Mashiro no Oto pode não ser o melhor anime já feito sobre música. Ainda assim, a série foi uma janela a um mundo fascinante de que raramente escutamos: o shamisen.
Para aqueles, como eu, cujo conhecimento desse instrumento se resume ao filme Kubo e as Cordas Mágicas, Mashiro no Oto também não foi a mais didática das introduções.
O que, afinal, é um futozao ou Tsugaru? O que significa ter um bachi grande ou pequeno? Porque todas as personagens parecem tocar a mesma música? O que diferencia uma performance “boa” de uma “ruim?”
Se você, assistindo ao anime, sentiu-se bombardeado por essa e outras dúvidas, seus problemas acabaram. Conhecer o instrumento a fundo provavelmente é trabalho para uma vida inteira. Ainda assim, abaixo seguem quatro curiosidades para tornar esse universo diferente um tanto menos misterioso:
1) Os shamisen não são todos iguais – nem vêm da mesma parte do Japão
Como alguém sem grandes conhecimentos de música japonesa, me dou por satisfeito por conseguir diferenciar um shamisen de um erhu ou ghaychak. Jamais cogitaria imaginar que existissem tipos diferentes de shamisen, com sons e repertórios bastante distintos.
Contudo, esse é justamente o caso.
Existem pelo menos três grandes famílias de shamisen: hosozao, chuzao e futozao, cada uma subdividida em tipos de instrumento desenvolvidas para gêneros distintos. O que mais vemos no anime é o Tsugaru, variante do futozao (“pescoço grosso”). Trata-se de um shamisen grande e potente, com grande projeção de som, que privilegia peças instrumentais com passagens virtuosísticas.
Em outras palavras, é um shamisen feito para impressionar.
Como explica o vendedor de instrumentos Hiroshi Odawara no episódio 6 de Mashiro no Oto, é um estilo bastante específico, criado em um cidade conhecida como Tsugaru, na província de Aomori. Localizada no extremo norte do Japão, esta é uma região super isolada, mesma na época dos aviões e trens-bala. E que, justamente por isso, ganhou fama como uma terra “virgem”, afastada dos delírios da modernidade, onde uma cultura autêntica e tradicional ainda prospera.
Em Aomori, campeonatos deste gênero de música são organizados justamente para promover essa imagem bucólica.
Imagem que Mashiro no Oto promove, enviando seu elenco inteiro a uma excursão à província para aprender as origens do instrumento que tanto amam.
Essa “marketing”, na verdade, vai muito além da música. Aomori é a terra do protagonista, Setsu, mas também de seus rivais, Maimai e Soichi. Seu grupo, originário de Tóquio, é enquadrado como o underdog na competição contra os locais da província.
Quando Soichi a Setsu que o arroz de feijão de Tóquio não tem o mesmo gosto do que se come em Aomori, ele não está falando apenas de culinária. Há um julgamento de valor no seu comentário, contrapondo a cidade grande, aculturada, ao suposto respeito à tradição de sua terra natal.
Uma imagem que chega a ser irônica, já que….
2) O Tsugaru-jamisen não é tão “tradicional” quanto imaginamos
Para quem não tem contato com música tradicional japonesa, é fácil colocar tudo o que não se encaixa nas nossas expectativas no mesmo balaio. Porém, tal como o shamisen comporta toda uma família de instrumentos, os estilos musicais em que aparecem também são dramaticamente diferentes.
E, dentro desse repertório, o tsugaru-jamisen é um dos estilos mais ‘modernos’, ousados e recentes.
O shamisen chegou ao Japão no século XVI como um instrumento de acompanhamento, feito para embalar peças, espetáculos e solenidades. A música, na época, privilegiava o uso da voz, e as cordas se adequavam a esse princípio. As performances precisavam respeitar a virtude do shibumi (algo como “austeridade” ou “adstringência”).
Foi apenas muito tempo depois que a música instrumental ganhou prestígio, e o shamisen se tornou a estrela das apresentações. Se pararmos para pensar, não foi muito diferente do que aconteceu com a música erudita na própria Europa, focada na performance vocal durante a Idade Média e Renascença, para depois ver nascer várias formações instrumentais, com solos cada vez mais virtuosos.
No caso específico do tsugaru-jamisen, esse “muito tempo” foram quase trezentos anos. Segundo alguns musicólogos, o estilo foi criado por um compositor cego chamado Nitabo (1857-1928), que ganhou popularidade apenas nas décadas de 1910 e 1920.
Sim, estamos falando de mais de cem anos atrás. E não há nenhuma regra que diz que tradições não podem ser reconhecidas como tal depois de apenas algumas décadas. Ainda assim, é importante frisar que estamos falando de uma arte tão recente quanto o jazz e o blues.
Mashiro no Oto não é um anime sobre as origens do tsugaru-jamisen, mas está cheio de referências a sua história. Segundo a lenda, Nitabo era um bosama (cego itinerante), que trocava performances por pratos de comida.
É a mesmíssima história dramatizada no avô de Setsu, Matsugorou, que vemos em um flashback nas ruínas do pós-guerra.
Ao tocar a composição de seu avô a uma mulher que se lembrava de tê-la ouvido na época, Setsu recebe a crítica de que sua versão está “complicada demais”. Nada mais justo, já que Matsugorou era um músico da “velha escola”, que apenas começava a abandonar o shibumi em prol da potência e ornamentação
Mesmo o som de Setsu, mais enérgico ao de seu avô, parece “demodê” comparado ao de seus rivais no campeonato. O anime soletra isto com todas as letras no episódio 11, quando Setsu, pressionado pela mãe, faz uma apresentação “tradicional”, austera e diminuta. Para o choque dos jurados, que imediatamente entendem que ele aprendeu a tocar com um músico “das antigas”.
3) Sim, todos os membros do grupo tocam a mesma coisa. Mais ou menos.
Um dos detalhes mais curiosos no campeonato de Mashiro no Oto é o repertório das apresentações ém grupo. De longe, até parece que todos os integrantes de cada grupo estão tocando a mesmíssima coisa.
Levando em conta que o anime nos mostra poucos minutos de cada apresentação – e tem o terrível hábito do anime de “cortar” as performances em favor de um piano & strings genérico – é até difícil distinguir uma equipe da outra.
Na verdade, esse é justamente o propósito.
Na música tradicional japonesa, mesmo em formações com instrumentos diferentes, os membros tocam variações simultâneas da mesma linha melódica. É um tipo de textura musical conhecida como heterofonia.
Em Mashiro no Oto, vemos isso em prática no episódio 9, quando Setsu e Kaito tocam de maneira que seus instrumentos se complementem.
Pode parecer um detalhe sutil, mas é a diferença entre um troféu e a derrota. Isto porque o repertório de competição do shamisen é minúsculo. Ao todo, existem cerca de vinte peças frequentemente tocadas, das apenas cinco compõem a lista básica.
Não é incomum que todos os concorrentes de uma mesma categoria apresentem a mesma peça. Nesse contexto, truques como o de Setsu e Kaito podem ser tudo o que distingue uma equipe de outra.
Isso e o jogo de cintura para criar na hora. Afinal,
4) O tsugaru-jamisen é um estilo improvisado (dentro de limites )
Como era de se esperar para um estilo inventado por músicos itinerantes e popularizado na era do jazz, o tsugaru-jamisen é fortemente baseado na improvisação. Isto faz dele uma raridade na música tradicional japonesa, que geralmente exige que a música seja seguida mais ou menos à risca.
Esse, de certa forma, é o motivo de seu repertório de competição ser tão pequeno. A intenção não é confinar os jovens músicos, mas servir de ponto de partida para suas próprias invenções. Nenhuma performance é igual a outra.
Como escreveu Kevin Kmetz, mestre em shamisen que trabalhou na música de Kubo e as Cordas Mágicas, interpretar uma peça é “mais um gesto musical que uma composição de verdade”.
Ainda assim, ter liberdade para improvisar não significa que o tsugaru-jamisen seja um vale-tudo. Tanto o repertório quando as variações permitidas “dentro de limites estritos”, que “tem se tornado cada vez mais canonizados e codificados” com o passar do tempo.
Em Mashiro no Oto, Setsu aprende isso da maneira mais difícil quando decide mudar drasticamente seu som na metade de performance. O ato de rebeldia sucede em irritar sua mãe, que o obrigara, contra sua vontade, a imitar o estilo do avô. Infelizmente, ele não impressiona os jurados, que deduzem sua pontuação.
Claro, a situação é outra fora das competições. Graças à liberdade que dá a seus intérpretes, o tsugaru-jamisen conseguiu incorporar elementos de vários gêneros populares, do jpop ao rap. Bandas como os Irmãos Yoshida – que providenciaram consultoria para Mashiro no Oto, além de tocarem na sua música de ending – estão constantemente levando o instrumento ao encontro de novas influências.
Ver o tsugaru-jamisen ao lado de sambistas talvez seja radical demais mesmo para alguns fãs do instrumento. Ainda assim, é possível que Nitabo, o lendário criador do estilo, reagisse a isto com um sorriso. Afinal, como disse Hiroshi Odawara em Mashiro no Oto:
[No começo] não havia barreiras nem limitações. Eu acho que a força e o ritmo que o futuzao proporciona é como a alma dos japoneses. Isso que é o “blues”. Tradição? Regras? Eu não acho que existiam essas coisas no começo. Afinal, o fundador do tsugaru-jamisen, Nitabou, e seus aprendizes [ estavam ] sempre estão criando coisas novas. O estilo muda junto com o tempo.”
“O tsugaru-jamisen superou Tsugaru”
Referências bibliográficas
BARSKY, J. Shaping a Music Genre through Competition and Virtuosity : 21st Century Tsugaru Shamisen Contests in Aomori Prefecture, Japan. Dissertação de mestrado: Universidade do Havaí, 2013. Disponível aqui.
HUGHES, D. Folk Music: from local to national to global. In: TOKITA, A.; HUGHES, D. (Eds.) The Ashgate Research Companion to Japanese Music., pp. 281-302
JOHNSON, H. Tsugaru Shamisen : From Region to Nation (and Beyond) and Back Again. Asian Music, v. 37, n.1, 2006, pp. 75-100
PELUSE, M. Not Your Grandfather’s Music: Tsugaru Shamisen Blurs the Lines Between “Folk,” “Traditional,” and “Pop”. Asian Music, v. 36, n. 2, 2005, pp. 57-80
TOKITA, A.; HUGHES, D. Context and change in Japanese music. In: TOKITA, A.; HUGHES, D. (Eds.) The Ashgate Research Companion to Japanese Music. , pp. 1-33
Últimos comentários