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HQs – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Sat, 21 Dec 2019 19:31:04 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 HQs – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Après L’Enfer”: a ficção nos salva – mas também pode nos condenar https://www.finisgeekis.com/2019/12/21/apres-lenfer-a-ficcao-nos-salva-mas-tambem-pode-nos-condenar/ https://www.finisgeekis.com/2019/12/21/apres-lenfer-a-ficcao-nos-salva-mas-tambem-pode-nos-condenar/#respond Sat, 21 Dec 2019 13:49:44 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22118 Pense em alguma personagem que admira e tente me dizer por que ela é importante para você.

Certamente, não é só pelo fato de ter um belo uniforme ou ser interpretada por seu ator ou atriz favorito. Adoramos personagens fictícias porque elas nos dão forças. Muitas vezes lutando, nos seus mundos de mentira, as mesmas batalhas que enfrentamos na vida real.

Mas e se nossa luta for errada; nossos valores, imorais? E se o herói que nos inspira, longe de nos aproximar do caminho do bem, nos fizer perpetuar nossos erros, mascarando-os como uma forma torpe de “justiça”?

Essas não são perguntas que eu imaginaria ter de fazer em uma época como a nossa, em que cosplayers de super-heróis visitam crianças com câncer em hospitais. Nem são, talvez, as perguntas que Damien Marie e Fabrice Meddour pensaram em fazer em sua BD, Après L’Enfer (“Depois do Inferno”).

São, porém, perguntas inevitáveis em uma obra que reimagina duas das personagens mais queridas da literatura em um dos episódios mais sangrentos e vergonhosos do mundo moderno.

Depois do inferno

Lançada em novembro desse ano, Après L’Enfer é uma história difícil de categorizar. De um lado, é um crossover de Alice no País das Maravilhas e O Mágico de Oz, se o buraco de coelho em que cai Alice e o tornado que surrupia Dorothy do Kansas as levassem a se conhecer na mesma terra fantástica.

De outro, é um quadrinho histórico sobre a Guerra Civil Americana, contado do ponto de vista daqueles do “lado errado” da História.

Seu  cenário é o sul dos Estados Unidos em 1865, imediatamente depois do brutal conflito que trouxe fim à escravidão.  E suas protagonistas, Alice e Dorothy, são garotas sulistas que vêem seu mundo ocupado – e destruído – pelas tropas vencedoras.

Em 1864, o general William Sherman reuniu as forças da União e passou o estado da Geórgia a ferro e fogo. Conhecida como a Marcha ao Mar, a operação levou a Confederação à lona a custa de um gigantesco preço humano. “O ferro incandescente ofereceu o Sul às cinzas” uma personagem abre a história  “às cinzas e à lama.”

“O ferro incandescente ofereceu o Sul às cinzas” “As cinzas e à lama”

Filha de uma família escravocrata, Dorothy Gale perdeu tudo o que tinha quando sua casa foi invadida por saqueadores. Numa cena dolorosa que soará familiar aos leitores de Érico Veríssimo, sua mãe se oferece aos bandidos para que não procurem a filha.

“Minha mãe me escondeu tão bem, mentiu tão bem quando eles a torturaram e violentaram que eles não me procuraram”. “Ela os cobriu de todo o ouro que ela havia enterrado para não sofrer… para que eles a deixassem morrer.”

O trauma faz Dorothy abrir mão de seus planos, de sua misericórdia – até mesmo de seu gênero. De cabelos curtos e roupas de homem, um mosquete em mãos e ódio no peito, ela forja seu caminho pela sul ocupado.

Suas andanças a levam ao encontro de uma outra sobrevivente, Alice Carroll. Ela parece ter sofrido um trauma parecido, embora suas memórias estejam misturadas a alucinações. Diante seus olhos, perigos reais dividem espaço com coelhos apressados, chapeleiros e mesas de chá, criaturas ameaçadoras com cabeças de animais, vestindo uniformes de lados opostos da guerra.

“nós queremos a sua flor”, “…nós já secamos a da sua irmã e da sua mãe”

Fãs de Lewis Carroll e do filme de 1939 (ou de seu material de origem, o obscuro romance de L. Frank Baum) não precisarão de mais nada para entender o que acontece. O quadrinho é uma verdadeira enciclopédia de referências aos dois grandes clássicos, subvertidos e distorcidos em um enredo que pode ser tudo, menos óbvio.

Como n’O Mágico de Oz, Dorothy encontra companheiros na sua jornada em terras desconhecidas. Neste caso, três ex-soldados sulistas que vagam pelas ruínas do que um dia foi seu lar.

Hunk, o líder do grupo,  pode não ser feito de palha, mas possui o chapéu, a magreza e as feições desfiguradas de um espantalho. O Leão é Zeke, um brutamontes de costeletas ruivas, que pula de susto ao menor barulho.

Mais mórbido, contudo, é o “homem de lata” Hickory: antigo por estilhaços de artilharia que ficarem presos em seu crânio como dois chifres.

“Os chifres [i.e. gesto obsceno] que Lee nos fez ao salvar seu traseiro em Appomattox assinando nossa rendição” diz Hunk num de seus (muitos) momentos de amargura.

Como Dorothy e seus amigos em busca da Cidade Esmeralda, esse quarteto segue sua própria Estrada dos Tijolos Amarelos. Trata-se do tesouro do General Sherman: barras de ouro saqueadas dos cidadão do sul, que Hunk e seu grupo pretendem tomar para si.

“O tesouro… O maldito tesouro da guerra, meu ouro, seu ouro…”

O mágico e a causa perdida

Après L’Enfer é um retrato brutal, mas também lúcido do papel transformador da fantasia. Por trás da avalanche de alusões históricas e easter eggs literários, Marie e Meddour trazem uma fábula poderosa sobre o papel da ficção em dar sentido às nossas vidas. Em especial quando o trauma as vira de ponta-cabeça.

A diferença é que o “trauma” de que sofrem essas Dorothy e Alice não pertence apenas a uma pessoa, mas a toda uma nação. E sua “fantasia”, longe de ser inocente, remete a um escapismo de outra natureza: o movimento “Lost Cause”, ideologia negacionista que prega que a Guerra Civil Americana não foi travada por conta da escravidão, mas para proteger o “modo de vida do Sul” contra a “agressão do norte”.

Criado na época para aliviar a consciência dos sulistas derrotados, a “causa perdida” deu um verniz de credibilidade a supremacistas brancos, elevando defensores da escravidão ao patamar de heróis nacionais.

Ilustração do livro “The Clansman” de Thomas Dixon Jr., que retrata a Ku Klux Klan como heróis honrosos

Crédito onde é devido: a BD de Marie e Meddour nada traz de heroísmo. Nem por isso o olhar simpático que ambos lançam aos sulistas soa menos desconfortável.

“A paz foi morta pelas ordens do Açougueiro Grant, pelas pilhagens de Sherman e pela arrogância infernal de Lee” diz Dorothy ao lado de sua mãe assassinada “Eu estou em um outro mundo que não tem nada do meu Sul, onde não me resta nada”.

O que ela não diz é que no “seu” Sul de que tanto sente falta pessoas podiam ser vendidas como mercadoria pela mera virtude de ter uma cor de pele diferente.

“A guerra destruiu meu mundo”

“Parece uma história pró-Confederação” disse um amigo meu americano com uma careta no rosto quando lhe falei sobre Aprés L’Enfer. Sim, a Guerra de Secessão – como todas as guerras – vitimou civis e inocentes. Sim, a Marcha ao Mar de Sherman foi um ato devastador de guerra total exercido sobre uma população que nunca havia sofrido coisa parecida. As cicatrizes permanecem até hoje: mais americanos morreram no conflito de 1861-1865 que nas duas Guerras Mundiais somadas.

Mas as mansões pilhadas pelos soldados da União eram latifúndios escravagistas. O ouro “roubado” por Sherman, que Dorothy e Hunk perseguem, foi um tesouro acumulado graças ao tráfico de carne humana.

Devemos mesmo torcer para que eles, ex-soldados desse regime, o utilizem para enriquecer?

Até que ponto lamentar a destruição desse mundo, por mais cruel que tenha sido àqueles pegos na linha de fogo, não implica em defender implicitamente o próprio Sul?

Après L’Enfer ainda está no primeiro volume, e é cedo para entender o que Marie e Meddour de fato tiram de sua fábula. Até aqui, porém, os autores parecem fazer de tudo para distanciar sua história de uma apologia da Confederação. “Eu defendi meu país quando a União veio sangrá-lo” Hunk diz a Dorothy “A questão da supremacia branca nunca foi meu negócio. Eu não tenho irmãos em armas”.

O próprio enredo leva os protagonistas de encontro aos lost causers ao mesmo tempo em que antagonizam os soldados do Norte. Isto fica claro quando descobrem que sua estrada de tijolos dourados também leva a um “mágico”: Nathan Bedford Forrest, general confederado e  “Grão Mago” da Ku Klux Klan.

Nathan Bedford Forrest

Sua principal aliada é uma sádica misteriosa conhecida apenas como “A Rainha” – não de copas, mas de racistas mascarados – que coleciona cabeças – não de cartas de baralho, mas de negros e soldados da União.

“Chapeleiro!” “Você me chama e eu venho, minha rainha”

É suficiente para evitar pisar em ovos, mas não para afastar a impressão de que Marie e Meddour foram seduzidos pela aura romântica dos guerreiros da velha Dixie. “Os [carpetbaggers] virão” diz o “espantalho” Hunk, em referência aos cidadãos do norte que se mudaram ao sul para lucrar com a reconstrução “e nós não teremos os meios” para sobreviver. “Então o que nos resta?” pergunta o seu companheiro.

“O Oeste”, ele responde lacônico, antecipando uma geração inteira de ex-soldados do escravagismo que se redimiriam tornando-se campeões de um novo Estados Unidos.

“O Oeste, provavelmente. O Oeste, ou outra coisa…”

É um mito que Hollywood perpetuou no século XX, transformando o veterano confederado em um novo modelo de americanidade – o caubói – e os vícios que o levaram à guerra civil em virtudes para os novos tempos: a desconfiança para com o governo, a violência, a devoção religiosa – quase messiânica – à vida na fronteira.

Os vilões de uma era se tornaram, em Technicolor, os heróis de uma outra.

O veterano confederado Ethan Edwards, protagonista de “Rastros de Ódio” de John Ford (1956)

Universos que se alimentam

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Numa entrevista para o site Branchés Culture, Damien Marie disse o seguinte de sua obra:

A Disney transformou Alice em um conto maravilhoso, que não fez mais que florear a personagem. Na minha narrativa, as personagens são historicamente enraizadas, elas fogem dos papéis fabulosos. Eu queria que nós pudéssemos ver o verdadeiro drama do conto original, a perda de sentido diante de um mundo aterrador. O que nós podemos fazer diante disto ? Os dois universos se alimentam.

Não tenho certeza que Lewis Carroll e Frank Baum enxergavam a fantasia de uma maneira assim tão sombria – por mais que seus livros tenham já sido interpretados como alegorias políticas. Ainda assim, é inegável que todos nós, como a Dorothy e Alice de Après L’Enfer, “alimentamos” nossas experiências com sentidos que tiramos da ficção.

É uma mensagem que certamente ressoa com as muitas pessoas que gostam da cultura pop porque enxergam nela algo além de barulho e consumismo.

Alice e Dorothy são ícones de outras épocas, mas suas tochas foram apanhadas por novos role models: garotas mágicas, Jedi, witchers. Heróis – com ou sem capa – que transformam nossas agruras numa razão de ser.

Après L’Enfer prova, talvez não intencionalmente, que tais role models às vezes nos guiam ainda mais fundo para a escuridão. A ficção dá sentido à tudo. Mesmo ao que não tem sentido. Mesmo ao que não deveria ter sentido. Mesmo ao que é obsceno, pavoroso demais para ser atribuído a qualquer coisa além do caos.

“Os dois universos se alimentam”, diz Marie. E não é sempre claro qual dos dois é o  inferno maior. Os horrores que vivenciamos no dia a dia ou as fábulas que inventamos para justificá-los.

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São Patrício e a cultura pop https://www.finisgeekis.com/2019/03/19/sao-patricio-e-a-cultura-pop/ https://www.finisgeekis.com/2019/03/19/sao-patricio-e-a-cultura-pop/#respond Tue, 19 Mar 2019 21:52:13 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=21692 O Dia de São Patrício não é um festival muito popular entre brasileiros. Se você for um fã da cultura irlandesa, porém, já deve ter ouvido desta desculpa para vestir-se de verde e virar alguns pints de Guinness.

Talvez mais do que alguns.

Realizada no dia 17 de março, a festa homenageia o missionário que converteu a Irlanda ao cristianismo. Com o passar dos séculos, ela perdeu as conotações religiosas, tornando-se uma celebração da cultura irlandesa com um todo.

E uma desculpa para beber cerveja.

Para quem está acostumado com esse carnaval fora de época (ou com o santo sisudo que lhe serve de inspiração), a imagem que abre esse artigo deve parecer estranha.

Não devia. São Patrício, afinal, é muito mais que uma figura histórica ou (pior) um simples ícone da Igreja. Para o bem e para o mal, o missionário de roupas verdes é um símbolo da Irlanda que já inspirou livros, músicas e até batalhões de soldados.

“San Patrícios”, desertores irlandeses que lutaram ao lado dos mexicanos durante a Guerra Mexicano-Americana. Fonte.

Não era de se espantar, portanto, que ele (ou suas façanhas) ganhassem um pé na cultura pop. A imagem da capa, da autoria de Jim FitzPatrick (autor da famosa arte do Che Guevara) é apenas uma das muitas homenagens modernas à era lendária de Patrício e seus sucessores.

Com o último St Patrick’s Day fresco na memória, essa é uma oportunidade perfeita para relembrar algumas delas.

O algoz de Crom Cruach

São Patrício expulsando as serpentes por JimFitzPatrick

A Patrício é atribuído o milagre de ter expulsado as cobras da Irlanda. Incluindo Crom Cruach, um Deus ou demônio ou aparição em forma de serpente que (supostamente) era adorado pelos antigos pagãos.

Se você é um fã de animação esse nome talvez lhe soe familiar. De fato, o arqui-inimigo de Patrício é o vilão principal de O Segredo de Kells, animação do estúdio irlandês Cartoon Saloon indicada ao Oscar em 2009.

 

O longa é uma fantasia sobre a criação do Livro de Kells, uma cópia dos evangelhos tida por muitos como o livro mais belo da Idade Média.

Seu protagonista é Brendan, um jovem noviço que se vê, ao lado de um grupo de monges, na tarefa de escrever o tomo. E protegê-lo de saqueadores vikings que ameaçam passar a Irlanda inteira ao ferro e ao fogo.

Tudo isso às sombras de Crom Cruach, um demônio ancestral de quem deve obter um artefato vital para o término do livro.

Brendan não é Patrício, mas sua luta contra seu velho algoz (uma alegoria clara à serpente da Bíblia) bebe da mesma fonte que transformou o padroeiro num ícone nacional.

Sua missão maior, terminar “o livro que transforma a escuridão em luz”, não poderia contribuir mais à imagem do missionário como um pioneiro destemido, desbravando perigos indizíveis para trazer a salvação aos homens.

 

 

O Escravo, O Mensageiro

Se O Segredo de Kells toca apenas de leve na figura de Patrício, não é o caso de outras obras de Tomm Moore, co-fundador do Cartoon Saloon.

Anos antes de ganhar as telas, o ilustrador trabalhou com o escritor Colmán Ó Raghallaigh para trazer a lenda do santo aos dias de hoje.

O resultado foram duas graphic novels, que juntas esmiúçam a lenda fascinante do padroeiro da Irlanda. An Sclábhaí (“O Escravo”) como como Patrício, um pagão da Britânia romana, é capturado e vendido por piratas irlandesas. Seis anos de cativeiro o aproximam da fé cristã – e da coragem para fugir de volta à casa.

Em An Teachtaire (“O Mensageiro”) ele retorna aos braços de seus captores, armado com a convicção de um pioneiro e o peso de todo o reino dos céus. Nas páginas de Moore e Ó Raghallaigh, a conversão da Irlanda se torna quase um conto de vingança, em que druidas e reis gaélicos se defrontarão com um escravo e sua missão divina.

Infelizmente, as HQs só foram publicadas em irlandês (embora sua editora, a Cló Mhaigh Eo, tenha disponibilizado uma tradução de seu roteiro).

Por sorte (e como era de se esperar), também em inglês escrevem os quadrinistas da Ilha Esmeralda.

A Estrada do Pântano

The Bog Road (“A Estrada do Pântano”) escrita ano passado por Barry Keegan, é a HQ sobre uma Irlanda desencantada que nunca soubemos precisar.

Como O Segredo de Kells, a HQ não foca diretamente em Patrício. Ele é, porém, o estopim do conflito que se desenrola nas páginas da trama:

A derrota dos Antigos Deuses.

Moradores de uma cidade no interior da Irlanda descobrem que uma antiga criatura vive em seus poços de turfa. Quando uma estrada é construída sobre o pântano – e motoristas começam a tombar mortos – o medo se transforma em guerra aberta.

Para nossa (nem tão grande) surpresa, a criatura não é o herói de uma fábula ecológica, e sim Na Sliogán, uma das antigas deusas da Irlanda pré-cristã.

De seu conflito com os moradores se desenrola um pequeno panteão de divindades esquecidas, batalhando para sobreviver em um mundo que não mais as venera.

A HQ, que já foi comparada aos trabalhos de Neil Gaiman, é ao mesmo tempo familiar e inusitado. Keegan evita rostos conhecidos, trazendo à vida criaturas do folclore local em vez de deuses celebrados da mitologia celta.

Nada mais justo para retratar a Irlanda que o próprio Patrício deve ter conhecido. Não uma ilha regida por uma religião homogênea e unificada, e sim por uma variedade de deuses locais, associados a rios, montanhas e, é claro, pântanos.

De São Patrício ao St. Patrick’s Day.

São Patrício na St. Patrick Day’s parade

Tudo diz respeito a São Patrício, ou à Irlanda meio histórica, meio fictícia em que ele fez sua fama.

Mas e sobre o St. Patrick’s Day? O carnaval da Ilha Esmeralda, que enlouquece turistas na mesma medida em que faz irlandeses barricarem suas casas?

Curiosamente, quem melhor o trouxe à ficção foi ninguém menos que um escritor brasileiro.

Diga a Satã que o Recado foi Entendido de Daniel Pellizzari retrata o caos de uma Dublin boêmia de maneira a dar inveja até a seus pubs.

Seu protagonista é Magnus Factor, golpista que lucra sobre turistas na capital irlandesa. Sócio de uma empresa que oferece passeios guiados, Magnus se especializa em criar roteiros inventados. Nenhuma das pessoas, edifícios ou eventos mencionados em seus tours existem de verdade.

Ao longo de uma narrativa rápida e endiabrada (com o perdão do trocadilho), Factor trombará com o crime organizado, uma cabala de estudantes iconoclastas e até mesmo uma seita que pretende ressuscitar Crom Cruach, o velho algoz de São Patrício.

O romance faz parte do projeto Amores Expressos, iniciativa que enviou escritores brasileiros a cidades ao redor do mundo para escreverem um livro quando retornassem.

Isto fica evidente no texto, que em momento algum esconde seu sotaque estrangeiro. Pellizzari, de fato, escreve como um perfeito estrangeiro, gabaritando paradas turísticas como o Trinity College, Glendalough e a Península de Howth.

Justamente por isso, ele é um retrato cirúrgico, cruel e irreverente de uma Dublin assediada por viajantes. Seu livro é uma descrição perfeita da capital irlandesa na alta temporada, dividida entre uma cultura gaélica reduzida a souvenirs e turbas de beberrões que falam todas as línguas – menos, às vezes, o inglês.

Temple Bar, no coração de Dublin, durante o St Patrick’s Day

Pellizzari diz ter se surpreendido com o número estrangeiros em Dublin, impressão que o bairro do Temple Bar, coração do St. Patrick’s dublinense, não falha em passar.

Navegando por suas ruelas numa noite de euforia, é impossível não se lembrar dos personagens de Pellizzari, reféns, como diz um crítico, de uma “desorientação geral”.

Mentira. Desorientados eles podem estar, mas saber muito bem para onde ir: o balcão do pub mais próximo.

Faça uma homenagem você também e dedique uma cerveja à memória do santo. Patrício agradece.

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https://www.finisgeekis.com/2019/03/19/sao-patricio-e-a-cultura-pop/feed/ 0 21692
“Satanie”: o inferno existe (mas não é o que você imagina) https://www.finisgeekis.com/2018/10/16/satanie-o-inferno-existe-mas-nao-e-o-que-voce-imagina/ https://www.finisgeekis.com/2018/10/16/satanie-o-inferno-existe-mas-nao-e-o-que-voce-imagina/#comments Tue, 16 Oct 2018 23:23:20 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20592 Fabien Vehlmann e Kerascoët (nome artístico do casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset) são uma parceria de peso. Juntos, os três assinaram o macabro Jolies Ténèbres, fantasia sobre os demônios da natureza humana.

Combinando uma imaginação cruel com um traço inocente, o BD preparou terreno ao mangá Made in Abyss, outra celebrada pérola sobre a perda da inocência.

Essa não foi a primeira vez em que o trio atacou o tema. Lançada nos EUA no mesmo ano em que o mangá de Akihito Tsukushi ganhos as telas (e ainda inédita no Brasil) Voyage en Satanie conta uma história ainda mais ousada.

A viagem de um equipe de exploradores para encontrar o Inferno.

Não o lugar fictício das religiões organizadas, mas o inferno real, que existe (a despeito da nossa ignorância) debaixo dos nossos pés.

Viagem ao centro da Terra

Voyage en Satanie (“Viagem a Satânia”, lançada em inglês como Satania) conta a história de Charlie, uma garota cuja mãe diz ter sido “estuprada por um demônio”.

Incapaz de acreditar que ela esteja louca, seu irmão, Christopher, decide comprovar cientificamente a existência do inferno.

O jovem parte em uma viagem às profundezas da Terra confiante de que há um mundo paralelo abaixo dos nossos pés. Habitado por hominídeos retorcidos e chifrudos – não por maldade, mas pelo simples curso da evolução.

Meses se passam, contudo, sem que sua família receba qualquer notícia. Disposto a encontrá-lo, Charlie encabeça uma missão de resgate que a levará por caminhos que nunca antes ousou desbravar.

O resgate dá início a uma jornada digna de Viagem ao Centro da Terra, o clássico de Júlio Verne. Em termos de poder imaginativo, chega até a superá-lo. Vehlmann e Kerascoët  lançam suas personagens contra florestas de cristais, utopias escavadas na rocha, geometrias lovecraftianas e figuras que parecem saídas de um delírio lisérgico.

É um mundo vibrante que parece ter uma lógica própria, por mais distante que seja da nossa natureza. Em algumas tomadas, como uma floresta de raízes que parecem árvores invertidas, ou cavernas que se revelam bocas escondidas, sentimos estar no submundo titular de Made in Abyss.

Charlie e o Padre Monsore, principais membros da expedição, possuem personalidades e habilidades conflitantes, num jogo de opostos que lembra Riko e Reg do mangá de Akihito.

Charlie é jovem e impetuosa, compensando com coragem uma brutal ingenuidade em relação aos perigos do submundo. Monsore é pragmático e relutante, mas sabe como ninguém como sobreviver em lugares ermos.

Missionário experiente, ele está mais do que acostumado a desbravar florestas, enfrentar perigos naturais e lidar com povos hostis para espalhar a palavra de Deus. É justamente esse propósito, logo descobrimos, que o levou a acompanhar Charlie.

Monsore vê a existência de um inferno “científico” como a última fronteira da fé. Para ele, os satanianos (como chamam os habitantes do submundo) são pessoas como quaisquer outras, à espera da civilização e da palavra do Senhor.

Suas tentativas de domesticar os hominídeos rendem algumas das cenas mais divertidas do quadrinho, com Monsore “batizando” seu rebanho com nomes de diabos famosos da tradição abraâmica.

Infelizmente, ao tentar “criar raízes” e domesticar satanianos,  Monsore não apenas cria atritos com Charlie, que anseia em encontrar seu irmão, mas com a própria natureza do inferno.

Pois o “inferno”, eles descobrem, não é simplesmente um lugar. É um verdadeiro organismo em estado de fluxo em que nada se repete nem permanece igual por muito tempo.

A “arquitetura” natural é incoerente e inconstante. Passagens apodrecem e se desmancham, buracos surgem do nada e desaparecem com a mesma facilidade. Os satanianos não parecem ter nenhuma estrutura social, nenhuma faculdade complexa, nada além de seus impulsos mais básicos.

Nativos de um mundo em que o amanhã é imprevisível, eles aprenderam a viver apenas no hoje.

É nesse ponto que Satanie deixa de ser uma mera HQ para se tornar uma discussão fresca, surpreendente e inteligente sobre nossa própria relação com o mundo.

Pois esse “inferno”, se pensarmos bem, não é lá tão diferente da nossa realidade.

Uma coleira na própria história

Imagens de infernos – seja o clássico fumegante popularizado por Dante, sejam os outros “submundos” mitologia a fora – não têm a ver somente com pecado. Eles estão relacionados a algo mais elementar: a ortodoxia.

O conjunto de ideias, doutrinas e preceitos tidos como verdadeiros e desejáveis por uma determinada visão de mundo. E do aparato que garante que eles sejam respeitados.

Divindades rebeldes, demônios e outros “excluídos” são confinados ao submundo nem tanto pelo que fazem, mas porque ameaçam um projeto de autoridade.

É necessário que haja um líder que nos indique o caminho certo para que uma civilização exista.  Do contrário, cada um de nós correria para um lado diferente e não saberíamos aonde ir.

A ideia de que o pluralismo é compatível com um projeto de sociedade demorou para vingar na história da humanidade. E mesmo ele só conseguiu emplacar quando criou para si sua própria religião cívica.

Isso acontece porque pessoas são mortais. Mais do que isso, porque também as nossas ideias, nossas línguas e conquistas um dia envelhecerão, desaparecerão e serão esquecidas. Para garantir que a ordem que nos é cara sobreviva, é necessário protegê-la do próprio tempo.

É essa a preocupação que vemos o tempo todo no discurso político, com temores de um “retrocesso”, de uma “onda de qualquer coisa”, do retorno dessa ou daquela tragédia do passado.

No fundo, o que mais assusta as pessoas é a perspectiva de que as coisas mudem. Pois mudanças são sempre imprevisíveis e podem nos levar ao pior.

É esse desafio, o de por uma coleira na própria história, que tem feito pensadores gastarem potes de tinta desde os primórdios do tempo. E que, levado às últimas consequências, habilitou as maiores atrocidades da nossa história.

Como dizia o filósofo Karl Popper sobre Platão:

[O próprio Platão] relata que ele esteve ‘desde o começo ansioso por atividade política’, mas também inibido pelas experiências preocupantes de sua juventude. ‘Ao ver que tudo pendia e mudava sem propósito, eu fiquei trêmulo e desesperado.’ Do sentimento de que a sociedade, e, de fato, ‘tudo’ estava em fluxo veio, eu creio, o impulso fundamental da sua filosofia tal como da filosofia de Heráclito; e Platão sumarizou sua experiência social, tal como seu predecessor historicista havia feito, proferindo uma lei de desenvolvimento histórico. De acordo com essa lei, (…) toda mudança social é corrupção ou declínio ou degeneração.

O submundo de Vehlmann e Kerascoët é, no fundo, o retrato dessa angústia. De um lado, temos a utopia de uma sociedade perene, ordenada, em que tudo tem um propósito e todos vivem em seu lugar.

Na HQ, ela é representada por Ultima Thule, uma cidade subterrânea que a comitiva encontra no início de sua jornada. Batizada em homenagem a uma província fictícia nos mapas gregos, ela é uma cidade aparentemente perfeita, mas que esconde esqueletos no armário.

Criminosos e dissidentes são brutalmente punidos. O direito de ir e vir é limitado, e mulheres existem apenas como chocadeiras, numa distopia digna de Margaret Atwood:

Que Thule (a província fictícia) tenha inspirado uma sociedade secreta popular entre nazistas não é mera coincidência. A desconfiança não escapa a uma das personagens, que a associa de imediato com o fascismo:

Do outro lado, temos os satanianos que parecem viver livres como o vento, sem líderes ou subordinados, sem normas ou obrigações. Indivíduos que vivem para eles mesmos, no aqui e agora, não em prol de uma imortalidade no paraíso.

Depois de fugirem da opressão de Thule, não demora para que um membro da expedição comece a pensar que o inferno, no fundo, é uma espécie de paraíso.

Num argumento que faria William Blake sorrir, ele reflete que os satanianos talvez vivam mais próximos das “leis de Deus” que os devotos das religiões abraâmicas.

Mas seria esse mundo inconstante, livre das hierarquias, tradições e instituições realmente melhor? Seria mesmo preferível – quando não possível – viver em uma realidade limitada ao hoje?

Num mundo sem futuro, qual é a necessidade de ter um propósito? E sem um propósito, qual é a necessidade de viver? Para que alimentar-se, sobreviver e procriar, se seremos invariavelmente mortos e comidos por alguém mais forte?

Numa natureza fluida, em que nada se repete e tudo é uma surpresa, qual é a função da inteligência? Do aprendizado? Da memória?

O que, enfim, nos separaria dos animais?

Escravos da natureza? Ou prisioneiros da cultura?

Essa, afinal, é a consequência inescapável dessa “liberdade”.

Ao abraçar o imediatismo dos satanianos, Charlie vislumbra regredir a uma escuridão anterior mesmo à Idade da Pedra, com suas hierarquias primitivas e cosmogonias simples: mundo anterior à própria linguagem.

Satanie não é uma apologia de um ou outro modo de pensar, mas uma constatação de que nós, tal como seus protagonistas, estamos na corda bamba entre dois infernos:  Satânia e Thule. O medo de nos tornarmos escravos da natureza ou prisioneiros da cultura.

Vehlmann e Kerascoët ganharam fama contando histórias simbólicas, provocativas, mas que nunca pendem ao moralismo. Satanie evita essa armadilha com o cuidado de um explorador percorrendo território desconhecido.

O trio de quadrinistas mostra mais do que julga; oferece mais perguntas que respostas. Da mensagem vaga à ausência de antagonistas ao final aberto (no melhor estilo francês), eles não têm medo de nos deixar no escuro, atormentados por nossas próprias dúvidas.

Eis um grupo de artistas que confia em seus leitores o suficiente para deixar que cheguem às próprias conclusões. Em tempos de arte panfletária, em que escritores se consideram profetas pregando a um rebanho de ovelhas, seu BD é uma lufada de ar fresco.

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Os super-heróis sempre foram politizados? https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/ https://www.finisgeekis.com/2018/06/27/os-super-herois-sempre-foram-politizados/#respond Wed, 27 Jun 2018 12:16:19 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=20248  

Temos que conceder aos quadrinhos. É fácil ser tachado de diversão vazia. Também é fácil ser acusado de panfletagem, provocação barata, veículo de doutrinação política.

Mais difícil, e o que os comics americanos vêm fazendo há décadas, é ser criticado pelas duas coisas ao mesmo tempo.

Todos nós já escutamos a acusação. HQs estão desesperadas atrás de relevância, agarrando-se a qualquer manchete para alavancar vendas. Da guerra na Síria à eleição de Donald Trump, não há um factóide que escape aos super sentidos dos heróis.

Mas teria sido sempre assim?

Críticos da politização os quadrinhos dizem que não. Segundo eles, quadrinhos estão se tornando mais politizados, histéricos e rasos. O fenômeno é novo – e poderia ser fatal. Se as coisas não voltarem rápido ao curso, o futuro da indústria poderia estar em risco.

Se isso é verdade, como explicar a palhinha de Barack Obama como personagem de Homem Aranha em 2009? Ou o retrato de um Doutor Destino em prantos após o atentado às Torres Gêmeas?  Ou ainda a HQ que transformou Magneto em um sobrevivente do Holocausto?

Causas mudam, pessoas envelhecem e partidos se renovam. Mas os quadrinhos parecem ter um flerte com a política que vai muito além do momento atual.

Essa é a opinião de Robert Jewett e John Lawrence no provocante Capitão América e a Cruzada contra o Mal. Escrito no calor do 9/11, mas ainda relevante aos dias de hoje, o livro argumenta que super-heróis sempre foram politizados – e ninguém deveria se orgulhar disso.

Para Jewett e Lawrence, a politização dos heróis não se deve à geração millenial, à Guerra ao Terror de Bush, ao Civil Rights Movement, nem mesmo à Guerra Mundial que deu vida a Capitão América e tantos outros. Ela vem de antes, muito antes de existirem quadrinhos. Muito antes, na verdade, até de existir um Estados Unidos.

As colônias inglesas na América, eles explicam, foram assentadas por Puritanos, uma facção radical dos cristãos britânicos que se viam na missão de reformar a sociedade – e, especialmente, o Novo Mundo.

Essa fé exacerbada deu origem a duas mentalidades muito diferentes entre si, mas que marcaram a história dos EUA até os dias de hoje.

A primeira foi a do realismo profético, a ideia de que a sabedoria de Deus está além do nosso alcance, e ninguém deve tomar para si o pedestal de executor de Sua vontade. É ideia de que demos julgar antes de agir e de que, não sendo oniscientes, precisamos tolerar os que pensam diferente.

Para os autores, essa é mentalidade por trás da tradição constitucional dos Estados Unidos, da desconfiança em relação a consensos e, posteriormente, do pensamento de autores que valorizavam a tolerância e a pluralidade intelectual.

A segunda foi a do nacionalismo zelota, a ideia de que os americanos seriam um povo escolhido, uma Nova Israel encarregada de purificar o mundo de hereges. É a ideia de que os valores que defendem não são apenas certos, mas divinos, e que preço nenhum é grande demais para protegê-los.

Foi do nacionalismo zelota, segundo eles, que veio a bagagem ideológica do Destino Manifesto, a conquista do Oeste, a Trilha das Lágrimas e a erradicação de povos indígenas. E, mais recentemente, o longo histórico de intervenções militares em nome do “bem”, da invasão das Filipinas à Guerra do Iraque, passando pelo Vietnã e as ditaduras na América Latina.

“Progresso Americano” de John Gast (1872)

As duas tradições ultrapassaram sua origem religiosa e ganharam espaço na cultura popular. O realismo profético deu origem a personagens como Atticus Finch de O Sol é Para Todos e o Jurado No 8 de 12 Homens e uma Sentença.

“Heróis” que não vestem capas e acreditam no jeito “certo” de se resolver as coisas. Que acham, como o Shepard “Paragon” de Mass Effect, que não podemos deixar o medo comprometer quem nós somos.

Gregory Peck como Atticus Finch em “O Sol é Para Todos”

O nacionalismo zelota, por outro lado, ganhou vida com os caubóis, justiceiros e vingadores encapuzados. São os pistoleiros de filmes de faroeste, policiais vigilantes como Dirty Harry e, é claro, super-heróis.

Eles acreditam que os fins justificam os meios e que o mal não merece tolerância. Aos vilões, só a violência.

O Complexo de Capitão América

Para Jewett e Lawrence, essa mentalidade deu origem ao que chamam de complexo de Capitão América: o uso de meios não-democráticos para defender valores democráticos.

O zelota faz a guerra em nome da paz, “matando milhares para salvar milhões”.  Ele apoia a censura em nome do diálogo, silenciando as pessoas “erradas” para dar voz às “certas”.

Como um delírio imaginado por George Orwell, ele é um duplipensamento ambulante, rebatendo ódio com ainda mais ódio, distribuindo socos, tiros e mísseis em nome do amor e tolerância.

O herói zelota acredita que seus excessos devem ser perdoados, pois ele luta em nome do bem, e seus inimigos são do mal. Ele não é o agressor, e sim a reação, a resistência contra as forças malignas da sociedade. Foram os vilões que atacaram primeiro, oprimindo fracos e silenciados, e agora eles terão o que merecem.

É por isso que o Capitão América usa um escudo, e não uma espada, bastão ou arma de fogo. É por isso que os heróis de Star Wars são da Rebelião ou da Resistência, e “Impérios” sempre são do mal.

Que o escudo antimísseis sugerido pelo presidente americano Ronald Reagan em 1983 se chamasse “Star Wars” não é mera coincidência. Essa é a lógica por trás da política externa dos EUA, que sempre se enxergaram como o defensor da luta contra uma conspiração maior, seja o nazismo, o comunismo ou o jihadismo.

Mas isso não é privilégio de uma única ideologia de governo. Jewett e Lawrence são cuidadosos em frisar que o mesmo pensamento pode ser visto em todos os lugares. Direita e Esquerda, Republicanos e Democratas vestiram a camisa dos zelotas em momentos diferentes da história. Seja para ajudar tolher direitos em nome da segurança ou para sacrificar regressistas nas chamas da revolução.

O importante, dizem eles, não é a causa defendida, mas seus meios. E é aí que super-heróis encontram a política, com consequências trágicas para todos nós.

Super-heróis e o “Fascismo Pop”

O mais fantástico nas histórias de herói não são os próprios heróis, mas o fato de que seu mundo não funciona sem eles.

No universo das HQs, o sistema opera mal. As leis servem para proteger bandidos e dificultar a vida dos justiceiros. Tribunais são corruptos. A polícia é fraca ou amedrontada. Afinal, que pode fazer um mero soldado contra super vilões e ameaças galácticas?

Para obter justiça de verdade, precisamos de pessoas excepcionais, mais fortes, mais capazes, mais corretas. Heróis que vem de fora e que conseguem resolver nossos problemas num piscar de olhos, desde que tiverem espaço para fazer seu trabalho.

Esses heróis têm o poder para destruir o mundo, mas eles não farão isso, pois sabem mais que a gente. Afinal, eles não são apenas mais poderosos que gente comum, mas também melhores como pessoas. E de tão melhores, e tão mais sabidos, esses Übermenschen são a última esperança contra o mal que nos aflige.

O universo dos heróis é um mundo de medo e submissão, em que as pessoas não têm escolha senão rezar por uma intervenção divina. Que vários heróis (e vilões) tenham sido interpretados como divindades de algum panteão é uma consequência obrigatória deste cenário.

O problema de se tirar essa delírio do Velho Testamento e aplicá-lo nos dias de hoje – de se fazer, enfim, política com super-heroísmo – é que essas ideias não se misturam. Pois elas já foram tentadas uma vez, e seus resultados foram devastadores.

Jewett e Lawrence chamam de “Fascismo Pop” a mistura de nacionalismo, vigilantismo e repúdio ao sistema que informa a ética dos super-heróis. Ela é, na sua opinião, um desenvolvimento extremo do Complexo de Capitão América e do motivo pelo qual o velho herói deveria pendurar o escudo.

Não errou a Marvel ao pintar o Capitão América com as cores da Hydra. No fundo, o herói sempre foi um fascista.

Se você, como fã de quadrinhos, ficou furioso ao ler isso, saiba que Jewett e Lawrence não foram os únicos a chegar nessa conclusão. A sacada não escapou a Michael Chabon, autor de um dos mais premiados romances sobre quadrinhos e um dos roteiristas de Homem Aranha 2.

Em sua fábula vencedora do Pullitzter, Chabon descreve um quadrinista judeu dos anos 1930 que percebe que seu herói se tornou a imagem daqueles que mais detesta:

“Joe Kavalier não foi o único dos pioneiros dos quadrinhos a perceber a imagem refletida do fascismo inerente no seu super-homem anti-fascista – Will Eisner, outro judeu quadrinista, deliberadamente vestiu Falcão Negro, seu herói dos Aliados, em uniformes modelados nas elegantes roupas com a cabeça da morte da Waffen-SS. Mas Joe foi talvez o primeiro a sentir a vergonha de glorificar, em nome da democracia e liberdade, a brutalidade vingativa de um homem muito forte. (…) Agora ocorria a Joe pensar se tudo o que eles haviam feito, desde o começo, não era ceder aos seus piores impulsos e fomentar a criação de uma nova geração de homens que veneravam a força e a dominação.”

O que isso diz sobre nós?

Capitão América e a Cruzada contra o Mal é um livro urgente, persuasivo e desconfortável. Mesmo assim, não pude afastar a impressão de que sua tese é um tanto convincente demais.

Jewett e Lawrence dizem que a febre dos heróis implica num culto a pessoas excepcionais, que estão acima das leis e não se integram ao mundo que salvam.

Como conciliar isso com a mensagem de empoderamento das histórias contemporâneas e o princípio, defendido por filmes, convenções, cosplayers e caridades, de que todos podemos ser heróis?

Heroes’ Alliance, grupo de cosplayers que visita crianças em hospitais infantis.

Ou o suposto nacionalismo de sua ideologia com o globalismo militado por tantos políticos e artistas mainstream? E que ganha, às vezes, contornos tão violentos quanto os dos zelotas de outrora?

Jewett e Lawrence publicaram seu livro em 2003, pensando nas consequências nefastas do contraterrorismo de George W. Bush. Foi o mesmo dilema que inspirou o célebre Guerra Civil da Marvel: a cilada 22 entre um governo tirânico e uma ameaça que ninguém sabia como enfrentar.

Seu objeto não são os quadrinhos em si, mas os desmandos da política americana – e suas similaridades com a cultura pop. Só que a cultura pop já não é mais a mesma, e sua mensagem, que já conta 15 anos, precisa de uma atualização.

O que nos resta daqui para a frente?

“Dois caminhos estão abertos para aqueles que gostariam de reformar a sociedade americana de hoje, ou aceitar sua missão de servir ao mundo. Há o caminho da violência redentora, que pode tomar a forma da grande revolução ou da cruzada. Este caminho promete despedaçar a injustiça com uma fúria virtuosa, punindo os malfeitores, emancipando os explorados e tornando o mundo seguro para a bondade. Mas também há o caminho do amor redentor. Sua promessa é menos definida, e seus resultados, mais imprevisíveis. Pois, quando o amor é exercitado, pessoas se tornam livres. Novos impulsos despertam que ninguém pode dominar em antecipação. Este, então, é o caminho dos audaciosos e generosos de espírito, aqueles que conseguem viver sem ídolos e encarar um futuro incerto sem medo.”

Jewett e Lawrence provavelmente apostavam na segunda opção. E, de fato, houve muito avanço. Não foram poucos os quadrinistas que reinterpretaram seus heróis, atentando às suas contradições.

Fora dos quadrinhos, o imaginário geek também conta com bons exemplos. Que uma personagem como Geralt de Rivia pôde nascer dos escombros do comunismo é prova de que o realismo profético tem voz na cena nerd.

Mas heróis zelotas – com ou sem capa – ainda existem, e a linguagem da violência, da fúria virtuosa contra os “do mal”, ainda persevera em quadrinhos, séries, filmes e tweets de criadores.

Num presente em que a coexistência é uma necessidade e os problemas não se resolvem mais com o porrete, esta retórica é tão problemática quanto é atrasada.

Sim, o futuro é incerto. Mas talvez, como dizem Jewett e Lawrence, seja essa a grande prova de nosso tempo. A capacidade de viver sem heróis, e sem deixar, tal qual Comandante Shepard, que o medo leve embora nossos princípios.

 

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“Dies Irae”: perguntas valem mais que certezas https://www.finisgeekis.com/2017/11/21/dies-irae-perguntas-valem-mais-que-certezas/ https://www.finisgeekis.com/2017/11/21/dies-irae-perguntas-valem-mais-que-certezas/#comments Tue, 21 Nov 2017 21:39:35 +0000 http://finisgeekis.com/?p=19794 Se Deus existir, ele terá de implorar pelo meu perdão.

A frase está gravada nas paredes de uma cela em Mauthausen, antigo campo de concentração nazista. Quando pensamos nos horrores do Holocausto, é fácil entender o porquê.

De fato, não é simples conciliar a existência de um Criador bondoso com todos os horrores que testemunhamos à nossa volta. Ou pensar que a vida tem um “sentido” quando parece apontar a uma vala comum.

Histórias que invertem nossa relação com o divino – colocando-o como uma “criatura” à imagem dos humanos – são um dos temas mais peculiares da ficção. Mesmo na cultura pop, elas podem ser vistas em todas as mídias, em níveis de seriedade que vão da crítica social (Deuses Americanos) à comédia pastelão (Noragami).

Dies Irae, criada pelos quadrinistas gaúchos do Tesla HQ, é a última tentativa de peitar o Criador. Que não perde, em ambição, a nenhuma das obras que a precedem.

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O Dia da Ira

A graphic novel se passa em um futuro próximo acometido por um desastre peculiar: deuses começam a chover do céu.

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Sem aviso ou explicação, faces conhecidas das principais mitologias despencam na Terra. As aparições são acompanhadas de episódios de histeria – alguns explicáveis, outros nem tanto.

Várias mulheres entram em transe e começam a dançar até a exaustão. Uma  violinista autista põe toda uma população em um frenesi mortal. Governos tentam fugir do planeta. Fanáticos religiosos perseguem o apocalipse.

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Dies Irae (em latim, “Dia de Ira”) é um dos nomes do Juízo Final. Também é um dos hinos que compõem as missas de réquiem – como o Réquiem de Mozart, que serve de “trilha sonora” a um de seus capítulos.

graphic novel de fato nos mostra julgamentos, embora não seja fácil determinar quem está sendo julgado por quem. Vemos deuses provocando desastres – ora voluntariamente, ora à revelia de suas vontades.

Contudo, também vemos mortais administrando sua própria variedade de “justiça” – contra si próprios e também contra o divino.

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A HQ começa com depoimentos dos próprios artistas, em que explicam sua missão de desafiar crenças e não se fiar a certezas prontas. É uma missão que executam bem demais e que peca, em alguns momentos, pela confusão.

São tantos questionamentos, símbolos e referências, acompanhados de textos tão densos e uma arte tão exuberante que transbordam das 104 páginas do quadrinho.

Uma HQ dessa complexidade se beneficiaria de um andamento mais cômodo – e uma janela mais ampla para nos introduzir os detalhes inquietantes de seu mundo. Histórias  menos ambiciosas – e muito menos interessantes – já se estenderam por gibis muito mais longos.

Que Dies Irae nos faça desejar mais é prova do quão criativa é sua proposta. Em tempos de gêneros engessados e gibis derivativos, a Tesla HQ trouxe uma obra que soa original, virtuosa e terrivelmente pertinente.

O fim das certezas

Seu roteiro nos mostra, com cinismo, como a humanidade perde seu caminho. É difícil ler a cacofonia de notícias, informes e memes que costuram seu enredo e não lembrar do retrato ácido da mídia de massa feita por Frank Miller em Cavaleiro das Trevas.

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Ou observar suas paisagens desoladas e não pensar em seu Ronin, com seu futuro igualmente distópico; igualmente povoado – à sua própria maneira – por deuses caídos.

Há, de fato, uma qualidade “retrô” em Dies Irae, a despeito do uso sofisticado de cores e da quadrinização elaborada.

A arte, assinada a seis mãos por Adan Marini, Thiago Danieli e Frank Tartarus, traz as linhas fortes e corpos esculpidos reminiscentes de heróis do fim da Era de Bronze. Ao mesmo tempo, não tem medo de fugir do figurativismo para algumas de suas cenas mais cerebrais.

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Se o tributo ao passado recente foi proposital, não sei dizer ao certo. Fato é que sua estética cai como uma luva ao roteiro de Tartarus e Rafael Rodrigues, que nos força a encarar questões nascidas, elas próprias, de outras épocas.

Nas páginas de Dies Irae, encontramos referências à teoria das cordas, ao efeito borboleta, e ao caos. O que estas ideias têm em comum é terem nascido de um mesmo “fim de século” marcado pelo fim das certezas – e o nascimento do “presente” como o conhecemos hoje.

Para as pessoas nos anos 1980, que perdiam o sono com a ameaça de um apocalipse nuclear, essas ideias caíram como um milagre. Afinal de contas, se a natureza é “incerta”, “incerto” também é o destino humano. Mesmo que todos os sinais à nossa volta apontem para o pior.

Para uma geração oprimida pela realidade, a ciência trouxe a desculpa que precisavam para acreditar que “tudo é possível”.  E enxergar, mesmo no caos, alguma espécie de sentido.

É a epifania de Dr. Manhattan em Watchmen, que o leva a recuperar sua fé na humanidade. Uma epifania que Dies Irae resgata ao presente, atormentado pelas suas próprias  incertezas, relativismos e “pós-verdades”.

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Será que estamos mais próximo de resolver esse dilema? Ou devemos aceitar, como diz a colorista Luciana Lain, que “não temos certeza de nada?”

Dies Irae traz uma resposta surpreendentemente otimista, que leitores de Philip Pullman reconhecerão de pronto. Dizer mais do que isto, infelizmente, seria estragar a magia.

Contudo, sua “mensagem” (se ela existe) não é advogada a ferro e fogo, por razões que a própria HQ, página a página, deixa óbvio.

Em tempos de moralidade binária, em que a “pertinência” de uma obra virou medida de proselitismo, os artistas da Tesla HQ nos lembram que a boa arte é a que faz perguntas, não a que entrega respostas prontas.

Seus painéis trazem poucas certezas – salvo uma. Se você for um fã de quadrinhos, este é um lançamento que não deve perder.

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Dies Irae foi lançada como uma minissérie digital entre 2014 e 2015 e publicada localmente no Rio Grande do Sul em 2016.

Hoje, a HQ está sendo distribuída nacionalmente por crowdfunding, por meio da plataforma Catarse.

Você pode obter seu exemplar clicando aqui.

 

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“Saint Alamo”: uma parábola da violência https://www.finisgeekis.com/2017/10/23/saint-alamo-uma-parabola-da-violencia/ https://www.finisgeekis.com/2017/10/23/saint-alamo-uma-parabola-da-violencia/#comments Mon, 23 Oct 2017 20:22:48 +0000 http://finisgeekis.com/?p=19410 Se me perguntassem há alguns anos o que eu jamais resenharia, quadrinhos de faroeste estariam bem alto na lista.

O western, de verdade, nunca me atraiu. Foi preciso a visão de um Kurosawa e o carisma de um Toshiro Mifune para que eu começasse a respeitá-lo no cinema. E o empurrão da Rockstar para que eu o aceitasse no mundo dos games.

Saint Alamo, que conheci graças ao maior dos acasos, me provocou o mesmo efeito nos quadrinhos. Produzida artesanalmente pelos brasileiros Jonathan Nunes e Rafael Conte, a HQ é uma das grandes surpresas de 2017.

Balas não sentem culpa

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A história acompanha Raymond Castle, um xerife com esqueletos no armário que protege a cidade fictícia de Saint Alamo. Na juventude, Castle serviu na gangue de Silas Dutcherbach, um ladrão, psicopata e ex-confederado que trata seus capangas e seus inimigos com a mesma crueldade.

Sabemos que Castle escapou da vida de criminoso e também que a fuga lhe custou um olho. Sabemos, porém, que “Dutch” ainda está vivo, e que o destino, na Fronteira, é uma eterna roleta russa.  Quando seu irmão e ex-companheiro de gangue lhe paga uma visita, Castle precisa confrontar seu pior pesadelo.

A narrativa é entrecortada por flashbacks que nos apresentam a vida de Castle em seus anos de fora-da-lei. Se não digo que o enredo acerta as notas de Red Dead Redemption é porque não preciso: com um antagonista chamado “Dutch”, recuso-me a acreditar que a referência não seja proposital.

A grande novidade da obra é evidente logo de cara. Suas personagens não são humanas, mas animais antropomórficos, repetidamente baleados, explodidos e mutilados com um sadismo que arrepiaria até um diretor de filme slasher.

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É uma crueldade que pende às vezes a uma histeria moral, quase kitsch em seu exagero. Se isso afogaria outras histórias, no roteiro de Jonathan Nunes ganha espaço para brilhar.

Sua jornada é tão clássica, sincera e estrangeira (com direito a título e nomes próprios em inglês) que dá a volta pela paródia e chega ao nível de fábula.

Com cenas que já vimos inúmeras vezes em outros lugares, Nunes constrói uma parábola da violência, destilando décadas de tiroteio, anti-heróis solitários e gore visceral em oitenta e poucas páginas.

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Não é óbvio o que levou os artistas a desenhar suas personagens como animais. Por um lado, a decisão provoca um contraste horripilante com a violência da história. Sobretudo pelo fato de muitas delas serem referências a personagens infantis como Ligeirinho e Coragem, o Cão Covarde. (Um apêndice didático – e desnecessário – traz a lista de easter eggs ao final do volume).

Por outro lado, o traço de Rafael Conte é tão limpo e expressivo que nos impressionaria em qualquer estilo. É prova de sua habilidade que as capas alternativas, feitas por artistas convidados, não chegam aos pés da sua composição original.

A escolha do preto e branco valoriza o que Saint Alamo traz de melhor. Não apenas a cor acrescentaria pouco ao seu mundo sombrio, como sua ausência reforça o esmero de Conte com o character design.

O destaque vai para Raymond Castle e seu contorno anguloso, tão arisco quanto sua personalidade. Mais ainda para a raposa Rhonda, com linhas da pelagem que flutuam, tal como a personagem, entre o perigoso, o sexy e o trágico.

 

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Numa mídia em que proliferam cópias de mestres japoneses, americanos e franco-belgas, a HQ é um colírio. Saint Alamo deliberadamente imita o estrangeiro e entrega, ainda assim, um quadrinho que parece fresco.

Um novo Texas no Brasil?

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Pode parecer estranho ver em um quadrinho brasileiro uma referência tão americana quanto a Batalha do Álamo. Ou um elenco de personagens com nomes anglófonos, que parecem saídos de um spaghetti western.

O estranhamento é menor se lembrarmos que a HQ nasceu de dois gaúchos: o estado, sem sombra de dúvida, que mais encarnou a experiência da Fronteira no Brasil.

Mas insistir no ponto seria lhe dar uma importância que não merece. Saint Alamo tem menos de O Tempo e o Vento que da ficção hardboiled – e suas releituras modernas, das mãos de criadores como Tarantino ou Frank Miller.

Nunes e Conte não estão preocupados com a “gênese de um povo”. Suas personagens têm rostos de ursos, gatos e coelhos, mas são todas, no fundo, lobos solitários: em guerra com seus passados, seus demônios e consigo mesmas.

A Fronteira que nunca terminou

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O western já foi o gênero mais influente da cultura pop. Por décadas a fio, dominou as telas de cinema e fechou cerco até sobre a “alta cultura”. Então seu domínio caiu de maduro, tal qual um pistoleiro crivado de balas.

Sua violência foi considerada excessiva; sua mensagem civilizatória, problemática; seu mundo, claustrofobicamente masculino.  Seus heróis individualistas foram sufocados por uma turba de punhos erguidos e discursos coletivos.

Ao menos esse foi o julgamento da geração do Civil Rights Movement, que dos anos 1970 em diante não pouparam esforços para condenar John Ford, Sergio Leone e John Wayne à lixeira do passado.

Mas o veredito pode ter sido apressado – e a sentença, mal-executada. O faroeste tem se reinventado no cinema (Os Oito Odiados, O Regresso), videogames (Red Dead Redemption, Hard West) e mesmo em neo-westerns (Breaking Bad, Logan) que atualizam suas mensagens às sensibilidades modernas.

Pode bem ser que tenhamos algo a resgatar da Fronteira. Um antídoto, seja ao escapismo alucinógeno dos super-heróis, seja ao coletivismo histérico que tem fraturado (literalmente) países.

Saint Alamo é parte desse resgate, cujas próximas edições eu aguardarei ansioso, entre poças de sangue e o cheiro de cordite.

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“Made in Abyss” e “Aurora nas Sombras”: dois olhares sobre a escuridão https://www.finisgeekis.com/2017/10/02/made-in-abyss-e-jolies-tenebres-dois-olhares-sobre-a-escuridao/ https://www.finisgeekis.com/2017/10/02/made-in-abyss-e-jolies-tenebres-dois-olhares-sobre-a-escuridao/#comments Mon, 02 Oct 2017 21:52:42 +0000 http://finisgeekis.com/?p=18794 (Aviso: contém SPOILERS para Made in Abyss)

A temporada de verão acabou, e temos um veredito. Made in Abyss, baseado no mangá de Tsukushi Akihito, se tornou um dos animes mais polêmicos, comentados – e idolatrados – dos últimos tempos.

Não é difícil entender a fama. E não falo só da  trilha primorosa do australiano Kevin Penkin, que acaba de se alçar ao pedestal de Yuki Kajiura, Yoko Kanno e Hiroyuki Sawano. Nem da falsa “vibe infantil”, com justaposição de traços cartunescos e gore suficiente para arrepiar o mais insensível dos otakus.

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Com um worldbuilding bem feito e temas tão chocantes quando curiosos, Made in Abyss uma série que desafia nossa coragem a cada episódio – e entrega sempre mais que o prometido.

Mesmo assim, a saga da exploradora Riko em busca de sua mãe, acompanhada pelo robô Reg, é um fábula difícil de explicar.

O que, afinal, é essa jornada ao fundo de um abismo misterioso? Uma meditação sobre o valor da vida? Uma advertência sobre a curiosidade humana? Uma metáfora para o amadurecimento? Uma pornografia da crueldade para fãs de 127 Horas?

Uma desculpa de 13 episódios para as tomadas mais deslumbrantes fora de um filme do Makoto Shinkai?

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Talvez um pouco de tudo, talvez nada disso. De minha parte, tendo a acreditar que certas obras, muitas vezes, esclarecem outras. Nesse caso em especial, não consigo tirar da cabeça outra história que li há alguns anos – e que até hoje me assombra.

Jolies Ténèbres

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Jolies Ténèbres (em francês, “Bela Escuridão”) é uma BD de Fabien Vehlmann e do casal Kerascoët que mostra por que a França ainda é a rainha dos quadrinhos.

Publicada no Brasil como Aurora nas Sombras, Sua trama começa com uma morte. Uma criança morre em um bosque. De seu corpo caem pequenas criaturas, tão confusas com o que está acontecendo quanto nós que as observamos de longe.

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Misto de Arietty e Moomin, Jolies Tenèbres acompanha esse pequenos seres enquanto tentam sobreviver no malvado mundo real. Porém, não é preciso ter visto Made in Abyss para entender que a história não tem nada de infantil.

A BD mistura estilos contrastantes. Enquanto que as criaturas têm traços cartunescos, a natureza que as cerca é desenhada com todas as cores. Mesmo aquelas que não gostaríamos de ver.

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O cadáver, logo percebemos, é um veículo para coisas piores. Na medida em que o corpo se decompõe, a sociedade dos pequeninos retrocede – literalmente – ao cão come cão.

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Alguns de seus quadros, como uma garota cujo braço incha após ser envenenada, parecem tirados diretos de Made in Abyss. Que seu mundo seja familiar, e não uma extravaganza fantástica, só o torna mais assustador.

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As semelhanças terminam por aí. De certa forma, Jolies Ténèbres é o oposto da fábula de Akihito.

Enquanto que Made in Abyss traz um mundo vibrante e detalhado, a BD é propositalmente vaga. Se a história de Akihito transborda de esperança (mesmo em seus momentos mais sombrios), a obra de Vehlmann e Kerascoët  afunda no cinismo, desespero e humor negro.

Made in Abyss é uma viagem ao abismo contada a partir da luz. Jolies Ténèbres¸como o próprio título já diz, fala de um mundo em que a escuridão impera.

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Mesmo assim – e talvez justamente por ser tão contrária – a HQ traz uma peça que complementa a odisseia de Riko e Reg. Uma chave para entender seu “abismo”, em toda sua escuridão.

A natureza do abismo

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O abismo, o anime nos conta, é como uma planta carnívora. Entrar nele é fácil. Quanto mais fundo penetramos, no entanto, mais difícil de sair.

Nas camadas mais altas, a “maldição da ascensão”, como é chamada, causa vômito e sangramentos. Para os que descem à base, no entanto, o preço é a própria humanidade.

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Na série, a “maldição” pode ser algo concreto, mas não é difícil vê-la como uma lição maior.

O abismo – seja ele qual for – muda as pessoas. Quem desce à escuridão está fadado a carregá-la consigo. Às vezes, para o resto de suas vidas.

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É um ponto que fica ainda mais claro em Jolies Ténèbres, embora seja contado de forma muito mais sutil. Cada uma de suas criaturas, logo percebemos, é um aspecto da garota que morreu.

Uma delas, a independente, parte como uma amazona para trilhar seu próprio caminho. Outra, a medrosa, se recusa a sair do cadáver: alimenta-se de vermes e de sua própria carne podre.

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Não demora para que percebamos que algumas índoles são mais fortes que outras. Tymothée, a insegura, logo é assassinada. E Zelie, a manipuladora, veste – literalmente – o manto de Senhora das Moscas.

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Aurora, a protagonista, é uma menina que acredita em fazer o bem. Porém,  na medida em que as coisas avançam, mesmo ela é obrigada a se entregar aos seus demônios.

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É uma lição muito antiga, ensinada desde João e Maria, a obra-prima do terror infantil. Como dizem os autores:

Nossa heroína é uma espécie de princesa de conto de fadas que se vê confrontada pela realidade: ela é obrigada a fazer as escolhas difíceis. Isto nos permite invocar a aprendizagem da crueldade, a obrigação de perder sua inocência para poder sobreviver. Para imaginar tudo isso, nós nos lembrados da nossa forma de nos comportar perante os outros quando éramos crianças.

Aurora desceu ao fundo do abismo. E, como os apitos brancos de Made in Abyss, está claro que sua viagem é de via única.

Quando a encontramos vestindo a carcaça de um rato que matou, a única sobrevivente do grupo original, percebemos que ela nunca mais será a “princesa” das primeiras páginas.

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Aurora amadurece. Mas seu rito de passagem não é algo genérico, como a morte ou a puberdade.

É uma transição bastante específica, dolorosa e cruel. Que muitos, inebriados pela ficção de um mundo perfeito, vivem e morrem sem conhecer.

Olhe muito tempo para o abismo, dizia Nietzsche, e o abismo olhará de volta para você. O horror não é só uma experiência. É algo que nos morde e não larga. Um fantasma que, quando despertado, nos assombrará até o final dos tempos.

Isso vale para grandes traumas: vítimas de PTSD, idealistas amargurados. Mas também vale, como Jolie Ténèbres mostra, para as pequenas crueldades.

Experimentamos o abismo quando saímos da caverna. Quando entendemos que estamos à mercê da natureza em um universo indiferente.

A maldição da ascensão pode tirar nossa humanidade. Mas ela começa com uma simples descoberta:

O mundo é um lugar escuro. E é perigoso caminhar de olhos fechados.

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O Japão de Frank Miller https://www.finisgeekis.com/2016/03/28/o-japao-de-frank-miller/ https://www.finisgeekis.com/2016/03/28/o-japao-de-frank-miller/#comments Mon, 28 Mar 2016 22:56:28 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3479

Há muito a se elogiar na segunda temporada de Demolidor, da Netflix. As cenas de luta são um espetáculo de coreografia. O tom consegue ser sombrio sem perder o charme. Elektra e o Justiceiro não são apenas excelentes coadjuvantes, mas estão fidelíssimos às suas raízes nas HQs.

Em adição a tudo isso, fãs de Frank Miller, a lenda-viva dos quadrinhos responsável por Sin City, O Cavaleiro das Trevas e 300, devem ter notado outra coisa. Tal como Batman v Superman, que chegou aos cinemas semana passada, Demolidor 2 é a adaptação de uma obra sua.

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A trajetória do Demolidor sob Miller teve muitos méritos. Porém, se houve um diferencial que a separou da maioria, foi o seu tributo ao universo japonês. Mais precisamente, o mundo obscuro dos ninjas, espadas e artes marciais.

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A inspiração não é uma coincidência. Muito embora Frank Miller seja um dos maiores ícones dos quadrinhos ocidentais, ele foi também um dos grandes divulgadores dos mangás no ocidente.

Em alguns dos melhores momentos de sua carreira, Miller cruzou caminho com shurikens, katanas e kimonos. O resultado, como se pode ver abaixo, foi uma reviravolta completa no jeito como HQs eram feitas.

Reinventando a Marvel: Wolverine e Demolidor

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Frank Miller em 1982

É conveniente que a última obra de Frank Miller a voltar aos holofotes tenha sido o Demolidor. Pois foi justamente trabalhando com o Homem Sem Medo que Miller, então um rapaz de 22 anos, deu início à sua ascensão meteórica nos quadrinhos.

O futuro criador de Sin City usou seu talento a serviço de Matt Murdock de 1979 a 1983, naquele que é considerado um dos arcos definidores da personagem. Se antes o herói não passava de uma cópia do Homem-Aranha (tão descarada que nem a capa escondia a semelhança), nas suas mãos (e na de seus colegas) ele se transformou em um dos nomes mais particulares da Casa das Ideias.

O diferencial, obviamente, foi o Japão. De terror dos assaltantes na Cozinha do Inferno, o Demolidor virou aprendiz de um velho artista marcial, amante de uma ex-ninja e rival do Tentáculo, uma ordem de assassinos milenares.

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A novidade não passou batida. Em 1982, graças ao sucesso da HQ, Miller foi chamado para trabalhar com o roteirista Chris Claremont na primeira história solo do Wolverine. O baixinho canadense que começara como um coadjuvante na revista do Hulk seguiu caminho para se tornar um dos heróis mais populares da Marvel.

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Tudo graças ao Japão. Logan aprendeu japonês, viajou para a terra dos samurais, desafiou os ninjas do Tentáculo e até se casou.

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A influência da linguagem visual dos mangás já pode ser sentida nas longas cenas de luta, em que Claremont deixa o diálogo no segundo plano, e os golpes falam por si só.

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Miller teve boas referências. Pouco antes de desenhar Eu, Wolverine (como o arco foi conhecido aqui no Brasil), ele havia descoberto o clássico absoluto dos mangás de samurai.

Kozure Ookami

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Miller entrou em contato com a obra-prima de Koike e Kojima em 1980, antes mesmo de ter sido publicada nos EUA. O fato de não saber japonês era apenas um detalhe. A atmosfera violenta e cerebral da saga do ronin Ittou Ogami falava por si só.

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Miller estava disposto a fazer o mangá chegar até as pessoas. Ele desenhou as capas e escreveu prefácios para a edição americana quando a obra foi finalmente lançada, em 1987.

Leitores brasileiros não precisam de mim para saber disso. Afinal de contas, as ilustrações de Miller foram incluídas na bela edição lançada no Brasil anos atrás.

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É importante se lembrar de que, nos anos 1980, o anime e o mangá ainda não tinha decolado com toda a força nos EUA. Miller não estava apenas “seguindo moda”, como tantos quadrinistas ocidentais nos últimos anos. Ele estava criando seu estilo artístico em cima de referências que uma boa parte dos leitores nunca tinha visto.

O próprio Frank Miller, anos depois, admitiu que tentara construir uma “ponte” entre os dois estilos:

“Eu percebi quando comecei Sin City que eu achava quadrinhos americanos muito palavrosos, constipados, e os japoneses muito vazios. Então eu tentava fazer um híbrido.”

A trajetória do Lobo Solitário nas praias americanas é prova disso. O mangá acabou interrompido em 1991, quando sua editora entrou em falência. Foi apenas em 2000, graças à Dark Horse, que a série foi finalmente lançada por completo.

Se a situação na virada do milênio foi diferente da de 1980, os otakus americanos têm muito a agradecer ao próprio Miller. Quatro anos antes, ele publicou uma das maiores homenagens aos dois mestres japoneses.

Ronin

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Embora Frank Miller tenha feito sua fama na Marvel, com Demolidor e Wolverine, foi na DC que produziu seu maior tributo à cultura japonesa.

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Ronin é ao mesmo tempo uma de suas obras mais celebradas e menos conhecidas. No Brasil, a Editora Abril só se arriscou a trazê-la muitos anos depois, de carona no sucesso de O Cavaleiro das Trevas.

Não é difícil entender por quê. No papel, a graphic novel era uma receita para o desastre. Miller assinou tanto o roteiro e a arte e teve carta branca para fazer o que quisesse (segundo um ex-editor da Marvel, a liberdade artística foi o motivo que o levou a escolher a DC sobre a Casa das Ideias). A história se baseava em um universo próprio, sem personagens conhecidas para atrair os fãs. Como disse Marcelo Alencar, que escreveu o prefácio da edição brasileira, a HQ era um verdadeiro laboratório de testes.

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A história acompanha um samurai sem mestre em sua jornada para derrotar um demônio. Graças ao poder de uma espada mágica, eles se vêem transportados para uma Nova York pós-apocalíptica, onde preparam seu duelo final em meio a tecnologia avançada e às ruínas da civilização.

O resultado é uma mistura de Lobo Solitário com Ex Machina. Monstros do folclore japonês se misturam a andróides, armas laser e uma inteligência artificial rebelada.

ronin ex machina

ronin akuma

As referências a Lobo Solitário são tão explícitas que incluem duas personagens chamadas Koike e Kojima, em referência aos autores do mangá clássico. Isto em 1983, quatro anos antes da HQ ser lançada nos EUA pela primeira vez.

ronin kojima

O homem moderno é um ronin

Olhando toda a sua carreira, não parece mero acaso que o  “projeto autoral” do gigante dos super-heróis tenha sido inspirado no Japão. Como o próprio Miller disse certa vez em uma entrevista:

 “O aspecto do samurai que mais me intriga é o ronin, o samurai sem mestre, o guerreiro caído… Todo esse projeto vem da minha sensação de que nós, homens modernos, somos ronin. Nós estamos meio que soltos. Eu não tenho a sensação, nas pessoas que eu conheço, nas pessoas que eu vejo na rua, de que elas têm alguma coisa maior em que acreditar. Patriotismo, religião, seja lá o que for – tudo isso perdeu o sentido para nós.”

Para quem é fã do estilo mais sério e sombrio dos quadrinhos dos anos 1980, esse depoimento não é nenhuma surpresa. Como eu disse semana passada, o anti-herói dos quadrinhos surgiu justamente em uma geração que se achava perdida, sem fé em ideais.

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Se não fosse a decepção com a política, o cinismo com as “grandes verdades” e todas as dúvidas da vida contemporânea, nós provavelmente não teríamos o Batman de O Retorno do Cavaleiro das Trevas, o Marv de Sin City nem toda a atmosfera pesada que até hoje agrada tantos fãs de quadrinhos.

Frank Miller viu no ronin japonês uma nobreza – ou, pelo menos, uma sinceridade – que parecia faltar nos modelos ocidentais. De um pária empobrecido buscando se integrar, o samurai sem mestre virou para ele uma espécie de idealista, um sujeito que andava no fio da navalha entre o crime e o “sistema” por escolha própria. Nas palavras do comissário  Gordon, “um herói que Gotham merece”.

Ronin não foi o primeiro sinal dessa febre. Desde pelo menos os anos 1960 diretores de faroeste viram nos samurais sem mestre um paralelo ao cowboy americano: guerreiros individualistas, que fazem suas próprias regras e vivem com o suor de seus esforços.

Não é à toa que muitos dos maiores clássicos do gênero são, na verdade, remakes de longas japoneses. Por um Punhado de Dólares é uma adaptação de Yojimbo. Sete Homens e um Destino (que ganhará uma nova versão esse ano) é uma refilmagem de Os Sete SamuraisNão é uma coincidência que pelo menos um comentarista tenha comparado o Wolverine de Frank Miller a Clint Eastwood.

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A semelhança é inegável

Esse fascínio americano pelos samurais é uma daquelas coisas que parece normal até pensarmos nela com mais calma. Afinal de contas, é difícil imaginar uma figura mais incompatível com a mentalidade japonesa do que o cowboy.

Se cowboys são símbolo do individualismo, samurais são o ícone do serviço – que está até na origem do nome, o verbo saburau. Se cowboys são conhecidos pela falta de recato, samurais são a referência em sofisticação. Se cowboys às vezes trapaceiam para vencer, samurais preferem morrer com honra.

Donos do próprio destino

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A culpa, nesse caso, pode ser de Akira Kurosawa. Muito embora o diretor de Yojimbo e Os Sete Samurais seja um marco do cinema japonês, ele já foi considerado o diretor “mais ocidental” do Japão, a ponto de lhe render críticas de conterrâneos.

Segundo  Roger Ebert, Kurosawa realmente tinha um pé atrás com alguns elementos da mentalidade japonesa. Em especial, a ideia de sacrifício à autoridade, de papeis sociais imutáveis e de submissão do indivíduo à comunidade.

Para Ebert, a partir de Ikiru e depois com força total em seus filmes de samurai, Kurosawa tentou imaginar um mundo em que as pessoas fossem capazes de decidir seus próprios destinos.

Enquanto que Miller e outros ocidentais comentavam sobre a falta de rumo de sua geração, Kurosawa, que vivera em uma cultura com “rumos demais”, pareceria desejar, ele mesmo, uma vida sem mestre.

De todas as HQs “japonesas”  de Miller, a que melhor captura esse conflito é sem dúvida Eu, Wolverine. Na história, Logan descobre que o amor de sua vida, a japonesa Mariko Yoshida, foi casada contra a vontade com um gângster que a humilha e espanca.

Mariko pede que ele não se envolva, pois é assim que as coisas têm de ser. Ela deve obediência ao pai, ao clã, às tradições de seu país. O que ela “quer” não é importante.

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Wolverine (aqui, praticamente uma versão peluda e mortífera da Princesa Kaguya) se recusa a deixar barato. O que se segue não é apenas uma luta para proteger sua amada, mas uma batalha contra o sistema desumano de obrigações a que todos estão submetidos.

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Poucas coisas são mais fascinantes no entretenimento do que o fato de que um mesmo livro, filme ou gibi pode ser lido de várias maneiras diferentes. Eu já comentei no passado como mesmo obras mais simples podem virar símbolos das coisas mais díspares, dependendo do público pelo qual circulam.

O Japão de Frank Miller é um grande exemplo disso. No fundo, de “oriental” ele tem muito pouco. Ele revela bastante, no entanto, sobre o seu próprio criador. Tal como Wolverine, Miller parece acreditar que falta alguma coisa em seu mundo, e que a Terra do Sol Nascente pode ser a chave para encontrá-la. Ou, quem sabe, para reencontrar a si mesmo.

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De onde vieram os anti-heróis dos quadrinhos? https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/ https://www.finisgeekis.com/2016/03/21/de-onde-vieram-os-anti-herois-dos-quadrinhos/#comments Mon, 21 Mar 2016 23:15:41 +0000 http://finisgeekis.com/?p=3083

Entre a nova (e violenta) adaptação de Demolidor, os ecos de Frank Miller em Batman vs. Superman, o status de “lenda cult” de Christopher Nolan e a vinda da Guerra Civil para os cinemas, tudo aponta para a mesma coisa: o anti-herói está na moda. E pretende ficar.

Por si só, isso não é uma surpresa. Seja na literatura, nos games ou nas séries de TV, o velho confronto do “bem” versus o “mal” parece ter sido substituído por algo mais sofisticado – e muito mais sanguinolento.

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Roteiristas, quadrinistas e desenvolvedores descobriram (como John Milton já havia feito muito tempo atrás) que personagens com defeitos e personalidades complexas são muito mais cativantes. Afinal de contas, ninguém é perfeito. E nada enriquece mais uma obra de arte do que heróis verossímeis.

Mesmo assim, seria um erro pensar que esses protagonistas tortos, interessantes e (pasmem) carismáticos simplesmente caíram do céu. Nos quadrinhos  americanos, em especial, eles foram trazidos por uma geração específica, tumultuada e muitíssimo criativa.

Seguem, abaixo, três das principais “mães” dos anti-heróis das HQs.

1- A decepção com a política

A coisa que não podemos esquecer sobre quadrinhos de super-heróis é que sua popularidade veio nos anos 1940, a década da Segunda Guerra Mundial, do ufanismo e da maior radicalização política já vista na história.

Para além de uma luta do “bem” contra o “mal”, a mensagem desses quadrinhos era a de que as coisas se resolviam dentro do sistema. Não era apenas o bom-mocismo que estava em jogo, mas todo um projeto de governo, sociedade e bons costumes.

Super-heróis até podiam ser cruéis e implacáveis, desde que obedecendo às ordens “de cima” ou, no mínimo, atendendo ao espírito de seu tempo.

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Ninguém tinha pena do Tojo

Se hoje esses quadrinhos nos parecem estranhos (quando não grotescos), a mensagem que passavam era extremamente popular. Diante da ameaça da guerra total, heróis que colocavam ditadores no seu lugar, colaboravam com a polícia e protegiam crianças era o que todos queriam ver.

A partir dos anos 1970, isso deixou de ser verdade.

Com o conflito no Vietnã, os americanos entenderam que a guerra nem sempre é para o “bem”, e que o combate é bem menos glorioso quando se está do lado perdedor. Com a Crise de Reféns no Irã e o Caso Watergate, o governo americano mostrou que podia errar e ser corrupto. A Crise do Petróleo jogou a economia para baixo, e a Guerra Fria trouxe o medo de um holocausto nuclear. Como confessou Frank Miller, “o mundo estava ficando louco”.

Desconfiadas da autoridade, as pessoas buscaram seus herois em outros lugares. Em Watchmen, Rorschach se recusa a abrir mão de seu código de conduta, mesmo que isso traga a promessa de paz mundial. Em O Retorno do Cavaleiro das Trevas, Batman prefere se tornar um criminoso a virar um novo Superman, um herói “do partido” que só luta as batalhas autorizadas pelo presidente.

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Porém, a mudança mais impressionante foi a do maior ícone do bom-mocismo patriótico: o Capitão América. “Ressuscitado” em 1964, Steve Rogers se sente mais e mais decepcionado com os rumos da política. Em 1974, ele  passa a combater o crime como o Nômade, um herói, como o nome já diz, sem pátria.

Seu momento definidor veio também das mãos de Frank Miller. Em Daredevil: Born Again, ele deixa claro que os Estados Unidos que defende são uma ideia, não um governo.

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De campeões do sistema, os super-heróis viraram outsiders. O herói não é mais um role model para servir de exemplo aos jovens. Agora, ele segue o seu próprio caminho, apontando a hipocrisia nos outros e mostrando como a prática do “bem” passa longe de seu ideal.

É por isso que, em sua primeira história pós-11/9, o Capitão América não esmurra Bin Laden como antes fizera com Hitler. Em vez disso, ele visita Dresden, cidade alemã que foi obliterada por bombardeios aliados na Segunda Guerra. Longe de ser um fanático patriota, ele se lembra de todo o sangue que já foi derramado em nome da “justiça”.

É por isso que na Guerra Civil – uma alegoria do Patriot Act, lei americana que reduziu a proteção constitucional de civis em nome da luta contra o terrorismo – Steve Rogers se posiciona contra a ideologia de que a segurança é preferível à liberdade.

E é por isso que, no filme Soldado Invernalele se rebela contra a tentativa da SHIELD de se tornar uma “polícia global”. No longa, tudo é obra da Hydra. Na vida real, é preciso bem menos. Basta olhar para o escândalo de espionagem da NSA, cujos alvos incluíram até a Presidência brasileira.

Novas ideias, no entanto, demandam novos públicos. E para conquistar novos públicos é preciso novas formas de se vender quadrinhos. O que nos leva à segunda “mãe” dos anti-heróis

 2- O surgimento das gibiterias

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Como quem já se aventurou pela arte sabe muito bem, a distribuição é a alma de qualquer obra de sucesso.

Quando os quadrinhos de superheróis surgiram nos anos 1930, ninguém pensava em ganhar o prêmio Pullitzer ou em escrever o mesmo personagem por 70 anos. Os gibis eram vendidos em qualquer lugar por onde meninos perambulassem: bancas de jornal, lojas de brinquedo, farmácias e até docerias.

Como não havia garantia de que a criança voltaria a comprar o mesmo título, a ideia era prezar a quantidade sobre a qualidade. Cada HQ tinha um começo, meio e fim e eram feitas para o maior público possível, sem continuidade nem, muitas vezes, coerência. Para chamar a atenção, não era raro uma editora publicar histórias estapafúrdias. Ou o que era pior: histórias estapafúrdias repetidas.

superman dragon

superman jimmy olsen

Com o passar do tempo, esse modelo perdeu popularidade. Com o envelhecimento do público alvo, o fim dos vilões óbvios da Segunda Guerra e a pressão de moralistas (vide o próximo tópico), o número de vendas mensais caiu de 59,8 milhões em 1952 para 18,5 milhões em 1979.

Para o hobby não morrer, alguma coisa precisava mudar. A volta por cima veio com Phil Seuling, um fã de quadrinhos e criador da Comic Art Convention de Nova York. Seuling desenvolveu um sistema de distribuição baseado em lojas especializadas, dirigidas ao fã. Assim, nasciam as primeiras gibiterias.

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Austin Books & Comics, no ramo desde 1977

Para os envolvidos, esse novo modelo (chamado de mercado direto) era muito mais interessante. Antes, gibis não vendidos eram devolvidos para os fornecedores, o que forçava as lojas a calcular bem a quantidade de HQs que achavam que venderiam (e, obviamente, não adquirir obras mais controversas). Na gibiteria, pelo contrário, números antigos simplesmente entravam para o catálogo.

Com menos risco, as editoras passaram a apostar em títulos mais trangressores. Não só isso, como produtores independentes finalmente conseguiram uma chance de entrar no mercado. O resultado foi um boom de histórias inovadoras e selos independentes capazes de rivalizar com a Marvel e DC.

Ao mesmo tempo, as gibiterias criaram uma “contracultura” dos quadrinhos, oferecendo espaço para fãs confraternizarem, montarem coleções e acompanharem artistas e personagens específicos. Pela primeira vez, a base do que se tornaria a “cena nerd” começou a ganhar força.

A capacidade de se enturmar com outros fãs e ficar “próximo” dos autores se mostraria fundamental para a sobrevivência do hobby. Isto porque, nessa mesma época, os quadrinhos se tornaram o campo de batalha de uma verdadeira guerra cultural.

 

1- A necessidade de chocar

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Quem vê a truculência do Rorschach em Watchmen ou a lista de baixas do Justiceiro já percebe que os anti-heróis não estão de brincadeira. Muito menos os seus autores.

Se essas HQs parecem às vezes desnecessariamente cruéis, é porque a intenção foi de fato chocar. E, se uma geração inteira de artistas sentiu a necessidade de chacoalhar o público, é porque eles tinham um inimigo em comum.

Quando os quadrinhos de super-herói surgiram nos EUA, eles foram imediatamente alvo da perseguição de moralistas. A Igreja, os políticos, intelectuais e até médicos criaram a narrativa de que histórias em quadrinhos estimulavam a violência, atentavam contra a moral e desvirtuavam as crianças.

Nos casos mais extremos, entidades justiceiras organizaram mutirões para remover gibis do comércio e queimá-los em fogueiras.

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Para os quadrinistas, a grande batalha foi “perdida” em 1954, com a publicação de A Sedução dos Inocentes, do psiquiatra Fredric Wertham. O livro dava um roupagem científica para a tese de que HQs eram uma influência ruim no desenvolvimento de crianças e se tornou a bíblia dos que buscavam proibi-las.

As evidências de Wertham eram completamente furadas, mas isso era irrelevante. Nos anos 1950, a delinquência juvenil se tornou um pânico moral. A Sedução dos Inocentes dizia aquilo que as pessoas queriam ouvir. Assim, se tornou uma sensação.

A consequência direta da repercussão foi a promulgação do Comics Code Authority, um código de conduta destinado a regular o conteúdo dos quadrinhos. A iniciativa foi obra da Comics Magazines Association of America (CMAA), um grupo de figurões da indústria que acreditou que uma auto-regulação mostraria a boa vontade do profissionais em aceitar as “críticas”. A alternativa seria uma censura oficial, o que enterraria as HQs de vez.

Num argumento ainda muito comum entre moralistas, o CCA dizia que os artistas tinham uma “responsabilidade” para a “cena cultural americana” e deviam “fazer uma contribuição positiva para a vida contemporânea”.

Approved_by_the_Comics_Code_AuthorityNa prática, isso significava “purificar” quadrinhos de tudo o que fosse considerado ofensivo, perigoso ou de mau gosto. Estava banido o uso das palavras “terror” ou “horror” (Parte B, 1), violência excessiva (Parte B, 3), apologia ao crime (Parte A, 4 e 5), excesso de gírias (Parte C, 3), nudez e sensualidade (Costume, 1 a 4) e mesmo incentivo ao divórcio (Marriage and sex, 1).

Ninguém era obrigado a usar o selo, mas distribuidores se recusavam a vender HQs que não o tinham. Depois de meses de perseguição (e inclusive uma audiência pública no senado), ninguém queria ser visto como um defensor da delinquência juvenil.

Para os artistas, isso não foi apenas um “mundo ficando chato” : foi um desastre que por pouco não afundou toda a indústria de quadrinhos. Frank Miller, um dos “pais” indisputáveis dos anti-heróis, nos diz isso com todas as letras no prefácio de Batman: O Cavaleiro das Trevas:

Não vale a pena citar o nome daquele psiquiatra lunático ou de seu livro absolutamente desprezível. Há muito o mundo se esqueceu dos dois.

No pequeno universo dos quadrinhos, entretanto, aquele lixo de livro causou tanto estrago quanto um ciclope. Ou Galactus. As vendas caíram mais e mais. Por algum tempo, os artistas de HQs sequer revelavam sua profissão. Não em companhia de pessoas cultas.

Deus sabe que não abordávamos temas políticos.

Mas nós apenas parecíamos irrelevantes. Apenas parecíamos mortos.

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Foi justamente o desejo de não ser irrelevante que motivou Miller e outros criadores (como Robert Crumb, Richard Corben e Neal Adams) a pisar nos calos. A partir dos anos 1970, com a popularização das convenções e o mercado direto, a cena de quadrinhos underground finalmente mostrou as suas garras.

Autores polêmicos agora sabiam que havia uma maneira de seus trabalhos chegarem aos fãs, com ou sem o selo de aprovação. Não demorou para as grandes editoras peitarem a CMAA, chegando, em casos extremos, a publicar gibis mesmo sem o aval do CCA.

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Amazing Spider Man #96, que teve o selo negado por mostrar Harry Osborne em crise de abstinência.

 

A consequência foi uma geração de heróis (e vilões) complexos, inclementes e repletos de defeitos. O Justiceiro e o Motoqueiro Fantasma deram as caras pela primeira vez. O Homem de Ferro virou um alcóolatra. E o Batman se tornou o líder de uma gangue sanguinária, fazendo com as próprias mãos a justiça que faltava ao governo.

Os anti-heróis dos anos 1970 e 1980 não desafiavam só as normas de seus mundos fictícios. Eles eram, também, símbolo do desafio de seus próprios criadores, lutando para que as HQs tivessem o mesmo tratamento de filmes ou livros.

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Esses artistas nunca deixaram de militar pela sua liberdade criativa. Em 1987, Alan Moore deixou a DC após a editora tentar implementar um sistema de classificação etária. Em 1997, Frank Miller, que nunca foi exemplo de sutileza, escreveu Tales to Offend.

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O criador de Elektra não tem nenhum remorso pela postura “in your face”. Como ele disse em um depoimento, “tudo o que se colocar entre meu pincel e minha mesa de desenho é meu inimigo”.

Os anti-heróis nos dias de hoje

É curioso, mas nem um pouco surpreendente, que os anti-heróis façam tanto sucesso nos dias atuais. Em muitas aspectos, nossa geração tem várias coisas em comum com o universo dos anos 1970 e 1980 de onde eles surgiram.

Tal como há 30 anos, nossa época é marcada por um enorme niilismo político. De protestos nas ruas ao sucesso de candidatos implausíveis (veja apenas Trump nos EUA) há uma sensação generalizada de que o jogo está viciado, e que a resposta se encontra em outro lugar.

Tal como nos tempos de Phil Seuling, temos a nosso dispor uma imensidade de formas alternativas de produção e distribuição de quadrinhos: de serviços como o Comixology ao cenário do crowdfunding, da cena efervescente das fanzines aos webcomics. Os quadrinhos nunca foram tão diversos e acessíveis a tantas pessoas (leitores e criadores).

Tal como na época do CCA, pânicos morais continuam estourando na cena nerd, e a ideologia de que artistas têm uma “responsabilidade social” de produzir obras de bom gosto parece ter renascido das cinzas. O site da CBLDF, uma ONG dedicada à proteção da liberdade de expressão de quadrinistas, contém uma lista de obras que têm sido atacadas por moralistas nos últimos anos. Os títulos são surpreendentemente variados, e incluem desde Dragonball até Persépolis.

Qual será o futuro do nosso novo “culto ao anti-herói”, só o tempo nos dirá. Uma coisa, no entanto, podemos afirmar com certeza: se as nossas turbulências trouxerem novos gigantes do calibre de Miller, Moore, Crumb e Gaiman, estamos em boas mãos.

 

 

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O jogo da vida https://www.finisgeekis.com/2015/04/27/o-jogo-da-vida/ https://www.finisgeekis.com/2015/04/27/o-jogo-da-vida/#respond Mon, 27 Apr 2015 18:53:06 +0000 http://finisgeekis.com/?p=193 No mundo pós-Gabe Newell em que vivemos, a cultura geek já se comporta como o entretenimento mainstream.  Às vezes, os destaques nos chegam sem que façamos nada (quem sobreviveu à semana passada sem falar dos Vingadores que atire a primeira pedra). Outras vezes, no entanto, somos surpreendidos por fontes das mais obscuras. É o caso de Tower of God, manhwa (quadrinho coreano) de Lee Jong-hui, ou SIU.

Quem, como eu, perdeu o lançamento da série em 2010 está perdoado. A obra é um line webtoon, formato de quadrinho feito para ser visto em browser, e tem sido distribuído gratuitamente desde então. Se a inovação impressiona aos olhos cansados do leitor acostumado ao papel jornal dos mangás e à visualização horrenda das scanlations, a obra não deixa de pertencer ao nicho que recebe atenção reduzida dos principais canais de  divulgação.

A trama segue Bam, um garoto que entra inadvertidamente em uma torre misteriosa à procura de sua mentora, Rachel. Os problemas o encontram logo de cara. Ele é um irregular, indivíduo cuja presença não é bem-vinda no edifício. Para encontrar sua amiga, é preciso que circule na torre. Para circular, precisa subir. Para que suba, precisa provar o seu valor em testes cada vez mais engenhosos. O leitor que busque mais esclarecimento ficará desapontado. Quase tudo, da origem da torre aos seus habitantes, passando pela própria natureza do mundo que a circunda – se algo parecido com um “mundo” de fato existe em primeiro lugar – é deixado a cargo da imaginação. O que se segue é um espetáculo de estratégia capaz de trazer lágrimas aos olhos de qualquer enxadrista. Capítulo a capítulo Bam, acompanhado por uma legião de personagens exóticos, participa de desafios que exigem de lábia e disciplina o mesmo que de força e inteligência.

Círculos Mágicos

“Nenhum ceticismo é possível no que concerne às regras de um jogo, pois o princípio que as subscreve é uma verdade inabalável.” A frase é de Paul Valéry, citada pelo “pai” da ludologia, Johan Huizinga, e soará familiar a todos que já enfrentaram sua cota de desafios. Tal como a torre do manhwa de SIU, todo jogo é um mundo à parte, com suas próprias leis e critérios de verdade. Pela breve existência de uma partida, suas regras são elevadas a códigos inquebráveis. Tentativas de violá-las – por trapaceiros, cheaters ou favorecidos de toda espécie – são vistas como crimes. Daí o receio em relação a Bam. Como estrangeiro à torre, ele não está preso às suas regras. Suas ações são regidas por outras lógicas; seus limites, impostos por outras entidades. Irregulares têm o poder de causar o mais aterrador cenário de caos a um jogo: a chance de ser invadido pelo “mundo real”.

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É curioso que uma atividade cultural com tanta ênfase no cumprimento de regras tenha sido associada à malandragem.  Dizer que algo é “apenas um jogo” é uma expressão recorrente para atacar sua relevância, e zombar de jogadores por levarem a sério seus hobbies é um dos argumentos de força mais recorrentes da mídia atual. Este valor negativo (na melhor das hipóteses, ambíguo) é a norma na ficção. Na recente trilogia Dragon Age, para não citar um exemplo muito antigo, “O Jogo” é o ritual de etiqueta versaillesco que rege a corte orlesiana, um baile de máscaras em escala nacional no qual reputações são tanto alvos quanto armas de guerras. O princípio é claro. Um conflito resolvido por uma atividade lúdica é uma adaga a menos a se fincar nas costas de um inimigo. Uma vitória política numa festa ou parlamento é um exército a menos a se enviar ao front e litros de sangue a menos a sujar as ruas. Jogos são virtuais, e esta virtualidade os faz incrivelmente subversivos, em especial para aqueles que gostariam de exercer seu poder sobre os outros.

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Como gamers e esportistas já sabem, o jogo é o maior dos equalizadores. Não importa quem alguém seja antes de pisar entre as linhas demarcadas. Rei ou escravo, famoso ou desconhecido, o indivíduo será julgado apenas pela sua perícia e domínio das regras. Não se trata de um ambiente “legal” ou “seguro”. Não se trata de um embate “justo”; a sorte, afinal, não apenas tem seu papel nos jogos, como está no cerne da atividade. Mas é um ambiente conhecido, previsível e irremediavelmente imparcial, no qual o mais “fraco” pode sempre superar o mais “forte” e a criatividade é a alma do negócio. Khun, aliado de Bam, não é o mais exímio dos guerreiros, mas compensa as fraquezas com uma inteligência prodigiosa e uma capacidade ímpar de pensar fora da caixa. A força de Khun não está em seus braços, mas em sua facilidade de tomar o que tem em mãos e fazer disso o seu melhor.

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Daí a hostilidade de jogadores a todos aqueles que buscam trazer o seu “Eu” de fora ao jogo. O que está no fio da navalha não é um “mimimi” sobre diversão, mas a própria  sobrevivência do ambiente. Jogos excluem detalhes e diluem a complexidade porque, no fundo, não devem conter nada. Subverter as regras em um exercício de autoafirmação, ou – pior  ainda – em um palanque para valores específicos anuncia a morte do meio. Sem jogo não há jogadores. Enquanto que para alguns esse seria um futuro feliz, para outros é um desenlace inaceitável.

Nisso, o minimalismo de Tower of God é uma decisão acertadíssima. A aventura de Bam nos apresenta cenários e criaturas das mais diversas, mas nada – ou muito pouco – é abordado diretamente. O que jaz no topo da torre não é mais importante do que o fato de que a torre provavelmente tem um topo. O mundo exterior é irrelevante senão como oposto necessário para se dizer que a torre é um “lugar de dentro”. A ética das provas é secundária ao fato de que elas existem e precisam ser tomadas. Os personagens criativos – da supervisora viciada em café instantâneo ao rapaz que só dorme e caminha envolto em um cobertor, do homem crocodilo a um sósia do Sem Rosto de Viagem de Chihiro – estão lá como pano de fundo a um propósito mais importante. Dentro e fora da história, eles estão sujeitos às regras do jogo.

De resto, seu formato é outro destaque ao qual fãs de quadrinho e aspirantes a cartunistas deverão ficar atentos. O estilo  webtoon é bonito, versátil e acessível, e configura uma alternativa àqueles que buscam um alcance maior do que o da fanzine, sem a complexidade de uma visual novel ou de um drama interativo ocidental. SIU fez um trabalho excelente de divulgação dessa novíssima mídia. Já se o formato pegará ou não, e se o Ocidente lhe será ou não receptivo, é um desafio para dias futuros.

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