O mês das bruxas acaba de terminar (ou de começar, se você for purista e levar em conta que o festival que inspirou o Halloween era celebrado dia 01/11 e seu nome – Samhain – significa “novembro” ).

Ainda que você não seja tão fã da pantomina carnavalesca em que os americanos transformaram a data, o Dia das Bruxas é uma desculpa perfeita para conferir obras sobre assombrações e o além. Mesmo aquelas que pouco têm a ver com abóboras esculpidas ou chapéus pontudos.

Kimyouji Yokochou no Natsu, ainda inédito no Brasil, mas publicado em inglês como Temple Alley Summer, é uma leitura do tipo. O romance infanto-juvenil é uma fábula sobre inocência, fantasia e nossa relação com morte, contada de uma maneira tão transparente, em sua simplicidade, quanto os fantasmas que a povoam.

Não é de surpreender, considerando que foi escrito por ninguém menos que Sachiko Kashiwaba, autora do livro que inspirou A Viagem de Chihiro.

O Templo do Retorno à Vida

Há uma vibe de antiguidade em Temple Alley Summer que encaixa perfeitamente em seu enredo sobre assombrações, templos amaldiçoados e casarões misteriosos. Embora tenha sido originalmente escrito em 2011, sua história parece pertencer a uma época mais simples, em que nossa percepção do sobrenatural era mais guiada pelas coisas que enxergávamos – e as que não víamos – que pela mídia de massa.

É uma ironia que não escapa à Kashiwaba, que começa seu livro justamente com um programa de TV. Kazu, aluno da quinta série na pequena cidade de Masuda, interior do Japão, está assiste a um enlatado sobre fantasmas antes de dormir. Ao ir ao banheiro no meio da noite, é surpreendido por uma visão mais assustadora que qualquer vídeo de poltergeist.

Uma garota aparece em um dos cômodos da sua casa vestida em um kimono fúnebre.

A menina desaparece tão cedo surgiu. Seus pais, como é típico de pais fazerem, não acreditam em sua história.

As coisas ficam mais estranhas quando Kazu reencontra a estranha na escola, vestindo o uniforme de seu ano. Nenhum de seus colegas nota nada de errado em sua presença. Pelo contrário, agem como se ela sempre tivesse estudado com eles.

Teria uma assombração realmente voltado à vida e ocupado um espaço em sua rotina? Ou estaria Kazu apenas ficando louco?

Pouco a pouco, o garoto começa a acreditar na primeira opção. Durante um trabalho da escola, Kazu desenterra por acaso um antigo mapa de sua cidade. Segundo ele, cerca de cem anos atrás sua rua costumava se chamar Kimyōji Yokochō, algo como “beco do templo Kimyou”. Em japonês, o nome do santuário se escreve com os ideogramas para “retorno” e “vida”, como se estivesse de alguma forma relacionado com a missão de trazer os mortos de volta do além.

Basta que Kazu comece a fazer perguntas para que entenda que não está lidando apenas com mortos, mas também com os esqueletos, metafóricos, que os vivos escondem no armário. Os velhos de sua rua prontamente negam ter ouvido falar do templo. Dois membros do conselho do bairro visitam sua casa para lhe convencer de que pesquisar a respeito é uma perda de tempo. De uma mera história de fantasmas, Temple Alley Summer começa a se assemelhar a uma versão infanto-juvenil de O Bebê de Rosemary.

Kazu eventualmente descobre que o templo Kimyou realmente existiu, mas foi destruído por um grupo de pessoas que considerava errado trazer os mortos de volta à vida. Seus adeptos, todavia, continuaram os ritos em segredo, dando uma nova chance a almas perdidas.

É óbvio que Akari, sua recém-aparecida “amiga”, é uma dessas pessoas.

Ressentimentos e segundas-chances

Minha sinopse talvez faça o livro parecer mais sombrio do que de fato é. Kashiwaba escreve sobre templos, mortos-vivos e seitas misteriosas, mas Temple Alley Summer deixa claro que estes elementos são apenas um pano de fundo para uma questão maior: Se existisse um poder capaz de trazer mortos de volta à vida, seria correto utilizá-lo?

Você, leitora, o utilizaria?

Kazu acha que tem uma resposta, mas sua certeza desmancha quanto mais se aproxima de Akari. Sim, mortos-vivos são uma violação das leis da natureza. Mas, até aí, não é injusta uma natureza que permite que meninas morram aos dez anos, antes de aproveitarem o melhor que a vida tem a oferecer? Até que ponto certas pessoas não merecem uma segunda chance? Até que ponto desejar uma segunda chance em vez de curtir o pouco tempo que nos resta não invalida a própria razão de se viver?

Não tive a oportunidade de ler Kiri no Mukou no Fushigi na Machi, o livro de Kashiwaba que inspirou A Viagem de Chihiro. Não sei dizer, portanto, se a exuberância do filme se deve à imaginação de Miyazaki ou à história que o inspirou.

Tenho a impressão de que é o primeiro caso, pois Temple Alley Summer não poderia ser mais diferente da obra-prima dodiretor.

Não que não existam pontos em comum entre romance e filme. Alguns detalhes, como uma mãe invisível e um varal que se materializa na medida em que surgem roupas a secar, parecem tirados diretamente da mente dos animadores do Studio Ghibli. Kazu, como Chihiro, aprende a enxergar o maravilhoso nas coisas mais mundanas.  

Mas se no longa de Miyazaki essa lição é colorida por um mundo paralelo que desafia os limites da imaginação, o romance de Kashibawa é uma jornada para dentro. Como em As Aventuras de Marnie, o aprendizado de Kazu vem não de fugir da realidade, mas de redescobrir o valor dos lugares e pessoas com que sempre conviveu.

É curioso que, quando Temple Alley Summer finalmente abraça a fantasia, o faça por meio da literatura. Em dado momento, na sanha de realizar os sonhos inacabados de Akari, Kazu sai em busca de um conto de fadas que costumava ler, serializado em uma revista há muito descontinuada.

Essa história-dentro-da-história chega a lembrar A Cidade sem Ninguém de Chobits, não apenas por conta de seu tom, mas pela maneira como força as personagens do romance – e também a nós, que a lemos através de seus olhos – a enxergar seu conflito de outra maneira. Se a escrita de Kashiwaba possui uma vibe de antiguidade, ela vale em dobro para o conto de fada. Até mesmo as ilustrações são diferentes, em um estilo que parece pagar tributo às xilogravuras dos séculos XVII e XVIII.

É coincidência que um romance que se inicia com um enlatado de TV termine com uma homenagem literária a Charles Perrault aos Irmãos Grimm? Eu duvido muito.

Mortos não retornam ao nosso mundo, e provavelmente isto é para o bem. Mas o passado nunca morre de verdade, e há diversos sortilégios que podem trazê-lo de volta à vida, escondidos em mapas antigos, histórias contadas e memórias daqueles que estão por aqui há mais tempo que nós.

Tudo o que precisamos é de uma pitada de curiosidade.