Aviso: contém SPOILERS de Hellblade: Senua’s Sacrifice
Enquanto jogava – ou melhor, experienciava – o novo produto da Ninja Theory, algo me dizia que estava diante de um jogo que ia muito além daquilo estava sendo mostrado em tela, que aquela experiência, de algum modo, era um marco na indústria dos jogos eletrônicos.
Isso foi corroborado ao assistir o documentário que vem com Hellblade após o seu término. Mas voltarei a isso em breve.
Hellblade: Senua’s Sacrifice é a narrativa em jogos levada ao extremo. E de modo convincente.
Senua é uma guerreira pertencente aos antigos habitantes da atual Escócia, os pictos, e que empresta seu nome da deusa celta Senuna. O jogo se passa nas Ilhas Órcades um pouco depois da invasão viking no século IX d.C., e nos mostra, através da visão de Senua, os horrores que os pictos sofreram com a chegada dos escandinavos.
Dentre as vítimas dos vikings, está Dillion, o amado de Senua: sua morte está diretamente ligada ao enredo de Hellblade, pois é o catalizador da psicose da protagonista principal. Atormentada por vozes e visões, Senua parte em sua jornada para adentrar Hellheim – um dos nove mundos da mitologia nórdica – e tirar satisfações com a própria deusa Hela a fim de reaver seu amado Dillion.
Cabe a nós, enquanto jogadores, incorporarmos Senua e a guiarmos nessa tarefa.
Tarefa, no entanto, bastante penosa. Não que Hellblade: Senua’s Sacrifice tenha dificuldade elevada (mesmo com ameaça de apagar o progresso do jogador caso ele morra muito ao longo do jogo), mas, sim, porque somos, a todo momento, atormentados pela psicose de Senua.
O trabalho de áudio no jogo é espetacular, sendo captado com tecnologia binaural, ou seja, ouvimos as vozes em nossa cabeça de modo tridimensional.
Por sinal, em um jogo que não possui tutorial, é importantíssimo ouvir as vozes que ecoam em nossa cabeça, elas é que nos guiam e nos dizem o que fazer em determinados momentos da jornada ou durante as lutas: temos, como diz o próprio jogo, de aceitar a realidade de Senua e entender que as vozes são parte dela (e nossa) – a psicose da protagonista é compartilhada conosco, e isso, acredito, é o mais assustador (e cativante) em Hellblade: Senua’s Sacrifice.
A falta de tutorial, por sua vez, só irá prejudicar quem está pouco acostumado com jogos em terceira pessoa: é intuitivo apertarmos determinados botões do controle para executarmos ações que já vimos em experiências anteriores. Poucos minutos e você estará adaptado a todos os comandos e se perguntando “Será que jogos assim realmente precisam de tutoriais?”.
Praticamente temos dois botões de interação – um para escalar e outro para focar nos objetos – e o restante voltado para a ação nas batalhas. E são as batalhas o ponto fraco (talvez único) de Hellblade. Você terá de aprender a como lidar com cada inimigo, decorando seus movimentos e sabendo quando se esquivar ou bloquear.
O problema é que são apenas cinco tipos de inimigos no jogo todo, além de três chefes: logo as batalhas se tornam repetitivas e, principalmente, cansativas: tal como em Dmc Devil May Cry (o jogo anterior do estúdio), as lutas penalizam o jogador com o esmagamento frenético de botões – se morremos em Hellblade: Senua’s Sacrifice o principal culpado não é a dificuldade dos inimigos (como dito, previsíveis) mas, sim, o cansaço físico – algumas vezes a dor muscular de tanto apertar os botões fará com que você falhe.
Determinadas passagens do jogo – como a ponte antes de adentrarmos o recinto de Hela – contam com número absurdo de inimigos surgindo na tela, fazendo com que você tenha de matar algumas dezenas para avançar (cuide bem de sua tendinite).
Ainda sobre a jogabilidade, o maior atrativo fica por conta da simulação dos problemas psicóticos de Senua: a parte em que estamos tateando no escuro evitando monstros, por exemplo, é particularmente aterrorizante, fazendo com que nossa ligação com a protagonista atinja um estágio enorme de envolvimento.
Eu poderia dizer que a procura por runas nos cenários para destrancar os portões seja algo repetitivo e, por isso, um ponto negativo. Contudo, ao assistir ao documentário que acompanha o jogo, entendi que aquilo é, na verdade, um recurso narrativo para nos conectar com a realidade vivida por pessoas que sofrem de distúrbios mentais desse tipo, que muitas vezes se agarram à repetição dentro se suas próprias mentes: é algo triste, mas que se torna lindo se pensarmos no cuidado dos desenvolvedores ao retratar isso com delicadeza.
Aliás, beleza é uma palavra-chave em Hellblade: Senua’s Sacrifice. O jogo é um verdadeiro espetáculo visual e fará com que você pare diversas vezes apenas para observar o ambiente e fazer capturas de tela (principalmente se usar a ferramenta Ansel da Nvidia para ter capturas em 360°).
Muitos dos recursos estilísticos do jogo, como as cores, são explicados no documentário e fazem bastante sentido após jogarmos. Mesmo com tantos elementos gráficos em tela, o jogo está muito bem otimizado e raras foram as vezes que senti algum engasgo durante a experiência.
Como disse no começo, Hellblade: Senua’s Sacrifice é um marco na indústria de jogos. Por várias razões.
Uma delas é que o jogo cumpriu o prometido e chegou aos jogadores com qualidade AAA e preço de jogo indie.
No entanto, as razões mais importantes, para mim, são as que estão por trás do desenvolvimento: o documentário mostra o cuidado que a Ninja Theory teve ao abordar o tema da psicose; foram consultados professores especialistas nessa área na Universidade de Cambridge, e também pessoas diagnosticadas com esse distúrbio mental (confesso que fiquei muito emocionado ao ver o depoimento delas, afirmando que o jogo conseguiu mostrar corretamente como é ouvir as vozes dentro de sua cabeça).
Assim como é dito no documentário, a psicose geralmente é tratada nas mídias como sinônimo de psicopatia – são inúmeros os casos de abordagens assim no cinema e em jogos, em que a violência é que norteia a trama.
Hellblade: Senua’s Sacrifice conseguiu lidar com esse tabu trazendo aos jogos eletrônicos uma visão diferente da psicose, uma visão livre de pré-conceitos e preconceitos.
A realidade de Senua é diferente da sua? Você se considera alguém “são” dentro da sua realidade?
Dentre todas as mídias existentes atualmente, apenas uma é capaz de nos fazer pensar sobre isso com empatia: os jogos, literalmente, nos tornam protagonistas.
Hellblade: Senua’s Sacrifice é um jogo que precisa ser revisitado para entendermos completamente, mas as suas quase oito horas de duração sempre deixarão uma certeza: a Ninja Theory prestou um serviço gigantesco à Arte.
Escrito por Alex Martire. Jogado no PC
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