The Image of Ireland de John Derricke (1581)

Em um artigo anterior, eu apresentei a vocês os detalhes de Os Triunfos de Tarlac, jogo que estou desenvolvendo com as equipes do ARISE e do Laboratório de Estudos Medievais.

Esse post é o primeiro em uma série de diários de desenvolvimento, em que contarei passo a passo das mecânicas, elementos e fundo histórico do jogo. E, também, dos dilemas que encontramos pelo caminho ao transportar a Irlanda de 1276-1318 a um board game.

Nesse diário, contarei a vocês sobre a estrutura de turnos do jogo.

Jogando as guerras de Thomond

Como expliquei no artigo de introdução, Os Triunfos de Tarlac é um game sobre uma guerra entre duas facções – o Clã Tarlac e Clã Brian Rua – pelo domínio do antigo reino de Thomond, no sudoeste da Irlanda.

Como não podia deixar de ser, suas mecânicas giram em torno do planejamento da guerra.

Aqui, vale a pena esclarecer primeiro o que estou chamando de “guerra”. Os conflitos que observamos na Irlanda dos séculos XIII e XIV estavam longe de ser o espetáculo de batalhas campais e assaltos a castelos que costumamos associar à Idade Média.

Medieval: Total War II

Exércitos raramente contavam com mais de 1000 soldados. Campanhas podiam durar poucas semanas. Seu objetivo não era exterminar completamente o inimigo, mas exaurir seus recursos, forçá-los a prestar obediência e roubar gado.

Esse último era de suma importância, pois rebanhos eram uma das bases da economia gaélica. Além de serem uma importante fonte de alimentos para exércitos em marcha, vacas serviam de moeda em transações comerciais e pagamentos de tributos.

Por providenciarem muito ganho em troca de relativamente pouco risco, essas guerras eram muito frequentes. Às vezes, chegavam a acontecer mais de uma vez por ano.

Tão inseridas elas eram na “rotina” de reis irlandeses, e centrais para a economia pastoril, que o historiador Finbar McCormick chegou a chamá-las de “uma forma de competição econômica mais do que de conflito militar”.

Figura do livro “The Image of Irelande” de John Derricke (1581) mostrando um roubo de gado na Irlanda

Esse tipo de guerra de pilhagem era menos importante para os ingleses, cuja economia se baseava não no gado, mas na produção de cereais em larga escala. Mesmo assim, os súditos da Coroa inglesa com terras na Irlanda também participavam dessas escaramuças e roubos de gado. Nem que apenas para estabilizar seus aliados gaélicos e se defender de saqueadores.

Para um magnata nas fronteiras do mundo inglês, aderir às regras do jogo era o preço a se pagar pelo controle de seu senhorio.

Soldados ingleses recebendo suprimentos durante campanha na Irlanda, no final do século XIV. Figura de “La Prinse et mort du roy Richart” de Jean Creton, Harley MS 1319, British Library

Mobilizar exércitos e supri-los com provisões acabavam, assim, tornando-se parte integral do calendário anual, ao lado de deveres como a cobrança de tributos e os ciclos da agricultura e transumância do gado.

Isto faz a guerra gaélica cair como uma luva aos princípios do game design. Jogos, afinal de contas, são ferramentas criadas  sobre medida para representar e manipular sistemas de regras. É relativamente simples, desta forma, traduzir esse “calendário” histórico a uma série de decisões a serem tomadas pelos jogadores.

O loop básico e as fases do turno

Os turnos do jogo representam as principais tarefas que reis irlandeses e magnatas ingleses teriam de desempenhar para mobilizar expedições, ter sucesso nas campanhas e – mais importante – recuperar-se dos estragos provocados pela guerra.

 

Essas três etapas da gerência da guerra não eram igualmente longas. Expedições militares podiam durar poucas semanas, mas recrutar soldados, reunir suprimentos e coordenar esforços com seus aliados podia levar meses. Repor um rebanho roubado pelo inimigo ou reconstruir um mosteiro destruído, então, era trabalho para um ano inteiro – quando não mais.

Isso traz um problema sério de gameplay. Nem todos os deveres esperados de um rei irlandês são interessantes a ponto de merecer um jogo. Poucas pessoas curtiriam um jogo que as obrigasse a encarar vinte rodadas de animal husbandry simulator para cada rodada que passam em combate.

Mesmo que topássemos o desafio de fazer um jogo em que a guerra fosse apenas uma side quest, representar igualmente cada etapa do ciclo econômico o tornaria proibitivamente longo.

Para contornar esse desafio, resolvemos dividir nosso turno em duas fases, cada uma em uma escala diferente de tempo.

A fase de guerra representa as operações militares. Nela, jogadores deverão realizar as decisões que compunham o dia-a-dia da marcha.

Cada fase de guerra dura um dia em “tempo de jogo”. Ela pode ser repetida por um número qualquer de rodadas, até que todos os jogadores tenham se desmobilizado, derrotado seus inimigos ou sido eles próprios destruídos.

A fase de manutenção, por sua vez, representa todas as outras etapas na administração de um reino relativas à guerra. Ela dura de nove meses a um ano em “tempo de jogo”, e inclui a cobrança (e pagamentos) de impostos, redução da devastação e reconstrução de assentamentos destruídos.

Ela também inclui a incidência de “desastres”, representados por cartas compradas no início da rodada e cujos efeitos persistem até o início da próxima fase de manutenção.

Ao contrário da fase de guerra, a fase de manutenção dura apenas uma rodada. Assim que todos os jogadores a tenham jogado, passa-se imediatamente para a fase de guerra.

Cada fase oferecerá um leque de ações aos jogadores, baseadas em decisões que os reis e magnatas teriam de tomar nessas mesmas circunstâncias.

Ações representadas em vermelho no diagrama acima – como comprar cartas de desastres ou alimentar seus soldados ao final da marcha – são obrigatórias. Aquelas representadas em amarelo são situacionais.

Para saquear um assentamento, é necessário ter um exército na casa correspondente.  Para iniciar combate, é necessário ocupar uma casa contígua à do exército que pretendemos atacar. Ainda assim, nenhuma dessas ações.

Um jogador pode, se quiser, passar uma fase de guerra inteira sem participar de nenhuma batalha, valendo-se de estratégias fabianas para esgotar os recursos dos inimigos. Ou, ainda, decidir não se mobilizar e “pular” a fase da guerra para reunir suas forças e agir depois.

O resultado, pelo que pudemos sentir de nossos primeiros testes, é um jogo que traz o feeling de um war game, mas no qual o sucesso depende não só das decisões táticas de cada jogador, mas no planejamento anterior e no fator acaso.

Embora seja curta, a fase de manutenção tem uma influência decisiva no sucesso das guerras. No atual estado de desenvolvimento, estamos ainda balanceando os preços dos recursos e os efeitos das cartas de desastre. Nossas sessões preliminares, contudo, revelaram que suas penalidades, somadas a momentos desvantajosos (ex. uma rodada na sequência de uma guerra custosa), podem tirar reinos de conflitos antes mesmo de conseguirem pegar em armas.

Textos de cartas de desastre

Sempre é possível apostar o destino do reino em uma vitória milagrosa no campo de batalha, como líderes medievais sem dúvida já fizeram. Porém, nem mesmo um comandante brilhante pode virar o jogo se não tiver guerreiros para comandar ou comida para alimentá-los.

Manter a economia em bom estado – e ter o cuidado de se aliar sempre aos mais fortes – é tão ou mais importante quanto a habilidade com uma espada.

Evidentemente, vitórias e derrotas só fazem sentido se soubermos o que está em jogo. No próximo diário, portanto, falarei sobre o que um jogador deve fazer para vencer – e o que evitar para que seus oponentes levem a melhor.

Como diriam os irlandeses, beir bua! — “tome a vitória” – ou ,no sentido figurado, “boa sorte”!

In a previous article, I introduced you to the ins and out of The Triumphs of Turlough,  game I am developing with the members of ARISE and Laboratório de Estudos Medievais

This post is the first in a series of dev diaries in which I will cover the creation process of the game’s mechanics, their historical background as well as the dilemmas we came across in trying to transport 1276-1318 Ireland into a board game.

In this diary, I will talk about the turn structure of the game.

Playing the wars in Thomond

As I explained in my introductory article, The Triumphs of Turlough is a game about a war between two factions – Clann Turlough and Clann Brian Rua – vying to rule the ancient kingdom of Thomond, in south-western Ireland.

As it is to be expected, its mechanics deal with the preparation of war.

Here, it is worthwhile to clarify, first of all, what I am calling a “war”. The types of conflict we observe in 13th and 14th centuries Ireland are a far cry from the spectacle of pitched battles and castle assaults we commonly associated to the Middle Ages.

Medieval: Total War II

Armies rarely numbered more than 1000 soldiers. Campaigns could last as little as a few weeks. The goal wasn’t to completely exterminate the enemy, but deplete their resources, compel them to obedience and steal cattle.

This latter goal was of utmost important, as cattle herds were one of the foundations of Gaelic economy. In addition to being an important source of provisions for armies on the move, cows were used as currency in commercial transactions and payments of tribute.

Because they provided a lot of rewards for relatively little risk, these wars were very frequent. Sometimes, they could take place more than once a year.

So integrated they were in the “routine” of Irish kings, and crucial to the pastoral economy, that historian Finbar McCormick went as far as qualifying them as “a form of economic competition rather than military warfare”.

Picture from “The Image of Irelande” by John Derricke (1581) portraying a cattle raid in Ireland

Raids of this nature were not as important to the English, whose economy was based not on livestock, but on large scale cereal production. Even then, however, subjects of the English Crown who held land in Ireland also participated in these skirmishes and cattle raids. Even if only to stabilize their Gaelic allies and defend themselves from pillagers.

To a magnate in the frontiers of the English world, adhering to the rules of the game was the price to pay for the control of his lordship.

English soldiers receiving supplies during a campaign in Ireland in the late 14th century. Image from “La Prinse et mort du roy Richart” by Jean Creton, Harley MS 1319, British Library

Raising armies and providing them with victuals, therefore, ended up being an integral part of the yearly calendar alongside duties such as the levying of taxes and the cycles of agriculture and transhumance pastoralism.

This makes Gaelic warfare a great fit for applying the principles of game design. Games, after all, are tools tailor-made to represent and manipulate systems of rules. It is relatively straight-forward, therefore, to translate this historical “calendar” to a series of decisions to be taken by players.

The basic loop and the turn phases

The turns of the game represent the principal tasks that Irish kings and English magnates would have to perform to field expeditions, succeed in campaigns and – most importantly – manage the devastation caused by warfare.

These three stages of military management did not last the same amount of time. Military expeditions could last few weeks, but recruiting soldiers, procuring supplies and coordinating efforts with allies could take months. Even worse, replenishing a herd whose cows had been taken or rebuilding a ruined monastery was work for the entire year – if not longer.

This presents a serious gameplay issue. Not all of the duties expected of an Irish king are interesting enough to feature in a game. Few people would enjoy a game which forced them to dredge through twenty rounds of “animal husbandry simulator” for each round they spend in combat.

Even if we were up to the challenge of developing a game in which war was merely a side quest, representing each step of the economic cycle in the same level of detail would make it prohibitively long.

To get around this issue, we decided to split our turn into two phases, each of them represented in a different scale of time.

The war phase represents the military operations. In it, players will have to make the decisions that comprised the day-to-day activities during a march.

Each war phase lasts one day in “game time”. It can be repeated for an indefinite number of rounds, until all the players have demobilized, defeated their enemies or being vanquished themselves.

The maintenance phase, on the other hand, represents all the other stages of a kingdom’s administration cycle pertaining to war. It lasts from nine months to one year in “game time” and include the levying (and payment) of tributes, the reduction of devastation and the repair of destroyed settlements.

It also includes the occurrence of “disasters”, represented by cards drawn in the beginning of the round and whose effects persist until the next maintenance phase.

Unlike the war phase, the maintenance phase lasts for a single round. As soon as every player has passed their turn, the game immediately progresses to the war phase.

Each phase will allow players to take a number of specific actions, based on decisions kings and magnates would have had to take in these same circumstances.

Actions represented in red in the diagram above – such as drawing disaster cards or feeding soldiers at the end of a march – are mandatory. Those represented in yellow are situational.

To raid a settlement, it is necessary to have an army standing in the corresponding place in the grid. To initiate combat it is necessary to be next to the army one wants to attack. Even so, the player is not required to take any of these actions.

A player can, if they want, spend a whole war phase without participating in a single battle, making use of Fabian strategies to deplete their enemies’ resources. Or, yet, choose not to mobilize at all and “skip” the war phase to gather their strength and prepare for future actions.

The result, from what we could perceive in our first tests, is a game that has the feeling of a war game, but in which success depends not only on the tactical decisions of each player, but on previous planning and the chance factor.

Although short, the maintenance phase has a decisive influence in the outcome of wars. In the current stage of development, we are still balancing resource costs and the effects of the disaster cards. Nevertheless, our preliminary sessions have shown that the cards’ penalties, paired with unfavorable circumstances (e.g. a round immediately after a costly war) can knock kingdoms out of conflicts even before they manage to take up arms.

It is always possible to risk the fate of the kingdom in a miraculous victory in the battlefield – as medieval rulers certainly did on occasion. However, not even a brilliant commander can turn the tide in the absence of warriors to lead or food with which to feed them.

Keeping the economy in a sound state – and staying friends with the right factions – is just as or even more important than prowess with a blade.

Evidently, victories and losses only make sense if we know what is at stake. In the next diary I will talk about what a player has to do to win the game – and what they should avoid to prevent their opponents from coming out on top.

As the Irish say, beir bua! – “take a victory” or, in the figurative sense, “good luck!”