Um jovem e um velho estão sentados num balcão. A comida que pediram, duas tigelas de lamen, acaba de chegar.
“Sensei” pergunta o jovem “O que se come primeiro? O caldo ou o macarrão? ”
“Primeiro” responde o velho “Nós observamos. Pegue o hashi e acaricie a superfície. Admire o brilho da gordura, as raízes de menma, a alga que afunda lentamente. Concentre-se nas três fatias de tyashu. E então…”
“Nós comemos?”
“Não. Nós pedimos desculpas ao porco”. Ele se aproxima tyashu e sussurra “Nós nos veremos em breve”.
Poderia ser um esquete de Isekai Shokudou, o anime gastronômico da temporada. Mas é uma cena de Tampopo, filme de 1985 e um dos clássicos do cinema japonês.
Começo mencionando essa cena porque, se não a tivesse assistido, não entenderia nada da última tendência que venho observando em séries japonesas.
Falo, aqui, de séries sobre comida. Não sobre culinária, ingredientes exóticos ou duelos gastronômicos com pratos que deixam as pessoas nuas. Sobre o simples ato de comer.
Afinal, qual seria o ponto de um anime que se resume a personagens de RPG curtindo a hora do almoço? Em especial quando os pratos não são maravilhas da haute cuisine, mas o PF nosso de cada dia?
Onde termina a ficção e começa o food porn?
Aparentemente, na audiência. Dois desses mangás, afinal, não só foram adaptados ao live action, como ganharam espaço na grade da Netflix.
Assistir aos outros comendo parece ser tão popular na Terra do Sol Nascente que foi o entretenimento que escolherem para exportar ao mundo.
Gourmet mangá
Pode parecer sarcasmo, mas não é. No Japão, mangás sobre comida são tão bem estabelecidos que já conquistaram um gênero próprio
Não falo de Shokugeki no Souma, que usa a gastronomia como mera roupagem para um shounen de esporte. Nem de tantos slice of life cujas personagens cozinham ou trabalham em padarias.
Chamados de gourmet manga ou ryori manga, são histórias cujo foco não está no ato de cozinhar, mas no simples prazer da refeição.
Não existe ação ou reviravoltas – em alguns casos, nem mesmo um enredo. Kodoku no Gourmet, referência do gênero, nos traz a “emocionante” história de um funcionário de escritório desbravando o almoço de cada dia.
Alguns, nem mesmo isso. Ekiben Hitoritabi, que o ANN desenterrou do arco da velha, é uma propaganda gratuita para bentôs de estação de trem. Que se estendeu por 15 tankobons.
Como que um gênero como esse pode fazer tanto sucesso? E como essas histórias, muitas vezes, acabam sendo legitimamente cativantes?
É o que eu me aventurei a descobrir.
Tóquio, a capital da gastronomia
O Japão pode ser conhecido como a “terra do peixe cru”, mas sua culinária há muito já superou o bairrismo. Apenas Tóquio possui 304 estrelas do Guia Michelin, a publicação mais respeitada do ramo.
Isso é mais que o dobro de Paris (134) e o triplo de Nova York (99). Outras grandes cidades japonesas, como Kyoto e Osaka, também estão no top 10.
Se entrarmos na cozinha do dia a dia, não há sequer comparação. Em São Paulo, existem cerca de 111 restaurantes para cada 100 mil habitantes. Em Tóquio, são 1122, dez vezes mais.
Shokugeki no Souma não mentiu. O Japão é, sem sombra de dúvida, a capital mundial da gastronomia.
É de se esperar que um país com essa aptidão fosse projetar seu entusiasmo na cultura.
De fato, como lembra a revista Hashitag, os gourmet mangás se tornaram um apêndice importante da indústria gastronômica nipônica. A influência das séries é tamanha que chegou a influenciar o mercado culinário, ditando tendências e popularizando ingredientes.
Não é de se espantar. Afinal de contas, não há nada melhor para atiçar o apetite do que ver um bife marmorizado na nossa leitura de cada dia.
Porém, isso não responde tudo.
A “Década Perdida”
Os gourmet mangás, afinal de contas, não acompanham qualquer tipo de comida – nem qualquer tipo de comedor. Ao contrário do que o título indica, seus “heróis” não estão interessados em gastronomia fina, mas na comida do dia-a-dia.
Para Jason Thompson do ANN, isso tem a ver com a chamada Década Perdida, um período de recessão econômica que sacudiu o Japão nos anos 1990.
Em 1991, o estouro de uma bolha imobiliária encerrou o período de vagas gordas que o país curtiu no pós-guerra. Em 1995, com o Terremoto de Kobe e o Atentado ao Metrô de Tóquio, pairou sobre o Japão uma nuvem ainda mais densa de pessimismo, com forte influência para a cultura e os animes.
Os gourmet mangás, para Thompson, foram um fruto dessa nuvem. Eles são uma ode ao “copo meio cheio”: um lembrete às pessoas de que, por mais duro que seja abandonar os luxos, é possível encontrar felicidades nas pequenas coisas.
Nobushi no Gourmet, lançado internacionalmente como Samurai Gourmet, encapsula perfeitamente essa mentalidade. Sua trama acompanha um ex-funcionário que descobre que sua vida não faz sentido.
Aos 60 anos, forçado a se aposentar, constata que seu mundo era o escritório. Impossibilitado de trabalhar, sente-se como um samurai sem mestre, à espera do seppuku.
Felizmente, é na macheza do próprio ronin que ele encontra sua redenção. Espécie de Walter White nipônico e bom caráter, o protagonista emula a fanfarronice do guerreiro para voltar a se respeitar como homem: comendo sem pressa, bebendo à vontade, repetindo sem remorso.
A mensagem não poderia ser mais clara. Samurai Gourmet é um retrato perfeito da ética de trabalho japonesa – sintoma de um país, como diz meu amigo Fábio do Anime21, em que é esperado que pessoas vivam para trabalhar, e não trabalhem para viver.
Mas seria apenas isso? Eu acho que não.
A gula é eterna
Por mais que goste do argumento de Thompson, ele não me convence 100%.
Ele não explica Tampopo, lançado em 1985, muito antes da crise, quando o Japão ainda era visto como a próxima nova potência. Nem Oishinbo, primeiro grande sucesso do gênero, em publicação desde 1983. De fato, como bem mostra a Hashitag, os gourmet mangás remontam aos anos 1970.
Tampopo, aliás, talvez traga uma pista para o mistério.
O filme é uma série de esquetes cômicas, com níveis exponenciais de absurdo, sobre um caminhoneiro que busca salvar um restaurante decadente.
Há uma professora de etiqueta, que tenta a duras custas ensinar seus alunos a comer macarrão em silêncio (no Japão, fazer barulho é sinal de educação). Há um mendigo que pede esmola na rua dos restaurantes chiques, e de tanto beber restos de vinho que os clientes jogam fora, tornou-se um sommelier nato. Há uma mãe moribunda que, no lugar do último suspiro, faz um último yakimeshi para sua família.
O que os esquetes têm em comum é um tributo à comida, e a seu papel central nas relações humanas.
É o espírito de Shinya Shokudou, talvez o ryouri mangá que melhor se internacionalizou. A série foca no dono de um boteco da madrugada e suas relações com seus clientes: yakuza, prostitutas, atores pornôs, excêntricos em geral.
Seus comensais podem não ter chifres ou escamas como os seres de Isekai Shokudou, mas também são de outro mundo, à sua própria maneira. Estas são pessoas que, por pressões sociais ou decisões de vida, acabaram relegadas à marginalidade, condenadas à noite.
Tal como Aletta, a garçonete-demônio de Isekai, eles são párias, salvos do ostracismo pela beleza da gastronomia.
Na vida cotidiana, comer se tornou uma obrigação. Engolimos tudo o mais rápido possível. Fast food e congelados são o combustível que nos mantém vivos.
Não estou julgando, só citando os fatos. Quem, afinal, tem tempo para filetar um peixe?
Opõe-se a esse paradigma os ativistas do slow food. Inspirados pela culinária italiana e espanhola, pregam a refeição como um ritual, uma forma de agregar as pessoas e unir gerações.
É a criação que eu recebi da minha vó calabresa, e razão pela qual não abro mão de meus almoços com a família.
Os gourmet mangás parecem advogar uma terceira via. A refeição rápida, porém digna. A comida simples (e nem tão saudável), mas degustada com paixão. O ritual solitário.
É uma mentalidade, quiçá, tão japonesa quanto uma tigela de lamen. Porém, que toca em algo tão elementar que cumpre a função última da arte: transformar o específico em universal.
Não é preciso saber o que é um naruto ou um tonkatsu para simpatizar com um sorriso de saciedade. Cardápios vêm e vão; a gula é eterna.
Muito bom artigo, mesmo eu não sendo particularmente fã da cozinha japonesa (sou muito chato pra comer e é muito mais fácil eu citar pratos e ingredientes que não gosto do que o contrário) mesmo assim fico salivando de vontade vendo esse tipo de anime (e uns poucos mangá do gênero que já li). Algumas coisas adaptadas podem ser gostosas mesmo para alguém chato como eu, suponho? Adoro omurice e karage, pra não dizer que não gosto de nada, hehe.
Mas nossa, esse provavelmente é o último artigo que eu esperava ver uma referência a mim e ao meu blog, LOL! Sobre o tema “sociedade japonesa”, se me permite o gancho, essa temporada está bastante interessante (mais para promissora do que realmente boa, vamos ver qual será minha opinião daqui um mês), com um punhado de animes que abordam diretamente (de forma crítica) temas sortidos a esse respeito, como Youkoso Jitsuryoku, Kakegurui (esse é uma interpretação minha de que se trate de uma alegoria), Clione no Akari, além dos coringas episódicos 18if e Jigoku Shoujo, que por sua natureza devem ilustrar algumas faces da sociedade japonesa. E já falei demais disso, pararei de poluir sua sessão de comentários com assuntos em off por aqui, hehe o//
Muito enriquecedor para mim esse texto. Adoro esse tipo de história, agora mais ainda sabendo desse contexto histórico e cultural. Ansioso pelos próximos artigos.
Fico feliz que tenha gostado!