Eu nunca fui um poeta. Minha breve experiência com essa forma de arte – escrevendo um poema aqui e ali, traduzindo outros tantos – deixou claro que rima, métrica, e eufonia são preocupações que deixo de bom grado aos outros.

Na verdade, sequer me tornei um leitor de poesia até quase chegar às portas da faculdade – para o desespero de meu pai, que recitava de memória Fernando Pessoa e Mário Quintana.

Felizmente, os anos (e uma coletânea de W.B. Yeats) me consertaram. Mais do que isso, entendi que “poesia” é algo mais do que palavras rabiscadas em uma página. Ela pode ser uma maneira de enxergar beleza até naquilo que é mais mundano.

Palavras que Borbulham como Refrigerante é um anime sobre esse sentimento e, ao mesmo tempo, uma prova viva dessa máxima. Um recado de que mesmo um filme despretensioso de romance pode tocar uma verdade que poucas obras alcançam

O anime, dirigido por Kyouhei Ishiguro, tem os ingredientes para se perder no oceano de histórias de amor que lotam serviços de streaming e o coração mole de otakus.

Uma pequena cidade interiorana, um protagonista talentoso, mas deslocado; uma garota-dos-olhos com problemas de imagem, amigos excêntricos, férias de verão. Ponha-o ao lado da trilogia de Chichibu – Anohana, Kokosake,  Sora no Aosa – e é fácil acreditar que temos outra parceria TatsuyukiOkada nas mãos.

O mocinho da vez é Sakura (chamado de “Cherry” pelos amigos), adolescente que faz bico em uma creche para idosos. Em um dia fatídico, seu caminho cruza com “Smile”, uma aspirante a influencer que – ironia das ironias, dado seu apelido – sofre crises de auto-estima em razão do tamanho de seus dentes.

Um dorayaki para quem adivinhar que tipo de sentimento brotará entre os dois jovens.

Mas Palavras que Borbulham como Refrigerante não é um simples romance adolescente. Cherry é um poeta. Especificamente, um autor de haicais: os tradicionais poemas de três versos japoneses. O próprio título, no idioma original, forma uma peça do gênero. As “palavras” a que se refere não são apenas confissões truncadas de amor, mas também sua grande, mas ainda imatura sensibilidade literária.

Cherry passa os dias testando poemas com cada nova expressão que escuta. Raramente sai de casa sem um saijiki, espécie de dicionário para a escrita de haicais. Um de seus amigos, um delinquente chamado Bieber, grafita seus poemas em muros cidade afora.

Que um anime compre o desafio de mostrar a adolescência à luz da paixão pelas letras – mais do que isso, de retratar a poesia como algo subversivo – seria por si só digno de aplausos. Mas Palavras que Borbulham vai mais longe, com um apreço pela poesia que só fica mais evidente quanto mais pensamos no gênero.

Historicamente, muitos haicais tradicionais privilegiavam imagens ligadas às estações – chamadas em japonês de kigo. Catalogar esses termos, inclusive, é uma das principais funções do saijiki, o dicionário que Cherry tanto usa.

Palavras que Borbulham parece tentar reproduzir esse fascínio em sua fotografia. Do verde ultrassaturado de gramados a explosões de cores dignas de um quadro de Takeshi Murakami, o anime é simplesmente maravilhoso de se olhar. É até difícil acreditar que boa parte de sua ação se desenrola num cenário tão mundano quanto um shopping center de interior.

Mas haicais não falam de paisagens e natureza apenas por falar. Como ilustra o poema abaixo, escrito pelo grande Matsuo Bashô (1644-1694), (na tradução de Gonzalo Bolliger)

Vá, veja o mundo

A neve caindo, caindo

De cansaço

“Estações”, muitas vezes, são pretexto para retratar a passagem do tempo – e seus efeitos sobre nós.

Efeitos, por exemplo, que sofre o Sr. Fujiyama, um dos velhinhos sob o cuidado de Cherry. Ex-funcionário de uma fábrica de vinis, dono de uma loja de LPs em tempos de Spotify e pirataria de música, ele é um homem esquecido pelo tempo. Sua esposa, falecida, foi uma cantora nos longínquos anos 1970 cujas décadas empurraram ao esquecimento.

Efeitos, também, que transformam sua própria cidade: uma aberração industrial feita de linhas de energia, paredes de concreto e estacionamentos que se estendem até onde o olho alcança. Os cuidadores da creche de velhos mal conseguem esconder seu desdém pelo Festival do Daruma, feriado cujas atividades ajudam a preparar. Como os idosos de que cuidam, o evento é uma relíquia que ultrapassou seu tempo.

Cherry e seus amigos são jovens demais para sentir esses problemas na pele, mas o anime deixa claro que suas vidas seguirão o mesmo caminho. O garoto publica seus haicais numa conta de Twitter seguida apenas por sua mãe. A “arte” de Bieber, seu amigo grafiteiro, dura apenas o tempo que leva para os seguranças do shopping encontrá-la e apagá-la. Smile é uma aspirante a influencer que grava lives falando de fofices.

Quando o enredo coloca essas personagens em busca de um LP perdido, gravado por Fujiyama para sua esposa, é impossível não perceber a ironia. Se algo tão sólido como um vinil sumiu sem deixar rastros, que esperança terá um tweet? Um grafite? Uma live?

Como a Sra. Fujiyama, eles também estão fadados a desaparecer.

Meus comentários talvez façam o anime parecer mais sombrio do que é. Não se enganem. Palavras que Borbulham ainda é um romance upbeat, com todo o açúcar que o “refrigerante” de seu título merece.

Se nada mais, é justamente por reflexões tão sérias com tanta leveza que ele se eleva dentro de seu gênero. Reflexões, aliás, que ele joga para dentro de seu romance.

Não há, no filme, grandes arroubos de choro ou “viveram-felizes-para-sempre”. O sentimento que brota entre Cherry e Smile não os define. É possível que, como as lives da garota, ele deixe de existir assim que pousem o celular. No fundo, não importa.

Como os haicais que os inspiram, Cherry e Smile estão dispostos a enxergar a beleza de cada momento, por mais breve que ele seja, mesmo sabendo que um dia tudo não passará de uma memória.

E talvez, inspirado também por esses poemas, seja melhor que eu mesmo não alongue esse texto para além do necessário. E, em vez disso, o termine com a palavra do nosso maior autor de haicais, que tão bem sintetizou o que Cherry, e todos nós, sentimos:

Esta vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem.