Warning: Use of undefined constant CONCATENATE_SCRIPTS - assumed 'CONCATENATE_SCRIPTS' (this will throw an Error in a future version of PHP) in /home/finisgeekis/www/wp-config.php on line 98

Warning: Cannot modify header information - headers already sent by (output started at /home/finisgeekis/www/wp-config.php:98) in /home/finisgeekis/www/wp-includes/feed-rss2.php on line 8
Cultura Japonesa – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Thu, 04 Aug 2022 20:09:10 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Cultura Japonesa – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “Hiraeth”: morremos sozinhos, mas vivemos por meio dos outros https://www.finisgeekis.com/2022/08/04/hiraeth-morremos-sozinhos-mas-vivemos-por-meio-dos-outros/ https://www.finisgeekis.com/2022/08/04/hiraeth-morremos-sozinhos-mas-vivemos-por-meio-dos-outros/#comments Thu, 04 Aug 2022 20:09:08 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23202 Hiraeth é uma daquelas palavras que vira e mexe aparece em listas de palavras intraduzíveis, ao lado de schadenfraude ou “saudade”. Tal como saudade, aliás, ela é frequentemente explicada como nostalgia, saudade de casa, tristeza de pensar em algo que é impossível ou que já passou.

Não sei o suficiente de galês para saber se Hiraeth, mangá homônimo de Yuhki Kamatami, faz jus a todos os seus significados. O que posso dizer é que é sim uma história sobre nostalgia, saudade de casa e a tristeza de pensar em algo que é impossível ou que já passou.

Mais do que isso, é uma história sobre qual difícil é saber o que de fato queremos – e de onde vêm as ausências que nos correm por dentro.

O fim da jornada

Como seu subtítulo indica, Hiraeth: The End of the Journey é uma road trip, embora seus protagonistas sejam tudo menos óbvios.

Mika é uma adolescente que desistiu de viver após a morte da melhor amiga. Ela tenta se suicidar, no que é impedida por Hibino, um homem que, ironicamente, não consegue morrer.

Hibino, por sua vez, acompanha Hani (nome fantasia), um deus que busca o caminho para Yomi, a terra dos mortos da mitologia xintoísta. “Sim, até os deuses morrem”, ele relembra seus companheiros. Quando os séculos levam consigo seus últimos fieis, divindades embarcam de bom grado em sua última viagem. Primeiro, fazem uma peregrinação até o santuário de cada outro deus que conhecia, agradecendo-o por favores passados. Depois, abandonam o mundo terreno.

Não é exatamente a mesma coisa que mortais entendem como “morte”. Mika e Hibino, no entanto, decidem apostar na chance que, ao acompanhar o deus misterioso, eles também serão abençoados com seu fim.

O mangá de Kamatami está em boa companhia, a despeito – ou talvez por causa – de seu caráter mórbido. De Noragami a Gekijou Ningyo no Mori (baseado na lenda de Yaobikuni, citada diretamente em Hiraeth), o peso da imortalidade e a dependência de mitos naqueles que os contam são temas tão classicos na cultura pop japonesa quanto na mitologia que a precedeu.

O que Hiraeth agrega à fórmula é a confusa, bela e trágica série de nós que entrelaça as motivações de seu trio principal. Embora persigam o mais egoísta de todos os objetivos – a morte – Mika, Hibino e Hani acabam por depender completamente um no outro.

Hibino é fascinado por Mika pois, em todos os seus séculos de vida, nunca experimentou um afeto tão sério a ponto de desejar morrer por outra pessoa. Para sua própria proteção, nunca permanece muito tempo com o mesmo parceiro, preferindo um vida sem compromissos à inevitabilidade de continuar jovem enquanto seus entes amados envelhecem.

Hani, um deus, não entende a morte da mesma forma que os humanos. A tristeza, o luto e o medo que mortais têm do fim inevitável desperta nele uma imensa curiosidade. Curiosidade que parece, aos olhos das pessoas, insensível e opressiva.

Não fosse o bastante, ele tem o poder de enxergar a morte das pessoas. Mais especificamente, todas as memórias que ligam o nascimento ao último suspiro. Se isto é conveniente para ele – e para o leitor, que se aproveita de seu conhecimento – é aterrorizante para qualquer um que tenha o desprazer de cruzar seu caminho. Pior do que carregar uma culpa vergonhosa é saber que seu coração é um livro aberto a estranhos.

É uma premissa que garante que esse trio de protagonistas jamais estará na mesma página. Consequentemente, até a mais banal das revelações se mostra uma fonte de surpresas e conflitos.

“A estrada até a morte é um caminho conectado pelas memórias dos vivos” Hani explica. E tal caminho não é nem tão curto nem tão previsível quanto imaginam à primeira vista.

A vida dos outros

Não bastassem suas bagagens pessoais, Mika, Hibino e Hani são confrontados por todo um elenco de personagens vivendo à sombra da morte. Uma idosa que viveu uma vida plena, mas anseia conhecer o mundo para além da cidade onde mora. Um oficial do shogunato que descumpre suas ordens para ajudar o povo afetado por uma calamidade, condenando-se à morte por seppuku. Uma jovem com câncer terminal que busca o segredo de Hibino para que ela, própria, possa ganhar mais uns anos.

Nenhum dos três sai de cada encontro do mesmo jeito que entrou. Com o passar dos capítulos, é questão de tempo até que comecem a repensar ou o objetivo de sua jornada ou os motivos que os levaram até ali.

Nesse sentido, Hiraeth funciona como uma versão mais breve e menos movimentada de A Vida Imortal: uma série de vinhetas que continuamente forçam suas personagens -e a nós mesmos – a nos questionarmos sobre o final da vida. Que Kamatami tenha conseguido inserir tanto conteúdo em tão pouco espaço é prova de sua habilidade. Se com certos mangás sentimos que as páginas voam diante de nossos olhos, cada volume de Hiraeth nos atinge como uma pedrada. Esta não é uma leitura leve, pois mais fofas que suas personagens e capas floridas sugiram o contrário.

Uma “obra Covid?

Hiraeth começou a ser publicado em outubro de 2020. É tentador – e, provavelmente, não de todo errado – encará-lo como uma “obra Covid”: uma de tantas histórias sobre a morte, o luto e a culpa de sobrevivente que calamidades recentes tornaram populares. Se isto não passou pela cabeça de Kamatami, sem dúvida o fez pelas de quem resolveu trazê-lo ao Ocidente – pelo menos em língua anglófona – esse ano.

Mas julgar demais o mangá pelo nosso zeitgeist pode nos levar a deixar de lado o mais importante. Como a road trip de Mika, Hibino e Hani deixam claro, calamidades não têm, nem nunca tiveram, o monopólio sobre a dor e a morte.

A pandemia trouxe um holofote para a perda e o sofrimento. Porém, o desafio de viver em um mundo onde a vida vale pouco e a morte é arbitrária é um velho conhecido de muitas pessoas. Em especial, aquelas que vivem nas margens.

Anos antes de publicar Hiraeth, Kamatami escreveu outro mangá, Shimanami Tasogare, sobre um jovem gay que tenta o suicídio, mas é salvo de última hora por uma entidade misteriosa. Puxado de volta à vida que de tentou escapar, o garoto se voluntaria a construir um centro comunitário para pessoas LGBT+. A experiência abre seus olhos para as vidas, dores e amores de outras pessoas – outrora, invisíveis a seus olhos.

Hiraeth é uma obra bem mais metafórica, mas ambos os mangás, no fundo, nos dirigem à mesma questão.

O trio viajante de Hiraeth possui muito pouco em comum. Porém, se há algo em sua jornada que os une são as surpresas que os forçam a enxergar além dos próprios umbigos.

A Hibino, estes choques o levam a questionar se a frieza por trás da qual se esconde não é uma fuga mais do que uma solução. À Mika, eles indicam que a perda da amiga pode não ser importante a ponto de valer seu próprio sacrifício. A Hani, o ajudam a dar sentido a tapeçaria de memórias que ele sempre enxerga, mas raramente compreende.

Estar próximo da morte nos faz reapreciar a vida. Mas, se Mika e companhia nos ensinam alguma coisa, é que se tudo o que tirarmos da experiência disser respeito a nossa própria dor, possivelmente será uma lição aprendida em vão.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/08/04/hiraeth-morremos-sozinhos-mas-vivemos-por-meio-dos-outros/feed/ 1 23202
Yuuta Nishio: um mangaká para as angústias de nosso tempo https://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/ https://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/#respond Thu, 14 Jul 2022 19:43:19 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23178 Uma mulher anda de bicicleta. O terno e mochila de laptop entregam que não pedala a passeio.

Um caminhão a ultrapassa. A motorista lembra alguém que conhece. Alguém importante, insubstituível. Alguém que lhe prometera construir uma vida com ela, que jamais a largaria para rodar Japão afora. A não ser que algo de muito errado tivesse acontecido.

Ela acelera, indiferente ao penteado desfeito e o suor que arruinava sua maquiagem. No retrovisor do caminhão ela enxerga a ponta de um cigarro. A pessoa de seu coração nunca fumava. A ciclista sorri, deixando que a bicicleta a embale em uma descida enquanto caminhão segue seu caminho.

Ela está feliz.

A sequência é uma de tantas pitadas de poesia visual encontradas nas páginas de Yuuta Nishio. Chamado por alguns de um Inio Asano dos mangás yuri, Nishio combina um olhar apurado para problemas íntimos com uma leveza que serve de antídoto aos anos de fadiga em que vivemos.

Um novo Inio Asano?

Comparações costumam ser armadilhas. Às vezes, o paralelo está menos nas páginas que na nossa mente. Às vezes, trazer à discussão uma obra ou autor de sucesso cria expectativas que história nenhuma é capaz de cumprir.

Meu primeiro contato com Yuuta Nishio veio justamente de uma comparação. No caso, com Inio Asano, mangaká de quem escrevi à exaustão nesse blog e que, para o bem ou para o mal, conquistou uma posição única nas discussões sobre a mídia. Há um espaço em formato de Boa Noite Punpun no universo dos mangás que apenas Asano é capaz de preencher.

Isso não impediu Rebecca Silverman do ANN de chamar Nishio de um “Inio Asano-lite”: um autor que “toca em muitos temas e estilísticas similares”, dentro de “história[s] mais gente[is] com um apelo um pouco diferente”.

Não é preciso abrir seus mangás para entender o mais visível desses apelos: Nishio escreve histórias yuri. Isto, por si só, já lhe abre um terreno que os protagonistas de Asano enxergam apenas com o canto dos olhos.

O autor de Nijigahara Holograph já foi considerado “a voz de uma geração”, mas é uma voz distorcida pelas preocupações dos homens jovens, problemáticos e sexualmente precoces que encabeçam a maioria de suas histórias. Há conflitos humanos que personagens como estas nunca experimentaram. Em especial quando se desenrolam em espaços aos quais homens não são convidados.

O que não significa que não haja uma vibe indiscutivelmente “asânica” nas histórias que Nishio conta. Como os adolescentes de Umibe no Onnanoko, as personagens do autor mostram uma completa franqueza em relação ao sexo. As mulheres sobre as quais escreve usam o corpo para se relacionar com o mundo, sem atentar para charminhos, tropos românticos – ou mesmo, em alguns casos, convenções sociais.

Em contraste com a pobreza temática de certos mangás de romance, as personagens de Nishio não se deixam definir por seus afetos. Elas não são namoradas, apenas estão com outras – por pouco ou muito tempo, a depender das circunstâncias, mas sempre cientes de que a vida é uma jornada que deverão realizar sozinhas. E o amor e o sexo, apenas duas – e não necessariamente as mais importantes – das paradas.

Em Mizuno & Chayama, esse relacionamento une duas garotas separadas por rivalidades entre suas famílias. Mizuno é a filha de um político ambientalista em combate contra uma grande empresa do ramo de chá que emprega metade da cidade. Chayama é ninguém menos que a filha do dono da empresa, cujo rosto estampa outdoors.

Ambas se se sentem frustradas: Mizuno porque todos a veem como uma extensão de seu pai: uma celebridade influente a quem podem pedir favores; Chayama, porque a riqueza de seus pais causa rancor entre os colegas mais humildes.

Chayama, em particular, é vítima de um bullying tão violento que parece tirado das páginas de um romance de Mieko Kawakami. A tortura vem das mãos de Aikawa, que em origem – e até aparência – lembra uma versão malévola da Aiko Tanaka de Boa noite Punpun. Pobre, divide uma casa enterrada no lixo com uma mãe que torra dinheiro em produtos milagrosos vendidos por seitas. Aikawa odeia sua vida e põe a culpa na Corporação Chayama, menos por acreditar que são culpados por suas dores que para mascarar sua violência com um verniz de justiça.

Como Asano, Nishio usa e abusa do sexo para atiçar o desconforto do leitor. Mizuno é molestada por um aliado de seu pai durante um jantar da campanha. Ninguém se move para ajudá-la: a eleição é mais importante que o desconforto da filha. O irmão de Aikawa, pré-adolescente, adquiriu o hábito de se masturbar contra os móveis. Por conta da negligência da família, não aprendeu como seu corpo funciona. Sobra à jovem limpá-lo quando chega ao orgasmo.

Quando todas essas violências acumuladas atinge um ponto de ebulição, não nos surpreendemos ao ver o sangue derramado. Há algo de As Flores do Mal na maneira como Mizuno & Chayama migra lentamente para uma tragédia anunciada.

Novos rumos depois dos 30

Sob muitos aspectos, o mangá não poderia ser mais diferente de After Hours, trabalho anterior de Nishio. Aqui, o foco é a relação de Emi, uma mulher de 24 anos, perdida e desempregada, por Kei, charmosa DJ seis anos mais velha.

Não deixe o título e as luzes de balada passarem a mensagem errada. Embora sua história se passe em becos escuros e raves alucinadas, não há nada de libidinoso e chocante em sua história de amor. As baladas de Emi e Kei pertencem ao mesmo universo de Paripi Koumei: um underground sempre às claras – ainda que suas luzes sejam artificiais e estroboscópicas.

É difícil ler o mangá sem pensar em Solanin, obra de Asano sobre os dramas de um grupo de jovens adultos que se envolvem na criação de uma banda de rock. Emi e Kei são mais velhas que o elenco daquele mangá, mas isso só dá mais peso ao seu projeto de vingar na carreira das raves.

Não há nada de misterioso em sonhar de viver de arte nos seus vinte e poucos anos. Fazê-lo depois dos trinta, por outro lado, é uma decisão intrigante a ponto de carregar todo um enredo.

Ao contrário da titubeante Minare de Nami yo Kiitekure (ou de todo o elenco de Honey & Clover), a Emi e Kei nem sempre sabem o que elas querem, mas sabem exatamente o que elas são. Elas não precisam de uma jornada de auto-conhecimento. O seu futuro pertence a elas.

Embora escondido sob a agressividade de sua trama, esse mesmo otimismo está também presente em Mizuno & Chayama. Se Asano é trágico mesmo quando tenta ser leve, há uma leveza nos mangás de Nishio que se sobrepõe às cenas mais chocantes.

Mizuno & Chayama, que se passa no último ano do Ensino Médio – literalmente, o último ano (de suas adolescências/antes do início de sua vida adulta). A despeito dos sapos que são obrigadas a engolir, suas protagonistas nunca perdem de vista de que aquilo que vivem é uma fase que um dia passará sem deixar traumas ou rancores.

Após três anos de pandemia, violência galopante, desmandos políticos e histeria, histórias como essa soam como nada menos que um curativo mental.

Muitos mangás falam sobre os tombos, os machucados, o desespero de e ver sem rumo. Nishio escreve sobre o que acontece quando decidimos nos levantar. E este momento, ela nos ensina, sempre chega.

Todos estamos na sarjeta…

“After hours”, a DJ Kei explica, são aquelas horas entre o fim da balada e o início do próximo dia útil. As horas incertezas que ainda não fazem uma manhã, mas tampouco pertencem à noite; em que o frenesi do escapismo já passou, mas ainda não fomos rendidos pela chave-de-braço da rotina. Um momento para nos situarmos – e, quando a situação pede, respirar.

De certa forma, esses anos 20 que vivemos vem se mostrando as after hours do século XXI, tal como os anos 20 do século passado foram a era do jazz. Que saibamos aproveitá-los tão bem quanto Emi e Kei, ou Mizuno e Chayama; se não para fundar uma rave ou mudar de cidade, para dar à nossa vida o rumo que precisa.

Como escreveu Oscar Wilde, todos estamos na sarjeta, mas alguns olhamos para o céu.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/07/14/yuuta-nishio-um-mangaka-para-as-angustias-de-nosso-tempo/feed/ 0 23178
“A Música de Marie”: por um sonho que abrace nossa humanidade https://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/ https://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/#respond Fri, 17 Jun 2022 15:30:09 +0000 https://www.finisgeekis.com/?p=23138 Cerca de trinta anos atrás, algumas pessoas pensavam que a queda do Muro de Berlim seria o capítulo final de um século de catástrofes que nunca mais se repetiria. Sem dúvida, faltavam problemas a se resolver. O futuro traria sua parcela de desafios. Mas nenhum deles voltaria a sacudir os pilares do sistema. Havíamos chegado ao fim da história.

Hoje em dia, poucos acreditam nessa ilusão.

Nossa sociedade vive com medo: não apenas de regredirmos a uma era de extremismos e incertezas que julgávamos acabada, mas também o medo de termos ido longe demais. A crise ambiental se faz sentir um pouco mais a cada dia que passa. Novas tecnologias nos trazem não utopias, mas algoritmos obscuros, controle político e fake News.

É difícil acreditar que A Música de Marie, mangá de Usamaru Furuya recém-lançado pela NewPop, não tenha sido escrito com tal medo em mente. Publicado originalmente entre 1999 e 2001, é um trabalho a um só tempo atual e nostálgico; atemporal, mas também hesitante em abordar seu tempo.

Uma caixa de música

A Música de Marie é o tipo de fantasia que não vemos todos os dias – se é que de “fantasia” podemos chamá-la. Seu mundo fictício é mecânico, movido a pistões, engrenagens e ponteiros analógicos. Não perca tempo, contudo, buscando a desilusão ou inquietude com o mundo industrial tão presentes na ficção steampunk.  

Trata-se de um mundo construído, mas desprovido de construtores: tão belo e misterioso quanto uma velha caixinha de música flagrada nas vitrines de um antiquário.

O paralelo, aliás, é proposital. Como o título deixa claro, A Música de Marie é a história sobre uma música – mais precisamente, sobre um garoto abençoado (ou amaldiçoado) a ouvi-la.

Quando criança, Kai sofreu um acidente de que não deveria ter sobrevivido. Contrariando as expectativas, ele retorna ao mundo dos vivos e descobre, no processo, que adquiriu sentidos excepcionais. Em primeiro lugar, o episódio o dotou de uma audição fora de série, capaz de escutar até mesmo tensões nas rochas e bolsos subterrâneos de gás. A habilidade prontamente o transforma em uma sensação na vila de mineradores em que vive.

Mais importantemente, ele se tornou capaz de ouvir e enxergar Marie, deusa protetora da humanidade.

Como tantos profetas da mitologia, Kai sobrevive à experiência um tanto menos humano. Seu amor pela deusa ultrapassa o metafórico e se transforma em desejo físico. Para Pipi, que o ama desde a infância e não consegue imaginar um futuro senão ao seu lado, seu retorno é um acontecimento agridoce.

Quando suas tentativas de impressionar o garoto começam a pôr em risco sua própria vida – por exemplo, motivando-a “voar” para ficar parecida com Marie – somos tentados a nos perguntar se esse paraíso mecânico é assim tão paradisíaco.

Infelizmente para Pipi – e todos os cidadãos de seu mundo – algo mais sério que a solidão ameaça os pilares de seu mundo.

Se o país de Kai é belo como uma bailaria de porcelana sobre uma caixa de música, não demora para sentirmos que seu mundo perfeito, milimetricamente planejado, é tão claustrofóbico e opressivo quanto a estante de uma cristaleira.

Os sinais são sutis, mas consistentes. Ninguém entende muito bem como as máquinas que tanto usam funcionam. Depósitos legados por gerações passadas estão repletos de aparelhos estruturalmente intactos, mas que se recusam a funcionar. Sempre que um inventor descobre uma tecnologia nova, sua invenção é destruída em uma pane misteriosa.

Kai, cuja audição supera aquela das outras pessoas, escuta um ruído dissonante imediatamente antes de enguiçarem. É como se as máquinas quebrassem de propósito após receberem um comando. Um comando que só pode ter uma única fonte.

O leitor estará perdoado se pensar em Drosselmeyer, o sinistro fabricante de brinquedos do conto O Quebra-Nozes – que inspirou o igualmente macabro antagonista de Princess Tutu. Esta é exatamente a atmosfera que Furuya constrói para sua personagem titular.

Seria a Marie que seu povo tanto venera menos uma deusa benfeitora que uma inteligência criada para manter humanos no lugar?

E se esse lugar for bom – como de fato – seria mesmo correto tirá-los de lá? O que é preferível: a liberdade para se destruir ou a segurança trazida por um demiurgo?

Como Furuya resolve esse impasse é algo que você terá de ler o mangá para descobrir. Estragar a surpresa de seu enredo seria uma afronta à sua trama, tão bela e delicada como o mecanismo de um relógio de bolso.

Ainda assim, sem dar mais detalhes, posso contar que há uma falha filosófica em seu trabalho que destoa do todo como uma chave presa entre as engrenagens.

Tal como obras como Nausicaa do Vale do Vento e a série Nier, Furuya brinca com a ideia de que a humanidade será a arquiteta de sua própria destruição – de maneira que apenas seu fim poderia salvar o planeta de um apocalipse generalizado. Ao contrário destas obras, contudo, o autor parece acreditar que o armagedom pode ser evitado mantendo as pessoas longe de laptops e motores a diesel.

É como se o mesmo impulso elétrico que faz um circuito funcionar fosse responsável por acender o ódio e a mesquinhez no coração das pessoas.

No que diz respeito a ideias, esta está longe de ser nova. O que nem de longe significa que não seja problemática.

O mito da humanidade pura

A ideia de que o ser humano é um ser puro enquanto vive em paz com a natureza e é corrompido pela ação da sociedade remonta a séculos, quando não milênios. Ele ganhou popularidade, em particular, em períodos que passaram por rápidas (e bem-sucedidas) transformações sociais. Afinal, se é a sociedade quem estraga os humanos, basta mudar a sociedade para criar pessoas perfeitas.

Se essa proposta soa bem-intencionada (ainda que ingênua e potencialmente perigosa), algumas de suas variações resistiram pior à passagem do tempo. Historicamente, esse discurso também foi utilizado para infantilizar populações nativas, opor-se ao progresso da ciência e fundamentar políticas reacionárias – voltadas não só contra fábricas e chaminés, mas para a glorificações de ideologias retrógradas, fanáticas, violentas e primitivistas.

O Saque de Roma em 410 pelos Vândalos, de Joseph Nöel Sylvestre (1847)

É verdade que a era industrial tem problemas. Destruição do meio-ambiente, guerras mundiais, relações de trabalho desumanas são apenas algumas das muitas tragédias em seu currículo. Mas também é verdade que ela nos trouxe antibióticos, vacinas, sistemas públicos de bem-estar social e tecnologias de telecomunicação que, por sua vez, nos ajudaram a nos organizar politicamente e melhorar nosso sistema.

Ao mesmo tempo, não é preciso ir muito longe para enxergar que o país sorridente de Furuya existe apenas nas páginas de seu mangá. Como nossas mitologias atestam, violência, egoísmo, engodo e mesquinhez acompanham o ser humano desde que aprendeu a contas histórias. A natureza é responsável pelo brilho das estrelas e pelas estações do ano, mas também pelas doenças infecciosas e pelos nossos piores instintos. Ela não é “boa”; apenas “é”.

A era contemporânea pode ter industrializado a crueldade, mas ela de forma alguma a criou.

Saturno Devorando seu Filho, de Francisco Goya

Na sua utopia a um só tempo futurista e bucólica, Furuya parece construir seu próprio “fim da história”: uma sociedade não apenas afastada dos problemas do presente, mas da própria história humana, com todas as suas ironias, complexidades e contradições.

Como exercício intelectual, é o tipo de coisa que tem o seu valor. Ursula le Guin, uma das maiores mestras da ficção científica, já dizia que o escritor não tem obrigação de contar a verdade. Seu trabalho é nos incitar a imaginar o diferente, nem que apenas para que tenhamos coragem de questionar o status quo.

Ainda assim, em uma época em que nossos piores pesadelos começam a ganhar vida, é importante que aprendamos a sonhar com a realidade – e não apenas contra ela.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/06/17/a-musica-de-marie-por-um-sonho-que-abrace-nossa-humanidade/feed/ 0 23138
“The Characters Taught Me Everything”: por dentro da carreira de Megumi Hayashibara https://www.finisgeekis.com/2022/02/10/the-characters-taught-me-everything-por-dentro-da-carreira-de-megumi-hayashibara/ https://www.finisgeekis.com/2022/02/10/the-characters-taught-me-everything-por-dentro-da-carreira-de-megumi-hayashibara/#respond Thu, 10 Feb 2022 19:43:38 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23098 Você sem dúvida já teve contato com Megumi Hayashibara, ainda que não a conheça de nome. Dubladora, cantora e radialista japonesa com uma carreira de mais de trinta anos, ela já trabalhou em alguns dos animes mais famosos de todos os tempos, como Evangelion (Rei Ayanami), Cowboy Bebop (Faye Valentine), Ranma ½ (Ranma) e Pokémon (Jesse).

The Characters Taught Me Everything (“As Personagens me Ensinaram Tudo”), livro de sua autoria publicado recentemente nesse lado do mundo, é uma rara (e preciosíssima) oportunidade de vê-la atrás da máscara.

“Tirar a máscara”, talvez, não seja sequer a expressão adequada. Hayashibara escreve com a aura de mistério de quem se esforçou por décadas para nublar as fronteiras entre si própria e as vozes a quem deu vida. Fechando metaforicamente os olhos, é até possível imaginar que lemos não uma mulher de carne e osso, mas uma alma compartilhada entre todas suas personagens.

Sua retrospectiva é menos uma autobiografia que uma história de quatro décadas seminais na história dos animes  – e daquilo que as tornou tão mágicas.

Vivendo a vida um episódio por vez

Hayashibara não escreve como uma escritora. Seu texto é espontâneo e informal, como se transcrito se um conversa face-a-face, separada dos leitoras apenas pelo espaço entre os bancos de um izakaya.

A seiyuu Megumi Hayashibara e algumas das (muitas) personagens a quem deu vida. Fonte da montagem: Crunchyroll

Sua fórmula também é simples – e forte justamente por isso. Cada capítulo é dedicado a uma personagem do vastíssimo rol de personagens a quem a atriz deu uma voz. Ela nos introduz à obra, conta-nos o que rolou nos bastidores e, fiel ao título, nos diz o que aprendeu com ela.

Essa mera premissa já faz do volume um item obrigatório na biblioteca de qualquer fã de anime. “Eu espero que esse livro possa se tornar uma pequena peça da história do anime”, diz a autora em sua conclusão. A seiyuu não poderia estar mais errada. Ela já é indiscutivelmente uma peça, e nada pequena, da história da mídia. Não me surpreenderia que sua memória, além de uma divertida leitura, viesse a se tornar base para estudos sobre animes por anos a fio.

Digo “memória”, palavra que aparece inclusive em seu marketing, mas vale a pena mencionar que o livro mal toca na vida pessoal de sua autora. Em tempos dominados por influencers que são seus próprios produtos, é reconfortante ouvir de uma criadora tão apaixonada por sua arte que sequer cogita roubar seu holofote.

É fascinante observar, pelos seus testemunhos, o quão radicalmente a indústria de dublagem se transformou com o passar das décadas. Nos primórdios, segundo relatos de seus senpais, o voice-over de filmes estrangeiros era feita ao vivo, e um único erro podia comprometer todo um dia de trabalho. Nos anos de 2010, em contraste, os seiyuus foram apresentados a toda sorte de inovação técnica. Foi o caso da dublagem de Rune Balot em Mardock Scramble, que combinou seu registro normal com uma captação do som conduzido pelos seus ossos, de maneira a produzir uma voz sintética.

Rune Balot de Mardock Scramble

Ela nos conta da feliz surpresa em interpretar heroínas em animes infanto-juvenis para, anos depois, trabalhar com estes mesmos adolescentes, hoje adultos e dubladores, gravando animes para uma nova uma geração de fãs. O número de colegas mortos que cita ao longo dos capítulos é um lembrete mais sinistro da passagem do tempo. Trabalhar com colegas de diferentes idades significa, infelizmente, ser mais exposto ao fim da vida.

Não é à toa que a passagem do tempo é um dos assuntos mais recorrentes ao longo de seus testemunhos. “Avanços na tecnologia e desenvolvimento dos sentidos humanos não são diretamente proporcionais” escreve ela. “Quando a tecnologia avança rápido demais, pessoas são deixadas para trás.” Sentimento que direciona ao enredo dos inúmeros animes sci fi em que trabalhou, mas também aos próprios avanços na tecnologia de produção, nem sempre feitos com os dubladores (ou mesmo os espectadores) em mente.

Ao mesmo tempo, a experiência de interpretar personagens que não batem com sua idade – muitas vezes, dentro de séries que se estendem, elas próprias, através dos anos – passa uma estranha sensação de atemporalidade. “Às vezes, ser uma dubladora é como estar descolada do tempo”.

“Ainda que o analógico evolua ao digital, ou os humanos evoluam a uma inteligência artificial, os sentimentos que uma dubladora coloca em sua voz quando está diante do microfone jamais desaparecerão.”

Outras digressões são menos felizes. Hayashibara é polida demais para dizer com todas as letras, mas muitos dos animes em que trabalhou passam longe de ser obras-primas. Na tentativa de encontrar uma pérola de sabedoria que encaixe nas séries mais comerciais, seu livro soa às vezes como um volume de auto-ajuda. O capítulo sobre a franquia Gundam, em que filosofa sobre o sentido da guerra, é particularmente fraco.

Felizmente, a parte boa de seu livro mais do que compensa a leitura. Em capítulos que soam particularmente relevantes hoje, nos anos pós-#MeToo, ela comenta sobre como interpretar certas personagens a pôs em conflito com suas próprias noções de feminilidade. Uma autointitulada “tomboy” que nunca se encaixou em modelos prontos de gênero, Hayashibara viu no anime tanto uma oportunidade quanto uma camisa de força.

Por um lado, escutar briefings descrevendo características vocais como masculinas e femininas sempre lhe pareceu “uma forma de lavagem cerebral.”

“Se existisse um jeito de ser objetivamente feminino ou masculino desde o começo, eu não acho que essas palavras teriam sido sequer inventadas.”

“Eu me pergunto se essas palavras não foram criadas porque tantas pessoas não estão fora dos moldes. E sinto que muitos de nós vivem nossas vidas presos pelas suas restrições, como uma maldição”.

Por outro lado, ela também conta como certas personagens femininas a expuseram a facetas do universo feminino que ela mesma não conhecia. É o caso da sensualidade agressiva de Faye Valentine, e sobretudo de Miyokichi de Showa Genroku Rakugo Shinju, que chegou, em sua história, a trabalhar como profissional do sexo. Numa das confissões mais surpreendentes, Hayashibara conta que pediu ao marido que lhe indicasse filmes eróticos para que conseguisse entender a essência da personagem.

Miyokichi

Ainda mais fascinante é a história daquela que, para muitos, é sua voz mais conhecida: Rei Ayanami. Se hoje a personagem de Evangelion é lliteralmente a patrona de um arquétipo, quando o anime foi lançado, em 1995, a ideia de uma personagem incapaz de demonstrar sentimentos era praticamente uma contradição em termos.

As orientações de seu criador, Hideaki Anno não ajudavam: “Não é que ela não tenha sentimentos” disse ele “Ela era incapaz de entender o que eram sentimentos”. Para interpretá-la, Hayashibara teve ela própria de se perguntar o que significava ter emoções.

Ela nos conta que a gravação aconteceu durante um período conturbado na relação com sua mãe, uma mulher tradicional que a condenava por preterir a vida doméstica em prol do trabalho. O cabo de guerra entre a paixão pela carreira e as pressões maternas levou Hayashibara à conclusão de que ter emoções é vestir dois rostos. De onde ser Rei Ayanami significava tornar-se uma pessoa incapaz de hipocrisia.

É uma maneira um tanto sinistra de se encarar as emoções, mas tem tudo a ver com uma artista cuja profissão consiste justamente em encarnar outras pessoas. O tema é recorrente em seus testemunhos. “Interpretar alguém que alterna entre dois rostos veio naturalmente a mim” ela diz de Paprika “Em vez de mudar meu tom de voz, eu mudava minha maneira de pensar”.

Longe de provocar angústia, o fardo parece agradá-la. “Quando eu comecei esse trabalho” explica “eu sentia que estava acomodando outras almas dentro do meu corpo. […] Eu precisava apenas me encolher e dar espaço” a elas.

Paprika

Fãs de anime – ou de qualquer outra arte – costumamos estimar nosso hobby por ampliarem nossos horizontes, colocarem-nos nos pés de outras pessoas. A sensação é de ser somado a cada uma dessas vidas ficcionais, como se nos tornássemos mais quem próprios somos a cada ponto de vista novo que adquirimos.

Ver uma atriz descrever seu trabalho como uma tentativa de se encolher para acomodar essas máscaras tem, à primeira vista, um quê de sinistro. Mas apenas à primeira vista.

Após ler o seu livro, não tive como não interpretar a colocação como fruto de generosidade, tanto para seus espectadores quanto para os mangakás e diretores a cujas criaturas deu vida.

O povo é um silêncio, e eu serei seu campeão, disse Gwynplaine, o protagonista de O Homem Que Ri de Victor Hugo. O universo dos animes não é exatamente um silêncio (ao menos, não literal). Mas é indiscutível que tem uma porta-voz – e uma campeã.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/02/10/the-characters-taught-me-everything-por-dentro-da-carreira-de-megumi-hayashibara/feed/ 0 23098
O que “Mawaru Penguindrum” nos ensina sobre o extremismo https://www.finisgeekis.com/2022/01/26/o-que-mawaru-penguindrum-nos-ensina-sobre-o-extremismo/ https://www.finisgeekis.com/2022/01/26/o-que-mawaru-penguindrum-nos-ensina-sobre-o-extremismo/#respond Wed, 26 Jan 2022 21:29:07 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23092 O Finisgeekis entra em mais um ano, e tenho o privilégio de anunciar algo para lá de especial.

Mais uma vez, tive o privilégio de escrever para o ANN. Desta vez, sobre um tema que não poderia ser mais relevante – e um dos melhores animes já criados.

Mawaru Penguindrum é conhecido entre fãs de anime pelo seu surrealismo, simbolismo e criatividade artística. Ao mesmo tempo, é uma série que fala sobre um dos mais traumáticos eventos na história japonesa recente: o atentado de 1995 ao metrô de Tóquio. Membros de uma seita apocalíptica liderados por uma subcelebridade midiática com um pé na política expuseram mais de mil pessoas ao tóxico gás Sarin. Catorze perderam a vida. O país nunca mais foi o mesmo.

Para nós, lembrando-nos do episódio a partir do ano de 2022, é difícil não traçar paralelo com o momento político em que vivemos. Não só no Brasil, mas no mundo todo, assistimos à entrada de subcelebridades midiáticas na política. Trazendo, muitas vezes, ideias tão extremas quanto as da seita de 1995.

Como chegamos a esse ponto? E o que podemos fazer para sair dele?

Lançado em 2011, Penguindrum não foi escrito com nossos problemas em mente. Mas ele traz uma lição fundamental sobre o que nos mantém unidos como sociedade – e o que pode nos destruir como pessoas em momentos de crise e ressentimento.

Confiram o artigo completo no ANN.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2022/01/26/o-que-mawaru-penguindrum-nos-ensina-sobre-o-extremismo/feed/ 0 23092
“Heike Monogatari” e a devassidão https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/ https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/#respond Wed, 08 Dec 2021 22:38:46 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23062 É normal que cidadãos falem mal de seus políticos.

Viver em sociedade é uma coisa naturalmente estressante. Não escolhemos em que país, ou sob que tipo de governo, temos o infortúnio de nascer. Ninguém nos pergunta se queremos ou não obedecer às leis. E aqueles que estão no poder têm uma capacidade sem igual de tornar nossa vida um inferno, sem que, na maioria das vezes, possamos fazer qualquer coisa para evitar.

A onda de populismos de extrema-direita que sacudiu o mundo na última década deu um novo sentido a essa insatisfação. Os líderes que subiram ao poder não são apenas corruptos ou incompetentes. São seres humanos repugnantes em praticamente todos os sentidos imagináveis, que parecem se esforçar para violar cada limite da decência e bom gosto.

Para aqueles que acompanham os noticiários, a impressão é de que não somos mais apenas passageiros em uma viagem que embarcamos a contragosto (o que já seria, por si só, ruim). Estamos acorrentados a um veículo que segue desgovernado à beira de um precipício.  

Se existe algum alento, é o de que não somos os primeiros a vivenciar tempos turbulentos – nem a transformar estas turbulências em arte. Heike Monogatari, épico da literatura japonesa recentemente adaptado às telas, é uma verdadeira lição do que torna um governo legítimo – e das águas profundas que nos esperam se nossos líderes flertarem com o abismo.

Tirania e devassidão

Se você não conhece a obra, aqui vai um primer.

Heike Monogatari é um épico sobre a derrocada dos Heike (também conhecidos como Taira), clã que dominou a política japonesa no final do século XII. Poderosos e bem conectados, os Heike deixam o sucesso subir à cabeça e se rendem a atrocidades de toda espécie. Seus desmandos motivam um clã rival, os Genji, a usurpá-los do poder.

O conflito, baseado em eventos reais, é conhecido como a Guerra Genpei e terminou com a vitória dos Genji.

Sua adaptação em anime, produzida pelo estúdio Science Saru e dirigida por Naoko Yamada, condensa em apenas 11 episódios as mais de 700 páginas do texto original (a depender da edição). Mesmo assim, ela preserva a lição central da obra sobre a natureza e consequências do poder.

Lendo (ou assistindo) Heike Monogatari à luz dos populismos contemporâneos, poucas personagens nos despertam mais familiaridade que Kiso no Yoshinaka, o terrível comandante dos Genji que toma Kyoto das mãos dos Heike. Bruto criado no anterior, a pompa e a etiqueta da capital imperial são tão incompreensíveis quanto uma língua estrangeira. Pior, Kiso parece tirar prazer em escandalizar seus pares – e mesmo seus superiores – quebrando o maior número de regras possível.

Como os populistas de hoje, ele se gaba de ser um outsider, vestindo a intransigência com o establishment e o desprezo às regras do jogo como um manto de que se orgulhar.

Infelizmente para as personagens do épico, se os outsiders de hoje fingem serem “gestores”, “capitães” ou coisas que o valham, Kiso não esconde ser um sádico. Ele destrói plantações e rouba comida dos camponeses para dar aos seus soldados. Para sanar o tédio, permite que os homens invadam as casas das pessoas e estuprem seus habitantes.

Kiso é um tirano, mas criticá-lo por ser “autoritário” é perder de vista o mais importante. Ele não desrespeita o imperador porque está em uma cruzada popular contra a monarquia. Ele é simplesmente imaturo e não gosta de se impor limites.

Ele não destrói plantações porque pratica uma ação calculada de terra queimada. Ele o faz porque tem um cavalo e, segundo ele, cavalos precisam comer.

Ele não aterroriza a população como parte de um regime de medo – como tantos ditadores na era contemporânea. Como um adolescente manhoso, ele acredita que o mundo gira em torno do seu umbigo, e as vontades dos outros não importam.

O filósofo Harry Frankfurt tem um nome para a postura de Kiso: devassidão. Segundo ele, o devasso é um indivíduo que age sempre de acordo com suas vontades imediatas. Ele não tem capacidade de se segurar e pensar no longo prazo; de considerar se aquele curso de ação, no fundo, é o mais apropriado. Quando o desejo bate, é com a força de uma abstinência de droga.

Quando o devasso é contrariado, ele não consegue resistir à vontade de mostrar o dedo do meio. Mesmo que ele seja um ministro, e as “ofensas” que recebeu sejam críticas a sua atuação em um episódio de calamidade pública.

Quando o devasso sente vontade de fazer uma piada racista, ele não tem como se segurar. Mesmo que os alvos da troça seja parceiros comerciais e seu gesto desencadeie uma crise diplomática.

Quando o devasso perde, não tem esportiva para aceitar a derrota. Como uma criança que ainda não aprendeu limites, ele esperneia, grita que “não valeu” e ameaça levar sua bola embora. Mesmo que a “derrota” em questão seja uma eleição e a “bola”, o futuro do país.

Pra Frankfurt, o devasso não é só uma pessoa irresponsável. Ele não é sequer uma pessoa. Como um animal selvagem, ele é regido completamente pelas vísceras. Debater com um representante da laia é uma perda de tempo. Ser governado por um, uma tragédia.

O texto de Heike Monogatari  dá voz a esse sentimento:

“A capital inteira fervia com os Genji,
Que entravam em todos os lugares e cometiam incontáveis roubos.
Mesmo em terras que pertenciam a Kamo ou Hachiman [i.e. sagradas],
Eles ceifavam plantas de arroz ainda verdes para alimentar seus cavalos.
Eles invadiam depósitos e tomavam o que havia dentro deles;
Eles roubavam de viajantes e os privava de suas roupas.
“Quando os Heike controlavam a cidade”, as pessoas diziam,
“O lorde Kiyomori era apenas uma vaga ameaça.
Ninguém roubava todas as suas roupas.
Melhor os Heike que os Genji.”

Mais do que cruel, o devasso é perigoso porque suas ações são arbitrárias. Ao contrário de um tirano “consistente”, que sempre retribui os aliados ou tortura seus inimigos, o devasso faz o que lhe der na telha.

Ele é o sujeito que cobre aliados de privilégios em um momento, para mais tarde “fritá-los” e salvar a própria pele. É o covarde que beija os pés de seus superiores quando recebe uma intimação, mas volta atrás nas palavras na primeira oportunidade.

Apoiar um devasso é como se pendurar na roda da fortuna. Parece bom enquanto estamos por cima, mas não sabemos qual momento de glória será nosso último.

Em Heike Monogatari, os aliados de Kiso aprendem isso da forma mais difícil. Cansados dos seus desmandos, os próprios Genji enviam tropas contra ele. Num exemplo ainda mais chocante de devassidão (infelizmente cortado da versão anime) Kiso cogita brevemente virar casaca e se unir aos Heike para salvar a própria pele.

É fácil tirar dessa parte da história a mensagem de que “devassos são ruins, e devemos expulsá-los da política”. Embora não deixe de ser verdade, é uma lição fácil – e pequena – demais para as ambições do épico.

Algo que salta aos olhos quando apreciamos a obra nos dias de hoje é a ausência de protagonistas e antagonistas claros. Não porque a história tenha uma moralidade cinza, mas porque fala de vícios e virtudes que vão além de meras dinastias.

Heróis ou vilões, devassos ou comedidos, todos têm momentos de fraqueza, instantes de redenção, pecados a pagar.

Apreciando a obra sob o ponto de vista da devassidão, não é difícil entender o porquê. Afinal,

Um governo não precisa de ‘devassos’ para ser ele próprio devasso

A afirmação acima é de Arthur Applbaum, um dos pensadores que mais tem se dedicado a entender os efeitos da devassidão na política. Como ele explica, esse é um problema que vai muito além dos populistas do momento.

Tal como é esperado de uma pessoa bolar planos e agir consistentemente, ele diz, um governo deve ser capaz de fazer o mesmo. Na verdade, é ainda mais importante que um governo não seja governado pelos seus impulsos, pois a vida seu povo está, literalmente, em suas mãos.

Um indivíduo devasso pode matar alguém em um surto de ódio. Um governo devasso pode exterminar toda uma população, destruir relações diplomáticas ou causar danos irreversíveis ao meio ambiente.

Por incrível que pareça, diz Applbaum, esse governo não precisa ser formado por pessoas devassas. Uma cúpula que não consiga tomar decisões ou parar de brigar internamente pode, para todos os fins, agir de maneira indistinguível a um devasso. Mesmo que seus membros sejam os sujeitos mais íntegros, comedidos e racionais da face da Terra.

Emprestando uma metáfora da filósofa Christine Korsgaard, Applbaum compara esse governo a um saco cheio de ratos. Presos com seus colegas, os animais vão se mexer desesperadamente. Com o tempo, é até capaz que o próprio saco “caminhe” alguns centímetros para um lado ou para o outro. Diante de um estímulo externo – por exemplo, um tapa – é provável que os ratos, por coincidência, fujam para a mesma direção. Porém, não é possível dizer que o saco aja, como se tivesse uma capacidade de cálculo.

Governos devassos são tão perigosos quanto líderes devassos, pois reproduzem seu maior vício: a arbitrariedade. Tal como um devasso pode decidir salvar uma pessoa em uma ocasião e mandá-la matar amanhã por mero capricho, o governo devasso é completamente imprevisível.

O Clã Taira de Heike Monogatari é um exemplo perfeito de governo devasso. Fiel aos comentários de Applbaum, nem todos os seus membros são ruins. No início do épico, Shigemori, filho do patriarca Kiyomori, é uma bússola moral para a família. O nobre faz de tudo para preservar a reputação da família, chegando ao cúmulo de peitar o próprio pai – algo inimaginável segundo as normas sociais da época.

Mesmo Kiyomori, a despeito de ser um tirano, nem sempre foi um devasso. Para tomar o poder durante a Rebelião Heiji – uma guerra que precede os eventos do épico – ele balanceou a truculência com doses copiosas de misericórdia.

Seu principal rival, o líder Genji Minamoto no Yoritomo, por exemplo, passou anos se recusando a erguer um dedo contra os Heike. O motivo? Kiyomori havia poupado sua vida durante o conflito, ação pela qual ele ainda era grato. O patriarca dos Heike podia ser cruel, mas sabia que sua linhagem só se manteria no poder se planejasse para o futuro.

Infelizmente, Shigemori e o jovem Kiyomori eram apenas dois ratos no saco escuro que era o clã Taira. Com a idade, Kiyomori se torna cruel e arbitrário. A toda e qualquer ameaça ele responde com violência, mesmo que isto só piore as coisas no longo prazo. Na verdade, ele sequer consegue pensar no longo prazo. No leito de morte, ele literalmente diz que seu único desejo é ver seu rival, Yoritomo, morto a qualquer custo.

Os outros membros dos Taira são ainda piores. Munemori, outro filho de Kiyomori, cria um incidente político por conta de um cavalo. Ele cobiçava a montaria de Minamoto no Nakatsuna, do clã Genji. Quando Nakatsuna lhe disse que não lhe entregaria o cavalo, Munemori usou o poder da sua família para tomá-lo à força. Não satisfeito, batizou o animal de “Nakatsuna” para ridicularizar publicamente o nobre Genji.

Mas o exemplo que melhor ilustra o ponto de Applbaum é talvez o de Shigehira, um dos generais dos Taira. Enviado para refrear uma rebelião entre os monges de Nara – onde estão alguns dos templos mais importantes do Japão – ele acaba acidentalmente ponto fogo em todo o complexo.

A tragédia gera um mal-estar de que os Taira nunca mais conseguiriam se descolar. Tempos depois, quando os ventos começam a soprar em outra direção e os inimigos da família avançam contra a capital, Kiyomori e seus descendentes até chegam a implorar pela ajuda de outros templos. Os monges, porém, haviam aprendido sua lição:

“Sannou [, deus do Monte Hiei,] tenha piedade de nós!
Três mil monges, acrescentem sua força à nossa!”
Esse foi o espírito do apelo dos Heike,
Mas sua conduta ao longo dos anos
Ofendera demais os deuses
E traíra toda a esperança dos homens.
Suas preces não obtiveram resposta;
Suas súplicas não convenceram a ninguém.

Ao contrário de Kiso e Munemori, Shigehira não é um devasso. A destruição de Nara foi um erro tático que ele nunca tentou negar e pelo qual sempre se arrependeu. Como ele mesmo afirma antes de sua execução, seu único crime foi ter obedecido ordens de seus superiores. Coisa que só fez porque a alternativa – a execução por desobediência – era pior.

Infelizmente para Shigehira, seus “superiores” eram um saco de ratos que tratava a política como um jogo de acerte-a-marmota. A mão que botou fogo em Nara pertencia a uma pessoa capaz de pesar ações e consequências, mas o governo que lhe deu a ordem reagiu à rebelião dos monges como um animal selvagem a um cheiro desconhecido.

Shigemori, o Heike “do bem”, até tenta, mas não consegue desviar o clã do precipício a que se dirige. Embora sua versão literária não tenha o mesmo dom da profecia de sua encarnação no anime, ela é sábia o suficiente para entender uma verdade dolorosa. Verdade que, às vésperas de uma eleição presidencial que promete ser tão desastrosa quanto a de 2018, faríamos bem em aprender:

Um governo, uma nação, é maior que a boa vontade de um único indivíduo. É uma entidade grande demais – perigosa demais – para ser largada à deriva.

Colocá-la de volta ao rumo não é tarefa para devassos que prometeram “se comportar”, salvadores da pátria ou autointitulados “técnicos” subordinados a ministérios desgovernados.

Precisamos, urgentemente, nos livrar desse saco de ratos. Ou então estaremos, como os Heike, fadados a afundar no nosso próprio Estreito de Shimonoseki.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/feed/ 0 23062
“Tatami Galaxy”, ou por que devo desculpas a Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/#comments Wed, 22 Sep 2021 23:54:33 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23027 Aconteceu no meu primeiro ano da faculdade.

Foi a melhor época da minha vida até o momento, mas também a mais estressante. Farto até a medula de simulados e aulas de decoreba, decidi que tinha chegado a hora de aproveitar minha vida ao máximo. Tudo o que sentia vontade de fazer fiz questão de levar a cabo. Ao mesmo tempo.

Toquei violino em uma orquestra de câmara amadora. Comecei minha iniciação científica. Entrei em turmas de latim e japonês. Nas horas vagas, saía com minha namorada ou meus dois círculos de amigos: os novos, da faculdade, e os antigos da escola.

Minha rotina era uma montanha-russa entre o sentimento de realização e a iminência de um burnout. Nunca me sentira tão completo e, ao mesmo tempo, tão cansado.

Foi então que escutei de um colega da aula de japonês:

“Quer dizer que você não vai em festas? Você não tem medo de deixar essa oportunidade passar e viver com remorso pelo resto da vida?”

Eu travei. Menos, imagino, por ter visto sabedoria em suas palavras que por ter escutado uma frase tão absurda de alguém que, para todos os fins, era até então um desconhecido. Tirando os “bons dias” e os exercícios de diálogo que fazíamos na aula, aquela era a conversa mais longa que já tínhamos tido.

Senti vontade de responder que estudava na FFLCH-USP, que pouco tinha a ver com o campus cor-de-rosa das comédias românticas americanas. E que meus colegas eram menos conhecidos por festas que por ocuparem a reitoria durante greves e se vestirem de mendigo em tempo integral. (Era um clichê, obviamente, mas todo clichê tem uma ponta de verdade).

Mas apenas desconversei com uma desculpa qualquer, chocado pela minha própria fraqueza diante de um comentário tão estúpido. Eu já estava dando tudo de mim. Não havia mais horas no dia para fazer qualquer outra coisa. Será que mesmo assim estava desperdiçando meus anos de juventude?

Se você curte animes deve reconhecer meu drama no protagonista de The Tatami Galaxy, anime de Masaaki Yuasa baseado no romance de Tomihiko Morimi. Assistindo a série pela primeira vez no esquenta para uma sequência já anunciada, me dei conta de uma coisa.

Quando resenhei Night is Short, Walk on Girl, livro anterior de Morimi que serve de prequel a Tatami Galaxy, teci comentários um tanto duros. Decepção que atribuí ao próprio Morimi, cujo infanto-juvenil Penguin Highway me deixou com um gosto ainda mais amargo na boca.

Assistindo a Tatami Galaxy, percebo que cometi um erro de julgamento. E está na hora de retificá-lo.

Por uma vida cor-de-rosa

Antes de mais nada, uma introdução. Tatami Galaxy – para o caso, não improvável, de você nunca ter ouvido falar desse nome – é a história de um rapaz em um alojamento estudantil de uma universidade de Kyoto. Seu sonho, como o de tantos outros de sua idade, é curtir a “vida cor-de-rosa” dos anos de faculdade o mais intensamente que pode. O destino, porém, tem outros planos. Cada tentativa de dar sentido a sua graduação termina da mesma forma: largando-o sozinho em seu quarto, frustrado, perguntando-se como conseguiu deixar o melhor da juventude escapar pelos dedos.

“Tentativas”, no plural. Cada episódio termina com a tomada de um relógio girando em reverso. O episódio seguinte nos devolve a um momento anterior, mostrando um contrafatual do que aconteceria se tivesse aproveitado uma oportunidade diferente. A “galáxia de tatami” de seu título não é uma referência apenas ao seu alojamento (tatami, além daquele tipo de piso japonês, é uma medida de tamanho usado em residências). É também o leque das suas próprias experiências universitárias, que ele é forçado a reviver como em um Dia da Marmota.

Em temas, não só em estilo visual, o anime é uma versão expandida de Night is Short, Walk On Girl, história sobre a falta de sorte de um universitário tentando se aproximar de sua garota dos sonhos em uma noite fantástica quando tudo acontece.

O fato de que nenhum de seus protagonistas tenha nome diz mais que todas as elucubrações que eles de fato fazem, metralhadas em um ritmo tão alucinante que obriga espectadores a pausar o vídeo para entendê-las. O narrador de ambas as histórias é um everyman representando todos os jovens homens com hormônios nas alturas que já experimentaram em desespero por não encontrarem o prazer que mereciam. Prazer esse que envolve, invariavelmente, uma bela moça de cabelos negros.

Como Virgens Suicidas, em uma versão ainda mais pop e millennial, são histórias sobre o olhar masculino: sobre a necessidade de homens de ter seus prazeres atendidos e a indignação com que reagem quando esse privilégio lhes é negado.

Mas se Virgens Suicidas se tornou um clássico contemporâneo por questionar, criticamente, o que significa ser um “objeto” do olhar de outrem. Night is Short, Walk on Girl é frenético demais para colocar seu protagonista debaixo de uma lupa. Saímos do livro incertos se devemos tirar sarro do protagonista ou simpatizar com sua cruzada fracassada, por mais repreensível que ela seja. Problema este que incomoda ainda mais em Penguin Highway, outro livro de Morimi com um enredo duas vezes menos interessante e um protagonista triplamente mais chauvinista.

Quando seu “herói” se orgulha de desenhar os peitos de mulheres que conhece, você sabe que tem um problema).

Tatami Galaxy, porém, vira a falta de simpatia de sua personagem central de ponta cabeça. E de uma maneira que me fez entender que essas obras tem mais sabedoria do que aparentam à primeira vista.

Parte desse mérito vem da maneira como equilibra os impulsos sexuais de seu narrador com um enredo mais vago sobre a dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Parte, também, vem do fato de que esse narrador não é o verdadeiro protagonista de sua história.

Ao longo dos onze episódios, sua história é entrecruzada com a de outras pessoas com suas próprias agendas: Jougasakai, galã da turma que esconde um romance com uma boneca sexual; Ozu, colega que insiste em levá-lo para o mau caminho; Akashi, a “garota de seus olhos” – mas também uma mulher que não hesita em lhe pregar peças quando lhe convém; Higuchi, mistura de youkai e Grande Lebowski que parece puxar as cordas de seu destino, mas também viver um dia por vez, sem dar satisfações a qualquer um.

Na medida em que vemos as relações entre essas personagens evoluírem, fica difícil saber se estamos de fato assistindo à história do narrador ou as suas histórias, pelos olhos dele. Ironia que não escapa ao próprio narrador, que sofre para entender como pessoas tão imperfeitas, tão distantes de seu ideal de masculinidade, conseguem ter a vida cor-de-rosa que tanto persegue.

É impossível não lembrar de um trecho de Norwegian Wood, o belíssimo e melancólico romance de Haruki Murakami:

“Da direção do prédio do centro estudantil vinha o som de uma voz grossa praticando escalas. Aqui e ali estavam grupos de quatro ou cinco estudantes expressando quaisquer opiniões eles vinham a ter, rindo e gritando um ao outro. No estacionamento, um punhado de rapazes andavam de skate. Um professor com uma maleta de couro cruzou o estacionamento, evitando os skatistas. No pátio, uma estudante de capacete se ajoelhava, pintando grandes caracteres em um cartaz com algo sobre o imperialismo americano invadindo a Ásia. Era uma típica cena da universidade na hora do almoço, mas na medida em que me sentei assistindo-a com atenção redobrada, eu me dei conta de um certo fato. Cada pessoa que eu enxergava diante de mim estava feliz na sua própria maneira. Se eles estavam realmente felizes ou simplesmente pareciam estar eu não podia dizer. Mas eles pareciam alegres nesse agradável começo de tarde no final de setembro, e por conta disso eu senti um tipo de solidão que me era novo, como se eu fosse o único ali que não pertencesse de fato à cena.

Em minha resenha de Night is Short, Walk on Girl, critiquei seu “compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada”.

“Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.”

Tatami Galaxy nos ensina que “curtir o momento”, muitas vezes, é a melhor forma de questionar a realidade. Ensinamento valioso em qualquer instante da vida, mas que adquire uma importância fundamental em tempos de crise como estes em que vivemos.

Ao contrário do narrador do anime de Yuasa, o relógio de nossas próprias vidas jamais voltará para nos dar uma segunda chance.

Meu antigo colega de japonês – de cujo nome, confesso, nem mais me lembro – talvez tenha custado a entender essa verdade. Gosto de pensar que a alfinetada que me deu naquele dia foi, em alguma medida, um recado a si próprio. Quem é esse sujeito que joga fora das minhas regras, mas esbanja a mesma alegria que suo tanto para obter?

Não posso dizer que nunca mais pensei no que ele me disse, sobretudo nessa fase da vida, em que estou mais próximo a voltar à faculdade como professor do que como aluno. Mas de uma coisa não tenho a menor dúvida: meus anos de campus não poderiam ter sido mais rosados.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/feed/ 2 23027
“Palavras que Borbulham como Refrigerante”: encontrando poesia no que há de mais mundano https://www.finisgeekis.com/2021/08/18/palavras-que-borbulham-como-refrigerante-encontrando-poesia-no-que-ha-de-mais-mundano/ https://www.finisgeekis.com/2021/08/18/palavras-que-borbulham-como-refrigerante-encontrando-poesia-no-que-ha-de-mais-mundano/#comments Wed, 18 Aug 2021 20:12:58 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23002 Eu nunca fui um poeta. Minha breve experiência com essa forma de arte – escrevendo um poema aqui e ali, traduzindo outros tantos – deixou claro que rima, métrica, e eufonia são preocupações que deixo de bom grado aos outros.

Na verdade, sequer me tornei um leitor de poesia até quase chegar às portas da faculdade – para o desespero de meu pai, que recitava de memória Fernando Pessoa e Mário Quintana.

Felizmente, os anos (e uma coletânea de W.B. Yeats) me consertaram. Mais do que isso, entendi que “poesia” é algo mais do que palavras rabiscadas em uma página. Ela pode ser uma maneira de enxergar beleza até naquilo que é mais mundano.

Palavras que Borbulham como Refrigerante é um anime sobre esse sentimento e, ao mesmo tempo, uma prova viva dessa máxima. Um recado de que mesmo um filme despretensioso de romance pode tocar uma verdade que poucas obras alcançam

O anime, dirigido por Kyouhei Ishiguro, tem os ingredientes para se perder no oceano de histórias de amor que lotam serviços de streaming e o coração mole de otakus.

Uma pequena cidade interiorana, um protagonista talentoso, mas deslocado; uma garota-dos-olhos com problemas de imagem, amigos excêntricos, férias de verão. Ponha-o ao lado da trilogia de Chichibu – Anohana, Kokosake,  Sora no Aosa – e é fácil acreditar que temos outra parceria TatsuyukiOkada nas mãos.

O mocinho da vez é Sakura (chamado de “Cherry” pelos amigos), adolescente que faz bico em uma creche para idosos. Em um dia fatídico, seu caminho cruza com “Smile”, uma aspirante a influencer que – ironia das ironias, dado seu apelido – sofre crises de auto-estima em razão do tamanho de seus dentes.

Um dorayaki para quem adivinhar que tipo de sentimento brotará entre os dois jovens.

Mas Palavras que Borbulham como Refrigerante não é um simples romance adolescente. Cherry é um poeta. Especificamente, um autor de haicais: os tradicionais poemas de três versos japoneses. O próprio título, no idioma original, forma uma peça do gênero. As “palavras” a que se refere não são apenas confissões truncadas de amor, mas também sua grande, mas ainda imatura sensibilidade literária.

Cherry passa os dias testando poemas com cada nova expressão que escuta. Raramente sai de casa sem um saijiki, espécie de dicionário para a escrita de haicais. Um de seus amigos, um delinquente chamado Bieber, grafita seus poemas em muros cidade afora.

Que um anime compre o desafio de mostrar a adolescência à luz da paixão pelas letras – mais do que isso, de retratar a poesia como algo subversivo – seria por si só digno de aplausos. Mas Palavras que Borbulham vai mais longe, com um apreço pela poesia que só fica mais evidente quanto mais pensamos no gênero.

Historicamente, muitos haicais tradicionais privilegiavam imagens ligadas às estações – chamadas em japonês de kigo. Catalogar esses termos, inclusive, é uma das principais funções do saijiki, o dicionário que Cherry tanto usa.

Palavras que Borbulham parece tentar reproduzir esse fascínio em sua fotografia. Do verde ultrassaturado de gramados a explosões de cores dignas de um quadro de Takeshi Murakami, o anime é simplesmente maravilhoso de se olhar. É até difícil acreditar que boa parte de sua ação se desenrola num cenário tão mundano quanto um shopping center de interior.

Mas haicais não falam de paisagens e natureza apenas por falar. Como ilustra o poema abaixo, escrito pelo grande Matsuo Bashô (1644-1694), (na tradução de Gonzalo Bolliger)

Vá, veja o mundo

A neve caindo, caindo

De cansaço

“Estações”, muitas vezes, são pretexto para retratar a passagem do tempo – e seus efeitos sobre nós.

Efeitos, por exemplo, que sofre o Sr. Fujiyama, um dos velhinhos sob o cuidado de Cherry. Ex-funcionário de uma fábrica de vinis, dono de uma loja de LPs em tempos de Spotify e pirataria de música, ele é um homem esquecido pelo tempo. Sua esposa, falecida, foi uma cantora nos longínquos anos 1970 cujas décadas empurraram ao esquecimento.

Efeitos, também, que transformam sua própria cidade: uma aberração industrial feita de linhas de energia, paredes de concreto e estacionamentos que se estendem até onde o olho alcança. Os cuidadores da creche de velhos mal conseguem esconder seu desdém pelo Festival do Daruma, feriado cujas atividades ajudam a preparar. Como os idosos de que cuidam, o evento é uma relíquia que ultrapassou seu tempo.

Cherry e seus amigos são jovens demais para sentir esses problemas na pele, mas o anime deixa claro que suas vidas seguirão o mesmo caminho. O garoto publica seus haicais numa conta de Twitter seguida apenas por sua mãe. A “arte” de Bieber, seu amigo grafiteiro, dura apenas o tempo que leva para os seguranças do shopping encontrá-la e apagá-la. Smile é uma aspirante a influencer que grava lives falando de fofices.

Quando o enredo coloca essas personagens em busca de um LP perdido, gravado por Fujiyama para sua esposa, é impossível não perceber a ironia. Se algo tão sólido como um vinil sumiu sem deixar rastros, que esperança terá um tweet? Um grafite? Uma live?

Como a Sra. Fujiyama, eles também estão fadados a desaparecer.

Meus comentários talvez façam o anime parecer mais sombrio do que é. Não se enganem. Palavras que Borbulham ainda é um romance upbeat, com todo o açúcar que o “refrigerante” de seu título merece.

Se nada mais, é justamente por reflexões tão sérias com tanta leveza que ele se eleva dentro de seu gênero. Reflexões, aliás, que ele joga para dentro de seu romance.

Não há, no filme, grandes arroubos de choro ou “viveram-felizes-para-sempre”. O sentimento que brota entre Cherry e Smile não os define. É possível que, como as lives da garota, ele deixe de existir assim que pousem o celular. No fundo, não importa.

Como os haicais que os inspiram, Cherry e Smile estão dispostos a enxergar a beleza de cada momento, por mais breve que ele seja, mesmo sabendo que um dia tudo não passará de uma memória.

E talvez, inspirado também por esses poemas, seja melhor que eu mesmo não alongue esse texto para além do necessário. E, em vez disso, o termine com a palavra do nosso maior autor de haicais, que tão bem sintetizou o que Cherry, e todos nós, sentimos:

Esta vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/08/18/palavras-que-borbulham-como-refrigerante-encontrando-poesia-no-que-ha-de-mais-mundano/feed/ 2 23002
“Shino Can’t Say Her Name”: a juventude é só o ponto de partida https://www.finisgeekis.com/2021/07/21/shino-cant-say-her-name-a-juventude-e-so-o-ponto-de-partida/ https://www.finisgeekis.com/2021/07/21/shino-cant-say-her-name-a-juventude-e-so-o-ponto-de-partida/#respond Wed, 21 Jul 2021 21:20:01 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22976 Abrir um mangá de Shuzo Oshimi é o mesmo que sair na rua quando uma tempestade está por vir. Sabemos que há um risco de congelarmos até o osso, terminarmos a noite com um blecaute e ainda acordarmos no dia seguinte com uma dor de cabeça.

Assassinato, vandalismo, misantropia, tortura: nada parece estar além da imaginação do autor de As Flores do Mal

Assim, quando soube que outra de suas obras estava para ser lançada no ocidente, me preparei para o pior. Qual foi minha surpresa ao descobrir que “Shino-chan wa Jibun no Namae ga Ienai” (em inglês, Shino Can’t Say Her Name) pouco tem a ver com seus outros trabalhos.

Originalmente publicado entre 2011 e 2012, o mangá é a prova que Oshimi tem um coração tão grande quanto sua capacidade de nos chocar. E uma versatilidade artística digna dos maiores autores.

O título deixa poucas dúvidas quanto ao enredo. Nossa protagonista, Shino Oshima, é uma garota que não consegue pronunciar seu próprio nome.

Ansiedade? Trauma? Distúrbio de fala? A própria Oshima não parece ter certeza. Tudo o que sabe é que sente espasmos quando expressa certas palavras, e seu nome é uma delas.

No primeiro dia de aula, durante a cerimônia de apresentação, essa dificuldade a transforma na piada de toda sala.

Talvez sejam apenas os flashbacks de Heaven que custam a me sair da mente; talvez, o fato de outro mangá de Oshimi sobre uma personagem gaga envolver o gaslighting de um filho pela mãe. Quando abri Shino-chan, tive a certeza de que estava diante de outra experiência traumatizante sobre o bullying.  

Os ingredientes estão todos lá. Logo após o vexame em seu primeiro dia de aula, Oshima cai sob a asa de Kayo, uma rebelde boca-suja com um pôster de Mundo Fantasma na parede de seu quarto. Outro colega, um garoto chamado Kikuchi, faz os amigos gargalharem com uma imitação de sua gagueira.

Não é difícil pensar que Kikuchi se tornará seu bully, e Kayo, uma versão light de Nakamura, chantageadora que leva o protagonista de Flores do Mal a um caminho de auto-destruição.

Mas  Shino-chan é um mangá com um rumo próprio. Tão inesperada, na verdade, que é até difícil acreditar que ainda estamos em uma história de Oshimi.

Kayo pode ser uma rebelde, mas canaliza sua energias em uma devoção pelo violão e pelo som de Bob Dylan. Kikuchi faz piadas de mal gosto, mas não está claro se tem noção do que realmente diz. Se Oshima fala de menos, o garoto parece amaldiçoado a falar demais – para a confusão, e a mágoa, de quem quer que o escute.

Kayo também, aprendemos, tem dificuldades em se expressar. Aspirante a roqueira, ela é incapaz de cantar afinado. Uma tarefa que logo descobre que Oshima é capaz de desempenhar. Como tantos gagos, sua dificuldade não o afeta no canto da maneira como o faz na conversa do dia a dia.

Há aqui ecos óbvios de Solanin e A Voz do Silêncio, impregnados de um humor negro que poucos além de Oshimi teriam coragem de botar no papel (quando Kayo sugere que Oshima use um caderno para se comunicar, a primeira palavra que escreve é “pinto”).

Seu paralelo mais próximo, na verdade, é Kokosake, longa de Mari Okada sobre uma garota que recobra a voz por meio da música. Você sabe que o mundo é uma caixinha de surpresas quando o autor de Flores do Mal e a escritora de Anohana podem ser citados em uma única frase.

A vida como ela é

As semelhanças com Okada vão além do enredo. Embora o cinema da autora nem sempre acerte em cheio, seus melhores trabalhos são justamente aqueles em que se inspira na sua própria juventude. Sem Mari, aluna problema que faltava nas aulas, não teríamos Jintan, o inesquecível protagonista de Anohana.

Se a semelhança entre os nomes (Oshima/Oshimi) não deixa claro, Shino-chan é igualmente baseado em experiências reais.

Quem nos conta é o próprio autor, num posfácio que acompanha o mangá. Quando criança, ele descobriu que sofria de disfemia tônica, um tipo de distúrbio de fala que provoca espasmos no começo das frases.

Essa condição lhe trouxe muita dor de cabeça na adolescente, mas nem tudo foram lágrimas. Segundo ele, ter dificuldade em se comunicar o ensinou a ouvir e a observar. Foi graças a isto que aprendeu a “ler” as expressões faciais das pessoas, algo que se tornou de imensa utilidade quando se pôs a desenhar mangás.

É um sentimento que sua história sucede em provocar, mérito de um final tão doce e poderoso que me impede até de falar a respeito. Não porque dependa de spoilers, mas porque contém uma epifania. Como um bom contista, Oshimi termina sua história com uma cena que nos faz reavaliar tudo o que pensávamos das suas personagens. E, com alguma sorte, também das pessoas de carne e osso do lado de cá da página.

“Eu não usei as palavras ‘gagueira’ ou ‘distúrbio de fala’ em momento algum nesse mangá. Por quê? Porque eu não queria que essa história se tornasse apenas sobre qualquer uma dessas coisas.

Conforme eu o desenhava, eu pensei: “desde que ele possa ressonar com qualquer um, mas ainda sim permanecer uma história sobre uma única pessoa, está bom o suficiente para mim”.

Histórias sobre adolescentes muitas vezes são uma desculpa para adultos extravasarem suas próprias fantasias. Seja ao retrarem experiências que temem ou desejam – envolvendo sexo, drogas ou violência– seja ao colocarem nos anos escolares num pedestal, como se o auge da nossa vida terminasse aos dezessete anos.

Shino-chan não é sobre nenhuma dessas coisas. Suas personagens não experimentam grandes libertinagens, grandes reviravoltas, acontencimentos excepcionais. Nem precisam de tanto para nos emocionar. Para elas, a adolescência é valiosa porque é apenas o ponto de partida; a estaca zero que lembramos com carinho não porque foi a mais importante, mas porque foi a que estourou o casulo dos adultos que viríamos um dia a nos tornar.

É difícil apontar o que é mais tocante. O fato de um mangaká conhecido por trabalhos tão misantrópicos revelar um lado tão humano ou o fato de ter decidido compartilhá-lo de maneira tão íntima.

Seja como for, só temos a agradecê-lo.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/07/21/shino-cant-say-her-name-a-juventude-e-so-o-ponto-de-partida/feed/ 0 22976
“Hana-chan e a forma do mundo” : retrato de um Japão que não existe mais https://www.finisgeekis.com/2021/07/14/hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais/ https://www.finisgeekis.com/2021/07/14/hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais/#respond Wed, 14 Jul 2021 21:20:28 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22962 Quando era pequeno, o prédio em que eu morava pegou fogo.

Acordei de madrugada com os gritos da minha mãe. Meu pai não esperou para que eu entendesse que aquilo não era um sonho. Fui puxado escada abaixo com tanta força que tive a impressão de que voávamos.

Nos raros momentos em que uma curva nos forçava a aterrissar, lembro-me de ter sentido o chão frio e molhado. Estranho fogo aquele, que alagava em vez de queimar.

Dias depois, quando já tinha me recuperado do susto, as peças entraram em seus lugares.

Nosso incêndio havia, sim, espalhado labaredas – embora, felizmente, não a ponto de condenar o prédio. A questão é que os vizinhos haviam espalhado toalhas molhadas para conter o fogo.

A explicação me fez sentido, mesmo naquela época. Mas nem ela foi suficiente para apagar a memória de que eu tinha escapado das chamas como quem desce um tobogã.

É sobre esse senso de maravilhamento, essa capacidade de tirar uma aventura das experiências mais mundanas de que fala Hana-chan e a Forma do Mundo.

As formas do mundo

Não é à toa que o incêndio da minha infância foi a primeira coisa a me vir à mente ao abrir o mangá de Ryotaro Ueda. Hana-chan, também, começa com um desastre. Ou seria mesmo?

Uma criança brinca na chuva. Sua professora para o carro ao seu lado e insiste para que saia dali. Um tufão está a caminho. A menina, Hana-chan, diz que já fez os preparativos, mas não parece se dar conta da severidade do que está por vir.

Quando o tufão chega, suas consequências são tão mágicas – por falta de palavra melhor – que nos perguntamos se tudo aquilo não passou de uma fantasia.

O que, realmente, aconteceu com Hana-chan? Pergunta errada. O mangá de Ueda não é uma história sobre as experiências de uma menina, e sim sobre as formas inusitadas, fabulosas que assumem quando são filtradas por sua mente.

É um mangá sobre o que significa apreender o mundo quando ainda somos jovens o suficiente para escapar do cabresto da razão e do raciocínio abstrato. Justamente por isso, é uma carta de amor à imaginação – e à importância de cultivá-la.

O mangá é uma série de contos descrevendo episódios da vida de Hana-chan e seus amigos. Seria fácil descrevê-lo como um slice of life, mas isso não dá conta de explicar o quanto a obra destoa das convenções do gênero. Na verdade, não fossem os nomes japoneses e arrozais espalhados pela paisagem, seria até fácil esquecer de que se trata de um mangá.

Estamos na linha Minha Experiência Lésbica com a Solidão de obras que bebem dos BDs franceses e HQs independentes americanas tanto quanto dos quadrinhos japoneses. Pela personalidade tanto quanto pelo visual, Hana-chan chega a lembrar uma personagem do Ziraldo. Ponha uma panela em sua cabeça e ela se camuflaria perfeitamente em um volume de Menino Maluquinho.

Um Japão que não existe mais

Mangás sobre “garotas fofas fazendo fofices” muitas vezes são escritos para adultos. A “infância” idealizada que retraram é um exercício de escapismo: um contraste aos perrengues, horas extras e boletos que o dia a dia nos lança.

Hana-chan tem uma proposta diferente. Alguns de seus contos, como aquele sobre um plano da prefeitura para eliminar ervas daninhas com robôs, começa e termina no mundo da fantasia. Outros, como a trama sobre uma mulher cujo visual lembra a Sadako de O Chamado, apenas molham os pés no surreal, quando muito.

Ueda nunca traça a linha que separa uma coisa da outra, e seu trabalho é mais bem sucedido por isto. Não só porque faz jus à magia dos primeiros anos das nossas vidas, mas também porque eleva esse mistério acima da mera fantasia.

É, de fato, incrível o quanto aprendemos da vida ‘real’  Hana por meio de uma história que nos diz tão pouco. Hana-chan e seus amigos vivem em uma cidade escondida nas montanhas que diminui a cada ano que passa. Abandonados pela população em declínio, arrozais são consumidos pela natureza. Hana-chan e seus amigos brincam em ruas não asfaltadas, terrenos baldios, carcaças de fuscas abandonados.

Quando o escoamento de uma represa ameaça destruir a vila de Hana, tive a impressão de estar lendo uma versão japonesa de As Cidades Afundam em Dias Normais.

Há de fato mais em comum entre o mangá e esse romance de Aline Valek. Tal como a escritora brasileira fez com seu retrato do cerrado, Ueda escreve sobre um Japão que não existe mais – apagado por águas, reais e metafóricas.

“A chuva é quando o mundo troca de pele” diz Hana-chan. Cedo ou tarde, tudo o que conhecemos passa por esta metamorfose.

Muitas vezes, o que encontramos do outro lado é irreconhecível.

Todos nós temos um lugar a que não podemos voltar. Mesmo que não desapareça de maneira tão dramática quanto o Japão rural de Ueda.

Isso porque jamais voltaremos a enxergar o mundo com a imaginação de Hana-chan. O prédio onde morava quando minha casa pegou fogo continua firme e forte. Na verdade, continuo morando no mesmo andar de onde levantei vôo com meu pai naquela noite.

Mas onde o Vinicius de sete anos via uma experiência de outro mundo, eu enxergo apenas tijolo e cimento, escadas e extintores de incêndio. Para o mal, mas também para o bem, a perda de inocência é um caminho sem retorno.

O mangá de Ueda, porém, sugere que não é necessário lutar contra a corrente.

Memórias se remetem ao passado, mas não pertencem a ele. Elas existem também no presente, no futuro, em qualquer tempo em que pessoas estiverem dispostas a relembrá-las e compartilhá-las.

E, ao salpicá-las de magia, podemos garantir que nosso futuro, também, preserve algo de mágico.

]]>
https://www.finisgeekis.com/2021/07/14/hana-chan-e-a-forma-do-mundo-retrato-de-um-japao-que-nao-existe-mais/feed/ 0 22962