Muito tempo atrás, quando videogames ainda eram novidade, estudiosos da mídia se perguntavam qual era a melhor “caixinha”, no mundo da arte, em que deveriam ser colocados.

Alguns defendiam que eles eram apenas outro tipo de jogo, igual ao xadrez ou mesmo ao futebol.

Outros argumentavam que eram uma forma de contar histórias, comparável ao cinema, a literatura e ao teatro.

Não demorou para que ambos percebessem que estavam errados. Videogames eram uma mistura das duas coisas – e mais tantas outras que não haviam antecipado. Tentar separá-las ia justamente contra aquilo que os tornava uma arte tão fascinante.

Mas ambos também estavam certos – em relação a outra coisa. A despeito de seus códigos e interfaces gráficas, games não são uma mídia completamente “nova”. Eles remontam a tradições – de narrativas, de divertimentos, de maneiras de entender o mundo – que acompanham a humanidade desde os seus primórdios.

De vez em quando surge um jogo para nos provar que isso sempre será verdade, não importa quão sofisticados fiquem nossos computadores e consoles.

The Life and Suffering of Sir Brante, RPG baseado em texto desenvolvido pelo estúdio Sever, é um desses games.

Roleplay em tempos de revolta

Que Sir Brante não é um RPG como os outros fica claro já em sua primeira tela. Enquanto que muitos títulos do gênero se contentam em ser um pastiche de J.R.R. Tolkien, dando ao seu universo um tom vagamente europeu e medieval, Sir Brante mira uma época mais recente. Seu estilo artístico parece se inspirar em xilogravuras e águas-fortes dos séculos XVI e XVII.

A referência tem um porquê que se torna evidente quando jogamos o game. Sua história nos leva auma monarquia fictícia conhecida como o Abençoado Império Arkniano. Mais precisamente, como o subtítulo revela, na época em que esse império encontra seu fim.

No que consiste essa derrocada é um mistério que Sir Brante guarda para o final. O jogo é um RPG baseado em texto no estilo de Fallen London, que acompanha retrospectivamente a vida de um homem que virou seu mundo de ponta cabeça.

Seu enredo é organizado em cinco capítulos, correspondentes às fases da vida de seu protagonista. Desde o primeiro, – “Infância” – observamos as tensões que mais tarde se tornarão críticas.

O Abençoado Império, aprendemos, é um mundo cruel cuja sociedade é dividida em três estados: os nobres (que mandam), os plebeus (que sofrem) e o clero (que justificam a desigualdade perante à lei como parte de um plano divino).

As coisas começam a mudar quando a própria Igreja  começa a questionar sua doutrina. Da opressão aos camponeses nasce um movimento dissidente – a Nova Fé – que prega o livre acesso às escrituras e defende o dever de cada um buscar sua própria salvação.

Se você entende de história – ou é fã de Europa Universalis –  já deve ter entendido do que Sir Brante realmente se trata. Seus “padres dissidentes” são uma referência óbvia a Martinho Lutero e os primeiros protestantes. O próprio “Abençoado Império Arkniano” nada mais é que o Sacro Império Romano-Germânico, antigo estado na Europa Central onde Lutero nasceu. E cuja resistência em aceitar sua “nova fé” mergulhou a Europa em uma das piores guerras de sua história.

“O Enforcamento” por Jacques Callot (1633)

As Guerras de Religião

Dissidentes enforcados em “Sir Brante”

Como escrevi em outro artigo tempos atrás, RPGs são um gênero complicado. Vivem nos prometendo “liberdade de escolha”, mas esquecem de nos dizer que as “escolhas” em questão quase sempre estão “sobre trilhos”.

Na maioria das vezes, elas consistem apenas em escolher entre duas ou três alternativas opostas. Geralmente bem identificadas, para que saibamos exatamente o que estamos escolhendo.

Sir Brante joga essa convenção pela janela. Nada mais justo para um game inspirado nas Guerras Europeias de Religião,  uma série de conflitos super-complexos que não podem ser resumidos a paragons e renegades.

O jogo contém um número surpreendente de caminhos, mesmo para um RPG sem uma interface gráfica propriamente dita.

Como em visual novels, há uma série de “rotas” principais, correspondentes aos três estados que regem o Império Arkniano. Dependendo das escolhas que tomar em seus anos de formação, Brante pode se tornar um nobre, um padre ou continuar um plebeu.

Dentro de cada caminho, porém, é possível se posicionar a favor ou contra o status quo. E no seio de cada uma dessas lutas, é possível optar pela via reformisma ou pela violência desenfreada.

Obviamente, nada é tão simples quanto parece. Isto porque o cabo de guerra entre situação e revolução é representado como métricas distintas, cada qual com seus valores máximos e mínimos.

Se qualquer um desses termômetros políticos chegar no extremo, em qualquer uma das direções, o resultado invariavelmente será um banho de sangue – seja no sentido da anarquia, seja de uma reação brutal contra os oprimidos.

Há aqui uma lição importante sobre a natureza do populismo. Lute pelos seus direitos e você pode mudar o mundo para o melhor. Porém, se sua luta violar essa frágil malha de civilidade que chamamos de Estado de Direito, é muito provável que sua cabeça termine ao lado das dos tiranos que almejava depor.

De um ponto de vista de game design, o que impressiona nesses desenlaces é como a equipe do estúdio Sever conseguiu escrever uma história coesa sem que saibamos, até o último momento, que rumo nossa jornada tomará.

Isso jamais seria possível sem o imensa sensibilidade de seu roteiro e o carinho com que trata suas personagens.

Casos de família

“Esteja pronto a aceitar que Sir Brante não conseguirá vencer cada desafio em seu caminho” o jogo nos avisa ao começarmos a campanha, “Cada vitória será uma luta – um caminho calcado por derrotas amargas e fracassos torturantes.”

“O que será de Sir Brante, seus entes amados, e seu mundo?”

Essas palavras salientam bem a natureza do jogo da Sever: essa não é uma história sobre ideias, e sim sobre pessoas.

Boa parte da trajetória de nosso protagonista é passada ao lado de sua família, ao longo de três décadas de crises, tragédias e alegrias compartilhadas.

Brante é filho de Robert, membro da baixa nobreza, e Lydia, camponesa que trouxe à casa sua filha Glória, fruto de um estupro por um nobre abusador. Eles também vivem com Stephan, filho de Robert com sua primeira esposa, uma nobre “da espada” – i.e. que pertence ao alto escalão do Império e tem o direito de passar seu título aos filhos. Por conta disso, ele goza dos privilégios da aristocracia, enquanto seus irmãos, apesar de morarem na mesma casa, são seus inferiores.

Robert é um reformista de coração, mas nunca teve coragem de peitar seu próprio pai, alpinista social disposto a sacrificar tudo para não ser confundido com um plebeu  – em uma cena, ele literalmente tenta colocar fogo na própria casa com a família dentro.

Stephan constantemente humilha seus irmãos plebeus, em especial Glória, que considera a culpada por todos os problemas da família. Cada esporro, porém, torna a irmã mais hostil – e desdenhosa dos esforços de Stephan para erguer a reputação dos Brante.

Lydia, a mãe, faz o possível para manter a família unida, muito embora ela seja a que mais sofra nas mãos de Stephan e do sogro. Paradoxalmente, ela é também uma religiosa devota que acredita que sua opressão é obra de Deus e não deve ser resolvida.

Não é preciso dizer que seja qual for a revolta que Sir Brante vier a armar, ela não descerá bem com sua família.

Esses conflitos trazem à mente We. The Revolution, outro jogo que usou a família do protagonista para dar um rosto humano a um período conturbado da história. No caso, a Revolução Francesa.

Porém, se naquele jogo a ruína da família era uma tragédia anunciada – um lembrete de que revoluções invariavelmente decapitam até mesmo aqueles que manejam a guilhotina – em Sir Brante temos a opção de evitar o pior.

Nenhuma dos caminhos para isso é fácil. O que só torna nossa derrota mais amarga quando nossos esforços para salvar a família fracassarem. Ou quando descobrimos, tarde demais, o preço terrível que teremos de pagar por eles.

O dilema não acaba na família. Virtualmente todas as pessoas com que Brante se relaciona em sua vida pessoal desempenharão um papel na arquitetura de sua revolta. Para ajudá-lo – ou, às vezes, opondo-se a ele até as últimas consequências.

Nesse sentido, Sir Brante é praticamente um anti-Dragon Age II. Se o muito criticado game da Bioware nos obrigava a assistir uma revolução que acontecia à nossa revelia, no jogo da Sever todo o combustível da revolta já está presente desde a nossa infância, esperando apenas nosso movimento estabanado para espalhá-lo e incendiá-lo.

Cada uma de nossas ações – mesmo as mais inconsequentes – terão um papel a desempenhar na Hora H.

“Como uma pessoa normal se torna uma figura história?” escreveu Fyodor Slusarchuk, autor do cenário de Sir Brante, no artbook oficial. “Que caminho alguém percorre para ganhar o poder de remodelar o muito inteiro ao seu redor? Estas são as questões que quisemos fazer ao público”.

De que essas perguntas foram feitas, não há dúvidas.

Mas será que são as perguntas certas?

O dilema das decisões importantes

 

O problema de se acreditar que “cada decisão importa” é que, no mundo real, isso não podia ser mais longe da verdade. Boa parte das coisas que fazemos, dizemos e sofremos não significa coisa alguma.

Mesmo as pessoas que de fato mudaram o mundo não passaram toda sua vida planejando seu grande ato. Não são raros aqueles que se imortalizaram por um único ato de heroísmo. Às vezes, fruto da mera sorte; outras, contrário a tudo o que haviam feito antes.

“Deus escreve certo por linhas tortas” e “há males que vêm para o bem” não seriam ditados populares se não tivessem um fundo de verdade.

Isso não vale apenas para as pessoas, mas também para a própria história. Não é porque nosso presente veio na sequência de épocas passadas que todos os problemas que enfrentamos hoje são resultados de um dominó iniciado quando o primeiro humano descobriu o fogo.

Foto: os responsáveis pela lentidão no combate à Covid-19 em 2020

Admitir o contrário implica em aceitar a conclusão simplista  – e terrivelmente conservadora – de que somos escravos de nosso passado. E que, por consequência, ninguém é responsável de verdade pelas próprias ações.

Se todos os problemas do Brasil vêm da época colonial – como dizem ingenuamente certos professores de história, desesperados para que seu trabalho seja levado a sério – não há por que nos responsabilizarmos pelos erros e desastres do presente.

Se a crise ambiental que enfrentamos é resultado direto da Revolução Industrial, não adianta mexermos um dedo para salvar o planeta. Trezentos anos de desenvolvimento não-sustentável nos trouxeram até aqui. Não será a retórica de uma Greta Thunberg que nos desviará desse caminho.

Se o futuro de uma pessoa é determinado já na sua infância, é inútil investir em educação, assistência ou formação profissional. Afinal, uma vez miserável, sempre miserável.

Se nossa sociedade é desigual e injusta, é porque “tem de ser”. Milênios de civilização nos trouxeram até esse ponto. O que seria um punho erguido perto de toda essa ação humana acumulada?

Tudo o que nos resta a fazer é baixar nossa cabeça e aceitar calados nosso estado como os plebeus do Império Arkniano.

Mas há outra forma de ler Sir Brante que vira de ponta-cabeça essa interpretação. E sua chave está na própria interface do jogo.

Sir Brante é um livro. Mais precisamente, um livro de memórias escrito pelo próprio Brante, na tentativa de entender sua própria vida.

O game deixa isso claro desde o primeiro momento, obrigando-nos a responder “quem determina o destino de um homem?” Pergunta esta que ele repete em diversos da história, como se nos desafiasse a mudar de opinião.

Essa “história dentro da história” esconde uma lição ainda mais importante do que as mensagens que o jogo traz sobre política, história ou relações humanas. Nossa passagem por esse mundo – e a de todas as pessoas  – não é apenas uma lista de lavanderia de coisas que aconteceram. É, também, uma narrativa.

Uma tentativa de agrupar nossas alegrias e sofrimentos, conquistas e derrotas, de uma maneira que faça sentido: que nos convença de que não vivemos à toa, de que seremos lembrados, perdoados, vingados; de que mundo que deixamos não é o mesmo de quando nascemos – para o bem ou para o mal.

A história não é um dominó inevitável que une o Homo erectus às eleições de 2018. Somos nós que escolhemos encará-la dessa forma, seja porque isso permite prever minimamente o futuro (ainda que com uma grande margem de erro), seja apenas porque tememos um Deus que joga dados.

É essa decisão que Sir Brante nos convida a tomar. Certas eventos com que nos deparamos ao longo do jogo nos dá a entender que estamos no controle. Outros tantos acontecem à nossa revelia. Há sinais de que a divisão da sociedade em três estados é mesmo parte de um plano divino. Outras pistas sugerem que não existem deuses – e que a própria realidade não passa de um sonho.

Certas pistas são melhores que outras. Mas decidir quais segui-las, e qual história com elas escrever, depende apenas de nós.