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Anime – finisgeekis https://www.finisgeekis.com O universo geek para além do óbvio Thu, 10 Feb 2022 19:43:39 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=5.7.11 https://i2.wp.com/www.finisgeekis.com/wp-content/uploads/2019/02/cropped-logo_square.jpg?fit=32%2C32&ssl=1 Anime – finisgeekis https://www.finisgeekis.com 32 32 139639372 “The Characters Taught Me Everything”: por dentro da carreira de Megumi Hayashibara https://www.finisgeekis.com/2022/02/10/the-characters-taught-me-everything-por-dentro-da-carreira-de-megumi-hayashibara/ https://www.finisgeekis.com/2022/02/10/the-characters-taught-me-everything-por-dentro-da-carreira-de-megumi-hayashibara/#respond Thu, 10 Feb 2022 19:43:38 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23098 Você sem dúvida já teve contato com Megumi Hayashibara, ainda que não a conheça de nome. Dubladora, cantora e radialista japonesa com uma carreira de mais de trinta anos, ela já trabalhou em alguns dos animes mais famosos de todos os tempos, como Evangelion (Rei Ayanami), Cowboy Bebop (Faye Valentine), Ranma ½ (Ranma) e Pokémon (Jesse).

The Characters Taught Me Everything (“As Personagens me Ensinaram Tudo”), livro de sua autoria publicado recentemente nesse lado do mundo, é uma rara (e preciosíssima) oportunidade de vê-la atrás da máscara.

“Tirar a máscara”, talvez, não seja sequer a expressão adequada. Hayashibara escreve com a aura de mistério de quem se esforçou por décadas para nublar as fronteiras entre si própria e as vozes a quem deu vida. Fechando metaforicamente os olhos, é até possível imaginar que lemos não uma mulher de carne e osso, mas uma alma compartilhada entre todas suas personagens.

Sua retrospectiva é menos uma autobiografia que uma história de quatro décadas seminais na história dos animes  – e daquilo que as tornou tão mágicas.

Vivendo a vida um episódio por vez

Hayashibara não escreve como uma escritora. Seu texto é espontâneo e informal, como se transcrito se um conversa face-a-face, separada dos leitoras apenas pelo espaço entre os bancos de um izakaya.

A seiyuu Megumi Hayashibara e algumas das (muitas) personagens a quem deu vida. Fonte da montagem: Crunchyroll

Sua fórmula também é simples – e forte justamente por isso. Cada capítulo é dedicado a uma personagem do vastíssimo rol de personagens a quem a atriz deu uma voz. Ela nos introduz à obra, conta-nos o que rolou nos bastidores e, fiel ao título, nos diz o que aprendeu com ela.

Essa mera premissa já faz do volume um item obrigatório na biblioteca de qualquer fã de anime. “Eu espero que esse livro possa se tornar uma pequena peça da história do anime”, diz a autora em sua conclusão. A seiyuu não poderia estar mais errada. Ela já é indiscutivelmente uma peça, e nada pequena, da história da mídia. Não me surpreenderia que sua memória, além de uma divertida leitura, viesse a se tornar base para estudos sobre animes por anos a fio.

Digo “memória”, palavra que aparece inclusive em seu marketing, mas vale a pena mencionar que o livro mal toca na vida pessoal de sua autora. Em tempos dominados por influencers que são seus próprios produtos, é reconfortante ouvir de uma criadora tão apaixonada por sua arte que sequer cogita roubar seu holofote.

É fascinante observar, pelos seus testemunhos, o quão radicalmente a indústria de dublagem se transformou com o passar das décadas. Nos primórdios, segundo relatos de seus senpais, o voice-over de filmes estrangeiros era feita ao vivo, e um único erro podia comprometer todo um dia de trabalho. Nos anos de 2010, em contraste, os seiyuus foram apresentados a toda sorte de inovação técnica. Foi o caso da dublagem de Rune Balot em Mardock Scramble, que combinou seu registro normal com uma captação do som conduzido pelos seus ossos, de maneira a produzir uma voz sintética.

Rune Balot de Mardock Scramble

Ela nos conta da feliz surpresa em interpretar heroínas em animes infanto-juvenis para, anos depois, trabalhar com estes mesmos adolescentes, hoje adultos e dubladores, gravando animes para uma nova uma geração de fãs. O número de colegas mortos que cita ao longo dos capítulos é um lembrete mais sinistro da passagem do tempo. Trabalhar com colegas de diferentes idades significa, infelizmente, ser mais exposto ao fim da vida.

Não é à toa que a passagem do tempo é um dos assuntos mais recorrentes ao longo de seus testemunhos. “Avanços na tecnologia e desenvolvimento dos sentidos humanos não são diretamente proporcionais” escreve ela. “Quando a tecnologia avança rápido demais, pessoas são deixadas para trás.” Sentimento que direciona ao enredo dos inúmeros animes sci fi em que trabalhou, mas também aos próprios avanços na tecnologia de produção, nem sempre feitos com os dubladores (ou mesmo os espectadores) em mente.

Ao mesmo tempo, a experiência de interpretar personagens que não batem com sua idade – muitas vezes, dentro de séries que se estendem, elas próprias, através dos anos – passa uma estranha sensação de atemporalidade. “Às vezes, ser uma dubladora é como estar descolada do tempo”.

“Ainda que o analógico evolua ao digital, ou os humanos evoluam a uma inteligência artificial, os sentimentos que uma dubladora coloca em sua voz quando está diante do microfone jamais desaparecerão.”

Outras digressões são menos felizes. Hayashibara é polida demais para dizer com todas as letras, mas muitos dos animes em que trabalhou passam longe de ser obras-primas. Na tentativa de encontrar uma pérola de sabedoria que encaixe nas séries mais comerciais, seu livro soa às vezes como um volume de auto-ajuda. O capítulo sobre a franquia Gundam, em que filosofa sobre o sentido da guerra, é particularmente fraco.

Felizmente, a parte boa de seu livro mais do que compensa a leitura. Em capítulos que soam particularmente relevantes hoje, nos anos pós-#MeToo, ela comenta sobre como interpretar certas personagens a pôs em conflito com suas próprias noções de feminilidade. Uma autointitulada “tomboy” que nunca se encaixou em modelos prontos de gênero, Hayashibara viu no anime tanto uma oportunidade quanto uma camisa de força.

Por um lado, escutar briefings descrevendo características vocais como masculinas e femininas sempre lhe pareceu “uma forma de lavagem cerebral.”

“Se existisse um jeito de ser objetivamente feminino ou masculino desde o começo, eu não acho que essas palavras teriam sido sequer inventadas.”

“Eu me pergunto se essas palavras não foram criadas porque tantas pessoas não estão fora dos moldes. E sinto que muitos de nós vivem nossas vidas presos pelas suas restrições, como uma maldição”.

Por outro lado, ela também conta como certas personagens femininas a expuseram a facetas do universo feminino que ela mesma não conhecia. É o caso da sensualidade agressiva de Faye Valentine, e sobretudo de Miyokichi de Showa Genroku Rakugo Shinju, que chegou, em sua história, a trabalhar como profissional do sexo. Numa das confissões mais surpreendentes, Hayashibara conta que pediu ao marido que lhe indicasse filmes eróticos para que conseguisse entender a essência da personagem.

Miyokichi

Ainda mais fascinante é a história daquela que, para muitos, é sua voz mais conhecida: Rei Ayanami. Se hoje a personagem de Evangelion é lliteralmente a patrona de um arquétipo, quando o anime foi lançado, em 1995, a ideia de uma personagem incapaz de demonstrar sentimentos era praticamente uma contradição em termos.

As orientações de seu criador, Hideaki Anno não ajudavam: “Não é que ela não tenha sentimentos” disse ele “Ela era incapaz de entender o que eram sentimentos”. Para interpretá-la, Hayashibara teve ela própria de se perguntar o que significava ter emoções.

Ela nos conta que a gravação aconteceu durante um período conturbado na relação com sua mãe, uma mulher tradicional que a condenava por preterir a vida doméstica em prol do trabalho. O cabo de guerra entre a paixão pela carreira e as pressões maternas levou Hayashibara à conclusão de que ter emoções é vestir dois rostos. De onde ser Rei Ayanami significava tornar-se uma pessoa incapaz de hipocrisia.

É uma maneira um tanto sinistra de se encarar as emoções, mas tem tudo a ver com uma artista cuja profissão consiste justamente em encarnar outras pessoas. O tema é recorrente em seus testemunhos. “Interpretar alguém que alterna entre dois rostos veio naturalmente a mim” ela diz de Paprika “Em vez de mudar meu tom de voz, eu mudava minha maneira de pensar”.

Longe de provocar angústia, o fardo parece agradá-la. “Quando eu comecei esse trabalho” explica “eu sentia que estava acomodando outras almas dentro do meu corpo. […] Eu precisava apenas me encolher e dar espaço” a elas.

Paprika

Fãs de anime – ou de qualquer outra arte – costumamos estimar nosso hobby por ampliarem nossos horizontes, colocarem-nos nos pés de outras pessoas. A sensação é de ser somado a cada uma dessas vidas ficcionais, como se nos tornássemos mais quem próprios somos a cada ponto de vista novo que adquirimos.

Ver uma atriz descrever seu trabalho como uma tentativa de se encolher para acomodar essas máscaras tem, à primeira vista, um quê de sinistro. Mas apenas à primeira vista.

Após ler o seu livro, não tive como não interpretar a colocação como fruto de generosidade, tanto para seus espectadores quanto para os mangakás e diretores a cujas criaturas deu vida.

O povo é um silêncio, e eu serei seu campeão, disse Gwynplaine, o protagonista de O Homem Que Ri de Victor Hugo. O universo dos animes não é exatamente um silêncio (ao menos, não literal). Mas é indiscutível que tem uma porta-voz – e uma campeã.

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O que “Mawaru Penguindrum” nos ensina sobre o extremismo https://www.finisgeekis.com/2022/01/26/o-que-mawaru-penguindrum-nos-ensina-sobre-o-extremismo/ https://www.finisgeekis.com/2022/01/26/o-que-mawaru-penguindrum-nos-ensina-sobre-o-extremismo/#respond Wed, 26 Jan 2022 21:29:07 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23092 O Finisgeekis entra em mais um ano, e tenho o privilégio de anunciar algo para lá de especial.

Mais uma vez, tive o privilégio de escrever para o ANN. Desta vez, sobre um tema que não poderia ser mais relevante – e um dos melhores animes já criados.

Mawaru Penguindrum é conhecido entre fãs de anime pelo seu surrealismo, simbolismo e criatividade artística. Ao mesmo tempo, é uma série que fala sobre um dos mais traumáticos eventos na história japonesa recente: o atentado de 1995 ao metrô de Tóquio. Membros de uma seita apocalíptica liderados por uma subcelebridade midiática com um pé na política expuseram mais de mil pessoas ao tóxico gás Sarin. Catorze perderam a vida. O país nunca mais foi o mesmo.

Para nós, lembrando-nos do episódio a partir do ano de 2022, é difícil não traçar paralelo com o momento político em que vivemos. Não só no Brasil, mas no mundo todo, assistimos à entrada de subcelebridades midiáticas na política. Trazendo, muitas vezes, ideias tão extremas quanto as da seita de 1995.

Como chegamos a esse ponto? E o que podemos fazer para sair dele?

Lançado em 2011, Penguindrum não foi escrito com nossos problemas em mente. Mas ele traz uma lição fundamental sobre o que nos mantém unidos como sociedade – e o que pode nos destruir como pessoas em momentos de crise e ressentimento.

Confiram o artigo completo no ANN.

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“Heike Monogatari” e a devassidão https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/ https://www.finisgeekis.com/2021/12/08/heike-monogatari-e-a-devassidao/#respond Wed, 08 Dec 2021 22:38:46 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23062 É normal que cidadãos falem mal de seus políticos.

Viver em sociedade é uma coisa naturalmente estressante. Não escolhemos em que país, ou sob que tipo de governo, temos o infortúnio de nascer. Ninguém nos pergunta se queremos ou não obedecer às leis. E aqueles que estão no poder têm uma capacidade sem igual de tornar nossa vida um inferno, sem que, na maioria das vezes, possamos fazer qualquer coisa para evitar.

A onda de populismos de extrema-direita que sacudiu o mundo na última década deu um novo sentido a essa insatisfação. Os líderes que subiram ao poder não são apenas corruptos ou incompetentes. São seres humanos repugnantes em praticamente todos os sentidos imagináveis, que parecem se esforçar para violar cada limite da decência e bom gosto.

Para aqueles que acompanham os noticiários, a impressão é de que não somos mais apenas passageiros em uma viagem que embarcamos a contragosto (o que já seria, por si só, ruim). Estamos acorrentados a um veículo que segue desgovernado à beira de um precipício.  

Se existe algum alento, é o de que não somos os primeiros a vivenciar tempos turbulentos – nem a transformar estas turbulências em arte. Heike Monogatari, épico da literatura japonesa recentemente adaptado às telas, é uma verdadeira lição do que torna um governo legítimo – e das águas profundas que nos esperam se nossos líderes flertarem com o abismo.

Tirania e devassidão

Se você não conhece a obra, aqui vai um primer.

Heike Monogatari é um épico sobre a derrocada dos Heike (também conhecidos como Taira), clã que dominou a política japonesa no final do século XII. Poderosos e bem conectados, os Heike deixam o sucesso subir à cabeça e se rendem a atrocidades de toda espécie. Seus desmandos motivam um clã rival, os Genji, a usurpá-los do poder.

O conflito, baseado em eventos reais, é conhecido como a Guerra Genpei e terminou com a vitória dos Genji.

Sua adaptação em anime, produzida pelo estúdio Science Saru e dirigida por Naoko Yamada, condensa em apenas 11 episódios as mais de 700 páginas do texto original (a depender da edição). Mesmo assim, ela preserva a lição central da obra sobre a natureza e consequências do poder.

Lendo (ou assistindo) Heike Monogatari à luz dos populismos contemporâneos, poucas personagens nos despertam mais familiaridade que Kiso no Yoshinaka, o terrível comandante dos Genji que toma Kyoto das mãos dos Heike. Bruto criado no anterior, a pompa e a etiqueta da capital imperial são tão incompreensíveis quanto uma língua estrangeira. Pior, Kiso parece tirar prazer em escandalizar seus pares – e mesmo seus superiores – quebrando o maior número de regras possível.

Como os populistas de hoje, ele se gaba de ser um outsider, vestindo a intransigência com o establishment e o desprezo às regras do jogo como um manto de que se orgulhar.

Infelizmente para as personagens do épico, se os outsiders de hoje fingem serem “gestores”, “capitães” ou coisas que o valham, Kiso não esconde ser um sádico. Ele destrói plantações e rouba comida dos camponeses para dar aos seus soldados. Para sanar o tédio, permite que os homens invadam as casas das pessoas e estuprem seus habitantes.

Kiso é um tirano, mas criticá-lo por ser “autoritário” é perder de vista o mais importante. Ele não desrespeita o imperador porque está em uma cruzada popular contra a monarquia. Ele é simplesmente imaturo e não gosta de se impor limites.

Ele não destrói plantações porque pratica uma ação calculada de terra queimada. Ele o faz porque tem um cavalo e, segundo ele, cavalos precisam comer.

Ele não aterroriza a população como parte de um regime de medo – como tantos ditadores na era contemporânea. Como um adolescente manhoso, ele acredita que o mundo gira em torno do seu umbigo, e as vontades dos outros não importam.

O filósofo Harry Frankfurt tem um nome para a postura de Kiso: devassidão. Segundo ele, o devasso é um indivíduo que age sempre de acordo com suas vontades imediatas. Ele não tem capacidade de se segurar e pensar no longo prazo; de considerar se aquele curso de ação, no fundo, é o mais apropriado. Quando o desejo bate, é com a força de uma abstinência de droga.

Quando o devasso é contrariado, ele não consegue resistir à vontade de mostrar o dedo do meio. Mesmo que ele seja um ministro, e as “ofensas” que recebeu sejam críticas a sua atuação em um episódio de calamidade pública.

Quando o devasso sente vontade de fazer uma piada racista, ele não tem como se segurar. Mesmo que os alvos da troça seja parceiros comerciais e seu gesto desencadeie uma crise diplomática.

Quando o devasso perde, não tem esportiva para aceitar a derrota. Como uma criança que ainda não aprendeu limites, ele esperneia, grita que “não valeu” e ameaça levar sua bola embora. Mesmo que a “derrota” em questão seja uma eleição e a “bola”, o futuro do país.

Pra Frankfurt, o devasso não é só uma pessoa irresponsável. Ele não é sequer uma pessoa. Como um animal selvagem, ele é regido completamente pelas vísceras. Debater com um representante da laia é uma perda de tempo. Ser governado por um, uma tragédia.

O texto de Heike Monogatari  dá voz a esse sentimento:

“A capital inteira fervia com os Genji,
Que entravam em todos os lugares e cometiam incontáveis roubos.
Mesmo em terras que pertenciam a Kamo ou Hachiman [i.e. sagradas],
Eles ceifavam plantas de arroz ainda verdes para alimentar seus cavalos.
Eles invadiam depósitos e tomavam o que havia dentro deles;
Eles roubavam de viajantes e os privava de suas roupas.
“Quando os Heike controlavam a cidade”, as pessoas diziam,
“O lorde Kiyomori era apenas uma vaga ameaça.
Ninguém roubava todas as suas roupas.
Melhor os Heike que os Genji.”

Mais do que cruel, o devasso é perigoso porque suas ações são arbitrárias. Ao contrário de um tirano “consistente”, que sempre retribui os aliados ou tortura seus inimigos, o devasso faz o que lhe der na telha.

Ele é o sujeito que cobre aliados de privilégios em um momento, para mais tarde “fritá-los” e salvar a própria pele. É o covarde que beija os pés de seus superiores quando recebe uma intimação, mas volta atrás nas palavras na primeira oportunidade.

Apoiar um devasso é como se pendurar na roda da fortuna. Parece bom enquanto estamos por cima, mas não sabemos qual momento de glória será nosso último.

Em Heike Monogatari, os aliados de Kiso aprendem isso da forma mais difícil. Cansados dos seus desmandos, os próprios Genji enviam tropas contra ele. Num exemplo ainda mais chocante de devassidão (infelizmente cortado da versão anime) Kiso cogita brevemente virar casaca e se unir aos Heike para salvar a própria pele.

É fácil tirar dessa parte da história a mensagem de que “devassos são ruins, e devemos expulsá-los da política”. Embora não deixe de ser verdade, é uma lição fácil – e pequena – demais para as ambições do épico.

Algo que salta aos olhos quando apreciamos a obra nos dias de hoje é a ausência de protagonistas e antagonistas claros. Não porque a história tenha uma moralidade cinza, mas porque fala de vícios e virtudes que vão além de meras dinastias.

Heróis ou vilões, devassos ou comedidos, todos têm momentos de fraqueza, instantes de redenção, pecados a pagar.

Apreciando a obra sob o ponto de vista da devassidão, não é difícil entender o porquê. Afinal,

Um governo não precisa de ‘devassos’ para ser ele próprio devasso

A afirmação acima é de Arthur Applbaum, um dos pensadores que mais tem se dedicado a entender os efeitos da devassidão na política. Como ele explica, esse é um problema que vai muito além dos populistas do momento.

Tal como é esperado de uma pessoa bolar planos e agir consistentemente, ele diz, um governo deve ser capaz de fazer o mesmo. Na verdade, é ainda mais importante que um governo não seja governado pelos seus impulsos, pois a vida seu povo está, literalmente, em suas mãos.

Um indivíduo devasso pode matar alguém em um surto de ódio. Um governo devasso pode exterminar toda uma população, destruir relações diplomáticas ou causar danos irreversíveis ao meio ambiente.

Por incrível que pareça, diz Applbaum, esse governo não precisa ser formado por pessoas devassas. Uma cúpula que não consiga tomar decisões ou parar de brigar internamente pode, para todos os fins, agir de maneira indistinguível a um devasso. Mesmo que seus membros sejam os sujeitos mais íntegros, comedidos e racionais da face da Terra.

Emprestando uma metáfora da filósofa Christine Korsgaard, Applbaum compara esse governo a um saco cheio de ratos. Presos com seus colegas, os animais vão se mexer desesperadamente. Com o tempo, é até capaz que o próprio saco “caminhe” alguns centímetros para um lado ou para o outro. Diante de um estímulo externo – por exemplo, um tapa – é provável que os ratos, por coincidência, fujam para a mesma direção. Porém, não é possível dizer que o saco aja, como se tivesse uma capacidade de cálculo.

Governos devassos são tão perigosos quanto líderes devassos, pois reproduzem seu maior vício: a arbitrariedade. Tal como um devasso pode decidir salvar uma pessoa em uma ocasião e mandá-la matar amanhã por mero capricho, o governo devasso é completamente imprevisível.

O Clã Taira de Heike Monogatari é um exemplo perfeito de governo devasso. Fiel aos comentários de Applbaum, nem todos os seus membros são ruins. No início do épico, Shigemori, filho do patriarca Kiyomori, é uma bússola moral para a família. O nobre faz de tudo para preservar a reputação da família, chegando ao cúmulo de peitar o próprio pai – algo inimaginável segundo as normas sociais da época.

Mesmo Kiyomori, a despeito de ser um tirano, nem sempre foi um devasso. Para tomar o poder durante a Rebelião Heiji – uma guerra que precede os eventos do épico – ele balanceou a truculência com doses copiosas de misericórdia.

Seu principal rival, o líder Genji Minamoto no Yoritomo, por exemplo, passou anos se recusando a erguer um dedo contra os Heike. O motivo? Kiyomori havia poupado sua vida durante o conflito, ação pela qual ele ainda era grato. O patriarca dos Heike podia ser cruel, mas sabia que sua linhagem só se manteria no poder se planejasse para o futuro.

Infelizmente, Shigemori e o jovem Kiyomori eram apenas dois ratos no saco escuro que era o clã Taira. Com a idade, Kiyomori se torna cruel e arbitrário. A toda e qualquer ameaça ele responde com violência, mesmo que isto só piore as coisas no longo prazo. Na verdade, ele sequer consegue pensar no longo prazo. No leito de morte, ele literalmente diz que seu único desejo é ver seu rival, Yoritomo, morto a qualquer custo.

Os outros membros dos Taira são ainda piores. Munemori, outro filho de Kiyomori, cria um incidente político por conta de um cavalo. Ele cobiçava a montaria de Minamoto no Nakatsuna, do clã Genji. Quando Nakatsuna lhe disse que não lhe entregaria o cavalo, Munemori usou o poder da sua família para tomá-lo à força. Não satisfeito, batizou o animal de “Nakatsuna” para ridicularizar publicamente o nobre Genji.

Mas o exemplo que melhor ilustra o ponto de Applbaum é talvez o de Shigehira, um dos generais dos Taira. Enviado para refrear uma rebelião entre os monges de Nara – onde estão alguns dos templos mais importantes do Japão – ele acaba acidentalmente ponto fogo em todo o complexo.

A tragédia gera um mal-estar de que os Taira nunca mais conseguiriam se descolar. Tempos depois, quando os ventos começam a soprar em outra direção e os inimigos da família avançam contra a capital, Kiyomori e seus descendentes até chegam a implorar pela ajuda de outros templos. Os monges, porém, haviam aprendido sua lição:

“Sannou [, deus do Monte Hiei,] tenha piedade de nós!
Três mil monges, acrescentem sua força à nossa!”
Esse foi o espírito do apelo dos Heike,
Mas sua conduta ao longo dos anos
Ofendera demais os deuses
E traíra toda a esperança dos homens.
Suas preces não obtiveram resposta;
Suas súplicas não convenceram a ninguém.

Ao contrário de Kiso e Munemori, Shigehira não é um devasso. A destruição de Nara foi um erro tático que ele nunca tentou negar e pelo qual sempre se arrependeu. Como ele mesmo afirma antes de sua execução, seu único crime foi ter obedecido ordens de seus superiores. Coisa que só fez porque a alternativa – a execução por desobediência – era pior.

Infelizmente para Shigehira, seus “superiores” eram um saco de ratos que tratava a política como um jogo de acerte-a-marmota. A mão que botou fogo em Nara pertencia a uma pessoa capaz de pesar ações e consequências, mas o governo que lhe deu a ordem reagiu à rebelião dos monges como um animal selvagem a um cheiro desconhecido.

Shigemori, o Heike “do bem”, até tenta, mas não consegue desviar o clã do precipício a que se dirige. Embora sua versão literária não tenha o mesmo dom da profecia de sua encarnação no anime, ela é sábia o suficiente para entender uma verdade dolorosa. Verdade que, às vésperas de uma eleição presidencial que promete ser tão desastrosa quanto a de 2018, faríamos bem em aprender:

Um governo, uma nação, é maior que a boa vontade de um único indivíduo. É uma entidade grande demais – perigosa demais – para ser largada à deriva.

Colocá-la de volta ao rumo não é tarefa para devassos que prometeram “se comportar”, salvadores da pátria ou autointitulados “técnicos” subordinados a ministérios desgovernados.

Precisamos, urgentemente, nos livrar desse saco de ratos. Ou então estaremos, como os Heike, fadados a afundar no nosso próprio Estreito de Shimonoseki.

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“Tatami Galaxy”, ou por que devo desculpas a Tomihiko Morimi https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/ https://www.finisgeekis.com/2021/09/22/tatami-galaxy-ou-por-que-devo-desculpas-a-tomihiko-morimi/#comments Wed, 22 Sep 2021 23:54:33 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23027 Aconteceu no meu primeiro ano da faculdade.

Foi a melhor época da minha vida até o momento, mas também a mais estressante. Farto até a medula de simulados e aulas de decoreba, decidi que tinha chegado a hora de aproveitar minha vida ao máximo. Tudo o que sentia vontade de fazer fiz questão de levar a cabo. Ao mesmo tempo.

Toquei violino em uma orquestra de câmara amadora. Comecei minha iniciação científica. Entrei em turmas de latim e japonês. Nas horas vagas, saía com minha namorada ou meus dois círculos de amigos: os novos, da faculdade, e os antigos da escola.

Minha rotina era uma montanha-russa entre o sentimento de realização e a iminência de um burnout. Nunca me sentira tão completo e, ao mesmo tempo, tão cansado.

Foi então que escutei de um colega da aula de japonês:

“Quer dizer que você não vai em festas? Você não tem medo de deixar essa oportunidade passar e viver com remorso pelo resto da vida?”

Eu travei. Menos, imagino, por ter visto sabedoria em suas palavras que por ter escutado uma frase tão absurda de alguém que, para todos os fins, era até então um desconhecido. Tirando os “bons dias” e os exercícios de diálogo que fazíamos na aula, aquela era a conversa mais longa que já tínhamos tido.

Senti vontade de responder que estudava na FFLCH-USP, que pouco tinha a ver com o campus cor-de-rosa das comédias românticas americanas. E que meus colegas eram menos conhecidos por festas que por ocuparem a reitoria durante greves e se vestirem de mendigo em tempo integral. (Era um clichê, obviamente, mas todo clichê tem uma ponta de verdade).

Mas apenas desconversei com uma desculpa qualquer, chocado pela minha própria fraqueza diante de um comentário tão estúpido. Eu já estava dando tudo de mim. Não havia mais horas no dia para fazer qualquer outra coisa. Será que mesmo assim estava desperdiçando meus anos de juventude?

Se você curte animes deve reconhecer meu drama no protagonista de The Tatami Galaxy, anime de Masaaki Yuasa baseado no romance de Tomihiko Morimi. Assistindo a série pela primeira vez no esquenta para uma sequência já anunciada, me dei conta de uma coisa.

Quando resenhei Night is Short, Walk on Girl, livro anterior de Morimi que serve de prequel a Tatami Galaxy, teci comentários um tanto duros. Decepção que atribuí ao próprio Morimi, cujo infanto-juvenil Penguin Highway me deixou com um gosto ainda mais amargo na boca.

Assistindo a Tatami Galaxy, percebo que cometi um erro de julgamento. E está na hora de retificá-lo.

Por uma vida cor-de-rosa

Antes de mais nada, uma introdução. Tatami Galaxy – para o caso, não improvável, de você nunca ter ouvido falar desse nome – é a história de um rapaz em um alojamento estudantil de uma universidade de Kyoto. Seu sonho, como o de tantos outros de sua idade, é curtir a “vida cor-de-rosa” dos anos de faculdade o mais intensamente que pode. O destino, porém, tem outros planos. Cada tentativa de dar sentido a sua graduação termina da mesma forma: largando-o sozinho em seu quarto, frustrado, perguntando-se como conseguiu deixar o melhor da juventude escapar pelos dedos.

“Tentativas”, no plural. Cada episódio termina com a tomada de um relógio girando em reverso. O episódio seguinte nos devolve a um momento anterior, mostrando um contrafatual do que aconteceria se tivesse aproveitado uma oportunidade diferente. A “galáxia de tatami” de seu título não é uma referência apenas ao seu alojamento (tatami, além daquele tipo de piso japonês, é uma medida de tamanho usado em residências). É também o leque das suas próprias experiências universitárias, que ele é forçado a reviver como em um Dia da Marmota.

Em temas, não só em estilo visual, o anime é uma versão expandida de Night is Short, Walk On Girl, história sobre a falta de sorte de um universitário tentando se aproximar de sua garota dos sonhos em uma noite fantástica quando tudo acontece.

O fato de que nenhum de seus protagonistas tenha nome diz mais que todas as elucubrações que eles de fato fazem, metralhadas em um ritmo tão alucinante que obriga espectadores a pausar o vídeo para entendê-las. O narrador de ambas as histórias é um everyman representando todos os jovens homens com hormônios nas alturas que já experimentaram em desespero por não encontrarem o prazer que mereciam. Prazer esse que envolve, invariavelmente, uma bela moça de cabelos negros.

Como Virgens Suicidas, em uma versão ainda mais pop e millennial, são histórias sobre o olhar masculino: sobre a necessidade de homens de ter seus prazeres atendidos e a indignação com que reagem quando esse privilégio lhes é negado.

Mas se Virgens Suicidas se tornou um clássico contemporâneo por questionar, criticamente, o que significa ser um “objeto” do olhar de outrem. Night is Short, Walk on Girl é frenético demais para colocar seu protagonista debaixo de uma lupa. Saímos do livro incertos se devemos tirar sarro do protagonista ou simpatizar com sua cruzada fracassada, por mais repreensível que ela seja. Problema este que incomoda ainda mais em Penguin Highway, outro livro de Morimi com um enredo duas vezes menos interessante e um protagonista triplamente mais chauvinista.

Quando seu “herói” se orgulha de desenhar os peitos de mulheres que conhece, você sabe que tem um problema).

Tatami Galaxy, porém, vira a falta de simpatia de sua personagem central de ponta cabeça. E de uma maneira que me fez entender que essas obras tem mais sabedoria do que aparentam à primeira vista.

Parte desse mérito vem da maneira como equilibra os impulsos sexuais de seu narrador com um enredo mais vago sobre a dificuldade de encontrar seu lugar no mundo. Parte, também, vem do fato de que esse narrador não é o verdadeiro protagonista de sua história.

Ao longo dos onze episódios, sua história é entrecruzada com a de outras pessoas com suas próprias agendas: Jougasakai, galã da turma que esconde um romance com uma boneca sexual; Ozu, colega que insiste em levá-lo para o mau caminho; Akashi, a “garota de seus olhos” – mas também uma mulher que não hesita em lhe pregar peças quando lhe convém; Higuchi, mistura de youkai e Grande Lebowski que parece puxar as cordas de seu destino, mas também viver um dia por vez, sem dar satisfações a qualquer um.

Na medida em que vemos as relações entre essas personagens evoluírem, fica difícil saber se estamos de fato assistindo à história do narrador ou as suas histórias, pelos olhos dele. Ironia que não escapa ao próprio narrador, que sofre para entender como pessoas tão imperfeitas, tão distantes de seu ideal de masculinidade, conseguem ter a vida cor-de-rosa que tanto persegue.

É impossível não lembrar de um trecho de Norwegian Wood, o belíssimo e melancólico romance de Haruki Murakami:

“Da direção do prédio do centro estudantil vinha o som de uma voz grossa praticando escalas. Aqui e ali estavam grupos de quatro ou cinco estudantes expressando quaisquer opiniões eles vinham a ter, rindo e gritando um ao outro. No estacionamento, um punhado de rapazes andavam de skate. Um professor com uma maleta de couro cruzou o estacionamento, evitando os skatistas. No pátio, uma estudante de capacete se ajoelhava, pintando grandes caracteres em um cartaz com algo sobre o imperialismo americano invadindo a Ásia. Era uma típica cena da universidade na hora do almoço, mas na medida em que me sentei assistindo-a com atenção redobrada, eu me dei conta de um certo fato. Cada pessoa que eu enxergava diante de mim estava feliz na sua própria maneira. Se eles estavam realmente felizes ou simplesmente pareciam estar eu não podia dizer. Mas eles pareciam alegres nesse agradável começo de tarde no final de setembro, e por conta disso eu senti um tipo de solidão que me era novo, como se eu fosse o único ali que não pertencesse de fato à cena.

Em minha resenha de Night is Short, Walk on Girl, critiquei seu “compromisso, quase militante, em não se comprometer com nada”.

“Enquanto que outros escritores usam o absurdo para questionar a realidade ou endereçar traumas, Morimi parece, como sua protagonista, querer apenas curtir o momento.”

Tatami Galaxy nos ensina que “curtir o momento”, muitas vezes, é a melhor forma de questionar a realidade. Ensinamento valioso em qualquer instante da vida, mas que adquire uma importância fundamental em tempos de crise como estes em que vivemos.

Ao contrário do narrador do anime de Yuasa, o relógio de nossas próprias vidas jamais voltará para nos dar uma segunda chance.

Meu antigo colega de japonês – de cujo nome, confesso, nem mais me lembro – talvez tenha custado a entender essa verdade. Gosto de pensar que a alfinetada que me deu naquele dia foi, em alguma medida, um recado a si próprio. Quem é esse sujeito que joga fora das minhas regras, mas esbanja a mesma alegria que suo tanto para obter?

Não posso dizer que nunca mais pensei no que ele me disse, sobretudo nessa fase da vida, em que estou mais próximo a voltar à faculdade como professor do que como aluno. Mas de uma coisa não tenho a menor dúvida: meus anos de campus não poderiam ter sido mais rosados.

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“Palavras que Borbulham como Refrigerante”: encontrando poesia no que há de mais mundano https://www.finisgeekis.com/2021/08/18/palavras-que-borbulham-como-refrigerante-encontrando-poesia-no-que-ha-de-mais-mundano/ https://www.finisgeekis.com/2021/08/18/palavras-que-borbulham-como-refrigerante-encontrando-poesia-no-que-ha-de-mais-mundano/#comments Wed, 18 Aug 2021 20:12:58 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=23002 Eu nunca fui um poeta. Minha breve experiência com essa forma de arte – escrevendo um poema aqui e ali, traduzindo outros tantos – deixou claro que rima, métrica, e eufonia são preocupações que deixo de bom grado aos outros.

Na verdade, sequer me tornei um leitor de poesia até quase chegar às portas da faculdade – para o desespero de meu pai, que recitava de memória Fernando Pessoa e Mário Quintana.

Felizmente, os anos (e uma coletânea de W.B. Yeats) me consertaram. Mais do que isso, entendi que “poesia” é algo mais do que palavras rabiscadas em uma página. Ela pode ser uma maneira de enxergar beleza até naquilo que é mais mundano.

Palavras que Borbulham como Refrigerante é um anime sobre esse sentimento e, ao mesmo tempo, uma prova viva dessa máxima. Um recado de que mesmo um filme despretensioso de romance pode tocar uma verdade que poucas obras alcançam

O anime, dirigido por Kyouhei Ishiguro, tem os ingredientes para se perder no oceano de histórias de amor que lotam serviços de streaming e o coração mole de otakus.

Uma pequena cidade interiorana, um protagonista talentoso, mas deslocado; uma garota-dos-olhos com problemas de imagem, amigos excêntricos, férias de verão. Ponha-o ao lado da trilogia de Chichibu – Anohana, Kokosake,  Sora no Aosa – e é fácil acreditar que temos outra parceria TatsuyukiOkada nas mãos.

O mocinho da vez é Sakura (chamado de “Cherry” pelos amigos), adolescente que faz bico em uma creche para idosos. Em um dia fatídico, seu caminho cruza com “Smile”, uma aspirante a influencer que – ironia das ironias, dado seu apelido – sofre crises de auto-estima em razão do tamanho de seus dentes.

Um dorayaki para quem adivinhar que tipo de sentimento brotará entre os dois jovens.

Mas Palavras que Borbulham como Refrigerante não é um simples romance adolescente. Cherry é um poeta. Especificamente, um autor de haicais: os tradicionais poemas de três versos japoneses. O próprio título, no idioma original, forma uma peça do gênero. As “palavras” a que se refere não são apenas confissões truncadas de amor, mas também sua grande, mas ainda imatura sensibilidade literária.

Cherry passa os dias testando poemas com cada nova expressão que escuta. Raramente sai de casa sem um saijiki, espécie de dicionário para a escrita de haicais. Um de seus amigos, um delinquente chamado Bieber, grafita seus poemas em muros cidade afora.

Que um anime compre o desafio de mostrar a adolescência à luz da paixão pelas letras – mais do que isso, de retratar a poesia como algo subversivo – seria por si só digno de aplausos. Mas Palavras que Borbulham vai mais longe, com um apreço pela poesia que só fica mais evidente quanto mais pensamos no gênero.

Historicamente, muitos haicais tradicionais privilegiavam imagens ligadas às estações – chamadas em japonês de kigo. Catalogar esses termos, inclusive, é uma das principais funções do saijiki, o dicionário que Cherry tanto usa.

Palavras que Borbulham parece tentar reproduzir esse fascínio em sua fotografia. Do verde ultrassaturado de gramados a explosões de cores dignas de um quadro de Takeshi Murakami, o anime é simplesmente maravilhoso de se olhar. É até difícil acreditar que boa parte de sua ação se desenrola num cenário tão mundano quanto um shopping center de interior.

Mas haicais não falam de paisagens e natureza apenas por falar. Como ilustra o poema abaixo, escrito pelo grande Matsuo Bashô (1644-1694), (na tradução de Gonzalo Bolliger)

Vá, veja o mundo

A neve caindo, caindo

De cansaço

“Estações”, muitas vezes, são pretexto para retratar a passagem do tempo – e seus efeitos sobre nós.

Efeitos, por exemplo, que sofre o Sr. Fujiyama, um dos velhinhos sob o cuidado de Cherry. Ex-funcionário de uma fábrica de vinis, dono de uma loja de LPs em tempos de Spotify e pirataria de música, ele é um homem esquecido pelo tempo. Sua esposa, falecida, foi uma cantora nos longínquos anos 1970 cujas décadas empurraram ao esquecimento.

Efeitos, também, que transformam sua própria cidade: uma aberração industrial feita de linhas de energia, paredes de concreto e estacionamentos que se estendem até onde o olho alcança. Os cuidadores da creche de velhos mal conseguem esconder seu desdém pelo Festival do Daruma, feriado cujas atividades ajudam a preparar. Como os idosos de que cuidam, o evento é uma relíquia que ultrapassou seu tempo.

Cherry e seus amigos são jovens demais para sentir esses problemas na pele, mas o anime deixa claro que suas vidas seguirão o mesmo caminho. O garoto publica seus haicais numa conta de Twitter seguida apenas por sua mãe. A “arte” de Bieber, seu amigo grafiteiro, dura apenas o tempo que leva para os seguranças do shopping encontrá-la e apagá-la. Smile é uma aspirante a influencer que grava lives falando de fofices.

Quando o enredo coloca essas personagens em busca de um LP perdido, gravado por Fujiyama para sua esposa, é impossível não perceber a ironia. Se algo tão sólido como um vinil sumiu sem deixar rastros, que esperança terá um tweet? Um grafite? Uma live?

Como a Sra. Fujiyama, eles também estão fadados a desaparecer.

Meus comentários talvez façam o anime parecer mais sombrio do que é. Não se enganem. Palavras que Borbulham ainda é um romance upbeat, com todo o açúcar que o “refrigerante” de seu título merece.

Se nada mais, é justamente por reflexões tão sérias com tanta leveza que ele se eleva dentro de seu gênero. Reflexões, aliás, que ele joga para dentro de seu romance.

Não há, no filme, grandes arroubos de choro ou “viveram-felizes-para-sempre”. O sentimento que brota entre Cherry e Smile não os define. É possível que, como as lives da garota, ele deixe de existir assim que pousem o celular. No fundo, não importa.

Como os haicais que os inspiram, Cherry e Smile estão dispostos a enxergar a beleza de cada momento, por mais breve que ele seja, mesmo sabendo que um dia tudo não passará de uma memória.

E talvez, inspirado também por esses poemas, seja melhor que eu mesmo não alongue esse texto para além do necessário. E, em vez disso, o termine com a palavra do nosso maior autor de haicais, que tão bem sintetizou o que Cherry, e todos nós, sentimos:

Esta vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem.

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4 curiosidades sobre o shamisen para entender “Mashiro no Oto” https://www.finisgeekis.com/2021/06/23/4-curiosidades-sobre-o-shamisen-para-entender-mashiro-no-oto/ https://www.finisgeekis.com/2021/06/23/4-curiosidades-sobre-o-shamisen-para-entender-mashiro-no-oto/#respond Wed, 23 Jun 2021 21:39:13 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22927 Mashiro no Oto pode não ser o melhor anime já feito sobre música. Ainda assim, a série foi uma janela a um mundo fascinante de que raramente escutamos: o shamisen.

Para aqueles, como eu, cujo conhecimento desse instrumento se resume ao filme Kubo e as Cordas Mágicas, Mashiro no Oto também não foi a mais didática das introduções.

O que, afinal, é um futozao ou Tsugaru? O que significa ter um bachi grande ou pequeno? Porque todas as personagens parecem tocar a mesma música? O que diferencia uma performance “boa” de uma “ruim?”

Se você, assistindo ao anime, sentiu-se bombardeado por essa e outras dúvidas, seus problemas acabaram. Conhecer o instrumento a fundo provavelmente é trabalho para uma vida inteira. Ainda assim, abaixo seguem quatro curiosidades para tornar esse universo diferente um tanto menos misterioso:

1) Os shamisen não são todos iguais nem vêm da mesma parte do Japão

Como alguém sem grandes conhecimentos de música japonesa, me dou por satisfeito por conseguir diferenciar um shamisen de um erhu ou ghaychak. Jamais cogitaria imaginar que existissem tipos diferentes de shamisen, com sons e repertórios bastante distintos.

Contudo, esse é justamente o caso.

Existem pelo menos três grandes famílias de shamisen: hosozao, chuzao e futozao, cada uma subdividida em tipos de instrumento desenvolvidas para gêneros distintos. O que mais vemos no anime é o Tsugaru, variante do futozao (“pescoço grosso”). Trata-se de um shamisen grande e potente, com grande projeção de som, que privilegia peças instrumentais com passagens virtuosísticas.

Em outras palavras, é um shamisen feito para impressionar.

Como explica o vendedor de instrumentos Hiroshi Odawara no episódio 6 de Mashiro no Oto, é um estilo bastante específico, criado em um cidade conhecida como Tsugaru, na província de Aomori. Localizada no extremo norte do Japão, esta é uma região super isolada, mesma na época dos aviões e trens-bala. E que, justamente por isso, ganhou fama como uma terra “virgem”, afastada dos delírios da modernidade, onde uma cultura autêntica e tradicional ainda prospera.

Em Aomori, campeonatos deste gênero de música são organizados justamente para promover essa imagem bucólica.

Imagem que Mashiro no Oto promove, enviando seu elenco inteiro a uma excursão à província para aprender as origens do instrumento que tanto amam.

Essa “marketing”, na verdade, vai muito além da música. Aomori é a terra do protagonista, Setsu, mas também de seus rivais, Maimai e Soichi. Seu grupo, originário de Tóquio, é enquadrado como o underdog na competição contra os locais da província.

Quando Soichi a Setsu que o arroz de feijão de Tóquio não tem o mesmo gosto do que se come em Aomori, ele não está falando apenas de culinária. Há um julgamento de valor no seu comentário, contrapondo a cidade grande, aculturada, ao suposto respeito à tradição de sua terra natal.

Uma imagem que chega a ser irônica, já que….

2) O Tsugaru-jamisen não é tão “tradicional” quanto imaginamos

Fonte da imagem

Para quem não tem contato com música tradicional japonesa, é fácil colocar tudo o que não se encaixa nas nossas expectativas no mesmo balaio. Porém, tal como o shamisen comporta toda uma família de instrumentos, os estilos musicais em que aparecem também são dramaticamente diferentes.

E, dentro desse repertório, o tsugaru-jamisen é um dos estilos mais ‘modernos’, ousados e recentes.

O shamisen chegou ao Japão no século XVI como um instrumento de acompanhamento, feito para embalar peças, espetáculos e solenidades. A música, na época, privilegiava o uso da voz, e as cordas se adequavam a esse princípio. As performances precisavam respeitar a virtude do shibumi (algo como “austeridade” ou “adstringência”).

Foi apenas muito tempo depois que a música instrumental ganhou prestígio, e o shamisen se tornou a estrela das apresentações. Se pararmos para pensar, não foi muito diferente do que aconteceu com a música erudita na própria Europa, focada na performance vocal durante a Idade Média e Renascença, para depois ver nascer várias formações instrumentais, com solos cada vez mais virtuosos.

Arcângelo Corelli (1653-1713), um dos compositores que elevou o violino a instrumento de solo

No caso específico do tsugaru-jamisen, esse “muito tempo” foram quase trezentos anos. Segundo alguns musicólogos, o estilo foi criado por um compositor cego chamado Nitabo (1857-1928), que ganhou popularidade apenas nas décadas de 1910 e 1920.

Sim, estamos falando de mais de cem anos atrás. E não há nenhuma regra que diz que tradições não podem ser reconhecidas como tal depois de apenas algumas décadas. Ainda assim, é importante frisar que estamos falando de uma arte tão recente quanto o jazz e o blues.

Mashiro no Oto não é um anime sobre as origens do tsugaru-jamisen, mas está cheio de referências a sua história. Segundo a lenda, Nitabo era um bosama (cego itinerante), que trocava performances por pratos de comida.

É a mesmíssima história dramatizada no avô de Setsu, Matsugorou, que vemos em um flashback nas ruínas do pós-guerra.

Ao tocar a composição de seu avô a uma mulher que se lembrava de tê-la ouvido na época, Setsu recebe a crítica de que sua versão está “complicada demais”. Nada mais justo, já que Matsugorou era um músico da “velha escola”, que apenas começava a abandonar o shibumi em prol da potência e ornamentação

Mesmo o som de Setsu, mais enérgico ao de seu avô, parece “demodê” comparado ao de seus rivais no campeonato. O anime soletra isto com todas as letras no episódio 11, quando Setsu, pressionado pela mãe, faz uma apresentação “tradicional”, austera e diminuta. Para o choque dos jurados, que imediatamente entendem que ele aprendeu a tocar com um músico “das antigas”.

3) Sim, todos os membros do grupo tocam a mesma coisa. Mais ou menos.

Um dos detalhes mais curiosos no campeonato de Mashiro no Oto é o repertório das apresentações ém grupo. De longe, até parece que todos os integrantes de cada grupo estão tocando a mesmíssima coisa.

Levando em conta que o anime nos mostra poucos minutos de cada apresentação – e tem o terrível hábito do anime de “cortar” as performances em favor de um piano & strings genérico – é até difícil distinguir uma equipe da outra.

Na verdade, esse é justamente o propósito.

Na música tradicional japonesa, mesmo em formações com instrumentos diferentes, os membros tocam variações simultâneas da mesma linha melódica. É um tipo de textura musical conhecida como heterofonia.

Em Mashiro no Oto, vemos isso em prática no episódio 9, quando Setsu e Kaito tocam de maneira que seus instrumentos se complementem.

Pode parecer um detalhe sutil, mas é a diferença entre um troféu e a derrota. Isto porque o repertório de competição do shamisen é minúsculo. Ao todo, existem cerca de vinte peças frequentemente tocadas, das apenas cinco compõem a lista básica.

Não é incomum que todos os concorrentes de uma mesma categoria apresentem a mesma peça. Nesse contexto, truques como o de Setsu e Kaito podem ser tudo o que distingue uma equipe de outra.

Isso e o jogo de cintura para criar na hora. Afinal,

4) O tsugaru-jamisen é um estilo improvisado (dentro de limites )

Como era de se esperar para um estilo inventado por músicos itinerantes e popularizado na era do jazz, o tsugaru-jamisen é fortemente baseado na improvisação. Isto faz dele uma raridade na música tradicional japonesa, que geralmente exige que a música seja seguida mais ou menos à risca.

Esse, de certa forma, é o motivo de seu repertório de competição ser tão pequeno. A intenção não é confinar os jovens músicos, mas servir de ponto de partida para suas próprias invenções. Nenhuma performance é igual a outra.

Como escreveu Kevin Kmetz, mestre em shamisen que trabalhou na música de Kubo e as Cordas Mágicas, interpretar uma peça é “mais um gesto musical que uma composição de verdade”.

Ainda assim, ter liberdade para improvisar não significa que o tsugaru-jamisen seja um vale-tudo. Tanto o repertório quando as variações permitidas “dentro de limites estritos”, que “tem se tornado cada vez mais canonizados e codificados” com o passar do tempo.

Em Mashiro no Oto, Setsu aprende isso da maneira mais difícil quando decide mudar drasticamente seu som na metade de performance. O ato de rebeldia sucede em irritar sua mãe, que o obrigara, contra sua vontade, a imitar o estilo do avô. Infelizmente, ele não impressiona os jurados, que deduzem sua pontuação.

Claro, a situação é outra fora das competições. Graças à liberdade que dá a seus intérpretes, o tsugaru-jamisen conseguiu incorporar elementos de vários gêneros populares, do jpop ao rap. Bandas como os Irmãos Yoshida – que providenciaram consultoria para Mashiro no Oto, além de tocarem na sua música de ending – estão constantemente levando o instrumento ao encontro de novas influências.

Show dos Irmãos Yoshida no Teatro Sérgio Cardoso, São Paulo. Fonte

Ver o tsugaru-jamisen ao lado de sambistas talvez seja radical demais mesmo para alguns fãs do instrumento. Ainda assim, é possível que Nitabo, o lendário criador do estilo, reagisse a isto com um sorriso. Afinal, como disse Hiroshi Odawara em Mashiro no Oto:

[No começo] não havia barreiras nem limitações. Eu acho que a força e o ritmo que o futuzao proporciona é como a alma dos japoneses. Isso que é o “blues”. Tradição? Regras? Eu não acho que existiam essas coisas no começo. Afinal, o fundador do tsugaru-jamisen, Nitabou, e seus aprendizes [ estavam ] sempre estão criando coisas novas. O estilo muda junto com o tempo.”

“O tsugaru-jamisen superou Tsugaru”

Referências bibliográficas

BARSKY, J. Shaping a Music Genre through Competition and Virtuosity : 21st Century Tsugaru Shamisen Contests in Aomori Prefecture, Japan. Dissertação de mestrado: Universidade do Havaí, 2013. Disponível aqui.

HUGHES, D. Folk Music: from local to national to global. In: TOKITA, A.; HUGHES, D. (Eds.) The Ashgate Research Companion to Japanese Music., pp. 281-302

JOHNSON, H. Tsugaru Shamisen : From Region to Nation (and Beyond) and Back Again. Asian Music, v. 37, n.1, 2006, pp. 75-100

PELUSE, M. Not Your Grandfather’s Music: Tsugaru Shamisen Blurs the Lines Between “Folk,” “Traditional,” and “Pop”. Asian Music, v. 36, n. 2, 2005, pp. 57-80

TOKITA, A.; HUGHES, D. Context and change in Japanese music. In: TOKITA, A.; HUGHES, D. (Eds.) The Ashgate Research Companion to Japanese Music. , pp. 1-33

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“Noir”, 20 anos depois: por que o clássico da Bee Train continua inesquecível https://www.finisgeekis.com/2021/04/14/noir-20-anos-depois-por-que-o-classico-da-bee-train-continua-inesquecivel/ https://www.finisgeekis.com/2021/04/14/noir-20-anos-depois-por-que-o-classico-da-bee-train-continua-inesquecivel/#respond Wed, 14 Apr 2021 20:59:52 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22778 Há uma cena em Noir que penetra com mais força que uma bala de Walther P99.

Mireille, uma assassina de aluguel, confronta sua parceira Kirika após retornarem de uma execução.

“É por isso que eu te disse!”

Ela rapidamente foge para a cozinha da quitinete em que vivem, torcendo para esconder a fraqueza – e as lágrimas que batalha para segurar.

“Eu te disse…” ela repete, e agora não há dúvidas de que fala consigo mesma.

A cena é o dominó final de uma tragédia engatilhada no início do episódio. Contra as advertências de sua parceira, Kirika forja uma amizade com um soldado aposentado que passa os dias pintando ao ar livre.

Mireille imediatamente ordena que ela corte relações. O crime, explica, só possui porta de entrada. Uma vez nesta vida, só é possível deixá-la dentro de um saco.

Kirika se recusa. Dias depois, capangas de uma gangue inimiga a emboscam durante um de seus encontros. O pintor morre na troca de tiros.

Animes, quase sempre, são uma mídia hiperbólica. Olhos grandes, gestos exagerados, dublagem caricata, frames repetidos: nenhum esforço é poupado para que o espectador sinta o que o diretor deseja – ainda que o ‘sentimento’ em questão o atropele como um rolo compressor.

A cena de Noir é um ponto fora da curva. O roteiro não se dá ao trabalho de soletrar que Mireille, também, perdeu alguém para a vida criminosa. Não ficamos sabendo quem foi esta pessoa. A própria cena nunca mais é retomada. O arroubo de emoção que flagramos é um fim em si: um raro vislumbre do coração de uma mulher obrigada pela profissão a mantê-lo trancado a sete chaves.

São pequenos momentos como esse, espalhados pelos seus 26 episódios, que fazem da série dirigida por Koichi Mashimo uma pequena obra-prima da animação japonesa.

Com seu vigésimo aniversário celebrado esse ano, não há ocasião mais apropriada para explorarmos o que a tornou tão especial.

Um clássico cult

Clássicos cult raramente são ovacionados de primeira. Geralmente, por um bom motivo.

Com Noir não é diferente. Olhando para trás, é difícil entender como a produção da Bee Train conseguiu se destacar entre tantos outros hits dos anos 2000.

Sua estrutura episódica, com direito a “assassinatos da semana” e abundância de flashbacks, causa estranhamento a uma geração acostumada a cours de 12 episódios e séries da Netflix que funcionam como filmes de 8 horas.

Seu enredo alterna entre as “ruas perigosas” da ficção noir – de onde empresta seu título – e teorias da conspiração que forçam a amizade do mais crédulo dos espectadores. Há furos suficientes em sua trama para merecer um drinking game, de informações conflitantes sobre a idade de suas protagonistas a cenários interiores que não batem com seus exteriores.

Espera, havia um vulcão debaixo do altar?

Que Noir funcione – e maravilhosamente – a despeito desses tropeços é um sinal da força de sua narrativa e da imensa sensibilidade com que molda suas personagens. Raras vezes um anime de ação tratou as pessoas por trás dos gatilhos com tanta humanidade.

Os detalhes da trama são familiares a qualquer um que tenha assistido a filmes de Luc Besson. Mireille Bouquet é filha de um ex-chefe da máfia corsa cuja facção foi eliminada praticamente ao último homem. Kirika é uma jovem sem memórias que se vê perseguida por um grupo criminoso. Por motivos que lhe escapam, ela possui uma habilidade medular, quase sobrenatural para o assassinato.

Kirika acredita que o grupo que a persegue é o mesmo que assassinou a família de Mireille. Ambas as mulheres juntam forças e partem em uma jornada que desenterrará os mistérios de seu passado – e virará de ponta cabeça suas ideias sobre seus sentimentos, seus princípios e  o próprio sentido de suas vidas.

Fãs de Leon: O Profissional não precisarão de mim para adivinhar que Noir é uma carta de amor ao filme de 1994. Da profissão de suas personagens centrais à relação maternal, ambiguamente romântica que as une, o anime é uma variação sobre o tema de Leon e Mathilda do longa de Besson: uma jornada idealista, quase quixotesca, para encontrar humanidade no mais escuro dos mundos.

O tributo é tão evidente que Mireille conta com a mesma planta de estimação de sua personagem titular:

Combinando premissas impossíveis, vilões histriônicos e um romance platônico entre um Jean Reno de 46 anos e uma Natalie Portman de 12, Leon era o tipo de aposta cinematográfica com tudo para dar errado. Besson, cuja carreira tardia descarrilhou para filmes de porrada e uma sci fi sobre o pen drive de Deus, nunca conseguiu repetir a magia.

Infelizmente, o legado de Noir seguiu o mesmo caminho. Mashimo capitalizou no sucesso de sua obra com dois sucessores espirituais, Madlax e El Cazador de la Bruja, óbvios e derivativos na mesma medida em que Noir era inusitado e original.

Da repetição veio a familiaridade – e a mesmice. Tal como a genialidade de Puella Magi Madoka Magica seria diluída em uma geração pouco inspirada de garotas mágicas “sombrias”, Noir se tornou apenas mais um título em um gênero – o “girls with guns” – cujo ganha-pão era e continuaria a ser a violência gratuita e o fan service.

A arte do não-dito

Talvez isso fosse inevitável, já que Noir nunca se encaixou confortavelmente em seu gênero.

Tal como Leon se provou uma história sobre empatia e laços humanos mais do que uma fantasia de vingança, Noir é sobre os gestos silenciosos que acontecem quando as balas param de voar.

É um anime tão desprovido de diálogos expositivos quanto seus vilões de misericórdia, em que episódios inteiros são narrados pela trilha espetacular de Yuki Kajiura, num trabalho que continua o ponto alto de sua carreira. Seria preciso esperar a parceria de Hiroyuki Sawano com o estúdio Trigger para que leitmotifs como Canta Per Me encontrassem um rival.

É um anime sobre assassinas de aluguel estranhamente desinteressado em retratar tiroteios. Suas cenas de ação são pouco inspiradas. Os momentos que nos prendem na poltrona, pelo contrário, são as emoções silenciadas, as verdades não ditas; os sentimentos reprimidos que escapam, se o fazem, em ataques de verdade e fúria.

Mesmo a relação entre suas protagonistas, simplificada a um romance em seus sucessores espirituais, é aqui dúbia e reservada. Mireille e Kirika dividem uma mesma cama, mas encaram-se sobre o cano de uma arma com mais frequência do que trocam carícias. Os únicos beijos do seriado são o bacio della morte da máfia: código, no mundo do crime, de que a pessoa beijada está marcada para a execução.

É possível dizer que elas se amam? Ou não seria seu afeto sintoma de uma solidão ainda mais visceral; do desespero de alguém que dorme com uma inimiga pois esta é a única maneira de obter um módico de calor humano?

“O fio que nos une é negro” Mireille diz à Kirika em dado momento. Poucas descrições seriam mais apropriadas.

Uma história da violência

Cena de “Hanabi” de Takeshi Kitano

Há uma contradição intrínseca em histórias sobre criminosos que matam às centenas. Como conciliar a empatia que estes protagonistas reinvindicam com seu próprio descaso pela vida alheia?

Noir não escapa completamente dessa armadilha, mas oferece uma nuance que falta a muitos animes do gênero.

Como no filme Hanabi , saga de um policial que se endivida com a yakuza para tratar o câncer da esposa, sua trama é uma gangorra entre momentos de reflexão e violência irrestrita. Tal como no longa de Takeshi Kitano, entender esta violência é justamente a questão que a obra nos convida a desvendar.

Altena, a vilã principal, é sobrevivente de uma guerra em que sofreu terríveis abusos. Incapaz de perdoar aqueles que a feriram, ela comanda uma organização criminosa para colocar a própria humanidade no banco de réu.

Sua subordinada Chloe, à primeira vista, parece matar por puro deleite. Conforme a conhecemos, contudo,  percebemos que sofre de uma necessidade doentia de ser validada pela mestra, tal como por Kirika, a quem vê como uma igual.

Kirika, condicionada desde criança a ser uma assassina perfeita, sabe que seu destino é se tornar um monstro como Chloe. A todo momento ela luta para se cultivar empatia, misericórdia, remorso, por mais antinaturais que estas emoções lhe pareçam.

Mireille diz matar para vingar sua família. É evidente, contudo, que só está na carreira por medo de se ver sozinha, ainda que seus “companheiros” não passem de alvos que, cedo ou tarde, acabarão seus dias na mira de uma arma – sua ou de seus inimigos.

É notável que, de todas as balas trocadas, os momentos mais emblemáticos da série são justamente aqueles mostram suas heroínas mais vulneráveis. Kikira apertando seu RG falso – a única prova, ainda que de mentira, de que é uma pessoa e não um instrumento de terceiros. Mireille debruçada sobre o corpo de um inimigo que, até ontem, chamou de parente. Abraços fugidios, mãos que se tocam sem perceber, lágrimas que escondem até que escapem à revelia de seus esforços.

Nesse sentido, Noir tem menos em comum com o cinema de crime em que se inspirou que com Estranhos no Paraíso, a comovente e visionária HQ de Terry Moore. Ambas as obras envolvem uma ex-assassina (Kirika no anime, Katchoo no gibi) fugida de uma máfia misteriosa (Les Soldats em Noir, Parker Girls em Estranhos ) em um longa jornada de aceitação, redenção e cura que as lançam, muito lentamente, nos braços de uma pessoa amada (Mireille no anime, Francine na HQ).

Mas Estranhos no Paraíso apresenta uma diferença crucial que talvez explique porque Noir parece um anime tão singular. A despeito de suas armas, cenas de luta e conspirações internacionais, a HQ nunca escondeu ser, acima de tudo, uma história de amor.

A contradição de Noir, no fundo, é a mesma de suas personagens. A série é um conflito animado opondo momentos de ternura a um enredo movido a pistolas, bombas e cadáveres.  É por isto, talvez, que mesmo as pausas mais inconsequentes –  Kirika desenhando com seu amigo soldado, Mireille cortando o cabelo da parceira no intervalo entre contratos  – nos proporcionam tanto prazer.

E é por isto, também, que vibramos tanto quando sua jornada chega ao fim, e somos presenteados com o diálogo que os anos tornaram icônico:

– O mundo em que vivemos está imerso em escuridão

– É por isso que buscamos a luz.

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De onde vem o fascínio dos animes com a Irlanda? https://www.finisgeekis.com/2021/03/17/de-onde-vem-o-fascinio-dos-animes-com-a-irlanda/ https://www.finisgeekis.com/2021/03/17/de-onde-vem-o-fascinio-dos-animes-com-a-irlanda/#comments Wed, 17 Mar 2021 19:21:27 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22707 Em 2018, o site francês Manga-News perguntou a Nagabe qual era a história por trás do subtítulo de seu maior sucesso, A Menina do Outro Lado: Siúl a Run.

Senti que o entrevistador tinha lido minha mente. Eu sabia que Siúl a Rún ( “Ande, meu amor”), é uma música tradicional irlandesa. Mesmo após ler oito volumes de seu mangá, porém, não havia conseguido captar a conexão.

Será que a canção apareceria futuramente em algum momento de clímax? Será que o universo da história fictício seria cindido por uma guerra, como aquela a que seus versos se referem?

A resposta de Nagabe foi tão gélida quanto um banho de mar na Irlanda durante uma tarde de chuva:

“Eu não conhecia nada dessa música […]. Foi meu responsável editorial que, um dia, me trouxe um CD me dizendo “Escute bem essa canção, eu acho que a atmosfera corresponde ao seu mangá. Eu a escutei e achei que ela tinha uma linha melódica triste, mas ao mesmo tempo colorida de esperança, que ia perfeitamente com a atmosfera que eu gostaria de criar em “A Menina do Outro Lado”.

Verdade seja dita, saber que Nagabe escolheu seu título apenas porque soava bem não me impressona tanto assim. Rola na internet o rumor – talvez apócrifo- de que Hideaki Anno teria escolhido o  nome “Evangelion” porque a palavra soava difícil. Miyazaki confessou que puxou sua Nausicaa de um dicionário de mitologia (embora, anos depois, tenha lido de fato a Odisseia).

Não há nada errado em se inspirar em uma música por conta da vibe. Ainda mais em uma canção que tem alguma penetração no Japão, tendo já sido gravada por intérpretes locais.

Álbum da cantora KOKIA, com faixas em irlandês, inclusive “Siúl a Rún”.

O que me chamou a atenção é que esse está longe de ser um incidente isolado. Para cada Fate/ ou Durarara! que aborda diretamente a cultura ou mitologia irlandesa, há um punhado de animes e mangá que parece se referir à Ilha Esmeralda sem uma razão muito específica.

Há um motivo para ‘Legend of Galactic Heroes’ possuir uma nave chamada Mannanan Mac Lir? Ou ‘Last Exile’ retratar uma nau batizada de ‘Claoímh Solais?

O que há na cultura irlandesa que atrai de tal forma os animes?

Para responder a essa pergunta, é preciso voltar no tempo.

Do Japão à Irlanda…

Seja qual for esse feitiço que une as duas culturas, els não é novo. Já no final do século XIX, um escritor criado em Dublin largou tudo o que tinha para construir uma vida em terras nipônicas.

Seu nome era Patrick Lafcadio Hearn, e ele se tornou o primeiro ocidental a fazer fama escrevendo sobre o folclore e as tradições japonesas. Sua obra mais conhecida, Kwaidan, é um compêndio de histórias de youkai, criaturas fantásticas – e muitas vezes assustadoras – da mitologia nipônica.

Primeira edição de “Kwaidan”, obra mais conhecida de Hearn

Hearn escrevia sobre temas japoneses, mas seu interesse em fantasmas e assobrações carregavam um toque da Dublin em que viveu. O escritor viveu nos anos da Renascença Literária Irlandesa, um importante movimento que repaginou as lendas e mitos gaélicos às sensibilidades do final do século XIX.

Em uma carta ao poeta e dramaturgo W.B. Yeats, um dos maiores expoentes do movimento, ele confessou ter sido influenciado por contos de fada narrados por sua babá irlandesa.

Lafcadio Hearn (também conhecido como Koizumi Yakumo) e sua esposa, Koizumi Setsuko

Hearn teve alguma influência na cena cultura japonesa. Um de seus maiores fãs foi Okuma Shigenobu, fundador da Universidade de Waseda, que o convidou para lecionar lá.

Seu verdadeiro impacto, porém, aconteceu no próprio Ocidente. Hearn estava na posição privilegiada de ser um dos poucos ocidentais escrevendo em inglês sobre um Japão, em uma época em que o interesse pelo país estava nas alturas.

Em grande parte, isso se deveu à Exposição Universal de 1900, de que o país participou com seu próprio pavilhão. Todos os países da Europa queriam saber mais sobre essa nação misteriosa e sua cultura diferente.

Pavilhão japonês na Exposição Universal de 1900, em Paris

A Irlanda, em particular, levou o fascínio a outro patamar. Yeats, conhecido de Hearn, ficou de tal forma fascinado com o teatro noh que decidiu escrever sua própria peça em estilo japonês, At the Hawk’s Well.

A obra passou no crivo dos próprios japoneses, que a adaptaram a sua língua duas vezes, em 1949 e 1967. Hoje, ela faz parte do repertório tradicional do teatro noh.

Montagem da peça Takahime, “At the Hawk’s Well”, co-organizada pelo ator noh Gensho Umekawa e o grupo musical irlandês Anúna.

e da Irlanda ao Japão

Mas será mesmo que é daí que vem a fascinação com a Irlanda no dias de hoje?

Sim, Hearn não passou batido aos holofotes da cultura pop. Um de seus contos foi adaptado às telas nos anos 1980. O mangaká Eiji Ohtsuka transformou sua vida em uma série chamada Yakumo Hyakkai (em referência a Yakumo Koizumi, o nome que adotou ao se naturalizar japonês). Touhou Project batizou duas de suas personagens em sua homenagem.

Capa do manga Yakumo Hyakkai

Mas esses exemplos são gotas d’água no oceano de Cúchullains, Diarmuid Ua Duibhnes e Cliffs of Mohers na cultura pop. E nada disso parece ter muito a ver com Hearn.

O escritor foi uma sensação no Japão de sua época. Porém, como lembra Rie Kido Askew, seu apelo sempre foi mais “cult” que mainstream. Por escrever em inglês, suas obras ficavam restritas aos japoneses que dominavam a língua estrangeira.

Ademais, o “fator novidade” que o tornou tão popular no ocidente não existia no circuitos nacionais. Afinal de contas, não havia falta de escritores japoneses escrevendo – em japonês – sobre sua própria cultura.

Se não fosse bastante, Hearn pode ter sido influenciado por histórias de fadas e deuses irlandeses, mas ele pouco fez para tornar esses mitos mais conhecidos no país em que escolheu morar.

De fato, por mais que olhamos as referências à Irlanda nos animes, mais parece que elas estão lá justamente por serem obscuras.

Segundo Rika Muranaka, compositora de Metal Gear Solid, a faixa The Best is Yet to Come foi cantada em irlandês porque Hideo Kojima disse que “não queria ouvir letra em inglês”, nem em nenhuma outra língua que ele reconhecesse.

Yoko Taro, criador da série Nier, deu instruções parecidas aos compositores Keichi Okabe e Emi Evans. “[T]er letras que você reconhece e entende pode distrai-lo do gameplay”, ele justifica. O resultado foram músicas cantadas em línguas inventadas – uma delas baseadas no gaélico escocês.

Em outras palavras, a língua irlandesa é conveniente porque não significa nada. Ou melhor, ela passa uma vibe genérica de “exotismo” capaz de intrigar até mesmo os japoneses mais viajados.

Ironicamente, é exatamente como muitas produções ocidentais lidam com a cultura japonesa de uma maneira cotidiana. Se obras do nosso hemisfério usam samurais, geishas e flores de cerejeira para carimbar uma personagem como “estrangeira”, animes e games nipônicos fazem o mesmo com os Túatha Dé Dánnan e viaturas da Garda Siochána.

Fractale

Mas isso também não explica tudo. Por que a Irlanda e não qualquer outro lugar da Europa – ou do Ocidente como um todo?

Talvez, porque Japão e Irlanda tenham mais em comum do que salta aos olhos à primeira vista. E não falo apenas de serem cercados pelo mar.

Soft power

A Irlanda é um país minúsculo nos confins da Europa – até recentemente, paupérrimo para os padrões do mundo desenvolvido. Porém, ela tem uma vantagem gigantesca sobre qualquer um de seus vizinhos: há irlandeses por toda parte.

O censo dos Estados Unidos estima que quase um em cada dez americanos tenham ascendência irlandesa, incluindo presidentes como John Kennedy, Barack Obama e Joe Biden. O primeiro ministro da Austrália declarou hoje que um terço do país têm raízes irlandesas. Isto sem contar imigrantes em países como Canadá, Chile, África do Sul e muitos outros.

Essa comunidade age como um “megafone” global para a cultura, língua e folclore do país. Além disso, gera um imenso mercado consumidor para as obras vindas da ilha, sejam os livros da Sally Rooney ou filmes do Cartoon Saloon.

E não falo apenas de gente com ascendência irlandesa, mas pessoas sem nenhum vínculo com a ilha que decidem provar uma Guiness ou arriscar uma cúpla focal depois de participarem de uma festa de São Patrício.

Tal como, aqui no Brasil, muita gente se apaixona pelo Japão porque cresceu frequentando a feirinha da Liberdade ou visitando o Kinkaku-Ji do Brasil.

Ambos os países têm de sobra o que cientistas políticos chamam de soft power: a capacidade de projetar sua influência não disparando balas, mas espalhando cultura. No caso da Irlanda, esse é um poder que chegou até à realeza japonesa.

Segundo o jornal Irish Times, a ex-imperatriz Michiko fala um pouco de irlandês, toca harpa e era amiga do poeta Séamus Heaney. Uma de suas filhas, a princesa Mako, fez parte de seus estudos no University College Dublin.

Se nada mais, as aristocratas estão afinadas com o interesse de seus súditos. Organizado pela primeira vez em 1992, a Festa de São Patrício já é um evento nacional no Japão. Em 2019, nada menos que 15 cidades organizavam paradas – em Tóquio, 130 mil pessoas tomaram as ruas.

Parada do dia de São Patrício em Tóquio, 2015. Foto de Yoshiaki Miura

Será que isso é o bastante para que a TG4, emissora irlandesa em língua gaélica, adicione animes a sua programação?

Provavelmente não. Mas eu continuarei na torcida. De preferência, acompanhado de um pint de Guinness.

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O que “Urasekai Picnic” tem a ver com a ficção científica que o inspirou? https://www.finisgeekis.com/2021/02/24/o-que-urasekai-picnic-tem-a-ver-com-a-ficcao-cientifica-que-o-inspirou/ https://www.finisgeekis.com/2021/02/24/o-que-urasekai-picnic-tem-a-ver-com-a-ficcao-cientifica-que-o-inspirou/#comments Wed, 24 Feb 2021 18:51:06 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22650 Algum tipo de cataclisma muito além da compreensão humana deixou partes da Terra inabitável. Dentro dessa “zona” o sol ainda se levanta, o vento ainda sopra, plantas crescem. Mas as coisas são… diferentes.

Como o mundo de um videogame com erros no código, um passo em falso é o bastante para que exploradores desapareçam – ou sejam eles próprios corrompidos por glitches.  “Pessoas” rondam por este mundo abandonado, embora não seja mais possível dizer que são humanas. Muitos dos que partem para encontrá-las não retornam. Os que retornam nunca mais são os mesmos.

Descrita com alguma liberdade poética, essa é a premissa de Piquenique na Estrada, clássico da ficção científica escrito por Alkady e Boris Strugátski.

É, também, a obra que o escritor Iori Miyazawa decidiu ser a inspiração perfeita para uma história romântica.

Recentemente adaptado às telas pelo estúdio LINDENFILMS, Urasekai Picnic é uma história que parece ter pisado em um dos glitches de seu próprio mundo assombrado.

O que aconteceu com os Romeus e Julietas e Tanabatas da vida? Por que Miyazawa escolheu justamente esta história, cheia de paisagens desoladas e divagações filosóficas, para um slice of life yuri?

A resposta, como as anomalias da Zona, é mais surpreendente do que parece.

Piquenique na estrada

Edição brasileira de “Piquenique na Estrada”

Para responder a essa questão, é melhor começarmos do começo.

Criativo e esquisito em igual medida, Piquenique na Estrada – de onde Urasekai Picnic tirou seu título – não é exatamente o que nos vem à mente quando pensamos em um romance capaz de inspirar uma geração de imitadores.

Na sua encarnação original, o livro se passa na esteira de uma visita alienígena. Os extraterrestes em questão não disseram a que vieram. Porém, como latas e comidas largadas após um piquenique, a sucata que deixaram para trás vira o sonho de cientistas, ladrões e oportunistas do mundo inteiro.

A exploração dessas “Zonas” – como as áreas de contato foram chamadas – empurram a humanidade a uma nova revolução científica. Mas é um progresso feito às cegas, aplicando engenharia reversa a uma tecnologia que, fiel à lei de Arthur C. Clarke, é indistinguível da magia.

Como uma personagem coloca, é possível que estejam utilizando contadores Geiger como machadinhas ou componentes eletrônicos como piercings de nariz. Mas se os componentes em questão fossem armas de destruição em massa, à espera do estímulo certo para dispararem seu gatilho?

Redrick Schuhart, protagonista do romance, sabe disso muito bem. “Red” é um stalker, contrabandista que monta expedições à Zona em troca de bugiganças para vender ilegalmente. A profissão tem vida curta. A maioria dos que a praticam desenvolvem mutações terríveis após entrar em contato com substâncias misteriosas.

Sua própria filha foi uma das vítimas, transformada em um criatura com “pequenas patas peludas” graças ao efeito de algum artefato que trouxe consigo da Zona.

[E]le foi inesperadamente acometido por um terrível pensamento: é uma invasão. Não um piquenique, não um pedido de contato – uma invasão. Eles não podem nos mudar, mas eles infiltram os corpos de nossas crianças e os mudam em sua imagem.

Mas Red é um stalker às últimas consequências e não deixará algo tão simples como o medo mudar seu estilo de vida.

Corre entre seus colegas de profissão a lenda de que há um artefato na Zona capaz de realizar qualquer desejo. Conhecido como A Esfera Dourada, é uma espécie se Santo Graal entre os stalkers.

Red decide arriscar tudo em uma última expedição e usá-lo para retornar sua filha de volta ao que era.

Piquenique é um livro curioso. Seu protagonista está longe de ser um herói carismático – ou mesmo um “herói” de qualquer espécie. O enredo é bem menos coeso que meu breve resumo dá a entender.

Boa parte do livro é composta de viagens diferentes à Zona ao longo de um período de quase uma década. A própria decisão de Red de correr atrás da Esfera Dourada só é tomada no final do romance, tarde o suficiente para questionarmos sua honestidade.

Estaria realmente preocupado com a filha – a quem se refere insensivelmente como “macaca”? Ou apenas obcecado de tal forma pela Zona que não consegue imaginar uma vida sem o seu perigo, mesmo que não haja mais nada valioso a se roubar?

Estaria ele buscando alguma coisa na Zona ou apenas fugindo da admissão de que foi seu envolvimento com ela que estragou sua vida?

Será que Red sabe o que quer? Será que algum de nós realmente sabe ?

Stalker

Muitos dos que leram o romance dos irmãos Strugátski saíram da leitura com a mesma impressão. As questões que o stalker Red enfrenta são muito mais interessantes do que os detalhes específicos de seu universo. É por isso que, ao adaptar o livro para as telas , o cineasta russo Andrei Tarkóvski decidiu enxugá-lo ao seus elementos mais essenciais.

Se você é como 99% das pessoas, é provável que Stalker (1979), mais do que Piquenique na Estrada, tenha sido seu primeiro contato com a fábula dos irmãos Strugátski. Surpreendentemente para um filme de quase 3h criado por um ídolo do “cinema arte”, o longa se tornou um clássico cult, inspirando até mesmo videogames.

Para sua versão da história, Tarkóvksi se livrou dos aliens – e também dos nomes próprios. No lugar de Red, sua família e parceiros de profissão, deixou apenas um punhado de personagens: a esposa, o professor, o escritor e, é claro, o stalker.

O enredo acompanha uma única expedição à Zona, guiada pela personagem titular. Seu objetivo é encontrar o Quarto, lugar dotado dos mesmos poderes da Esfera Dourada do livro dos Strugátski.

“Poderes”, aqui,  precisam ser colocados entre aspas. O diretor excluiu qualquer menção explícita ao sobrenatural. Por mais que o stalker passe boa parte do filme apontando as anomalias à espreita, nenhuma delas jamais é engatilhada. Mesmo os acontecimentos mais bizarros jamais deixam claro se o que estamos vendo são coisa de outro mundo ou apenas os frutos de paranoia.

Em dado momento, começamos a nos perguntar se a “Zona” realmente existe. A impressão é ressaltada pelo uso de cores, em que o mundo real é representado em sépia e a Zona, em cores.

É como se Tarkóvksi nos convidasse para uma versão soviética de O Mágico de Oz, percorrendo não uma estrada de tijolos amarelos, e sim túneis alagados e ruínas decrépitas.

O que, exatamente, essa viagem significa – se é que signicia alguma coisa – é um mistério mais profundo que a natureza da Zona. Recheado de closes de atores boquiabertos balbuciando monólogos filosóficos, o  filme traz simbolismo suficiente para enlouquecer até mesmo um doutor em semiótica.

Após o desastre nuclear de Chernobyl em 1986, o filme adicionou “profético” a sua lista de adjetivos. À luz do que veio depois, é difícil não ver na lore do filme – as anomalias, as mutações, a própria ideia de uma “zona” de exclusão – uma previsão do futuro trazida diretamente pela Esfera Dourada.

Não ajuda que o filme pode ter causado a morte de seu próprio criador. Stalker foi filmado em uma usina hidrelétrica desativada perto de Talinn, capital da Estônia. Segundo Vladimir Sharun, técnico de som que trabalhou no projeto, um derramamento químico de uma outra usina próxima ao set teriam sido responsáveis pela morte de câncer de Tarkóvski, sua esposa e um dos atores principais alguns anos depois.

Teria o diretor pisado em um dos glitches da Zona que ele próprio criou?

O “yuri da ausência”

A mística que Stalker criou para si explica seu apelo ao longo das décadas. Mas torna ainda mais intrigante entender o propósito por trás de Urasekai Picnic.

Verdade seja dita, as novels de Iori Miyazawa distoam bastante do material que a precedeu. No lugar de marmanjos de cara amarrada, temos Toriko e Sorao, duas universitárias de Tóquio. Em vez de um perímetro de exclusão, sua Zona é uma espécie de dimensão paralela habitada por creepypastas. O tom é consistentemente mais alegre, mesmo em tomadas que parecem surrupiar ideias diretamente do filme de Tarkóvski.

Considerando a seriedade de Piquenique e seus sucessores – e a maneira irreverente como essas mesmas ideias são trabalhadas no anime – é díficil ver Urasekai Picnic como outra coisa que uma heresia.

Mas e se fosse justamente esse o ponto?

Segundo um depoimento no evento japonês Science Fiction Seminar, Miyazawa disse com todas as letras que seu interesse não está na Zona. Pelo menos, não na mesma “Zona” dos Strugátski e de Tarkóvski.

Escritor especializado em histórias de amor entre mulheres, Miyazawa é defensor do que chama de yuri da ausência: a ideia de que certos tipos de paisagem ou cenário podem ser inerentemente yuri.

Como ele mesmo explicou em uma entrevista:

Iori Morizawa: Um penhasco se ergue diante do mar, a grama cresce sobre ele, há uma cerca, o oceano cinza e o céu se estendendo para além do horizonte, há um banco vazio para duas pessoas… Alguém estava subindo essas imagens com a tag “#yuri”. Dá totalmente para entender isso”

Rikimaru Mizoguchi: Então é como a capa do capítulo 9 de Otherside Picnic, em que duas garotas estão dirigindo um veículo agrícola, e há um descampado sem fim em torno delas… Você está dizendo que isso é yuri.

I.M.: Sim. Agora remova as garotas desse cenário. […] Então imagine que um dia as duas garotas estiveram ali… Isso já não é completamente yuri?

Fez sentido para você? Confesso que, para mim, não muito.

Ler a sua entrevista, contudo, me fez dar conta de que não é a primeira vez que vejo cenários pós-apocalípticos, melancólicos usados propositalmente como metáfora dos sentimentos entre duas mulheres.

É a mesma ideia articulada à exaustão por Girls Last Tour, que acompanha duas sobreviventes de uma guerra que estirpou a humanidade.

Girls Last Tour

Se isso de fato é uma tendência – como Miyazawa acredita ser – estamos diante de uma maneira surpreendentemente original – e esquisita –  de humanizar a ficção científica.  Tarefa com que mesmo os mestres do gênero sempre tiveram dificuldade.

“Há um ditado famoso: “sci-fi é só sobre a imagem” Miyazawa disse, citando palavras atribuídas ao escritor Masahiro Noda. “Eu compartilhava esse ponto de vista e, se nada mais, preferia escrever apenas o cenário e as cenas, as paisagens. Mas para escrever yuri você precisa focar nos sentimentos e emoções das personagens”.

“O Yuri me tornou humano”.

Nesse sentido, mais do que uma adaptação de um clássico do sci-fi, Urasekai Picnic é um anti-Stalker, que se vale da aridez de seu material de origem para destacar o quão mais aberto é seu coração para os momentos mais casuais, efusivos, até mesmo ridículos que fazem de nós quem somos.

A ideia parece ter dado resultado – para os animes yuri, se não necessariamente para o sci-fi. Desde o lançamento do anime, certas páginas elogiaram abertamente a criação de Miyazawa por expandir o horizonte de obras de gênero.

É provável que houvesse formas mais simples de se fazer a mesma coisa. Pelo menos, mais convencionais.

Mas o anime não seria a mídia que tanto amamos se não apostasse em loucuras de vez em quando.

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“Rayearth” e a guerra sem fim https://www.finisgeekis.com/2020/10/22/rayearth-e-a-guerra-sem-fim/ https://www.finisgeekis.com/2020/10/22/rayearth-e-a-guerra-sem-fim/#comments Thu, 22 Oct 2020 20:02:36 +0000 http://www.finisgeekis.com/?p=22416 Tudo começou com um desafio.

Um dos editores da revista shoujo Nakayoshi confessou à mangaká Nanase Ohkawa que estavam com um problema. A publicação não conseguia expandir seu público para além das crianças.

Ele esperava que Ohkawa e seu grupo, um quarteto de mulheres conhecidas como CLAMP, tivessem o sucesso que até então os havia eludido: uma série infantil que mantivesse as leitoras interessadas mesmo depois de crescidas.

À luz do presente, a aposta parecia fadada a dar certo. Mas aqueles eram os anos 1990. Cardcaptor Sakura, seu grande sucesso na demografia shoujo, ainda estava por ser escrito. O pedido do editor trazia um dificuldade, mas era uma dificuldade que Ohkawa não podia ignorar. Tinha sido a Nakayoshi, afinal de contas, que trouxera ao mundo A Princesa e o Cavaleiro Sailor Moon.

Lançar um título em suas páginas colocaria a CLAMP no rol dos grandes do universo dos mangás.

O título em questão foi Guerras Mágicas de Rayearth, e seu sucesso superou em muito o briefing original. Mais de vinte e cinco anos depois, a série não apenas superou as barreiras de sua demografia, como continua a inspirar uma geração de adultos.

Apontar o que torna esse isekai da CLAMP tão especial é, de certa forma, uma tarefa insolúvel. Nenhuma obra se torna um clássico desse porte significando o mesmo para todos que a apreciam. Parte dessa riqueza talvez venha do fato de que, para elevar sua história, Ohkawa trouxe ao mundo de Céfiro um dos problemas mais espinhosos da experiência humana.

Com Rayearth finalmente disponível no streaming brasileiro, não poderia haver oportunidade melhor para mergulhar nessa questão.

Até que ponto temos o poder de mudar o mundo?

Todos que já leram ou assistiram à obra sabem dizer exatamente onde ela prova a que não é uma série como as outras. Falo, é claro, do final do primeiro arco, quando o conflito que move a série finalmente se revela pelo que de fato é.

Rayearth começa sem surpresas. Três meninas são teleportadas a um mundo paralelo para salvar uma princesa do grande vilão. Em retrospecto, é possível imaginar Ohkawa puxando as cordinhas de seu enredo, preparando as leitoras da Nakayoshi para um choque de que não se esqueceriam.

Capítulos depois, descobrimos que a princesa não é uma donzela em defesa, e sim uma rainha pescadora, fadada a governar uma terra regida pelas suas emoções. O vilão não é um inimigo, mas o grande amor de sua vida, lutando uma guerra ingrata para libertá-la de seu fardo. E as guerreiras mágicas não são heroínas, e sim as executoras que ela própria convocou para dar fim a sua agonia.

Lendo a história pela primeira vez, durante uma viagem de avião aos 18 anos, tive a impressão de que algo mais forte que a turbulência me sacudia no assento. Ainda hoje estremeço ao pensar no quão mais poderosa ela foi àqueles que a acompanharam em sua infância.

Precisei, contudo, de outra década para descobrir que Ohkawa não fora a primeira a dar vida àquela fábula. Vinte anos anos, a escritora americana Ursula Le Guin havia ganhado o prêmio Hugo com uma história suspeitamente parecida, Os Que se Afastam de Omelas.

O conto trata de uma cidade, à primeira vista, perfeita demais para existir. Seu povo não precisava de reis, de armas ou de escravos. De procissões nababescas a orgias lisérgicas, Omelas tinha o suficiente para realizar qualquer sonho. Como a Céfiro de Rayearth, era uma terra limitada apenas pela imaginação.

Havia apenas um porém: num calabouço subterrâneo, escondido das vistas dos outros, uma criança era mantida nas piores condições de cativeiro. Sem luz ou ar fresco, longe do contato humano, ela dormia sobre seus escrementos enquanto o resto das pessoas aproveitava sua utopia.

Ninguém sabe ao certo por que manter a criança naquele estado era necessário. Apenas que, sem seu sacrifício, o paraíso em que viviam deixaria de existir. E ninguém estava disposto a desafiar o pacto maldito que fazia as flores desabrocharem.

Le Guin não foi a única, nem a primeira, a nos convidar a pensar numa utopia movida pelo sofrimento de um pilar. No entanto, seu conto é aquele que coloca esta fábula nos termos mais próximos aos de Rayearth. De fato, para nós que temos familiaridade com a série, as últimas palavras de Omelas soam suspeitamente com a voz de Lantis:

Às vezes, uma das garotas ou um dos meninos adolescentes que vão ver a criança não voltam para casa para chorar ou enraivecer-se; não voltam, de fato, para casa de todo. […] Cada um sozinho, eles se dirigem a oeste ou a norte, em direção às montanhas. Eles continuam em frente. Eles deixam Omelas, eles seguem adiante escuridão adentro e não retornam. O lugar aonde eles vão é um lugar ainda menos imaginável para a maioria de nós que a cidade da felicidade. Eu não posso de forma alguma descrevê-lo. É possível que ele não exista. Mas eles parecem saber onde eles estão indo, aqueles que se afastam de Omelas.

É um final poderoso como a rajada de um mashin, não pela natureza de sua crítica, mas pela sutileza como a expressa. Indignar-se com a injustiça não é o suficiente.

Le Guin nos convida, como Zagato no início de Rayearth, a ousar a acreditar em um mundo diferente.

Mesmo que, para alcançá-lo, precisemos seguir adiante escuridão adentro, sem a menor garantia de que encontraremos alguma coisa do outro lado.

Zagato é um daqueles que se afastaram de Omelas.

O poder de ditar nosso próprio destino

Essas similaridades entre as duas obras levaram alguns a afirmar que Rayearth e Omelas são essencialmente a mesma história. Mas existe uma diferença fundamental nos pensamentos de Ohkawa e le Guin que não pode ser menosprezada.

Individualista convicta, a líder do CLAMP acredita que cada pessoa é responsável – e a única responsável – por mudar seu destino. Como ela disse em uma entrevista à Animerica,

Eu acho que é uma mentira [dizer] que existe uma força mística aí fora, manipulando sua sina. […] Eu acho que destino é algo que você escolhe fazer, mesmo quando você está sendo conduzido por ele. Por exemplo, se você está no trabalho e você quer pedir demissão, é necessário muita energia para fazê-lo. Você estará perdendo uma vida estável, e se você não gosta disto, você terá de aprender a lidar com a maneira como as coisas são. Mas se você quiser mudar as coisas, apenas você pode fazer isso para você mesma. Se você não gostar de fazer isto, você deixa as circunstâncias ditarem seu destino. Mas se você tem determinação e coragem, eu acho que você pode mudar seu destino.

A mangaká e roteirista Nanase Ohkawa

É, talvez, por conta dessa crença inabalável na ação humana que Ohkawa não perde tempo explicando como Céfiro deu a volta por cima.  No anime, as guerreiras mágicas abandonam o mundo paralelo tão cedo sua missão acaba.  No episódio final, somos brindados com um vislumbre do que ele se tornou, já inteiramente reconstruído.

No mangá, temos de nos contentar com explicação de que todas as dificuldades enfrentadas pelas guerreiras mágicas foram“palavras certas em linhas tortas”, escritas por um demiurgo – Mokona – e postas em prática por uma heroína ainda mais romântica e individualista que Ohkawa – Hikaru.

 

Ohkawa dá por certo que sua protagonista tem o que precisa para nos por no caminho do progresso — e as outras pessoas, a unidade de propósito para seguir seu exemplo.

Mas será que as coisas, na realidade, são simples assim?

Não seria a guerra civil em que Céfiro se encontrava quando da chegada das guerreiras mágicas a prova de que seus habitantes têm suas próprias ideias de como o mundo deva ser? E que elas não são, necessariamente, compatíveis?

Não seria a própria insistência de Esmeralda em viver – e morrer – sob o sistema do pilar prova de que não acreditava na capacidade das pessoas de resolver seus próprios problemas?

Não estaríamos nós, habitantes de um mundo onde não existem guerreiras mágicas, mais próximos do pessimismo de Esmeralda que do otimismo de Hikaru?

Uma guerra sem fim

Para Ursula Le Guin, a resposta é sim. E é por isso que apostar todas as fichas em uma intervenção miraculosa é uma receita para o fracasso.

Em um ensaio chamado Uma Guerra Sem Fim, ela critica aqueles que, na luta pelo progresso, argumentam que a mudança violenta é a única solução possível. E que aqueles que não concordam são omissos — ou, pior, conformistas.

Le Guin nos lembra que nem todos têm o poder de ditar seu destino como aconselha Ohkawa. Para escravos, vítimas do Holocausto e toda sorte de oprimidos ao longo da história, virar o sistema de ponta cabeça nunca foi uma opção. O que não significa que não fizeram sua parte, nem que por isso valem “menos” que seus pares mais poderosos.

Como a autora explica, existem um meio-termo entre baixar a cabeça e morrer inutilmente por uma causa: A relutância em aceitar cegamente a tradição. O esforço para capacitar novas gerações.  A coragem de imaginar que um mundo melhor é possível – e a capacidade de fazer os outros acreditarem nele.

Essa resistência flexível, como ela a batiza, “não é um lugar fácil de se encontrar ou de se viver.” Insistir nessa luta, de certa maneira, é uma guerra sem fim.

“Mas […] é onde Gandhi se firmou. Lincoln chegou lá, dolorosamente. O Bispo Tutu, tendo vivido lá por anos em honra singular, viu seu país se mover, ainda que desajeitada e incertamente, em direção a um terreno de esperança.”

Ursula Le Guin. Foto de Marion Wood Kolisch. Fonte

À primeira vista, esse modelo de heroísmo tem pouquíssimo a ver com a Hikaru do mangá. Ele encontra, porém, um inesperado terreno comum com sua adaptação às telas.

Estamos no mundo, não contra ele

Como fãs bem sabem, o anime de Rayearth toma rumos bastante diferentes em sua segunda temporada.

Se no mangá o arco de Esmeralda é seguido por uma batalha real pelo legado da princesa, na série animada o que está em jogo é a própria alma de Céfiro.

Os medos desencadeados pela morte de Esmeralda se transformam em uma entidade que ameaça reduzir o mundo a uma terra de pesadelos.

Esse medo encarnado tem um nome – Debonair – mas é sua braço direito, Nova, quem rouba os holofotes da vilania.

A série pouco faz para esconder seu protagonismo: se Debonair é despachada em questõa de minutos, a batalha final contra Nova dura quatro episódios inteiros – mais um sem número de confusões que recheiam o segundo arco.

Esse destaque tem um motivo claro. Nova, afinal de contas, é para Hikaru o que Debonair é para Esmeralda: uma contraparte odiosa, falível e humana para uma garota impossivelmente boa, capaz de transformar a terra no paraíso pela simples força de se coração.

Se parasse por aí, teríamos os ingredientes de uma história convencional sobre o triunfo do bem. Porém, num twist que faria Le Guin sorrir, Hikaru derrota Nova não ao destrui-la, mas ao trazê-la para dentro de si, vícios e tudo.

Vista sob esse ponto de vista, toda a segunda temporada nada mais é que uma metáfora para o luto da própria Hikaru, que aprende a superar o trauma da morte de Esmeralda aceitando — e não suprimindo — seus defeitos.

A implicação desse aprendizado vai além do nível pessoal. Seres humanos são imperfeitos por natureza, e esta imperfeição deve ser levada em conta em nossos planos para um futuro melhor. Do contrário, eles estarão fadados a dar errado.

“Eu acho que todas as pessoas têm naturezas duais”  disse Ohkawa sobre o Kamui de X/1999, num comentário que serve igualmente bem para Hikaru/Nova “Eu teria medo de um homem bom que fosse apenas bom”. Esmeralda, aparentemente, também. Por isso convocou guerreiras para eliminar tal pessoa.

Ohkawa e Le Guin discordam sobre os limites da ação humana, mas estão na mesma página em relação ao que torna uma ação “humana”. Lendo suas obras lado a lado, não consigo afastar a impressão de que as personagens das duas escritoras também teriam figurinhas a trocar.

Não sei o que passou na cabeça de Águia ao entender que jamais seria o pilar de Céfiro. Ou na de Alcione, quando fez as pazes com a morte de Zagato e ajudou as guerreiras a encontrarem Debonair. Ou ainda nas daquelas crianças que protegeram Mokona dos escombros do palácio, cientes de que não tinha poderes para consertar o mundo; convictas de que, naquele momento, isto de pouco importava.

Mas suspeito que não seja muito diferente do que pensou George Orr, protagonista de outro livro de Le Guin, Os Tormentos dos Céus:

Nós estamos no mundo, não contra ele. Não funciona tentar permanecer fora das coisas e conduzi-las desta forma. Simplesmente não funciona, vai contra a vida. O mundo é, não importa como nós pensamos que ele deva ser. Você precisa ser junto com ele. Você precisa deixá-lo ser.

A entrevista com Nanase Ohkawa citada nesse artigo foi realizada em 1997 e publicada em LEDOUX, T. Anime Interviews: The First Five Years of Animerica, Anime & Manga Monthly (1992-1997). Cadence Books: San Francisco, 1997,  pp. 172-83

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