(Aviso: contém SPOILERS de Cyberpunk 2077)

Tive um amigo parecido com Johnny Silverhand.

Não, ele não era um roqueiro, nem terrorista, tampouco tinha um braço cibernético. Mas ele tinha, como o deuteragonista de Cyberpunk 2077, a gana de “encarar a morte”.

Meu amigo sofreu uma grande decepção amorosa enquanto prestava o serviço militar. O fora o transformou em um guerreiro exemplar. Permaneceu nas Forças Armadas muito mais do que a lei o obrigava.

Não se engane: ele não era um patriota. O que o movia era o perigo. Para se distrair da dor que sentia, passou a se voluntariar para todo tipo de missão. Era como se, lá no fundo, desejasse morrer durante um resgate ou treinamento na selva.

Um dia, sua dedicação o colocou no hospital. Imediatamente depois ele deu adeus à carreira militar. Quando perguntei por quê, ele me confessou:

“Eu tenho uma namorada agora. Quando estive internado, o rosto dela não saía da minha cabeça. Eu não posso mais fazer isso sabendo que há alguém me esperando em casa.”

Ao jogar Cyberpunk 2077, não pude deixar de lembrar de meu amigo. E quanto mais avançava em sua história futurista sobre vida e morte, violência e redenção, mais eu percebia que havia algo de profundamente errado na mensagem que o game quis passar.

Never fade away

Se tirarmos de Cyberpunk 2077 sua roupagem sci-fi e implantes cibernéticos, veremos que a história por baixo segue um caminho bastante familiar: a jornada de uma pessoa que descobre ter os dias contados.

Conflitos como esse estão longe de ser novos. É possível que você, leitor, já o tenha enfrentado, ou conheça pessoas que o fizeram. É o drama que sentem aqueles diagnosticados com câncer, que se submetem a cirurgias arriscadas ou que se voluntariam para uma guerra de que não esperam retornar.

A ficção está cheia daqueles que aproveitam esse dilema para fazerem a diferença em suas vidas. Seja aos outros ou a si mesmos.

É o que fez Michael Furey, personagem do conto Os Mortos de James Joyce, que preferiu “atravessar corajosamente ao outro mundo no serviço de alguma paixão a desaparecer e definhar tristemente com a idade”. É o que fez Johnny Silverhand ao ficar para trás durante seu atentado terrorista para garantir que seu manifesto circulasse.

Mantidas as proporções, é o que tentou fazer também meu amigo, lançando-se aos perigos da carreira militar para não ter de sofrer uma vida desiludida.

Cyberpunk, à primeira vista, conta a história de uma pessoa assombrada por essa mesma decisão. Dexter deShawn, o inescrupuloso fixador que lança V à missão que lhe custará a vida, apresenta-se com a seguinte pergunta: “Você prefere viver na paz como um zé-ninguém e morrer de velhice ou apostar tudo pra ditar a história e nem chegar na casa dos trinta?”

Dexter, que prefere a primeira opção, acaba morto no mesmo lixão em que V ativa a consciência de Johnny Silverhand. Esse mesmo lugar, descobrimos depois, esconde o cadáver de Rache Bartmoss, lendário hacker que também morreu “ditando a história.”

Não é preciso ser um adivinho, nem ter lido spoilers, para entender que algo parecido marcará o destino de V.

Histórias como essa são naturalmente poderosas. A morte chega a todos um dia, e a perspectiva de morrer em vão nos apavora mais do que bater as botas.

Como escreveu Alasdair Gray em seu romance Lanark, “a morte raramente acontece quando as pessoas estão no seu melhor. É por isso que nós gostamos de tragédias. Elas mostram homens terminando enérgicamente com suas faculdades intactas e merecendo morrer.”

Em um cenário como o de Cyberpunk 2077, em que o próprio valor da vida é posto em cheque, uma premissa como essa é duplamente efetiva. V, neste sentido, poderia ser uma resposta futurista ao Booker deWitt de Bioshock Infinite: uma criminosa que espelha sua própria realidade distópica, sem futuro possível além de levá-la consigo ao inferno.

Para crédito dos roteiristas, o jogo pincela ideias como essas aqui e ali. “Sua oferta foi uma merda” diz V a um funcionário da Arasaka em um dos finais possíveis “Mas, ao fazê-la, você me deu uma coisa melhor.”

“Antes, a morte era inevitável. Um fato da minha vida de merda. Você me permitiu escolhê-la, aceitá-la nos meus termos.”

V não deseja sobreviver apenas porque tem medo da morte. Seus diálogos deixam claro que sua luta é contra a própria Night City, antro de cobiça e violência em que a vida humana não tem valor e a morte mal vale um obituário.

É por isso que, ao suicidarmo-nos no final “ruim”, o jogo se encerra com uma tomada de Night City.

É a cidade que venceu de novo, abafando mais uma alma rebelde, mais um disparo esquecido em sua escuridão.

Infelizmente, a história que une essa premissa com esse final parece ter vindo de um jogo completamente diferente.

Viver como um Zé Ninguém ou ditar a história?

O que Cyberpunk parece esquecer é de que a escolha dada por deShawn  é fundamentalmente egoísta. Ela faz sentido se não tivermos nada a perder – ou se agirmos que nem um sociopata, “matando quem tivermos de matar”, como aconselha a boneca do Clouds na missão “Amor Automático”.

Porém, como meu amigo militar descobriu do jeito difícil, as coisas se complicam quando forjamos relações com outras pessoas. A partir do momento que convidamos alguém à nossa vida, o preço de terminá-la não é mais apenas nosso.

O problema de Cyberpunk 2077 é que sua missão principal nos empurra ao fatalismo, mas o jogo em torno dela nos incentiva a construir novos vínculos. Boa parte das side quests que recheiam as suas mais de 100 horas nos colocam cara a cara com pessoas que estão reconstruindo suas vidas. E que esperam que V seja parte de seu futuro.

Judy Alvarez deseja retomar o clube Clouds para vingar sua amiga Evelyn. Seu apreço por V é tamanho que aceita largar Night City ao seu lado – e o fará sozinha, caso seja rejeitada. River Ward quer ter uma vida em família ao lado da irmã e sobrinho. Panam deseja retornar ao seu clã. Kerry Eurodyne, em uma série de missões que formam a melhor parte do jogo, encontra um novo sentido para a vida ao lado de uma banda de idols..

Essas não são pessoas dispostas a “encarar a morte” de frente como Johnny Silverhand. Pelo contrário, como a namorada de meu amigo, elas esperam reencontrar V são e salva quando a poeira baixar.

É justamente por isso que o fim iminente da protagonista funciona tão bem como um dispositivo de enredo. Nós sabemos que sua morte arruinará irremediavelmente a vida dessas pessoas.

Quando um jogo permite que desenvolvamos esse tipo de afeto por suas personagens não é suficiente que apele a um final trágico. É preciso que este sentimento retorne à V de alguma forma; que sua escolha final, na sacada da loja de Misty, seja retratada com a gravidade que merece.

E é aqui que Cyberpunk 2077 escorrega da pior forma.

Jogos de vida, jogos de morte

A morte não é apenas o fim de uma vida. Para os que ficam para trás, ela envolve meses – quando não anos – de luto. No caso de mortes antecipadas, como a de V, este processo começa antes mesmo do nosso último suspiro.

Jogos que falam sobre a morte sabem disso muito bem. Suas histórias não são apenas uma corrida para evitar (ou apressar) o fim, mas também o processo pelo qual fazemos as pazes com o que está por vir.

Foi o que fez Majora’s Mask, jogo apocalíptico em que cada uma das quests força suas personagens a aceitarem a morte – sua ou de terceiros. E que termina, literalmente, com uma metáfora sobre o luto.

Foi o que fez The Witcher 3, permitindo a Geralt de Rivia uma última noite com os outros witchers antes da batalha contra a Caçada Selvagem. Que o encontro aconteça em Kaer Morhen é significativo: para peitar a morte, Geralt retorna ao lugar onde sua vida começou.

Foi o que fez Mass Effect 2 com sua Missão Suicida e as quests pessoais que levavam a ela. E, a despeito de seu final controverso, o que fez também seu sucessor, Mass Effect 3. O jogo inteiro funciona como uma longa despedida em que fechamos todas as pontas, lamentamos todas as perdas e visitamos todos os planetas da Via Láctea fictícia que Shepard chamou de casa.

Cyberpunk 2077 mira no sentimentalismo desses jogos, mas não em seu senso de resolução. Em vez de propiciar missões que sublinhem o que está realmente em jogo – uma última date com Judy, desta vez a um lugar de nossa própria infância; um pedido de desculpas a River por não poder fazer parte de seu futuro com Randy; um adeus merecido à Mama Welles – contamos apenas com brevíssimas mensagens de celular informando-nos do que aconteceu após o sobe-créditos.

A relação de V com os Aldecados são uma notável exceção, mas exige que o jogador escolha um final específico – “A Estrela”. Mesmo esta vinheta, porém, é ofuscada pelo volume imperdoável de conteúdo secundário que contradiz a urgência da missão principal e servem a nenhum propósito senão preencher a cartilha dos games mundo-aberto.

V tem pouco mais de duas semanas restantes de vida, mas o jogo nos encoraja a tomar nosso tempo colecionando carros de luxo, fazendo o trabalho da polícia e ocupando-nos de tarefas meniais com zero impacto na vida das personagens que o próprio jogo nos diz que importam.

A forma como lida com a morte de outras pessoas além de V é ainda mais problemática.

Cyberpunk 2077 esposa um sistema moral preto-no-branco que permite matar qualquer criminoso sem consequências, sem parar para pensar que V e seus entes queridos também são criminosos. Qual o sentido em lamentar a vida de Jackie, um ex-Valentino, se podemos fuzilar todos os Valentinos que encontramos nas ruas? Que direito tem V de dizer que prefere “evitar mortes” – com faz no final “ruim” – se tudo o que fez até então foi genocidar NPCs a torto e a direito?

The Witcher 3 respondeu a perguntas parecidas com vilões tridimensionais e dilemas complicados que nos puniam por escolher saídas fáceis. Cyberpunk 2077, por outro lado, sucumbiu ao simplismo de um GTA futurista.

É muito pouco para uma aventura que prometia calçar os sapatos de um dos melhores games de memória recente.

A exceção: Johnny Silverhand

Há uma personagem no jogo para quem as questões que apontei acima não se aplicam: Johnny Silverhand, o ex-terrorista atormentado por fantasmas pessoais que habita a consciência de V.

A longo do jogo, Johnny oferece missões que não apenas nos permitem conhecer seu passado, mas também enfrentar, no presente, as consequências de seus erros.

Johnny revisita o sofrimento que causou a Alt Cunningham, faz as pazes com Rogue, ajuda Kerry a reerguer sua vida e ainda – dependendo das nossas escolhas  – vinga-se de Adam Smasher. Praticamente todo o conteúdo trazido pela personagem está relacionado diretamente a sua morte – e às decisões, certas e erradas, que levaram até ela.

O problema é que ser uma personagem cativante não faz de Johnny a nossa personagem.

Ao dar aos jogadores o poder de customizar sua própria V – a ponto de deixá-los customizar até mesmo sua genitália – o jogo faz a promessa implícita de que aquela será a nossa janela para Night City. Fãs de RPG, afinal de contas, jogam games para criar suas próprias aventuras, não para servir de líderes de torcida a um avatar do Keanu Reeves com diálogos pré-escolhidos.

Cyberpunk 2077 poderia ter unido o útil ao agradável se Johnny, não V, fosse a personagem customizável. Na linha de Tides de Numenera, o jogo poderia ter contado a história do ponto de vista de Silverhand, recém-despertado após o roubo ao Kompeki Plaza. Como o Último Descartado do game da InXile, teríamos de revisitar Night City num corpo que não nos pertence.

As escolhas que faríamos na criação de personagens ainda teriam um impacto no jogo, determinando a vida – e as ponta soltas – que herdaríamos após o malfadado roubo da relíquia. As cenas de Johnny, por outro lado, teriam muito mais impacto. Mesmo nossas pequenas conquistas – como reencontrar a jaqueta da banda Samurai – traziam um peso emocional muito maior. Não estaríamos fazendo cosplay de um roqueiro morto, e sim recuperando a pessoa que um dia fomos.

Mas Cyberpunk 2077 não é esse jogo, e Johnny só entra em cena quando já enxergamos em V um rosto conhecido nas trevas de Night City.

Dizia Alfred Hitchcock que, se um filme começa mostrando um ladrão roubando uma casa e depois o surpreende com as sirenes da polícia, o público naturalmente torcerá para o ladrão. Não importa que ele esteja errado e a polícia certa. Quando enxergamos a vida pelos olhos de alguém nós nos colocamos do seu lado.

Em Cyberpunk 2077, V é o nosso ladrão. E nem mesmo Keanu Reeves pode salvar um jogo que a abandona à mercê de seu destino.


Nota: a anedota de Hitchcock é contada por Philip Pullmann em seu livro Daemon Voices, no ensaio “Making it Up and Writing it Down”. Não pude encontrar a fonte original.