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ficção científica – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Wed, 02 Jun 2021 20:26:47 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 ficção científica – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Mass Effect” e o fim da história https://www.finisgeekis.com/2021/06/02/mass-effect-e-o-fim-da-historia/ https://www.finisgeekis.com/2021/06/02/mass-effect-e-o-fim-da-historia/#respond Wed, 02 Jun 2021 20:20:56 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22880 Graças ao lançamento de sua legendary edition, a trilogia Mass Effect está de volta aos holofotes.

Era inevitável que esse dia fosse chegar. Remasters são uma necessidade no mundo dos games, uma solução – às vezes, a única – para garantir que jogos sobrevivam a seu hardware. E, de todos as obras que merecem esse tratamento, a franquia que ditou as regras de como games deveriam ser feitos – e apreciados – não podia ficar de fora.

Os ecos do furor popular que recebeu sua conclusão ainda ecoam nos confins da internet. Membros de seu elenco estão em listas de melhores personagens do mundo dos games. A franquia ganhou espaço em galerias de arte, sendo incluída em uma exposição no museu Smithsonian em 2012.

Louvada até hoje como um grande marco dos RPGs eletrônicos, Mass Effect ainda assim, é um enfant terrible de seu gênero. Desde o longínquo ano de 2008, quando deu as caras pela primeira vez, sua tão alardeada ‘liberdade de escolha’ não era lá essas coisas. Diálogos dublados, um protagonista semi-fixo e moral binária contribuíram para um enredo que parecia se desenrolar sobre trilhos.

Seu diferencial, contudo, estava no que foi capaz de fazer dentro desses limites. Poucos games antes – ou depois – usaram de forma tão robusta um sistema de importação de saves. Em Mass Effect, as escolhas carregadas de outros jogos chegam a mais de mil. Por mais que soubéssemos que estávamos vivenciando um roteiro, era difícil não sentir que as aventuras de Shepard e sua equipe pertenciam a nós.

Mas esse esforço em nos dar uma máscara que pudéssemos chamar de nossa vai mais longe do que imaginamos. Ao criar uma franquia construída, da cabeça aos pés, em ações e consequências, a Bioware fez mais do que entregar um game sci fi. Ela condicionou nossa imaginação a um gênero muito específico de ficção científica.

Que, quase uma década depois, mostra a sua idade – para o bem e para o mal.

O futuro nas nossas mãos

Mass Effect às vezes é zombada pelo quanto seu universo depende das ações de Shepard. A protagonista ronda a galáxia em uma missão contra o tempo e ainda assim encontra tempo para visitar centenas de planetas e resolver qualquer problema lançado em sua direção. Mesmo decisões que jamais deveriam caber a alguém na sua posição – o que fazer com a rainha rachni, salvar ou não o conselho —  terminam na mão de jogadores. Shepard ignora protocolos com a mesma energia com que fuzila inimigos, e o jogo nos induz a celebrar cada ato de protagonismo.

No que diz respeito a seu universo, contudo, celebrizar de tal forma sua protagonista traz uma consequência importante. Ao colocar o futuro de toda a galáxia nas mãos de uma única personagem, Mass Effect nos diz que o futuro, ele próprio, é maleável o suficiente para ser mudado por indivíduos.

Esqueça a paranoia de conservadores, que temem que consequências terríveis aconteçam se bagunçarmos as regras do mundo. Esqueça também o pessimismo de Karl Marx, que dizia que “os homens fazem a história, mas não da forma como desejam.” Em Mass Effect, nenhum esforço, por menor que seja, é em vão: nós fazemos a história – e a fazemos do nosso jeito.

Isso se deve em grande parte ao fato de seu “futuro” ser bastante familiar – e, justamente por isso, previsível e controlável. A Citadel é uma coalizão interplanetária não muito diferente da União Européia ou da ONU. O Almirante Hackett compara os sacrifícios necessários para vencer a Guerra contra os Reapers com a decisão de Harry Truman de lançar bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Não há decisão em toda a galáxia que não seja um dejà vu de um problema que nós terráqueos já enfrentamos no passado.

É como se a própria história tivesse esgotado seu baralho de novidades, e tudo o que lhe restasse fosse nos lançar reprises.

Nesse sentido, Mass Effect tem mais a ver com o universo de Star Trek, em que “aliens” não passam de humanos com maquiagem engraçada, do que com o Dr. Bowman de  2001: Uma Odisseia no Espaço, cuja jornada termina em um turbilhão metafísico em que a própria noção de “tempo” é posta em cheque. Shepard sabe exatamente o que enfrenta e o que deve fazer – mesmo quando as respostas chegam a ela em uma experiência transcendental.

É uma visão apaixonadamente otimista, mesmo quando as consequências são a aniquilação de tudo o que vive. O desenvolvimento não-sustentável dos Krogans, por exemplo, transformou seu planeta em uma cratera radioativa. Mesmo assim, eles têm o conforto de saber exatamente o que fizeram errado – e a receita para um dia fazer diferente, se a ocasião um dia surgir.

“[Tuchanka] foi um dia um mundo cheio de beleza” Eve diz a Garrus em Mass Effect 3. “Se lhe for dado uma chance, ele pode voltar a ser.”

O Fim da História e o Último Homem

Não foi a Bioware quem inventou essa maneira de enxergar o mundo – muito embora ela caiba feito uma luva na missão dos games de nos oferecer fantasias de poder. Nos anos 1990, ideias muito parecidas foram propostas por um historiador chamado Francis Fukuyama. O título de seu livro? O Fim da História e o Último Homem.

Não, Fukuyama não estava falando do fim literal dos tempos. Seu argumento era que o modelo de sociedade que temos hoje – a democracia liberal – era o destino inevitável para o qual marchava a humanidade. E, uma vez alcançado, nenhum outro sistema jamais o substituiria.

Sim, ditaduras ainda surgiriam aqui e ali. País sem tradições democráticas ou capitalistas demorariam mais para alcançar o mundo desenvolvido. Cedo ou tarde, porém, cada um desses regimes ou deixaria de existir ou se reformaria à imagem dos EUA e União Europeia.

Quando esse dia chegasse, a própria história deixaria de correr.  Pessoas continuariam a nascer e morrer, maus tempos seguir-se-iam aos bons, mas todas essas mudanças não seriam mais que variações sobre o mesmo tema; ondulações numa teia cujos fios nunca se romperiam.

Não é preciso ir muito longe para perceber o quanto sua visão era ingênua. Fukuyama escrevia em um Estados Unidos que acabavam de vencer a Guerra Fria e ainda não tinham experimentado o horror do 11/09. Seu livro é mais uma ode ao triunfo do capitalismo que uma profecia.

É, porém, justamente sobre essas ideias que Mass Effect constrói sua fantasia futurista. Illium é uma Hong Kong do espaço; Noveria, uma Suíça, com direito a lavagem de dinheiro e executivos inescrupulosos. A sociedade das Asari, descrita como a mais avançadas de sua geração, é ainda sim reconhecível como democracia; uma versão melhorada de um tipo de regime que conhecemos muito bem. Para os escritores da Bioware, como para Fukuyama, o futuro é liberal.

É verdade que existe uma boa explicação para isso. Os jogos nos contam que as sociedades da Via Láctea são parecidas por que todas foram guiadas por uma mesma civilização – os Protheans. E os próprios Protheans, descobrimos em Mass Effect 3, nada fizeram senão seguir as pistas deixadas pelos Reapers, que deliberadamente criaram a tecnologia dos mass relays para “afunilar” a vida sapiente – e, com isto, controlá-la.

Mas o simples fato desse plano funcionar sugere que a história, em Mass Effect, é um jogo de cartas marcadas.

Não encontramos em lugar algum a ousadia de uma Ursula le Guin, que ousou imaginar, já nos longuíquos anos 1960, sociedades em que noções de  “sexo” e “gênero” não existiam, ou onde relações humanas não eram baseadas na propriedade. Muito embora, tal como em Mass Effect, fossem oriundas do mesmo povo ancestral.

Nem, tampouco, o pessimismo de um Piquenique na Estrada ou Solaris, obras que sugerem que mesmo que o contato com uma inteligência superior ocorra, suas instruções seriam abstratas demais para nos fazer sentido.

Mais importantemente, a visão de mundo da trilogia mostra um terrível descompasso com os nossos tempos. Na esteira da grande recessão do mercado imobiliário americano, os anos 2008 – 2012 não foram nenhuma maravilha. Ainda assim, os jogos foram lançados em uma época que não tinha de se preocupar com os efeitos de uma pandemia, com tecnologias repressivas dignas de 1984 ou com os estragos em série de uma corja de uma populistas de extrema direita.

As ditaduras que Fukuyama previu que sumiriam continuam cada vez mais fortes e estáveis. O país que se diz símbolo da democracia sofreu uma tentativa televisionada de golpe de estado. Mesmo a ciência parece caminhar para trás, com invenções seculares – como a vacina – abertamente questionadas.

Até relativamente pouco tempo atrás, o mundo parecia tão consertável que cheguei a criticar a retórica apocalíptica da ficção young adult, dizendo que vivemos, pelo contrário, na época mais próspera, pacífica e tolerante que já existiu. Palavras que, hoje, soam terrivelmente infantis.

Tal infantis, na verdade, quanto os esforços que Mass Effect toma para nos convencer de que nossas escolhas importam. Tudo isto enquanto a vida real nos lembra que não temos sequer o poder de convencer nossos vizinhos a usar máscaras.

Mass Effect é uma série nostálgia, não só porque formou uma geração de gamers, mas porque é um fruto de uma época mais simples e otimista.

Uma época tão enamorada com a ciência que lançou cópias do jogo ao espaço como estratégia de marketing. Uma época em que podíamos sonhar que um dia as acompanharíamos a bordo de nossas próprias Normandies.

Uma época em que nutríamos a esperança de não apenas nos lançarmos ao futuro, mas de moldá-lo à nossa imagem. E que tínhamos a coragem, como dizia Shepard, de não deixar o medo comprometer aquilo que nós somos.

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“A Cidade no Meio da Noite”: o passado nunca vai embora https://www.finisgeekis.com/2019/03/13/a-cidade-no-meio-da-noite-o-passado-nunca-vai-embora/ https://www.finisgeekis.com/2019/03/13/a-cidade-no-meio-da-noite-o-passado-nunca-vai-embora/#respond Wed, 13 Mar 2019 23:02:10 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21663 Dias atrás, visitando a cidade de Belfast pela primeira vez, trombei com um mural que chamou minha atenção:

Uma nação que mantém um olho no passado é sábia. Uma nação que mantém os dois olhos no passado é cega.

A mensagem me fez parar e refletir. Não só porque estava fundamentalmente certa. Nem porque refletia tão bem a realidade de Belfast, cidade até hoje segregada entre católicos e protestantes vinte anos depois do fim do terrorismo.

Mas porque foi o naco de sabedoria que me faltava para entender o final de A Cidade no Meio da Noite. Um dos livros mais surpreendentes, criativos e emocionalmente poderosos que li nos últimos anos. 

A história vem da pena de Charlie Jane Anders, cujo romance anterior, Todos os Pássaros no Céu, diz tudo o que você precisa saber sobre a autora.

Desafiando as fronteiras entre fantasia e ficção científica, alta literatura e ficção de gênero, o livro é uma fábula sobre a nature vs nurture – o duelo entre a “cultura” e a “natureza” humanas” – para dar inveja a qualquer filósofo.

Que Anders tenha encontrado algo novo a dizer sobre um tema quase tão antigo quanto a própria escrita é um feito em si. Que o tenha feito com bom humor e uma prosa irretocável a cimenta como uma das grandes escritoras da atualidade.

Um futuro sombrio

Representação artística de um planeta em rotação sincronizada. Fonte.

A Cidade no Meio da Noite é uma história mais complexa que seu romance de estreia – e quase tão sombria quanto seu título. Mesmo assim, ele transborda com o mesmo estilo irreverente que leitores da autora reconhecerão de pronto.

Sua trama se passa em um futuro possível em que a Terra foi exaurida, e a humanidade se lançou ao espaço em busca de uma nova casa.

O lar escolhido foi Janeiro, um planeta em rotação sincronizada com sua estrela. Tal como a nossa Lua, uma de suas metades está permanentemente virada para o sol; a outra vive uma noite eterna.

Incapazes de suportar o calor e a radiação, a humanidade se assenta no lado escuro de Janeiro, dividindo a noite com criaturas mortíferas e um clima desolador.

Xiosphant é o nome da capital dessa nova Terra. De metrópole gloriosa, ela eventualmente sucumbe à intriga e decadência. A tecnologia que trouxe humanos a Janeiro é perdida. Cada nova geração sofre uma realidade mais dura que a anterior. Discordâncias dividem os colonos, provocam conflitos e emigrações.

Quando Anders começa seu conto, esse mundo hipotético já se encontra à beira da extinção. Presos em um futuro que deve mais a Mad Max que a Star Trek, o que resta da humanidade busca formas diferentes para se preservar.

Para Xiosphant, é o respeito às tradições e à memória dos primeiros pioneiros. Sua sociedade funciona com a precisão de um relógio, seus cidadãos estrangulados por mais regras do que são capazes de lembrar.

Muralhas da “Paz” em Belfast, separando bairros católicos e protestantes. Fonte

Há uma moeda diferente para cada tipo de produto, um horário para cada atividade, um pronome para cada profissão e status social. Os costumes são rígidos, a lei implacável.

Seus bairros são segregados entre os clãs  da antiga Terra, mas é proibido falar sobre isso. A cola social de Xiosphant é um forte senso de identidade cívica. Para se tornar Xiosphantiano, é preciso abandonar suas lealdades, sua raça, até mesmo suas origens.

Qualquer semelhança com os Estados Unidos, divididos entre uma ideologia individualista e coletivismos identitários, não é mera coincidência.

Tudo em Xiosphant é planejado para nos fazer cientes da passagem do tempo, dos calendários ao subir e descer das barreiras solares aos sinos que tocam por toda a cidade. Todo mundo sempre fala sobre Pontualismo, que pode ser simples – tipo, chegar em casa para o jantar antes deles soarem o último toque antes das barreiras e o começo de outro ciclo. Ou podia ser profundo: tipo, você se depara com um espelho e descobre que seu rosto mudou de forma, e de uma só vez você parece uma mulher em vez de uma criança.

Seu oposto é Argelo, uma utopia libertária tão isenta de regras que não possui sequer consenso sobre como contar as horas. Nas suas ruas, tudo é permitido, das festas mais endiabradas às crueldades mais indizíveis.

Cada cidadão é livre para assumir a sua identidade. A contrapartida é uma cidade em pé de guerra, em que nove gangues se encaram em uma guerra fria, a uma fagulha da destruição mútua.

“As pessoas de Argelo não tinham como perceber a passagem do tempo, mas sabiam uma porção de jeitos de falar sobre o arrependimento. Um milhão de frases para descrever o que poderia ter acontecido, o que você poderia ter feito. […] Os argelianos tinham transformado chorar pelo leite derramado em uma forma de arte, mas não podiam dizer com nenhuma precisão quando que cada uma dessas portas havia sido fechada.”

Qual caminho é o correto? Qual distopia é preferível? Anders nunca nos diz, e não temos motivos para acreditar que ela mesma saiba a resposta. “Dentro de uma cidade, você só pode andar em círculos” ela escreve.

Tenho certeza de que é uma sensação que os habitantes de Belfast, divididos como são entre ser católicos ou protestantes, unionistas ou separatistas, europeus ou britânicos, conhecem muito bem.

Um passado que não vai embora

Mural republicano em Belfast. Fonte

O binômio ordem e caos é um assunto caro a Anders, embora aqui seja desenvolvido de uma maneira apenas arranhada pelos seus trabalhos anteriores.

O conflito é abordado pelos olhos de duas mulheres. Ambas vivem às margens da sociedade por motivos bem diferentes. Ambas, por razões ainda mais inesperadas, ajudarão a escrever o futuro de seu mundo.

A primeira é Sophie. uma garota de Xiosphant enquadrada pela polícia por um crime que não cometeu. Condenada a vagar noite afora até morrer, ela é encontrada por nativos de Janeiro que a acolhem como um dos seus.

Tais alienígenas possuem o dom de acessar a memória daqueles que tocam – e fazê-los sentir qualquer memória que já tenham experimentado. São as criaturas empáticas por natureza, unidas por uma comunicação perfeita, imune a divisões.

Sophie vê nelas um antídoto para a mesquinhez humana. Os alienígenas, contudo, parecem ter planos mais ambiciosos. Os humanos, ansiosos para recrutá-los em suas próprias lutas, também.

Quando mais Sophie busca o compromisso, mais as coisas parecem degringolar para a violência. A conclusão do dilema, mencionada apenas no “prefácio” do livro- um depoimento atribuído a um historiador do futuro – merece ser relida após o final do romance.

A segunda protagonista é “Boca”, apelido de uma contrabandista que trafica produtos entre Xiosphant e Argelo. Boca é membro de uma etnia de nômades conhecidos como Os Cidadãos, misteriosamente trucidados antes que pudessem lhes dar um nome verdadeiro.

Boca é obcecada por sua origem e faz o possível (e o impossível) para honrar a memória de seu povo. Porém, quanto mais perambula por seu mundo condenado, mais certezas têm de que tudo o que sabe sobre ele não passa de uma mentira.

Eu fico sempre pensando que já perdi toda a minha fé, e então eu perco mais fé que eu nem sabia que eu tinha.

A escritora Charlie Jane Anders

Anders já foi considerada a nova Ursula Le Guin, e a comparação não poderia ser mais justa. Tal como a autora de A Mão Esquerda da Escuridão, sua prosa é inventiva, humana e formalmente ousada.

Os capítulos de Boca são escritos no passado em terceira pessoa, enquanto que os de Sophie, no presente em primeira. O resultado é uma narrativa atordoante, tão inóspita quanto seu planeta sem luz, que reflete o descompasso entre suas heroínas.

Sophie é uma forasteira em sua própria casa, sem um passado a que voltar. Tal como a prosa de seus capítulos, ela vive um dia por vez, fugindo de cada novo perigo para o abrigo mais próximo.

Boca é uma veterana em fim de carreira, obcecada pelo fardo de ser a última dos Cidadãos. Ela vive de remoer o passado, até entender que a tradição que lhe serve de âncora é o mesmo peso que a levará para o fundo.

Bianca havia me convencido de que o mundo podia começar todo de novo, sem as amarras e o peso de tudo o que aconteceu antes de termos nascido. Mas agora nós estamos mais velhas, e ela ainda não consegue aceitar que alguns fardos são inquebrantáveis, fundidos à pele, não importa quanto você tente transformá-los em assuntos não resolvidos. E eu estou com medo de que ela vai destruir a nós duas.

A fábula de Anders é ao mesmo tempo profunda, hilária e bela, num equilíbrio tão perfeito que chega a apavorar.

Anders diz nos agradecimentos que escrever o romance “foi como cambalear em uma escuridão total”. O livro não dá razão para duvidar. Suas frases, cada uma digna de estampar uma camiseta, são tão dolorosas que só podem ser sinceras.

Seu estilo é poético, figurativo em alguns momentos (“o medo construía uma casa dentro dela, uma que tinha janelas demais”), naturalista em outros (“Boca falou até sentir o gosto de sal e bile.”; )

“Herman sempre diz que um momento perfeito de beleza pode durar para sempre. Mas talvez alguns momentos são tão feios que eles também nunca terminam.” Ao longo das 368 páginas, lemos exemplos numerosos de ambos.

Desbravando meu caminho por A Cidade no Meio da Noite, tive dificuldade para entender sobre o que, realmente, o livro é. Uma alegoria sobre progressistas e conservadores? A vontade de seguir errando e a relutância em consertar os erros, como uma vez disse um grande pensador?

A importância de ver o tempo como um “libertador”, não uma “prisão”, como diz certa personagem? Ou de aprender a fazer as pazes com o que temos, pois “a única coisa que nunca desaparece é o passado?”

Talvez seja sobre todas essas coisas, talvez sobre nenhuma delas. “Esse é o problema das as grandes teorias sociais” diz outra de suas personagens “Elas quebram se você coloca peso demais sobre delas.”

Os habitantes de Belfast, esmagados entre um futuro sombrio e um passado que não vai embora, não poderiam dizer melhor.

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“Carbono Alterado”: há espaço para o noir nos dias de hoje? https://www.finisgeekis.com/2018/01/30/carbono-alterado-ha-espaco-para-o-noir-nos-dias-de-hoje/ https://www.finisgeekis.com/2018/01/30/carbono-alterado-ha-espaco-para-o-noir-nos-dias-de-hoje/#respond Tue, 30 Jan 2018 21:10:59 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=19958 Literatura e cinema tem uma afinidade bastante conhecida. Desde os primórdios da sétima arte, foram dos livros que tiraram suas maiores inspirações – e aos livros que recorreram para construir seus universos expandidos.

Estudiosos de cinema, no entanto, sabem que livros possuem uma afinidade parecida com outra mídia: a TV. Com sua longa duração e capacidade de lidar com tramas paralelas, a série é um veículo ideal para destrinchar romances complexos.

A Era de Ouro da TV americana, em sua encarnação streaming, parece ter aprendido a lição. De Philip K. Dick a Margaret Atwood, não são poucos os grandes da literatura que se viram adaptados (com propriedade) à telinha.

Com Carbono Alterado, a Netflix acrescenta à sua grade uma das histórias mais eletrizantes (e cinematográficas) de seu gênero.

Romance de estreia de Richard Morgan, Carbono Alterado nos leva a um futuro quase irreconhecível.  Avanços na tecnologia permitiram isolar a consciência de uma pessoa e transferi-la a outros corpos. Pagando o preço apropriado, qualquer um pode comprar ou clonar um novo corpo – ou “manga” – e viver indefinidamente.

A morte, antes um destino inexorável, se tornou exclusiva dos marginalizados.

Não demora para que a tecnologia transforme irreversivelmente a sociedade humana. Prisões são substituídas pelo sequestro de corpos. Quando um criminoso é condenado, sua consequência é armazenada em um banco de dados e seu corpo é oferecido como manga a quem se dispuser a pagar. Ao final de sua pena (que pode durar séculos), ele terá de se contentar com o corpo de outrem, ou gastar fortunas em mangas sintéticas.

Na outra ponta da pirâmide social, milionários, políticos e outros influentes colecionam mangas. Socialites trocam de rosto com o passar das modas. Homens de negócios criam doppelgangers em países (ou planetas) diferentes, para não perderem tempo em viagem.

O sonho pós-humano, herdado da cibernética, parece ter se tornado uma realidade. O ser humano, finalmente, aprendeu a se libertar de seu corpo.

Para alguns, no entanto, a benção não é uma escolha. Soldados são “uploadados” onde quer que a guerra os chame, em corpos geneticamente modificados para não sentir dor ou empatia.

Carbono Alternado nos apresenta esse futuro sob os olhos de Takeshi Kovacs, ex-membro de uma tropa de elite das forças armadas conhecida como Os Emissários. Preso durante um serviço como mercenário, ele é trazido de volta à vida para desempenhar um serviço ao milionário chamado Laurens Bancroft.

Sua missão? Descobrir quem o matou.

Uma das mangas de Bancroft foi misteriosamente executada dentro de sua mansão. Vivo há mais de três séculos, com um verdadeiro armário de corpos sobressalentes, o milionário não se assusta com a morte. Por orgulho, no entanto, deseja passar a limpo o atentado contra sua pessoa.

Na medida em que investiga o caso, contudo, Kovacs se enxerga perdido em uma conspiração envolvendo as altas cúpulas da ONU, o submundo da prostituição e uma figura misteriosa de seu próprio passado.

Do noir ao cyberpunk

Joel Kinnaman como Takeshi Kovacs na adaptação da Netflix

Carbono Alternado trará flashbacks aos habituados ao neo-noir hardboiled. Seu protagonista meandra por becos escuros povoados por traficantes e prostitutas, entrelaçados pelas maquinações do crime organizado.

A policial Kristin Ortega, a mercenária Trepp e Miriam Bancroft, mulher de seu cliente, interpretam as obrigatórias femmes fatales, afogando o protagonista com tensão sexual – em um dos casos, literalmente.

Os clichés não passam despercebidos ao próprio autor. Em um exemplo de ironia metanarrativa, Kovacs é transferido ao corpo de um fumante compulsivo. Contra sua vontade, é obrigado a enfrentar o crime com um cigarro entre os lábios, evocando as tomadas fumacentas do cinema noir.

Philip Marlowe, um dos mais famosos personagens do cinema noir

Morgan imita até mesmo a linguagem visual que fez de Raymond Chandler, mestre do estilo, um ícone literário. Um robô ri “como um gordo afogando em melaço”. O condicionamento de Kovacs o acomete como um “vôo baixo de caças de ataque, desenhando mentiras de fumaça de combustível”. A imagem de um companheiro morto o assombra “como um familiar demoníaco irrequieto”.

Os tributos ao cyberpunk não são menos evidentes. Carbono Alterado foi chamado de “o primeiro grande romance cyberpunk do século XXI”. O livro, de fato, destila o que há de mais marcante no gênero, de implantes cerebrais e intrigas corporativas ao verniz nipônico de Blade Runner.

Isso faz com que seu futuro especulativo pareça familiar demais para seu próprio bem. Mesmo assim, ele nunca falha em nos divertir, mesmo em cenas que parecem xerocadas de obra clássicas.

Uma visita a um fabricante de armas traz à mente o ateliê de Q da franquia 007. O hábito de Kovacs de explicar seu raciocínio aos vilões o faz parecer, às vezes, um Hercule Poirot do espaço.

Felizmente, essas diatribes não chegam a cansar, menos pela eloquência de Kovacs que pelas ideias com que brinca. Mais do que qualquer outro romance nos últimos anos, Carbono Alterado disseca um conceito chave ao gênero cyberpunk.

Nosso futuro pós-humano

Transhumanismo é a doutrina de que podemos usar a tecnologia para aprimorar a espécie humana. Corrigir defeitos biológicos, libertar-nos das limitações do físico. Eventualmente, superar a própria mortalidade, o individualismo, os grilhões da moralidade.

Carbono Alterado veste o transhumanismo como uma segunda pele – ou, em seus próprios termos, uma manga. Que o livro tenha sido lançado no mesmo ano que Nosso Futuro Pós-Humano, uma advertência contra os perigos da doutrina, não é mera coincidência. Suas páginas estão recheadas com os sonhos e pesadelos que fervilharam a virada do milênio.

Na sua jornada pelo submundo, Kovacs encontra uma sociedade que superou de tal maneira a “humanidade” que até o senso comum parece ter sido relegado às latas de lixo.

O exemplo mais curioso é seu retrato da Igreja Católica, que parece ter resistido contra todas as expectativas. Católicos não acreditam no upload de consciências. A alma, professam, reside no corpo e não pode ser transferida.

A crença os torna presas fáceis de criminosos e exploradores. Em uma terra de cegos, quem tem um olho é rei. Em uma terra de eternos, mortais estão fadados a serem párias:

 “Kovacs, eu odeio esses loucos malditos. Eles existem há quase dois milênios e meio. Eles foram responsáveis por mais miséria que qualquer outra organização na história. Você sabe que eles sequer deixam seus adeptos praticarem contracepção, pelo amor de Deus, e eles resistiram a todos os avanços significativos da medicina dos últimos cinco séculos.”

Loucos eles podem ser. Porém, em tempos insanos, amiúde são os birutas quem têm razão. Em Carbono Alternado não é diferente. Sua humanidade futurista tem corpos sintéticos, naves espaciais e armas de energia, mas nada que se aproxime de uma alma.

A imortalidade barateou a morte. O suicídio se tornou prática comum – para fraudes elaboradas ou mesmo fetiches.

Três séculos de vida tornaram Laurens Bancroft, contratante de Kovacs, incapaz de sentir prazer convencionalmente. Para aliviar seus impulsos, precisa descer ao mais chulo dos bordéis e simuladores sexuais, experimentando fantasias cada vez mais sórdidas.

Sem a perspectiva da morte para dissuadir criminosos, a punição retorna ao sofrimento. Vítimas tem a consciência transferida a realidades virtuais, onde podem ser interrogadas ou torturadas por milênios.

Não há limites para crueldade, coisa que Morgan deixa assombrosamente claro em sua prosa. Uma cena específica chegou a ser cortada da adaptação da Netflix por conta do seu conteúdo gráfico.

Fé nenhuma no progresso

Carbono Alterado é o oposto diametral de San Junipero, o mais popular, otimista e fantasioso episódio da série Black Mirror. Se o último propõe que até a morte pode ser driblada com a dose certa de megalomania cibernética, o romance de Morgan nos mostra o desfecho inevitável de transformar pessoas em dados:

“A raça humana tem sonhado com o céu e o inferno por milênios. Prazer ou dor infinitos, inacabáveis e irrestritos pelos grilhões da vida e da morte. Graças à formatação digital, essas fantasias hoje podem existir. Tudo o que é preciso é um gerador de capacidade industrial. Nós de fato fizemos o inferno – e o céu – na terra.”.

É verdade, embora saber onde começa um e termina o outro seja mais difícil do que parece. Há muito de infernal e muito pouco de paradisíaco no futuro distópico de Kovacs. É difícil imaginar um cenário diferente, a despeito dos esforços de Morgan para pincelar seu texto com ambiguidade.

Nem a morte, nem a dor, muito menos a perda. É a imortalidade a mais terrível das maldições. Os “loucos malucos” de que Morgan zomba sabem disso há séculos.

Carbono Alterado é um eco à arrogância dos pós-modernos, na sua cruzada quase religiosa para libertar a humanidade do passado– destruindo-o, se preciso for.

Confrontados com a verdade de que seus sonhos são fantasias, pretendem mudar a própria realidade para encaixá-la nos seus delírios. Mesmo que em seu “admirável mundo novo” não haja espaço para a vida:

 “A vida humana não tem valor. Você ainda não aprendeu isso, Takeshi, depois de tudo o que você já viu? Não tem valor intrínseco a si mesma. Máquinas custam dinheiro para construir. Matérias primas custam dinheiro para serem extraídas. Mas pessoas? (…) você pode sempre conseguir mais pessoas. Elas se reproduzem como células cancerígenas, queira você ou não. Elas são abundantes, Takeshi. Por que elas seriam preciosas?”

A frase vem da boca de uma vilã, mas é de uma brutal veracidade. Brutal porque escancara como essa distopia não precisa de ódio, intento ou maldade para existir. Ao reduzir pessoas a carbono, é inevitável que se tornem commodities, pareadas à insignificância pela lei da oferta e da demanda.

Infelizmente, essa não é uma direção que Morgan explora. Fiel aos mandamentos do cyberpunk, o autor vê a culpa no homem, não na tecnologia. Fiel à cartilha do noir, sua narrativa não tem heróis, e a moralidade é um jogo dos poderosos.

Seu futuro é menos uma especulação que um espelho distorcido da própria humanidade.

Homens praticam o mal porque esta é a sua sina. Para isto, utilizarão os instrumentos que tiverem em mãos, sejam eles paus e pedras ou salas virtuais de tortura.

“Kristin, nada muda de verdade” (…) “Você sempre terá babacas como esses, engolindo sistemas de pensamento inteiros para não ter de pensar por si mesmos. Você sempre terá pessoas como Kawahara e os Bancrofs para apertar seus botões e lucrar com o programa. Pessoas para garantir que jogo siga funcionando e que as regras são sejam quebradas com muita frequência. (…) Essa é a verdade, Kristin. Tem sido a verdade desde quando eu nasci, cento e cinquenta anos atrás e pelo que eu li nos livros de história, nunca foi diferente. Melhor se acostumar a isso.”

A ideia de que o próprio sistema seja responsável pelos bugs, que a tecnologia não apenas exacerbe, mas piore a índole das pessoas, não é cogitada.

Morgan, que já se declarou uma “propaganda ambulante do argumento Nature Not Nurture (a ideia de que a natureza, não a cultura determina o caráter)”, tem pouca fé em “progressos” ou “retrocessos”. Perguntado sobre qual seria a mensagem por trás de Carbono Alterado, sua resposta foi mais eloquente que todo o romance: “Não visitem a Terra”. 

O escritor Richard K. Morgan

Morgan escreveu um romance que se insere tão bem no cânone de seu gênero que acabou engolido por ele. Isto poderia ser o bastante em 1964, quando sua premissa não passava de um experimento de pensamento. Ou, talvez, ainda em 2002, quando da publicação original do livro.

Hoje, porém, o cenário é outro. O harboiled old-school, cínico, derrotista e violento sempre terá o seu lugar. No entanto, em um presente no qual uma parte cada vez maior da experiência humana é irreversivelmente digitalizada, precisamos de verdades mais sólidas que as invectivas sarcásticas de um mercenário cínico.

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Revisitando “Solaris”: como o clássico de Lem mudou a literatura https://www.finisgeekis.com/2017/04/19/revisitando-solaris-como-o-classico-de-lem-mudou-a-literatura/ https://www.finisgeekis.com/2017/04/19/revisitando-solaris-como-o-classico-de-lem-mudou-a-literatura/#respond Wed, 19 Apr 2017 21:06:00 +0000 http://finisgeekis.com/?p=16352

Existem pautas que nos pegam de surpresa, e outras que não aguentamos de vontade para colocar no papel.

O texto de hoje é do segundo tipo.

Qual foi minha surpresa ao navegar pelos canais da editora Aleph e descobrir que Solaris, clássico insuperável de Stanislaw Lem, ganharia uma nova (e linda) versão brasileira.

Por acaso, é também das minhas histórias favoritas, sobre a qual há tempos queria dedicar um post.

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Aperte os cintos, portanto, e entenda como essa história transformou a literatura.

1) Solaris foi a terceira via para a ficção científica.

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Solaris é um livro estranho.

Sua trama acompanha um grupo de cientistas em uma estação espacial na órbita de um planeta. Este “planeta”, contudo, não é um mero corpo celeste, mas lar de um “oceano” que parece ter vida própria.

Seria ele um ser sapiente? Uma inteligência superior? Um delírio de suas mentes?

Suas pesquisas são interrompidas quando descobrem que não estão sozinhos. Pessoas importantes de sua vida que deveriam estar na Terra – em alguns casos, que já morreram – começam a assombrá-los.

Não demora para que percebam que não são eles que estudam Solaris, e sim o oceano que os estuda. E que aquelas “aparições” são tentativas da criatura de compreender a mente humana.

Seria o argumento de uma ficção científica como tantas outras, não fosse a maneira como foi contada. Solaris lida com tecnologia, mas não cede ao technobabble. Traz um futuro interestelar, mas não uma lore para ancorá-lo. Aborda dilemas clássicos da ciência, mas oferece apenas mais dúvidas.

Se o livro nos parece tão original, é porque conquistou um espaço próprio em uma época em que o sci fi passava por sérias transformações.

A ficção científica que conhecemos ganhou seu nome de Hugo Gernsback, baseado nos textos clássicos de Júlio Verne e H.G. Wells (embora alguns tenham argumentado que existia desde muito antes).

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O escritor e editor Hugo Gernsback

Era um gênero não apenas sobre ciência, mas pró ciência, navegando em uma fé no poder transformador da tecnologia que marcou a era industrial.

A despeito da pompa, foi um estilo que se difundiu por caminhos alternativos, inaugurando, no processo, convenções e fanzines pulp que seriam o berço da cultura geek.

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Nos anos 1960, um grupo de artistas denominado New Wave – inspirado na Nouvelle Vague do cinema –  viraram o gênero de ponta cabeça, buscando elevá-lo ao patamar da alta literatura.

Com muito experimentalismo, o grupo criticava as revistas pulp e prezava por temas mais filosóficos e psicológicos. A ficção científica “soft” chegava para ficar.

Não à toa: a ciência que encantara Verne não era mais vista com os mesmos olhos.

Os horrores da segunda guerra e o advento da bomba H mudou a forma como as pessoas viam a tecnologia. Se antes o engenho humano era a chave para o futuro, agora era o reflexo do que tínhamos de pior.

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Solaris se encontra a meio caminho dos dois mundos. Suas páginas são recheadas de ciência, mas seus conflitos são intimistas. Sua conclusão traz ansiedade, mas não o desespero.

O livro é uma exploração conceitual da natureza da vida, mas também uma incrível história de amor. Ao ser visitado por um duplo de sua esposa morta, seu protagonista, Kelvin, não pensa em logaritmos e equações, mas em uma coisa mais primária.

Se ela é sua esposa (ou bem perto disso), o que o impede de fugir com ela e reconstruir a vida que o destino lhes tolheu?

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Lem fala de temas intelectuais sem esquecer o elemento humano; de angústia sem cair no cinismo.

Ele não comprou o utopianismo soviético, nem a histeria distópica que marcou o sci fi na Guerra Fria. Não porque não se apavorasse com o destino do planeta, mas porque o achava um tema muito importante para ser tratado de forma tão rala:

O fim do mundo, o Juízo Final atômico, a epidemia provocada pela tecnologia, o congelamento, dessecação, cristalização, incêndio, colapso, automação do mundo, etc, não têm mais qualquer sentido na ficção científica hoje. Eles perderam o sentido porque passaram pela típica inflação que transforma o terror escatológico em sustos agradáveis. (…) Eu acho um fenômeno muito triste testemunhar a execução indiferente com que tais romances são produzidos.

Solaris, assim, também é uma ode à humildade. Com uma trama diminuta, conseguiu ser mais eloquente que bibliotecas inteiras dedicadas ao apocalipse.

2) Solaris reinventou o  “alienígena”.

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A obra-prima de Lem é um livro seminal por vários motivos. De tudo o que trouxe de novo, porém, o que o alçou aos cânones da literatura foi seu retrato do alienígena.

Do início da ficção científica, habitantes de outros planetas foram retratados como pessoas, com maior ou menor nível de estranheza. Na maioria das vezes, são verdadeiras metáforas sobre o que significa (ou não) ser humano.

O romance de Lem apresentou uma das subversões mais ousadas dessa ideia, ao nos apresentar um alienígena que sequer pode ser chamado de “ser”. “Solaris” é vivo, mas também é um oceano, um planeta, uma força primordial do universo.

É um terror lovecraftiano de uma proporção que nem o pai da ficção weird foi capaz de conceber. A despeito da verborragia com que são descritos, os monstros e tentáculos do criador de Cthullu empalidecem diante de uma presença que ultrapassa o medo, o horror, a própria existência.

Lem não rompeu paradigmas apenas pelo desejo de pagar de diferente. Como tantos outros mestres do gênero, o escritor pensava como um cientista – e, como tal, sabia que a ciência não traz respostas, apenas perguntas.

Kelvin, seu protagonista em Solaris, entende isso muito bem:

Um ser humano é capaz de lidar com pouquíssimas coisas ao mesmo tempo; nós vemos apenas o que está acontecendo na nossa frente, aqui e agora. Visualizar a multiplicidade simultânea de processos, não importa como estejam interconectados, está além de nós.

Se a era clássica do sci fi era uma ode à invencionice humana, Solaris é um tributo às horas perdidas em laboratório, às teorias feitas e reformuladas, aos manuscritos rasgados e jogados ao lixo.

À parte, enfim, mais instigante do saber.

3) Stanislaw Lem odiava a ficção científica…

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É de se esperar que um dos maiores expoentes da ficção científica fosse também um fã do gênero. Afinal, escrevemos os livros que gostamos de ler. Não é mesmo?

Não exatamente. Por mais absurdo que soe, Lem foi um crítico tão mordaz do sci fi que chegou a ser expulso da associação Science Fiction Writers of America.

Muito disso, claro, foi obra das suas circunstâncias. Vivendo na Polônia em plena ditadura comunista, o escritor tinha dificuldades para importar trabalhos estrangeiros.

A isso se somava outra “cortina de ferro”: Lem nunca aprendeu inglês direito e dependia de traduções para outras línguas, sobretudo o alemão.

Sua literatura, portanto, foi escrita em relativo isolamento. Mesmo quando as portas do Oeste começaram a se abrir, ele nunca se sentiu parte da comunidade sci fi que desabrochava no mundo anglófono.

Pelo contrário, ele a detestava.

brigands of the moon

O autor de Solaris achava que a ficção científica era extremamente ambiciosa, mas que 99,9% do que produzia era um lixo. Suas obras lidavam com as questões mais fundamentais da humanidade, mas o faziam da forma mais superficial, batida e mal escrita possível.

A culpa, dizia, estava nas políticas editoriais. Como ele mesmo colocou:

O problema persiste que todos os livros de ficção científica são parecidos um com o outro – não segundo seu conteúdo, mas a forma como ele é recebido. Inúmeras imitações de cada obra original aparecem, de maneira que os originais são enterrados debaixo de montanhas de lixo, como torres de catedrais em torno das quais entulho foi jogado durante tanto tempo que apenas as pontas se projetam do refugo que se estende em direção aos céus. Neste contexto, vale perguntar quantos são os iniciantes talentosos que não têm poder suficiente para preservar sua individualidade como escritores.

Lem não era ingênuo a ponto de achar que a literatura “séria” não sofria problemas semelhantes. A diferença, para ele, é que neste caso críticos, público e divulgadores trabalhavam para separar o joio do trigo.

Autores como Herman Melville e James Joyce não fizeram sucesso em vida, mas sua obra sobreviveu, graças a uma intelligentsia disposta a escavá-los em meio a bibliotecas de romances esquecíveis.

Não as pérolas da ficção científica, cujos “intelectuais” dançavam à música das editoras – e a favor da mediocridade.

Suas palavras são de 1972, mas é apavorante quão atuais elas parecem.

Quem nunca viu gigantes da “mídia especializada” babando ovo para blockbusters mastigados? Prêmios “imortalizando” modinhas esquecíveis, “experts” forçando tendências que não têm nada de novo?

Em um meio como esse, é inevitável que “iniciantes talentosos” amarguem no esquecimento.

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Muitos (inclusive esse que vos escreve) já falaram da “crise do mundo nerd”. Lem diagnosticou esses mesmos problemas quarenta anos antes, na época em que ele acabava de nascer.

Mais do que isso, são problemas de que nós, críticos e blogueiros, compartilhamos a culpa. Na tentativa de fazer o geek abarcar tudo, corremos o risco de colocar tudo por terra.

Lem, contudo, não era um hater – muito menos um profeta. Por mais que tenha criticado a ficção científica, ele também fez muito para transformá-la no que é hoje.

 Suas críticas eram cáusticas,

4) … mas ele também a amava.

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Em Ficção Científica: Um Caso Perdido – com Exceções, Lem defende seu gênero com as seguintes palavras:

Sem dúvida alguma há uma diferença entre a ficção científica e todos tipos próximos, muitas vezes relacionados, de literatura trivial. Ela é uma vadia, mas uma vadia bem encabulada naquilo que faz. Ela se prostitui, mas, como a Sônia Marmeladova de Dostoiéviski, o faz com desconforto, repulsa, contrariamente aos seus sonhos e esperanças.

Sim,  é difícil acreditar que um autor que compara seu gênero a uma prostituta deseje elogiá-lo. Lem, no entanto, tem algo bem específico em mente.

Para ele, a ficção científica não é apenas uma entre tantas literaturas “de gênero”, como o mistério ou chick lit. Ela é algo mais, entalada entre os mundos do erudito e do popular, desconfortável em ambos.

Solaris é uma rara obra que circula por ambos universos. A sensibilidade e a beleza de sua prosa o aproximam dos grandes mestres. Suas inovações temáticas e erudição científica representaram um divisor de água para o sci fi.

É um golpe de justiça poética a melhor adaptação cinematográfica de sua obra tenha se tornado um marco do cinema-arte.

Se Lem flertava com o pulp (mesmo que em uma relação abusiva), Andrei Tarkovksy, sempre se comportou como uma autoridade. Com quase três horas de duração, seu filme é difícil, filosófico – e, acima de tudo, autoral.

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O que mudou?

É difícil não imaginar que o cinema tenha exercido um papel.

De Viagem à Lua e Metrópolis a Gravidade e Interestelar, passando por 2001 e pelo próprio Solaris, a ficção científica não só foi bem aceita na sétima arte, como rendeu alguma de suas maiores obras-primas.

O aporte visual com certeza ajudou. Libertados das páginas, os mundos fantásticos de autores como Lem proveram a cenógrafos, figurinistas, experts em efeitos visuais a tela com que provar sua arte ao mundo.

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É provável também que tenhamos aprendido a ver tais histórias de um jeito diferente.

Como diz a autora Marie-Laure Ryan, as sutilezas da narrativa são a alma da literatura, mas não necessariamente pré-condição para arte. Dos libretos de ópera ao ballet, não há falta de histórias simplórias no mundo da arte. Nem por isso seus méritos são questionados.

Narrativas podem ser fins em si, mas também meios para um fim. Formas de nos transportar por ideias, para digerir conceitos complexos (relatividade, não-linearidade, os limites da ciência) em uma maneira fácil de entender.

A ficção científica está em seu melhor quando cumpre essa proposta. Graças a Lem (entre seletos outros), ela pôde transcender seu nicho e sacudir o mundo.

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“Matéria Escura”: um romance perdido no uncanny valley https://www.finisgeekis.com/2017/04/10/materia-escura-um-romance-perdido-no-uncanny-valley/ https://www.finisgeekis.com/2017/04/10/materia-escura-um-romance-perdido-no-uncanny-valley/#comments Mon, 10 Apr 2017 10:10:47 +0000 http://finisgeekis.com/?p=16262 Você voltaria ao passado para consertar algum arrependimento?

E se isso custasse abandonar a vida que tem hoje, com tudo o que trouxe de bom?

Se tivesse de escolher entre viver oportunidades que deixou passar e tudo o que tem hoje, qual seria sua escolha?

Essas são as perguntas que faz Matéria Escura, romance de Blake Crouch publicado no Brasil esse ano.

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Matéria Escura é um misto de sci fi e thriller com o passo frenético de um filme de Hollywood. É também ambientado em Chicago, um diferencial tão bom que faz até seriados medíocres do Dick Wolf parecerem toleráveis.

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Sério, visitem Chicago. É a melhor cidade do mundo

Jason Dessen é professor de física em uma faculdade de segunda categoria. Sua esposa, Daniela, é professora de artes. Ambos já foram brilhantes, mas a vida – e um filho – desfizeram suas ambições.

Tudo muda quando Jason é raptado, drogado e levado a um galpão abandonado. Quando acorda, descobre que o mundo que conhece foi virado de ponta cabeça.

Ele ainda está em Chicago, mas não a “Chicago” que conhece. Como o uncanny valley da robótica, sua cidade parece misteriosamente estranha:

Há uma teoria no campo da estética chamada Vale da Estranheza. Segundo essa teoria, algo que é quase igual a um ser humano – um manequim ou um robô humanoide – cria repulsa no observador, porque, apesar da aparência muito próxima, ainda tem imperfeição suficiente para evocar um sentimento de desconforto, de familiaridade e estranheza ao mesmo tempo.

É mais ou menos esse o efeito psicológico que me acontece enquanto caminho pelas ruas dessa Chicago que é quase a minha.

Seus amigos ainda existem, mas não são as mesmas pessoas. Sua esposa é uma artista famosa com quem nunca se casou. Ele é um cientista renomado que erigiu um império corporativo.

Jason descobre que está em uma realidade paralela em que nunca construiu família. Neste mundo, ele inventou uma “caixa” quântica que permite que viaje pelo multiverso.

É a famosa interpretação dos muitos mundos: a ideia de que todos os universos possíveis existem simultaneamente, com infinitas versões de nós mesmos.

O “Jason” dessa nova Chicago realizou seu sonho de carreira às custas da felicidade pessoal. Sentindo remorso pelas decisões passadas, decide ele mesmo utilizar a invenção e experimentar o que nunca teve: uma vida pacata ao lado da mulher que sempre amou.

O Jason “original”, contudo, não pretende deixar barato. Perseguido pela corporação de seu duplo – e por suas próprias versões alternativas – ele embarca em uma jornada pelo multiverso para recuperar sua vida do homem que a roubou.

Sob toda a roupagem sci fi, o livro é uma reflexão sobre as decisões que tomamos em nossa vida, e como o tempo é indiferente aos nossos caprichos.

Liberdade de escolha, como eu já disse em outra ocasião, implica em fechar portas. Matéria Escura aborda a questão como um soco no estômago, pelos olhos de alguém que descobre, finalmente, que não é mais tão jovem para experimentar tudo.

Na verve da ficção pós-moderna, Blake Crouch usa sua trama com premissa para questionar a própria realidade. Jason descobre que retornar a um universo específico dentre a infinidade de mundos possíveis é mais difícil do que parece.

Sua busca o leva a outras Chicagos paralelas, algumas parecidas, outras exóticas; algumas utópicas, outras pós-apocalípticas. Nessa multiplicidade de mundos, os limites do “real” começam a borrar.

– Não sei quanto a você, mas meu antigo mundo me parece cada vez mais fantasmagórico. Como um sonho, que perde a cor, a intensidade e a lógica quanto mais a gente se distancia. A conexão emocional com aquilo vai desaparecendo.

– Você acha que vai conseguir esquecer completamente? – pergunto – Seu mundo?

– Sei lá. Mas acho que pode chegar um ponto em que ele não pareça mais real. Porque não é.

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Technobabble à parte, é o mesmo conflito de tantos livros de Haruki Murakami, da Crônica do Pássaro de Corda a 1Q84. Um conflito, infelizmente, apresentado de forma infinitamente melhor em outras obras.

Gêneros, como as muitas Chicagos do multiverso de Crouch, são mundos em si: cheios de oportunidades, mas também de perigos. No pior dos casos, são armadilhas que não perdoam sequer autores renomados.

Kazuo Ishiguro foi espinafrado ao se aventurar na fantasia com O Gigante Enterrado. Ian McEwan derrapou em Serena, um suspense de espionagem aquém dos bestsellers de John le Carré. Em Matéria Escura, Blake Crouch parece ter cometido pecado similar.

No posfácio que acompanha a edição brasileira, o autor menciona que esse foi seu livro mais difícil de escrever, e o texto mostra. Toda a perseverança de Jason não é suficiente para esconder seu desconforto com as ideias que traz à tona.

Crouch diz ter sido assessorado pelo astrofísico Clifford Johnson para retratar as minúcias científicas de sua história. Infelizmente, consultoria alguma salva ideias que são, do princípio, pouco inspiradas.

Conceitos como o gato de Schroedinger e a teoria dos muitos mundos já foram exploradas ad nauseam pela ficção. Diz muito da timidez da obra que um pastiche saudoso como Stranger Things tenha abordado temas parecidos com mais inventividade.

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A ficção científica é forte quanto nos leva para outras realidades. Matéria Escura, a despeito de seu argumento, hesita em sair da “caixa”.

Seu enredo é fascinante, mas, como Jason, temos a sensação de já tê-lo visto antes, melhor, em realidades paralelas. Que sua trama seja costurada por convenções batidas (o cientista maluco, a corporação malvada, a artista chique com seus vernissages) não ajuda nem um pouco.

Os clichés seriam perdoáveis se sua prosa não fosse trivial. Crouch abusa de períodos e parágrafos curtos, decompondo, às vezes, cenas inteiras em listas (“Eu também choro. /E Charlie. /E Daniela. ”; “Desligo. /Vou até a janela. /Abro a cortina. ”)

O recurso funciona em blogs e floreiros de fim de capítulo, nem tanto em romances inteiros. No capítulo 1 é cativante; no 5, apenas cansativo. No 14, Crouch se revela um mágico de um truque só.

Meus comentários talvez passem uma imagem negativa, o que não é de todo justo. Matéria Escura não é um livro ruim. No que derrapa em criatividade e requinte, mais do que compensa como thriller.

Navegando paradoxos da ciência, a trama não perde de vista o elemento humano. Seus últimos capítulos pedem para ser lidos compulsivamente. A conclusão, quando chega, fica conosco muito depois da página final.

Crouch também é roteirista, e conduz seu romance com a agilidade e coerência de um blockbuster hollywoodiano.

Não é de se espantar que uma adaptação cinematográfica tenha sido planejada antes mesmo do livro chegar às prateleiras. A telona, formulaica e frenética, parece a mídia ideal para seu tour de force derivativo.

Matéria Escura é criativo, mas não inovador; seco, mas não minimalista. É quase um paperback de aeroporto, quase um hard sci fi cerebral, quase ficção literária, quase um roteiro à espera de um diretor.

Como as Chicagos alternativas que seu protagonista atravessa, é um romance preso no Vale da Estranheza.

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“História da Sua Vida”: o conto que inspirou “A Chegada” https://www.finisgeekis.com/2017/02/06/historia-da-sua-vida-o-conto-que-inspirou-a-chegada/ https://www.finisgeekis.com/2017/02/06/historia-da-sua-vida-o-conto-que-inspirou-a-chegada/#comments Mon, 06 Feb 2017 20:43:44 +0000 http://finisgeekis.com/?p=14779

Tudo isso que eu já vi na guerra, (…) tanta falta de sentido, violência… me fez pensar sobre falta de comunicação. Quer dizer, essa não é a raiz de tudo isso? Conflitos, guerras… no final das contas, não é tudo questão de linguagem? As palavras que ouvimos e que dizemos e que não são sempre as mesmas. E eu pensei: e se houvesse uma só língua – uma língua universal?

A sacada é do xerife Hank Larsson, personagem da série Fargo. É uma ideia atraente, em que todos nós, em algum momento, já devemos ter pensado.

E se tudo o que houvesse de errado na terra fossem apenas problemas de comunicação?

E se pudéssemos encontrar uma linguagem objetiva, universal, que nos permitisse entender a todos – e a tudo?

Quem acompanha o Oscar 2017 sabe que o exercício já foi colocado em prática. É, afinal, o enredo de A Chegada, ficção científica com Amy Adams que coleciona indicações.

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O que alguns talvez não saibam é que A Chegada é baseado em um conto de um dos maiores talentos da ficção científica contemporânea. E que, para nossa sorte, já foi lançado no Brasil.

História da Sua Vida

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Ted Chiang pode não ser tão conhecido como Arthur C. Clarke ou Philip K. Dick, mas não há dúvidas de que é um dos novos talentos do gênero. Com apenas quinze textos publicados, já ganhou mais de uma dúzia de prêmios, incluindo vários Nebula, Hugo e Locus Awards.

Sua popularidade fala por si só: depois do lançamento de A Chegada, História da Sua Vida, o conto que o inspirou, se tornou o best-seller número 1 na categoria ficção científica da Amazon.

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O escritor Ted Chiang

Chiang não é conhecido por lores vastas ou trilogias super elaboradas. Seu estilo é enxuto, e é no conto que encontrou sua melhor expressão.

Tal como Jorge Luís Borges (cuja obra ele próprio cita), várias de suas histórias giram em torno de invenções inusitadas que nos convidam a pensar na vida de outra maneira.

Em História da Sua Vida, publicado aqui pela Intrínseca, essa invenção não é exatamente um objeto, mas um idioma. No conto, naves misteriosas pousaram na terra. Não parecem reagir aos humanos. Não dizem a que vieram, nem o que esperam de nós.

Devemos atacá-los? Expulsá-los? Esperar até que façam algo?

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As forças armadas convocam Louise Banks, uma linguista, para encontrar um jeito de se comunicar com os recém-chegados. Em uma trama sem qualquer drama, technobabble ou gordura de sobra, Chiang nos guia para uma obsessão intelectual – e uma viagem pelo mundo da linguagem.

O tempo é relativo

Contatos com extraterrestres são frequentes na ficção científica. Muitas vezes, estes “alienígenas” são humanos em tudo, menos no nome.

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E não digo apenas em aparência. Extraterrestres, Hollywood nos conta, são compatíveis conosco em sentimentos, raciocínio, humor (e até sistemas operacionais)

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Quase impossível fazer um vírus que funcione para PC e Mac. Mas para o computador da nave de Independence Day? Brincadeira de criança.

História da Sua Vida é feliz ao imaginar seres tão diferentes que nos obrigam a rever nossas própria noção de “ser”, “imaginação” e “diferença”.

Na sua missão para se comunicar com os heptapódes (como os alienígenas são chamados), a protagonista descobre que sua mente não tem nada em comum com a nossa. Não só em visões de mundo, mas na própria percepção do tempo.

Nós, seres humanos, captamos os acontecimentos um após o outro. A vida, aos nossos olhos, é uma jornada linear do nascimento até a morte. Nenhum homem entra no mesmo rio duas vezes: nem o homem é o mesmo, nem o rio é o mesmo.

O problema, como físicos vêm nos dizendo há mais de um século, é que o “tempo”, na natureza, é uma coisa bem mais complicada.

Para os heptapódes, ele é simultâneo. Passado, presente e futuro são apreendidos juntos. Suas mentes viajam da infância à velhice, dos traumas aos momentos de alegria, como se fossem quartos diferentes de uma casa.

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Louise descobre que seu idioma é incompreensível justamente porque depende desse entendimento. E qual é a sua surpresa ao se tocar que, conforme o aprende, ela começa, também, a perceber o tempo como os heptapódes.

A linguista se torna onisciente, capaz de se “lembrar” do futuro com a mesma facilidade com que nos recordamos do que comemos ontem. Sua vida inteira – o casamento, o primeiro bebê, a morte da filha aos 25 anos – passa diante de seus olhos.

O conceito é baseado em uma ideia que existe de verdade na linguística. Trata-se da hipótese de Sapir-Whorf, que sugere que forma como nos comunicamos influencia nosso jeito de pensar.

Claro, linguista nenhum já sugeriu que é possível prever o futuro aprendendo uma nova língua. Mas isto é o de menos. História da Sua Vida  não é um conto sobre a clarividência, mas sobre suas consequências.

Como Louise Banks descobre, por sintetizar passado, presente e futuro; aquilo que existe com aquilo que não existe, a língua dos heptapódes é perfeitamente objetiva. Como ela mesma diz a um colega:

 — Existe alguma coisa assim nos sistemas de escrita humanos?

— Equações matemáticas, partituras de música e dança. Mas são todas muito especializadas; nós não conseguiríamos registrar essa conversa usando elas. Mas eu suspeito que, se a conhecêssemos bem o suficiente, conseguiríamos registrar essa conversa na escrita heptapóde. Eu acho que é uma língua gráfica completa, feita para todos os fins.”

Consegue se imaginar escrevendo em partituras? Explicando seu gosto por comida com uma equação? Ver réus e candidatos políticos  se justificando com álgebra?

Com certeza, essa língua seria “melhor” do que as que temos hoje. Mas as pessoas que a usam continuariam a ser humanas? Existe “humanidade” para além da mentira, da ambiguidade… da poesia?

Os limites de uma língua “perfeita”

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Uma língua “perfeita” resolve muitos problemas. Como violinista, por exemplo, acho o máximo saber que existe um sistema que permite que eu registre qualquer som, de uma sonata do Beethoven até a buzina de um caminhão.

O problema é que, para o dia-a-dia, não existe nada parecido com isso. E algumas das características mais fundamentais da nossa cultura surgiram justamente para remediar essa falta.

Se contássemos com uma língua 100% objetiva, não precisaríamos de metáforas, hipérboles e outras figuras de linguagem. Não precisaríamos tampouco de debates ou conversas: afinal, a realidade é uma só e pode ser conhecida por todos.

Pior ainda, não existiria nem “vida”. Se já sabemos o que acontecerá a cada etapa, tudo o que nos resta é esperar o inevitável.

É o que Louise Banks eventualmente descobre, na medida em que sua mente é transformada:

O conhecimento do futuro é incompatível com o livre-arbítrio. O que torna possível para mim exercitar a liberdade de escolha também me impossibilita de saber o que está por vir. Da mesma forma, agora que eu sei o futuro, eu jamais agirei contrária ao futuro, e isto inclui dizer aos outros o que eu sei: aqueles que sabem do futuro não falam sobre ele. Quem leu o Livro das Eras nunca admite tê-lo lido.

Uma linguagem objetiva, capaz de ver o “plano geral” do universo é uma dádiva inimaginável. Infelizmente, como o Dr. Manhattan de Watchmen nos mostra, ao cruzar essa linha perdemos algo muito mais importante.

Cada um de nós vê o mundo com nossos próprios olhos. É isso que dá sentido às nossas discussões, nossas trocas – e mesmo nossa arte. Se tudo o que foi, é e será estivesse diante dos nossos olhos, cada ponto de vista seria indistinguível do outro.

Com onisciência, perdemos a multiplicidade.

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A Chegada é fiel ao conto de Chiang, mas curiosamente deixa isso de lado. Em vez dos conflitos filosóficos de Louise Banks, temos um thriller geopolítico, em que líderes globais ameaçam transformar nosso primeiro contato em uma guerra planetária.

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Comunicar-se com os aliens, logo descobrimos, é apenas um pretexto. A verdadeira missão da linguista é fazer com que nossos próprios líderes ponham suas diferenças de lado e aprendam a trabalhar em equipe.

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Comparado com seu material de origem, é uma história muito mais upbeat. E, justamente por ser assim otimista, parece às vezes “certa demais”.

Ao assisti-la nos cinemas, não consegui parar de pensar em Solaris, a obra prima de Stanislaw Lem que se tornou outra obra-prima do cineasta Andrei Tarkovsky. Para alguns, o 2001: Uma Odisséia no Espaço da União Soviética.

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Tal como em História da Sua Vida, Solaris fala da tentativa de se comunicar com uma entidade alienígena. Neste caso, um oceano inteiro que parece ter consciência própria. Tal como no conto de Chiang, os cientistas percebem que se comunicar com esta criatura é mais difícil do que parece.

Eles logo notam que “Solaris”, este planeta vivo, está em outro nível de realidade, e que sua “língua” não é um idioma, mas um chamado lovecraftiano. Mesmo que possua uma “mente” como a nossa, seu raciocínio não é algo que podemos (ou desejaremos) ouvir.

Não demora para que descubram que não são eles que estão fazendo experimentos com o alien, mas o contrário: é Solaris quem os estuda, invadindo sua mente e brincando com suas memórias, medos e pensamentos.

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Solaris mostra que conhecer o “plano geral do mundo” é uma rota para a loucura. “Deus”, se ele existe, não é um velhinho de barba branca, mas um turbilhão de caos, histeria e impotência:

Quero dizer um Deus cujas deficiências não vêm da simplicidade de seus criadores, mas constituem sua característica mais essencial e imanente. Este seria um Deus limitado na sua onisciência e onipotência, que poderia errar ao prever o futuro de sua obra, que poderia se ver horrorizado pelos eventos que desencadeou. Este é um Deus… aleijado, que sempre deseja mais do que ele pode ter e nunca percebe isto. Que criou relógios, mas não o tempo que eles medem. Que criou sistemas e mecanismos que servem propósitos particulares, mas que superaram estes propósitos e o traíram. E que criou um infinito que, longe de ser a medida do poder que deveria ter, tornou-se a medida de seu fracasso sem fim.

A Chegada brinca com onisciência, mas ao contrário do conto de Chiang – e do romance de Lem –  para por aí.

Seu foco é obviamente outro. O filme é um comentário típico sobre a nova era Trump, reforçando a “força na união” e a necessidade de abrir fronteiras. De certa forma, é uma versão adulta de Pacific Rim, apresentando o globalismo como  panaceia.

É, no entanto, um “globalismo” bem made in America, em que todos falam inglês e compartilham os mesmos valores. Mas e se aquilo que nos tornar diverso também nos impedir de trabalhar juntos?

E se nossas línguas de fato moldarem nossas visões de mundo, nossas culturas… nossas identidades?

Neste “Admirável Mundo Novo” unificado pela língua perfeita, nós continuaríamos a ser quem somos? Ou viraríamos uma nova humanidade, modelados por um Deus aleijado?

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A Chegada louva a linguagem como ferramenta de união, mas se esquece de que é igualmente eficiente como uma arma de alienação. As minorias linguísticas ao redor do globo, que viram suas culturas desaparecerem sob o jugo de potências homogeneizadoras, aprenderam isto do jeito mais difícil.

Sim, nós nem sempre nos entendemos. Às vezes batemos cabeça, somos maus com os outros, guerreamos por nada. Mas é esta teimosia que nos faz humanos.

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3 passos para entender ‘Serial Experiments Lain’ https://www.finisgeekis.com/2016/10/18/3-passos-para-entender-serial-experiments-lain/ https://www.finisgeekis.com/2016/10/18/3-passos-para-entender-serial-experiments-lain/#comments Tue, 18 Oct 2016 16:03:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=11375 Poucas animações dividem tanto seu público quanto Serial Experiments Lain.

O clássico cult de  Yasuyuki Ueda dificilmente falha em causar uma impressão. Não, necessariamente, pelos mesmos motivos.

Na semana passada, meu colega Diego Gonçalves do É Só um Desenho recebeu Lain como sua indicação para a Corrente de Reviews 2016 do Anikenkai. Apesar da ótima análise, o texto deixa claro seu desconforto. Diego diz que Lain ocupa o hall da fama das séries “mindfuck“, vencendo com folga Evangelion, Utena ou mesmo Mawaru Penguindrum.

Conhecendo-o, posso até dizer que segurou sua língua. Não sem motivo. Se quem gosta de experimentalismo curte de pronto a vibe avant-garde de Lain, fãs de narrativas mais convencionais podem revirar os olhos. Seja por sua trilha sonora minimalista, seja em sua estrutura fragmentária, a obra-prima de Ueda parece gritar “too deep for you” a plenos pulmões.

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“plebs”

Injusto, pois o anime é muito mais que isso. A despeito de seus defeitos, Lain faz todo o sentido, e suas eventuais confusões são perdoadas (quando não explicadas) dentro de seu propósito geral.

Não se trata de ser “adulto” ou “profundo”. O anime de Ueda é não apenas uma série antiga, mas também invoca um repertório de referências (visuais e intelectuais) que perdeu muito de sua relevância depois do ano 2000. Lain envelheceu mal.

Se você, como o Diego, não consegue se conformar com o que assistiu ou quer um incentivo para dar uma segunda chance à série, abaixo segue um pequeno primer com temas que facilitarão a experiência.

(Aviso: contém SPOILERS para Serial Experiments Lain)

1) Transhumanismo e o ‘Cérebro Global’

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De início, Lain parece ser apenas uma fantasia sobre os primórdios da era digital. É apenas no episódio 6 que a série abre suas asas como ficção científica.

Após ser misteriosamente contatada por uma colega que cometeu suicídio, nossa protagonista, Lain Iwakura, começa a se interessar por computadores. Na medida em que se familiariza com o Wired – o equivalente da internet no anime – percebe que as fronteiras entre os mundos real e virtual parecem estar ruindo. Coisas estranhas começam a acontecer.

Muito estranhas.

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Investigando os acontecimentos bizarros que testemunha ao seu redor, Lain se “encontra” virtualmente com o Prof. Hodgeson, idealizador de um experimento para estudar poderes sobrenaturais em humanos.

Hodgeson descobriu que temos habilidades psíquicas natas, que se perdem naturalmente com o passar do tempo. A partir de um dispositivo chamado KIDS, ele conseguiu coletar e amplificar os poderes de um grupo de crianças para manipular a realidade.

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As ocorrências macabras com que Lain se depara sugerem que alguém colocou as mãos na pesquisa. Pior: eles parecem ter aprimorado a tecnologia, pois conseguem manipular o mundo sem o auxílio da KIDS.

A ideia de transcender os limites do nosso corpo não é nem um pouco nova. O princípio de que há algo de científico por trás daquilo que chamamos de “magia” é uma das convenções mais tradicionais da ficção científica.

Não que a própria vida real não tenha, aqui e ali, tentado provar que a vida imita a arte. Há rumores de que na Guerra Fria tanto os USA quando a URSS estudaram fenômenos paranormais para tentar usá-los militarmente.

Essas histórias inspiraram toda sorte de obra, do clássico Arquivo X ao recente Stranger Things, passando pelo mangá Astral Project e o game Mass Effect.

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Se tudo isso parece meio fora da proposta para um anime cyberpunk – ou, como meu colega Diego carinhosamente colocou, “uma bullshit atrás da outra” – pense de novo. Foi justamente na virada do milênio, na mesma época em que a revolução digital sacudia o mundo, que essas ideias tiveram seu grande momento de fama.

Nos anos 1990, o início do Projeto Genoma e a clonagem da ovelha Dolly inspiraram vários pensadores a recalcular os limites do potencial humano. O frisson não se limitou à ciência. Pelo contrário, inspirou até seitas religiosas.

Chamada de transhumanismo, essa visão de mundo pregava o recurso à tecnologia para nos elevar a um novo patamar de existência.

Para os otimistas, isto significava a vitória sobre a velhice, as doenças e os defeitos de nascença. Já para seus críticos, era uma loucura sem tamanho, que acarretaria no domínio biotecnológico dos mais fortes sobre os mais fracos.

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Embora genética nos remeta a ciborgues e superhumanos, as profecias mais ousadas foram justamente aquelas que buscavam, tal como Lain, abrir mão do físico.

A possibilidade de que pessoas pudessem ser “software” – nas palavras de Eiri Masami, auto-declarado “Deus do Wired” em Lain – ameaçou virar nosso mundo de ponta cabeça.

Se nosso corpo for apenas um veículo que podemos trocar sempre que quisermos, a própria ideia de “morte” perderá o sentido. É o fim da nossa filosofia, da ética e de nosso próprio entendimento sobre a vida.

“Humanidade” deixaria de existir. O que viesse em seguida seria tão diferente que não pertenceria ao mesmo universo.

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Para muitos, isso seria um desastre sem tamanho. Considerando, é claro, que a humanidade já não estivesse perdida desde o começo:

2) Hiperrealidade e Simulacro

Lain eventualmente descobre que o experimento do Prof. Hodgeson foi apropriado pelos Knights of the Eastern Calculusuma seita de hackers que busca fundir o mundo virtual ao real. Seu “líder” é Eiri Masami, um engenheiro que transplantou sua consciência para um protocolo do Wired.

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Apresentando-se como o “Deus do Wired”, Masami quer ajudar a humanidade a se libertar de sua prisão de carne e osso.

Se Lain bate tanto nessa tecla é porque, nos anos 1980 e 1990, isso realmente foi uma histeria. Ao mesmo tempo em que biólogos e futuristas promoviam o transhumanismo, estudiosos da comunicação alertavam que havia um jeito muito mais fácil de sair do real.

Pois o “mundo real” não existia mais.

Para o filósofo Jean Baudrillard, o mundo contemporâneo está tão dominado pelo entretenimento e publicidade que temos dificuldade em separar o que existe do que não existe. Pior: os meios de comunicação se tornaram tão bons em entregar aquilo que queremos enxergar que parecem mais reais do que a própria realidade.

Desde a nossa juventude e cada vez mais cedo, nosso contato com o mundo se dá por meio de uma tela. Cultivamos amizades na web que nunca vimos em carne e osso. Emocionamo-nos com pessoas que não existem em histórias que nunca aconteceram.  Conhecemos mais os corpos de estranhos em vídeos pornôs do que de nossos próprios parceiros.

Nessa hiperrealidade, como a chama Baudrillard, as coisas são reduzidas a simulacros: imitações baratas com que nos acostumamos a ponto de ignorar as originais.

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No anime de Ueda, a hiperrealidade é a chave para um de seus aspectos mais complicados : as múltiplas identidades de Lain.

Quando começa a se interessar por informática, Lain descobre que existe uma outra “Lain” no Wired, aparentemente dotada de vontade própria. A coisa se complica quando o anime dá a entender que a Lain do Wired surgiu antes da Lain “física” da qual é uma cópia.

Ou será que não? Não seria a Lain de carne e osso uma cópia da Lain virtual? É possível um ser humano se tornar o avatar de seu “eu” virtual? Se não é, porque os pais da garota agem como uma família de faz-de-contas? E seus colegas de escola deixam de enxergá-la?

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O “twist” é uma das sequências mais confusas do anime. O próprio Diego o interpreta como um festival de inconsistências e furos de roteiro.

Felizmente, tudo é muito mais simples do que parece. Como a própria Lain nos explica no episódio 12:

Humanos só podem realmente existir na memória de outros humanos. Muitas versões de mim existiam. Não é porque existiam muitas de mim lá fora. Eu só estava dentro de muitas pessoas.

Lain não “existe” de verdade porque, como todo simulacro, sua “realidade” está nos olhos de que vê. Cada um tem seu próprio ponto de vista e cria suas próprias versões das coisas. Para o casal em sua residência, essa versão foi uma filha comportada. Para os Knights e seus fãs, uma deusa da internet.

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A percepção da realidade é a própria realidade. Não conhecemos nada do mundo; apenas o que filtramos pelos nossos olhos. Estamos todos presos na caverna de Platão que chamamos de “mente”.

Se a ideia é desesperadora, as suas consequências são ainda mais sérias. Se tudo o que existe é uma cópia criada por nós mesmos, o que nos impede de concebermos as coisas como gostaríamos que fossem, e não como são de verdade? Existiria “verdade” num mundo desses?

Por que não “esquecer” coisas desagradáveis? “Ignorar” picuinhas como as leis da economia e da natureza? “Desconstruir” a sociedade e criar uma utopia alinhada com nossos ideais?

Para Eiri Masami, o “Deus do Wired”, isso é exatamente o que deveríamos fazer. No episódio 10, ele conta a Lain que deseja usar a rede para conectar permanentemente todas as pessoas.

Deixaríamos de ser indivíduos para sermos células de um mesmo organismo. Tal como os geth de Mass Effect ou os cranium rats de Planescape: Torment, nossos “softwares” pessoais seriam unidos por um únido “hardware”.

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Um dos pontos inescapáveis da filosofia política é o fato de que o ser humano é egoísta por natureza. Thomas Hobbes, autor de Leviatã, chegou a afirmar que “homens não são abelhas” como justificativa para seu projeto de Estado absoluto.

Um “cérebro global” jogaria todas essas ideias por terra. O mundo de Masami seria a mais perfeita das utopias.

Argumentar que tudo isso é um grande absurdo é perder de vista o mais importante. Lain não é uma defesa de um ponto de vista, mas um retrato de como as pessoas pensavam. E, muito antes de “desconstruções” virarem a seara de militantes de Facebook e professores jurássicos de Humanas, foram uma histeria que prometia revolucionar o mundo.

Quem nos conta é o teórico da mídia Douglas Rushkoff:

“A experiência cibernética empodera pessoas de todas as idades a explorar a nova paisagem digital. Com apenas um PC e um modem, qualquer um pode agora acessar a datasfera. Novas tecnologias de interface como a realidade virtual prometem transformar a datasfera em um lugar onde podemos levar não só nossas mentes, mas também nossos corpos.

As pessoas que você conhecerá agora interpretam o desenvolvimento da datasfera como a formação de um cérebro global. Este será o estágio final no desenvolvimento de “Gaia”, o ser vivo que é a Terra, para o qual humanos servirão como neurônios.”

Douglas Rushkoff é explicitamente mencionado no episódio 9 de Lain. E seu livro-manifesto sobre as possibilidades do virtual inspirou um dos lugares-chave do anime:

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3) O fim da utopia digital

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Se tudo isso parece bonito no papel, a “realidade”(com o perdão do trocadilho) é bem diferente.

Com o tempo, “profetas” da internet entenderam que o admirável mundo novo que buscavam trazia consigo problemas tão novos, imprevisíveis e complexos quanto suas supostas soluções.

Lançadoo em 1998, Lain é anterior aos maiores choques que abalaram a utopia da internet.  A bolha Dot-com, que levou várias companhias do ramo à falência, estouraria entre 1999 e 2001. O Grande Firewall da China, que provou que a internet não estava livre do poder do Estado, foi documentado em 1997, mas só tomou força nos anos 2000.

Um dos motivos que fazem de Lain genial é que não se esquiva de antecipar essas agonias. Em um dos primeiros episódios, crianças começam a morrer devido a um jogo virtual claramente inspirado pelos FPSs da Id Software. Os mesmos que, um ano depois, seriam implicados como causa do Massacre de Columbine.

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Já Arisu, amiga de Lain, tem a consciência “hackeada” pela colega enquanto se masturba fantasiando com o professor. O episódio fala mais alto hoje do que em 1998, após o advento das câmeras digitais e da banda larga ter levado à proliferação de nudes e do revenge porn.

Ao mesmo tempo em que divulga sua utopia digital, Lain nos mostra o seu lado mais sombrio. Um mundo interconectado, sem solidão ou egoísmo, é um mundo sem privacidade – ou pior, sem individualidade. O “Deus do Wired” é um “deus” em mais de um sentido: em um “cérebro global”, somos todos escravos da vontade da web.

Se a série não é explícita sobre isso, é porque faz uso de um dos mais antigos truques do repertório: o “show, don’t tell“.

Ao longo do anime, momentos dramáticos são justapostos com tomadas de cabos de energia e sombras com manchas estranhas. A trilha sonora quase inexistente consiste em zumbidos de eletricidade.

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Quando Mika, a irmã de Lain, é puxada para o mundo virtual, sua “casca” humana se transforma num modem, produzindo ruídos de internet discada.

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No mundo dos humanos, o Wired reina soberano. Não é a toa que hackers como os Knights buscam controlá-lo. Nem que seus inimigos – como o líder dos misteriosos Homens de Preto – parecem disputar seus planos megalomaníacos.

Conclusão

O escritor e ganhador do Pulitzer Adam Johnson certa vez disse numa entrevista:

adam-johnsonO que me parece falso é quando romances embelezam tanto o seu assunto que tudo pode ser articulado com o mesmo tom modulado. (…) Para um autor de ficção, como [as histórias] são escritas é tão importante quando o que elas contêm. (…) O maior erro teria sido forçar [minha] história às expectativas de um leitor ocidental – você, sabe, aquela coisa bonitinha de começo, meio e fim.

A experiência humana não cabe em uma única história, e cada história exige uma forma diferente.

O “mundo sem Deus” da modernidade fez com que a epopéia desse lugar ao romance. Os horrores da Primeira Guerra Mundial – e toda a loucura que os precederam – levaram artistas de toda sorte a abandonarem o figurativismo e os preceitos da academia.

Às vésperas do ano 2000, uma outra era parecia estar por chegar. Um período confuso, em que ideologias caíam por terra, bugs do milênio ameaçavam nosso bem estar e a Lei de Moore entrava no vocabulário popular.

Uma época em que a tecnologia crescia por todos os cantos, e começavamos a duvidar se estávamos mesmo no comando.

A narrativa desconjuntada de Lain e de outras obras parecidas foi uma das respostas a essa percepção. Na ficção pós-moderna, como veio a ser chamada, o questionamento da realidade exterior se tornou um verdadeiro espírito de nossos tempos.

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Lain não é um anime perfeito. Sua overdose visual vai além do que seus valores de produção permitiam entregar. Algumas de suas referências (como as ao Incidente de Roswell) soam gratuitas. Suas tramas secundárias  apresentam erros de continuidade.

Uma joia imperfeita, Lain mesmo assim fala mais alto do que muitas obras-primas. Em uma mídia formulaica e escapista, Ueda e sua equipe traduziram as apreensões de uma geração que foi contra a própria ideia de fórmulas, para a qual “escapismo” significava não fugir, mas mergulhar no cerne da escuridão humana.

Como eu não canso de dizer, anime também é cultura.

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