Para nossa angústia, que esperamos impotentes ao inevitável acontecer.

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Pode parecer fácil na teoria. Quem já se aventurou na ficção, contudo, sabe que fazer as coisas “clicarem” é uma verdadeira proeza.

Por que os episódios estão fora de ordem?

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Ensemble Cast são histórias sobre o acaso. Sobre como o destino não só “joga dados”, como parece ter um senso de humor: nos deixar perdidos, sem rumo, desesperados.

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A questão, como sempre, é que o que funciona na realidade nem sempre funciona na ficção. Para cada grande momento de crise ou superação, temos incontáveis horas de tédio. Para cada dia que parece decisivo, há anos e anos de vida sem sentido.

Organizar tudo isso em um arco interessante já é complicado. Fazê-lo mantendo o suspense e a angústia – em várias histórias simultâneas – é trabalho de mestre.

Isso não é um problema para romances, que podem nos segurar pela mão e dedicar dezenas de páginas para amarrar todas as pontas. Em narrativas mais curtas, no entanto, é necessário usar alguns truques.

Alternar a ordem cronológica é o jeito mais fácil de produzir esse efeito. É bem difícil provar que as vidas de um grupo inteiro de pessoas estão conectadas. Ao tratar suas histórias como um mosaico e combinar as peças do jeito que preferimos, damos uma aparência de ordem ao caos.

Nijigaha Holograph faz isso a todo momento – não por acaso, em seus episódios mais marcantes.

Do começo ao fim, as personagens são visitadas por borboletas.

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Seria apenas coincidência? Uma jeito do autor de “marcar” as cenas importantes? A consciência de um fantasma ou “espírito” guiando essas pessoas à salvação? Uma referência batida ao “efeito borboleta”?

A resposta demora a chegar, mas sabemos desde cedo que os insetos são importantes. Um colar no formato de suas asas se torna um Macguffin fundamental. Em momentos-chave, personagens se “desfazem” em borboletas.

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Em uma “gambiarra” ainda mais criativa, o garoto Suzuki tem encontros reveladores com duas personagens mais velhas. Apenas no final da história descobrimos que elas nada mais são do que ele próprio, em outras épocas da vida.

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É apenas um “truque”, mas que transmite, ele próprio, uma grande verdade. O tempo pode ser linear, mas os grandes marcos da nossa vida ficam para sempre. Nós carregamos os traumas do nosso passado, assim como as esperanças para nosso futuro.

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Todos nós, no fundo, vamos e voltamos a outras épocas, revisitamos decisões e fazemos planos. O ontem e o amanhã são fardos – de que, para viver no presente, temos de nos libertar.

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O resultado é uma história que parece única e incrivelmente poética. O problema é que isto também faz com que fique complicada – e quase impossível de entender à primeira vista.

Pois Inio Asano não está satisfeito apenas em jogar a ordem cronológica no ventilador. Ele também anda na corda-bamba do fantástico, do sobrenatural e do nonsense inexplicável. 

Ou seria mesmo?

Por que o místico e o surreal?

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Por nada. Nijigahara Holograph não é fantástico. É um retrato ultra-naturalista da realidade nua e crua.

E não, leitor, eu não estou louco. Não estou implicando que um ser humano se desfazer em borboletas é uma coisa normal. Nem estou discordando da Roberta, quando diz que o mangá é fortemente inspirado no taoísmo.

Acontece que, como os antropólogos estão cansados de dizer, nós não vivemos apenas no mundo de carne e osso. Símbolos, mitos, fantasias e paranoias são reais à sua própria maneira.

Mais do que isso, são necessárias para que consigamos entender o que diabos se passa com aquilo em que tocamos, de fato, com as próprias mãos.

Narrativas de rede são caracterizadas pela ordem. Como vimos acima, sua malha de “hyperlinks” depende de uma série de truques para se sustentar. Truques que muitas vezes roubam os holofotes, culminando em odes à esperteza do autor mais do que em uma história bem contada.

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Como NÃO fazer um ensemble cast

Isso acontece porque a vida real é muito menos ordeira que a ficção. E não falo apenas de clichês ou da rule of cool, mas dos pressupostos fundamentais de qualquer história.

Na vida real, não existem mensagens, arcos de desenvolvimento ou justiça poética. Apenas um rolar desesperado de dados e a esperança de que o futuro seja menos horrível que o presente.

Não existem sequer “começos”, “meios” ou “fins”, só pontos arbitrários em que começamos ou paramos de narrar. Como bem disse um personagem de Mad Men, não existem “fresh starts”; a vida apenas segue em frente.

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Narrativas “certinhas” nos parecem artificiais porque pressupõem uma ordem que não existe no mundo. Quando essa harmonia se torna muito evidente (como no caso dos ensemble casts) nós, condenados a penar no caos que realmente existe, achamos difícil simpatizar com elas.

Como aceitar que um assassino, sua cúmplice e o policial investigando o crime sejam, coincidentemente, ex-alunos da mesma turma?

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Ou que a professora desfigurada se encontre de repente com uma antiga aluna, no exato momento em que ela começa a trabalhar para o homem que a desfigurou?

Coincidências existem, mas há um limite para tudo. Histórias muito convenientes são tão absurdas quanto narrativas desconjuntadas.

É o problema de tantas comédias românticas descartáveis, ou dos roteiros de procedurais para a televisão. Por trás de cada um deles há um ensemble cast sem alma, construído com frieza maquinal.

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O surreal, o fantástico, o impossível conseguem passar algo que o mero relato dos fatos não consegue. Eles são capazes de retratar o caos, o acaso, todas as coisas que não entendemos e não sabemos direito descrever. Mas que, ainda assim, afetam nossas vidas.

Por mais incrível que pareça, o imaginário está lá porque parece mais real que a própria realidade.

No mangá de Asano, descobrimos que um velho túnel próximo a Nijigahara é assombrado por um monstro. Pouco sabemos a seu respeito, salvo que parece ter tido uma mão nas maiores tragédias a acometer o bairro.

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Não demora para que notemos que os “atos” dessa suposta besta são bastante humanos. Pois ela não é um verdadeiro “monstro”, apenas uma ferramenta que essas personagens criaram para racionalizar sua crueldade.

Por isso que, em momentos diferentes, ele assume a figura de diferentes pessoas que tiveram seu fim próximo a Nijigahara:

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Narrativas de rede, para funcionar, precisam desses pequenos absurdos. Pode ser algo sutil, como um acidente de carro com timing perfeito (Crash). Pode ser uma coisa poética, como uma mulher que “sobrevive” no instrumento pintado com seu sangue (Violino Vermelho). Ou ainda, com todo o didatismo das Escrituras, a “praga de sapos sobre toda a terra” de Êxodo 8:2. (Magnólia).

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Não é à toa que a Thais Lara do Nave Bebop comparou o mangá de Asano com o seriado Twin Peaks, ele próprio um exemplo clássico de narrativa de rede.

Como disse seu diretor, David Lynch, o assassinato da adolescente Laura Palmer, argumento que move a trama, não passava de um pretexto para explorar as relações entre suas personagens: os habitantes da vila de Twin Peaks. Um microcosmo humano que ele traz à vida usando (e abusando) do surreal.

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Para quem conhece Asano, de novo, não há qualquer surpresa. O mangaká é conhecido pelo seu cinismo em relação às “grandes fórmulas” da vida, que encontra sua expressão perfeita no “Deus” de Oyasumi Punpun.

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Asano, de fato, parece se rebelar contra a ideia de propósitos maiores. Tal como suas personagens, esmagadas entre o peso de seus sonhos e ações, em sua eterna “crise dos 25 anos”.

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Conclusão: vale o esforço?

Essas são histórias de coincidência, acaso, intersecções e estranhas coisas relatadas. E sobre qual delas é qual, e quem sabe disso… E é a humilde opinião desse narrador que estranhas coisas acontecem o tempo todo. Assim é e assim sempre será. E o livro diz: “Nós podemos romper com o passado, mas o passado nunca rompe conosco”.

Na minha opinião, essa é a melhor descrição de Nijigahara Holograph já escrita.

São, na verdade, as primeiras palavras de Magnólia, um filme com (não poucas) similaridades com o mangá: um ensemble cast, um retrato do abuso infantil, um flerte com um sobrenatural e um lugar (Magnolia Boulevard) que serve de ponto focal para o destino de várias pessoas.

Elas trazem uma mensagem simples, mas de forma alguma óbvia. Coisas acontecem, e se isto parece inevitável, nem por isso é suportável. Em especial quando estas “coisas” são tragédias, e quando nós somos não os espectadores, mas as vítimas ou os culpados.

Vivemos no fio da navalha entre os “anjos bons e maus” da nossa natureza. Manter-se do lado certo é o que faz a medida de um indivíduo.

Nijigahara Holograph é um soco no estômago, mas há certas lições que não podem ser passadas apenas como carinho. Por isto, se nada mais, sua fórmula é essencial.

 

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‘Kokosake’: o amargo alívio do escapismo https://www.finisgeekis.com/2016/04/19/kokosake-o-amargo-alivio-do-escapismo/ https://www.finisgeekis.com/2016/04/19/kokosake-o-amargo-alivio-do-escapismo/#comments Tue, 19 Apr 2016 16:17:26 +0000 http://finisgeekis.com/?p=4206

Uma garota vê o pai sair de um castelo ao lado de uma mulher. Ela transborda de alegria. O seu pai era um príncipe e estava escoltando uma donzela. Justo como ela suspeitava desde pequena!

Animada, resolve compartilhar as novas durante o jantar. Se ela não é capaz de juntar os pontos, sua mãe o faz com rapidez. O “castelo” em questão é um motel temático e a “donzela”, a amante de seu esposo. A mãe “sufoca” sua tagarelice com um ovo frito, expulsa o marido de casa e passa a se sustentar por conta própria.

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Em um último ato de crueldade, o pai da garota lhe diz que a culpa é toda dela. E desaparece para nunca mais dar as caras.

Aflita, a garota é abordada por um ovo falante, mistura de Humpty Dumpty com o Gato de Botas. Ele lhe diz que suas palavras são ruins e provocam a tristeza nos outros. Para evitar que estrague mais vidas, ele a impediria de falar.

E, assim, a garota se torna muda.

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Dessa forma começa Kokoro ga Sakebitagatterunda, ou Kokosake, o muitíssimo esperado longa que chegou há pouco aos cinemas ocidentais. Lançado nos EUA como Anthem of the Heart, o frisson sobre o filme é justificado. Dos mesmos criadores de Ano Hana e ambientado na mesma cidade bucólica de Chichibu, o filme traz altos valores de produção à voga extremamente popular  do anime melodrama.

Se a sinopse não entrega de pronto, Kokosake não é um típico anime de fantasia. Longe da exuberância do Studio Ghibli que conquistou plateias mundo afora, o filme de Tatsuyuki Nagai e Mari Okada fala não do sobrenatural, mas da necessidade (muito mundana, reconheçamos) de escapar.

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Traumatizada pelo divórcio dos pais, a adolescente Jun passa a se convencer de que foi vítima de uma maldição. Sempre que usa a voz, sofre de dor e de ataques de pânico. Suas palavras, quando saem, são hesitantes, picotadas. Releitura trágica de certa personagem de Sayonara Zetsubou Sensei, ela depende do celular para interagir com o mundo.

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Tudo muda quando o coordenador da escola decide montar um musical e a nomeia como uma das responsáveis por sua organização. Jun, que mal é capaz de se comunicar, descobre que precisará cantar em público.

Para sua surpresa – e graças à insistência de um amigo – ela descobre que a música parece ser o “ponto cego” em sua maldição. Muda no dia a dia, ela se desprende no canto, com uma paixão (e afinação) que deixa seus colegas boquiabertos.

Jun decide usar o musical para contar a sua história. Ela escreve um libreto sobre o ovo falante na esperança de que o exercício, de alguma forma, a ajude a se libertar de sua praga.

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Em um enredo que se passaria por slice of life, fosse Kokosake uma minisérie do Noitamina, Jun e seus colegas embarcam em um projeto que mistura imaginação e realidade, conflitos pessoais e (claro) doses copiosas de lágrimas.

Como não podia deixar de ser, tendo em vista sua temática, o destaque é a trilha sonora. O musical de Jun traz uma compilação de clássicos do repertório, revitalizados com letras novas no estilo de Country Roads em Whisper of the Heart.

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A seleção fala por si só. Ela inclui, entre outras coisas, uma das mais singelas versões de Summertime de George Gershwin que já tive o prazer de ouvir.

Ao mesmo tempo, na linha do que há de melhor no anime melodrama, Kokosake preza pelas sutilezas. Por trás dos encontros e desencontros de colegiais em fim de semestre, temos uma garota dividida entre a realidade e a fantasia. Pior: uma fantasia que – reconheça ela ou não – foi criada para protegê-la.

Escapar é viver

O conflito de Jun é comum a todas as pessoas, e não é difícil entender por quê. Depois da respiração e do polegar opositor, o escapismo é talvez um dos ingredientes mais importantes da existência humana. Para alguns, é a pedra angular da cultura e parte daquilo que faz de nós animais racionais.

Graças ao escapismo, podemos mergulhar em uma obra de ficção, sonhar com mundos paralelos e amanhãs melhores. Graças a ele, podemos digerir e suportar realidades cruéis, seja um trabalho degradante, um provincialismo modorrento, uma guerra, o interior de uma cela ou mesmo um campo de concentração.

Em Kokosake, o conto de príncipes e ovos falantes de Jun pode parecer infantil, mas a protege da culpa de ter destruído o casamento dos pais. Diante de sua mãe solteira, lutando mês a mês para não entrar no vermelho, sujeitar-se a uma maldição é uma ideia menos dolorosa do que saber que suas vidas poderiam ser melhores se tivesse sido menos intrometida.

O problema, como provocava certa escritora, é que podemos escapar da realidade, mas não das consequências de se escapar da realidade. Fugir para a fantasia pode ser terapêutico, mas imaginação nenhuma é fértil o suficiente para nos salvar de uma enrascada ou de reverter um mal que tenhamos feito.

Ações têm consequências. Esse é um ponto fundamental da vida, dos nossos sistemas de moralidade e do próprio sentido de “crescer”.

Como um meio consagrado pelo seu foco na juventude – e acusado não raras vezes de vender o sonho da juventude eterna – não é uma surpresa que os animes já tenham refletido (e muito) sobre essa questão.

Chuunibyou

umibe no onnanoko taser

Poucas expressões capturaram esse “outro lado” do escapismo melhor que chuunibyou, um dos últimos de uma longa lista de nomes japoneses para problemas distintamente universais.

A palavra, uma contração de chuugakkou ni-nen byou (lit. “síndrome do segundo ano do ginásio”), diz respeito ao hábito de adolescentes de se considerarem “especiais” em relação aos outros. Nos casos mais brandos, trata-se apenas de vestir uma máscara blasé, não conformista, too cool for school. Nos exemplos mais escalafobéticos, eles podem chegar a inventar poderes mágicos ou identidades secretas (como um grande amigo meu de escola que dizia ter nascido em Netuno).

É com essa segunda definição que otakus devem estar acostumados, graças ao açucarado Chuunibyou Demo Koi ga Shitai! De fato, o anime se sagrou tão bem como ode a esse “mal” da juventude que passou a ser basicamente tudo o que nos vem quando pesquisamos a respeito.

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Há, porém, aqueles que tenham interpretado os delírios de chuunibyou de uma maneira bem mais séria. É revelador, neste sentido, que Inio Asano tenha dito que conhecer a gíria foi o que o inspirou a escrever Umibe no Onnanoko, seu polêmico mangá incluído na competição oficial do último Festival de Quadrinhos de Angôuleme.

A obra, sobre a qual já falei semanas atrás, não tem nada em comum com o escapismo colorido de Chuunibyou Demo Koi ga Shitai! Antes, é a história de um garoto deslocado lidando com a família ausente e com o suicídio do irmão mais velho.

Tal como Jun em Kokosake, ele se sente culpado pela situação da família (mesmo que não tenha, de um ponto de vista racional, culpa alguma). Se Jun “perde” a voz em uma maldição, Kosuke, o protagonista do conto de Asano, acredita que está amaldiçoado a morrer jovem. Para dar sentido a seus últimos dias, ele se entrega a uma rotina de sexo selvagem com uma garota que não ama e a brigas violentas com seus colegas de escola.

umibe no onnanoko fight

Asano, que não tem fama de segurar seus leitores pela mão (ele mesmo admitiu que Oyasumi Punpun foi escrito para fazer as pessoas se sentirem mal), nos mostra o outro lado da moeda. Esbanjando a sua “juventude difícil”, Kosuke não apenas não resolve seus problemas, como mergulha em traumas ainda maiores e chega perto de ser preso.

O escapismo juvenil é cruel, auto-destrutivo e pode acabar conosco se não nos livrarmos dele antes. Como já adivinhara John Milton, séculos atrás, a mente é seu próprio lugar e pode fazer um céu do inferno. Porém, com a mesma facilidade, ela faz um inferno do céu.

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Colocando tudo na balança, seria o alívio do escapismo valioso a ponto de justificar os riscos? Haveria sentido em se proteger do terrível mundo real se o preço a se pagar for a capacidade de viver na realidade – quando não nossa própria vida ou integridade física?

Para Asano, a resposta é sim. Em Umibe no Onnanoko, Kesuke certo dia encontra uma câmera com fotos de uma garota. Ele se apaixona de imediato e se convence de que seu destino na vida é encontrá-la.

Tempos mais tardes, depois de meses de violência e paixão tóxica, ele encontra uma menina idêntica, com o uniforme de um dos melhores colégios da região. Ele decide conhecê-la, custe o que custar. Muda o penteado, corta relações com sua companheira e volta a estudar para passar no vestibulinho. O escapismo de sua crush infantilóide faz o que o raciocínio frio não foi capaz: trazê-lo de volta à realidade.

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De Kokosake, não darei spoilers. Se o dom de sua recém-encontrada voz será a Jun tão catártico quanto o reencontro de Menma em Ano Hana, o espectador descobrirá por conta própria. Um ponto, no entanto, avanço desde já. Provando o seu valor ao cânone do melodrama japonês, Kokosake é uma jornada dolorosa(e encantadora)mente honesta.

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Inio Asano e a “voz” da nossa geração https://www.finisgeekis.com/2016/04/04/inio-asano-e-a-voz-da-nossa-geracao/ https://www.finisgeekis.com/2016/04/04/inio-asano-e-a-voz-da-nossa-geracao/#comments Mon, 04 Apr 2016 22:38:33 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3731 Estaria a juventude sem rumo?

Essa é uma daquelas perguntas que custam a ficar velhas (com o perdão do trocadilho). Já faz mais de 25 anos que Mundo Fantasma sugeriu a mesma coisa. De lá para cá, não parecemos estar mais certos. Ou menos perdidos.

No universo do mangá, é difícil falar sobre essas questões sem pensar em Inio Asano, autor de alguns dos mangás mais impressionantes (e bizarros) de memória recente, que tem voltado aos holofotes nos últimos anos.

Nomeado para o prêmio Eisner em 2009, convidado para o Salão do Mangá de Barcelona em 2015 e incluído na seleção oficial do Festival de Quadrinhos de Angoûleme esse ano, Asano é uma das maiores estrelas da nova geração de mangakás.

Misturando ultra-realismo com a caricatura, o absurdo e o realismo fantástico, Asano encontrou um estilo inconfundivelmente seu. No espaço de alguns tankobons, ele consegue passar de um detalhismo digno de Makoto Shinkai

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às personagens propositalmente distorcidas do Satoshi Kon de Paranoia Agent e Tokyo Godfathers.

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A comparação com o mundo do anime não é à toa. Asano é conhecido pela vibe cinemática de seu trabalho, a ponto de incluir “trilhas sonoras” em suas páginas. Não por acaso, seu maior sucesso, Solanin, foi adaptado em um filme de banda em 2010.

Mais do que pela técnica, Asano é celebrado como uma “voz” da juventude atual. Seus quadrinhos foram elogiados por fugir dos estereótipos do mangá e mostrar a vida “nua e crua” dos jovens adultos, com tudo o que ela tem de absurdo, deprimente e patético.

Não por acaso, o jornal japonês Yomiuri Shimbum chamou seu universo de um “mundo descontente”. Suas personagens são indecisas, entediadas, sem coragem de abrir mão dos privilégios da juventude e com medo de mergulhar de cabeça nas obrigações adultas.

Qualquer um que faça faculdade ou a tenha terminado recentemente pode simpatizar com esses dramas. Um cliché que aprendemos na infância (e que alguns carregam por muito tempo) é o de que tudo se resolve se tivermos liberdade para fazer o que quisermos. Porém, quando esse dia finalmente chega, logo entendemos que liberdade total é sinônimo de tédio, e viver sem uma rotina é pior do que não viver.

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É um detalhe pequeno, mas que faz todo o sentido do mundo para quem depende dos pais, trabalha meio-período ou faz uma pós-graduação em dedicação exclusiva e tem metade do dia livre para olhar para o teto e se lembrar de que não tem mais 18 anos.

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Aí, talvez, esteja a razão de seu trabalho fazer tanto sucesso. E não parece uma coincidência que Asano tenha despontado justamente no Japão. Afinal de contas, em poucos lugares do mundo essa discussão aparece com mais frequência e de forma mais acalorada do que na Terra do Sol Nascente.

Jovens (in)felizes…

De fato, a ideia de que o Japão é uma terra de jovens infelizes é um lugar comum quase tão popular quanto o White Day e os natais no KFC.

Não é preciso ir muito longe para ler que a Terra do Sol Nascente é o país do suicídio, o lugar onde as pessoas são obrigadas a morar em gavetas e trabalhar até morrer. Mesmo os animes, supostamente um entretenimento escapista, estão cheios de jovens que fogem da escola, que se trancam dentro de casa ou que inventam calamidades para fugir da vida real.

O argumento é que os tempos andam tão difíceis, a esperança tão em baixa e as ofertas de trabalho tão insuportáveis que os adolescentes fazem de tudo para evitar a vida adulta – e os adultos, por sua vez, vendem a própria alma para poder voltar à adolescência. “Ter alma de 12 anos”, se antes um insulto, hoje é uma virtude que muitos ostentam com orgulho.

Não é à toa que Inio Asano foi chamado de uma “voz da nossa geração”. Solanin acompanha um grupo de jovens divididos em arranjar empregos meniais ou se dedicar ao sonho adolescente de montar uma banda. Subarashii Sekai nos mostra pessoas infelizes cuja vida é virada de ponta cabeça por algum feito absurdo. E sua obra-prima, Oyasumi Punpun, é a odisséia de um “garoto” que parece ter passado pelo child broiler de Mawaru Penguindrum:

punpun

O rabisco, não a garota

penguindrum child broiler

Levando tudo isso em consideração, parece evidente que Asano assina embaixo do que já sabemos. O mundo é insuportável. A vida contemporânea é vazia de perspectivas. Os sonhos de infância são ilusões. Quando crescemos, nós invariavelmente nos unimos ao “sistema”, em uma rotina cinza e entediante até o dia em que morrermos. Correto?

Não exatamente.

… de um País Desesperado

Quem dá a pista é o próprio Asano. Em seu mangá atual, Dead Dead Demon’s Dededededestruction (que título!), ele nos entrega o ouro de lambuja:

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Noritoshi Furuichi não é famoso no ocidente, mas se tornou uma sensação no seu país natal. Com apenas 25 anos (e sem nem mesmo terminar um doutorado em sociologia), ele publicou um livro que chacoalhou completamente o que todos pensavam sobre as novas gerações.

Ele diz que os jovens nunca estiveram tão felizes.

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Noritoshi Furuichi

Contrariando a sabedoria popular, ele cita pesquisas que apontam que 80% da juventude japonesa diz estar satisfeita com a vida. Entre estudantes de ensino médio, não menos de 90% se consideram felizes.

Furuichi não quer dizer que os problemas não existem, mas que as pessoas conseguem ser felizes a despeito disso. Há muitas opções baratas para quem deseja consumir. A internet (no Japão, uma das mais rápidas do mundo) permite que mesmo quem segue uma rotina cruel se divirta e interaja com o mundo. Se tudo falhar, resta o fato de que muitos jovens vivem com ou dependem dos pais, e podem sempre recorrer a eles caso tudo vá para as cucuias.

Essa geração sabe que seu conforto não vai durar para sempre, e que cedo ou tarde serão jogadas no mundo “real”. Para Furuichi, a solução que encontraram foi a de uma espécie de carpe diem. Em vez de se preocupar com os problemas do futuro, as pessoas preferem curtir o aqui e o agora.

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E pudera. Se nós precisássemos resumir a época em que vivemos em uma única palavra, poucas cairiam melhor que “incerteza”. Nossa profissão pode ser substituída antes de terminarmos a faculdade. Uma crise econômica pode nos levar do luxo ao lixo em menos de um ano. Os desandos da política deixam todos com medo. Não é raro, nas redes sociais, se deparar com desabafos de que “no futuro, os historiadores não saberão explicar o que aconteceu”.

O Japão não precisa importar problemas; já tem os seus próprios. A população fica cada vez mais velha, e os custos da previdência logo vão pesar de vez sobre os impostos. Com a competição com a China e os Tigres Asiáticos, a economia arrisca despencar. A rotina profissional é sofrida, e as condições de trabalho, desumanas. Desastres naturais são frequentes, e há sempre a Coreia do Norte para armar um sequestro se tudo falhar.

As novas gerações poderiam se preocupar com o futuro e passar as noites em claro em angústia. Ou podem simplesmente curtir a vida enquanto ainda podem, ler mangás e jogar Monster Hunter beliscando um pacote de Pocky.

É esse “mundo fantasma” que Inio Asano se tornou um expert em retratar.

Em Solanin, uma garota que vive com o namorado (mas que ainda recebe comida da mãe) prefere largar tudo e ajudar os amigos a montar uma banda. Curtir o verão desempregada e se arriscar trazendo o sonho à realidade é, para ela, melhor do que envelhecer em um escritório entediante.

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Dead Dead Demon, cuja protagonista aparece lendo o próprio livro de Furuichi, mostra esse carpe diem de forma ainda mais direta. Aqui, Tóquio se tornou literalmente o campo de batalha de uma guerra com alienígenas, e um grupo de colegiais prefere curtir a adolescência a se preocupar com picuinhas como bombardeios, balas perdidas ou o colapso da civilização.

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Umibe no Onnanoko, publicado em inglês como A Girl on the Shore, é um exemplo ainda mais visceral. Sua história acompanha um casal de adolescentes excluídos que decidem fazer sexo sem compromisso.

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O que para outros autores seria a deixa para uma comédia romântica ou um sonho molhado, nos pincéis de Asano vira o que de fato é: uma desgraça. Não há nenhuma felicidade em ver o outro apenas como um corpo para saciar nossos desejos. Sem amor, amizade ou pelo menos respeito, nos transformamos em meros pedaços de carne para nossos parceiros usufruírem.

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A “paixão” evervescente de Sato e Isobe (os protagonistas da HQ) não tem um pingo de prazer, realização pessoal ou desejo de se vangloriar. É apenas uma desculpa para não encararem o mundo real. Tal qual uma anestesia, é uma tentativa de se esconderem em sensações fortes para esquecer os problemas que vivem dia após dia.

Que o leitor fique avisado: é também um dos raros mangás não-hentai que não tem medo de incluir cenas de sexo explícito. Não é à toa que Asano teve seu trabalho reconhecido na França. Seus mangás podem ser estranhos, excessivos e chocantes, mas eles estão fartos da sinceridade  que há muito se tornou marca do que há de melhor no BD francês.

Perdidos ou encontrados?

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Se há algo que podemos dizer de Asano, é que nunca se contentou em seguir modas. O seu retrato da juventude não é nem um pouco diferente.

Se a imagem “tradicional” do jovem japonês é a de um sujeito torturado, preso nas bitolas da sociedade, o jovem de Asano é sarcástico, bem-humorado, patético. Mesmo nos seus momentos mais depressivos, seus mangás não abrem mão da ironia ou de alguma forma de leveza redentora.

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Se o “mal da nossa geração” é visto por outros como uma tragédia, para Asano é uma farsa. Talvez o fato de ter ele próprio vivido uma juventude conturbada, saltando de emprego a emprego, desprovido da certeza de que sua vocação vingaria, tenha feito a diferença.

Sobre a dor, a perda e a falta de propósito, o seu ponto de vista é irreverentemente jovem.

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