História vende.
Essa é a opinião de Bruce Shelley, da famosa série Age of Empires.
Pelo sucesso de sua franquia, não dá para dizer que está errado. E pelo lançamento de tantos blockbusters, históricos, de Assassin’s Creed: Origins a Call of Duty: World War II, é possível ver que suas lições foram aprendidas.
Isso não significa, obviamente, que videogames nos falam de qualquer época. Como fãs do passado sabem muito bem, a porção da história humana que aparece em games é bastante pequena.
Para cada game sobre a Primeira Guerra Mundial, encontramos dezenas sobre a Segunda. Jogos sobre a Baixa Idade Média existem a rodo; sobre a Alta, contamos nos dedos. No Japão, a Sengoku Jidai e a Guerra Boshin quase que dominam o gênero histórico. E nem vamos falar de games sobre o Brasil…
Felizmente, existem algumas pérolas que compensam toda a mesmice.
Se vocês estão cansados de interpretar as mesmas personagens, ou querem apenas uma experiência fora do habitual, confiram abaixo quatro games que vão sacudir o seu mundo – em alguns casos, literalmente.
1) Detention
De todos os jogos dessa lista, Detention talvez seja o mais badalado. Lançado no início do ano, o game taiwanês (!) se tornou um improvável hit no Steam, colecionando reviews positivas e conquistando um lugar entre os mais vendidos.
O side-scroller de terror nos coloca nos pés de Wei e Ray, dois colegiais na Taiwan dos anos 1960. Ambos acordam no meio da noite e descobrem-se presos em sua escola, transformada em uma visão infernal.
O que se segue é uma jornada pela sobrevivência no melhor estilo Silent Hill, misturando terror psicológico, ambientação atmosférica e mitologia chinesa.
Longe de ser um horror genérico, Detention usa esses elementos para abordar um dos períodos mais indigestos da história taiwanesa.
Sua história é ambientada no período conhecido como Terror Branco, ditadura militar que oprimiu o país de 1949 a 1987.
Taiwan, como sabem, não é bem uma “nação”. Seu nome oficial é República da China, e continuam a se considerar os mandantes legítimos do território chinês, em exílio desde sua derrota nas mãos de Mao Tsé-Tung após a Guerra Civil Chinesa.
Incapaz de resgatar a China dos comunistas, o “governo exilado” de Taiwan se pôs a punir cruelmente qualquer indício de subversão.
Não é preciso jogar Detention até o final para perceber que seu terror mitológico é uma metáfora dessa era de repressão. Ao navegar pelos corredores escuros de sua escola, Wei e Ray encontram indícios de propaganda, censura e mesmo tortura.
É uma atmosfera de repressão típica de ditaduras, com a qual nós brasileiros, estamos bem acostumados.
Ao jogar Detention e me deparar com professores e diretores transformados em monstros, não pude deixar de lembrar da minha mãe, e nas histórias que contava de professores “desaparecidos”, substituídos às pressas durante nosso próprio regime militar.
2) 1979 Revolution: Black Friday
1979 Revolution nos joga de cabeça em um evento ainda mais recente. O game nos coloca nos pés de Reza Shirazi, um fotógrafo iraniano pego no fogo cruzado da revolução que acabou com a monarquia em seu país.
Nos anos 1970, o Irã era governado por Mohammad Reza Pahlavi, um rei autoritário apoiado pelos EUA. Com ajuda de sua polícia secreta – a temida SAVAK – o monarca controlou sua população com punho de ferro até ser deposto por um levante.
Infelizmente, o preço pego foi alto. O regime de Pahlavi foi substituído por uma teocracia ainda mais autoritária, encabeçada pelo Aiatolá Khomeini. De um dos países mais progressistas do mundo islâmico, o Irã sucumbiu ante o peso do fanatismo.
Em 1979 Revolution: Black Friday, nós interpretamos um civil pego entre o fogo cruzado. Seu gameplay é mínimo, porém eficiente. Diálogos interativos trazem consequências de peso, e limites de tempo nos forçam, por vezes, a tomar decisões precipitadas.
O jogo foi criado por Navid Khonsari, iraniano que fugiu ao Ocidente após a queda do regime de Pahlavi. Ele nos apresenta uma história imparcial, crítica tanto à monarquia deposta quanto aos revolucionários que a derrubaram.
Tal como o fotógrafo Reza (e tantos civis em tantas revoluções mundo afora), vemos-nos divididos entre o fogo e a frigideira.
3) Pre-Civilization Egypt
Não há falta de jogos sobre o Egito Antigo. Pharaoh, Age of Empires, Children of the Nile e Assassin’s Creed: Origins estão aí para provar. O que raramente vemos são jogos sobre o Egito… antes de ser o Egito.
Pre-Civilization Egypt (lançado no Steam como Predynastic Egypt) é um jogo sobre nômades vindos do centro da África que, milênios depois, tornar-se-iam os ancestrais dos construtores das pirâmides.
Em sua jornada, controlamos não uma civilização, mas uma “pré-civilização”. O jogo traz missões fascinantes sobre a descoberta da agricultura, a construção das primeiras cidades e o surgimento do panteão egípcio.
O game foi produzido pelo estúdio Clarus Victoria em parceira com o Centro de Egiptologia da Academia Russa de Ciências. A “história” por trás do jogo é de primeira, mas não deixe a alcunha de “educativo” afastá-lo. Predynastic Egypt é um 4X-lite de respeito, que bebe na fonte dos grandes do gênero.
Se você curte estratégia, mas está cansado de Shelby Cobras e Gandhis psicopáticos, esse é o jogo para você.
4) Portugal 1111: A Conquista de Soure
Esse é um daqueles games que me fazem agradecer por ser blogueiro. Não fosse meu projeto de escrever esse artigo, jamais teria entrado em contato com esta pérola.
Portugal 1111: A Conquista de Soure é o primeiro jogo comercial produzido e lançado em Portugal. O jogo é um clone de Age of Empires ambientado na Reconquista. Em sua campanha, encarnamos os portugueses na sua luta contra os mouros pelo controle da cidade de Soure (próxima a Coimbra).
A Reconquista não é novidade em games, embora quase sempre seja narrada do ponto de vista da Espanha. Conquanto Portugal tenha dado as caras em alguns jogos (como Medieval Total War 2, Crusader Kings e Europa Universalis), ver uma representação oriunda da “terrinha” é uma surpresa bem-vinda.
Portugal 1111 teve consultoria de historiadores da Universidade de Coimbra, embora seu gameplay – como o de sua inspiração direta, a série AoE – peque pelo simplismo.
O jogo é significativamente mais curto que RTS comerciais e seus gráficos envelheceram mal. Mesmo assim, nostálgicos de AoE certamente encontrarão algo a se gostar.
Mais importantemente, ele é prova viva da importância dos fãs para manter um legado vivo. Portugal 1111 foi originalmente lançado em CD em um volume da revista portuguesa Visão, em 2004. O game nunca foi republicado, e teria desaparecido da memória não fosse o trabalho de uma comunidade de gamers dispostos a manter a tocha acessa.
Hoje, é possível encontrá-lo para download na comunidade lusitana do Reddit. Embora seja improvável que vejamos um relançamento – muito menos um remake – é bom saber que esse pedaço da história dos games não foi perdido.
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