“Makoto Shinkai foi enaltecido por alguns como o “novo Miyazaki”, mas esse elogio é prematuro na melhor das hipóteses, uma hipérbole na pior”.
Assim escreveu Theron Martin do ANN sobre 5 Centímetros por Segundo, então recém-lançado em DVD. “Se esse novo projeto confirma o talento fora de série que ele exibiu em seus últimos esforços, ele ainda está por mostrar qualquer versatilidade ou variedade”.
Doze anos se passaram, mas bem poderiam ter sido uma era. Makoto Shinkai se tornou o novo Miyazaki, em retornos da bilheteria, se não em semelhanças criativas. Your Name, seu hit de 2016, tornou-se o anime mais assistido da história do cinema, superando qualquer título do Studio Ghibli.
Seu último longa, O Tempo com Você, lançado em alguns países esse ano, parece disposto a repetir o sucesso. No Lighthouse Cinema em Dublin, onde tentei assisti-lo, a hype foi tamanha que os ingressos se esgotaram. Minha irritação em ter de procurar outra sessão não chegou perto da alegria em notar que, depois de tanto tempo esnobados, os animes finalmente entraram na big league.
Nem só sucesso, obviamente, faz um grande artista. Seria a “Shinkai-mania” dos últimos anos prova da evolução criativa do autor?
Felizmente, a resposta é sim. O Tempo com Você não é apenas um blockbuster, mas a obra de um cineasta no auge de sua forma, dono de uma voz própria, comovente e inspiradora.
O filme
O longa conta a história de Hodeka, um adolescente que foge de casa para viver em Tóquio. A vida na cidade grande se prova mais difícil do que imagina, e ele logo se vê sem um tostão no bolso ou um teto sobre a cabeça. O que prometia ser um anime despretensioso se complica, em poucas cenas, com agruras de um romance de Charles Dickens.
Felizmente, tal como Oliver Twist, Hodaka tembém encontra seu Fagin. Os caminhos do garoto o levam até Keisuke, repórter de um tablóide especializado em fenômenos paranormais. O escritor lhe oferece um cama para dormir se prometer ajudá-lo com a revista. Sua missão? Escrever um artigo sobre A Garota do Tempo, uma aparição, reza a história, capaz de controlar a chuva.
Hodoka logo descobre que a Garota do Tempo é mais do que uma simples lenda urbana. Ela se chama Hina, uma órfã que batalha para fugir dos olhos da adoção. Juntos, eles bolam um plano inusitado para sobreviver em Tóquio: um serviço de “sol por encomenda”, afastando a chuva daqueles que precisam de um dia seco.
Tudo vai bem até que os dois descobrem que grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Num twist que espectadores de Hisone to Masotan reconhecerão de pronto, um velho monge revela que Hina é a última de uma longa linhagem de Garotas do Tempo, agraciadas com controle sobre o clima, mas fadadas a pagar um terrível preço por seu dom.
É um enredo que pede grandes imagens, que o filme entrega sem a menor modéstia. Fiél ao pedigree de Shinkai, O Tempo com Você é um primor de imaginação e poesia visual, em que dragões feitos de nuvens dividem espaço com céus cruzados por relâmpagos e cardumes feitos de água.
Como no resto de sua filmografia, porém, o que mais impressiona é o hiperrealismo de suas paisagens urbanas, tão minuciosas – e comoventes – quando as pessoas que as habitam.
Shinkai sempre teve um interesse particular pelo mistério de como as pessoas se conectam. Em Voice of a Distant Star, o empecilho eram os anos-luz que separavam dois jovens em cantos opostos do universo. Em Jardim das Palavras, os sentimentos não ditos de um garoto e uma mulher de meia idade. Em 5 Centímetros por Segundo, a inevitabilidade de uma vida que sempre avança, indiferente aos nossos esforços de nos agarrar ao que amamos.
Em O Tempo com Você, Shinkai parece ter feito as pazes com essa angústia. Nunca em sua filmografia o sofrimento humano e a esperança caminharam tão próximo.
Com a morte da mãe, Hina perdeu sua única fonte de renda. O desespero a leva a fazer programa para pagar as contas. Keisuke é um viciado em jogo que perdeu a guarda da filha por seus maus hábitos. Sem dinheiro para um albergue, Hodaka passa a morar nas ruas. O acaso o leva a uma arma desovada por um yakuza, que servirá de estopim a uma das cenas mais tensas do filme.
São temas pesados, que não esperaríamos do criador do filme mais mainstream da história dos animes. Troque a trilha upbeat do RADWIMPS pelas melodias de um Kenji Kawaii e seria possível imaginar o mesmo longa como um drama de cortar os pulsos.
Shinkai, porém, foca na pequenas alegrias, não nas grandes tragédias. Na relação de Hina com seu irmão Nagi, não na família que perderam. No esforço de Keisuke de se reerguer como homem, não nos erros que custaram sua filha. Na perseverença de Hodaka em viver um dia por vez, não nos motivos que o levaram a fugir de casa.
Coisas ruins acontecem, diz o filme, mas seres humanos perseveram a despeito de tudo. E nenhum poço é fundo o suficiente para nos impedir de rir, de amar, de tentar nosso melhor e seguir em frente – enfim, de viver.
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Shinkai reforça a mesma mensagem nas partes mais catastróficas de sua história.
Seu último filme, Your Name foi considerado uma resposta ao sekaikei ou “Síndrome Pós-Evangelion“, um gênero de história apocalíptica popularizado após o Grande Terremoto de Kobe em 1995. Muito presente nos animes, ele é marcado por mensagens niilistas e protagonistas adolescentes, perdidos num mundo abandonado pelos adultos.
Autor de um dos principais marcos do gênero, Shinkai virou sua fórmula de ponta-cabeça em Your Name, com um enredo de desastre em que a calamidade cede os holofotes para um romance adolescente, sem angústia ou desespero.
No seu novo longa, esse sentimento é elevado a um patamar ainda mais alto. “Tudo tem um preço” diz uma vidente a Hodeka no início do filme. Não demora para que o garoto perceba que isto vale também para o dom de Hina. De tanto manipular o clima, as contraforças da natureza entram em ação, e uma tempestade de proporções bíblicas ameaça colocar toda Tóquio debaixo d’água.
Os moradores, todavia, não parecem se importar. “Duzentos anos atrás, Tóquio era uma baía” diz uma personagem após ter sua casa engolida pela chuva “A natureza está apenas devolvendo as coisas ao jeito que eram”.
É irônico, nesse sentido, que o filme esteja sendo promovido como uma alegoria sobre o aquecimento global. Se as personagens de Shinkai parecem ter se conformado com o pior, o ânimo em nossos próprios dias não poderia ser mais diferente.
O Relógio do Fim do Mundo, originalmente criado como advertência à guerra nuclear, foi reaproveitado para medir o avanço da mudança climática. Greta Thunberg se tornou uma celebridade mirim ao abrir mão da escola para militar pelo planeta. Na sua Europa natal, seus simpatizantes se tornaram tão numerosos que o fenômeno ganhou um nome : eco-ansiedade.
Qualquer um desses adolescentes daria tudo para ter o poder de Hina. No filme de Shinkai, porém, a “garota do tempo” desperdiça seu dom afastando a chuva para que crianças possam brincar no parque. Mesmo quando Tóquio se encontra à beira do apocalipse o conflito que a paralisa é pessoal, nunca político. A ideia de que as chuvas de Tóquio são culpa – e, portanto, responsabilidade – de todos não é sequer cogitada.
“Você realmente acha que mudou o mundo?” diz Keisuke a Hodaka no final do filme, num comentário que parece uma crítica velada à histeria de nossos tempos.
Hodaka e Hina acreditam que sim, embora de uma forma com que os ativistas do Extinction Rebellion dificilmente concordariam. O que exatamente eles dizem não estragarei a surpresa revelando. Suas palavras – as últimas do filme – deixam claro que a luta que enfrentam é de outra natureza.
Se ela será suficiente para deter os percalços que nos aguardam só o futuro dirá.
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