Se você tivesse uma única oportunidade de ir ao Japão, que lugar que você não deixaria de visitar em hipótese alguma?
Para mim e para minha esposa, a resposta sempre foi óbvia: Hiroshima.
Existem lugares que todo historiador deve conhecer para fazer jus ao diploma. Existem lugares aos quais devemos o mundo moderno. Hiroshima está no topo de ambas as listas.
Como todos sabem, a cidade foi obliterada pela primeira bomba atômica já utilizada militarmente. O horror acelerou a rendição japonesa – e, no longo prazo, alimentou os pesadelos da Guerra Fria.
De minha parte, no entanto, confesso que tinha motivos ulteriores para visitar a cidade. Como já disse diversas vezes no blog, japoneses têm uma relação complicada com o seu passado.
Ninguém duvida que a bomba atômica é uma arma desumana, nem que o Japão pagou – com juros – pelo sofrimento que dispensou durante a Segunda Guerra. Ao mesmo tempo, poucos episódios históricos já foram tão contestados como a detonação que inaugurou o pós-guerra.
Teria a bomba sido uma crueldade imensurável? Ou apenas o último dominó em uma longa fila de violências que começou em 1937, com a 2ª Guerra Sino-Japonesa? Ou ainda antes, em 1922, com o Tratado Naval de Washington? É possível falar de uma tragédia humana em termos tão analíticos?
Decidi ir eu mesmo à Hiroshima para descobrir.
Talvez o mais surpreendente em andar pelas ruas de cidade é imaginar que esta é a mesma metrópole destruída pela bomba mais famosa do mundo. Seus bairros não foram apenas reconstruídos: eles possuem uma identidade própria, uma vibe particular, atrações distintas, que valeriam uma visita independente de seu passado assombroso.
Algumas cidades, tocadas por grandes traumas, param no tempo. Hiroshima ressuscitou, no sentido quase orgânico da palavra. Seu okonomiyaki, o melhor do Japão, está de prova.
Isso não significa que haja uma falta de marcos lembrando o dia mais fatídico da história japonesa.
O edifício que mais chama a atenção é sem dúvida o Memorial da Paz, colosso em ruínas do que antes foi um centro de convenções da cidade. Localizado exatamente abaixo do hipocentro (ponto de detonação) ele absorveu o impacto da onda de choque, preservando sua forma original.
O Memorial encara um parque pontilhado de monumentos, pequenos ou imponentes, que dividem o seu fardo. Paradoxalmente, ao caminhar entre eles somos lembrados da principal razão que levou Hiroshima ao seu destino.
Uma ponte pode não dizer muito, a não ser que você more no Japão dos anos 1940.
Isso porque Hiroshima não possui uma ponte, mas várias. A cidade é situada na foz de um rio. Sua área urbana está quase inteiramente disposta entre as ilhas, entrecortada por cursos d’água.
Durante a Segunda Guerra, isso fez com que fosse poupada dos ataques aéreos americanos. Bombas incendiárias de napalm, usadas para grande efeito em outras metrópoles japonesas, teriam pouco efeito em uma cidade em que nenhuma casa estava longe de um balde d’água.
A sorte de Hiroshima se provou mortal. Para potencializar o efeito surpresa, os Estados Unidos escolheram cidades não-bombardeadas para testar sua nova arma. Seus canais, outrora uma feliz coincidência, a colocaram no topo da lista de alvos potenciais.
Os jardins, contudo, são apenas um aquecimento antes do coração de qualquer visita: o imponente Museu da Paz. Se você leu meu artigo sobre o santuário Yasukuni e ficou apavorado com a apologia que prega ao fascismo, o centro de exibições é um antídoto quase perfeito.
Ao contrário do museu militar Yushukan, ele não esconde que o Japão se colocou na guerra por culpa própria, iniciando uma guerra de agressão contra a China. Em vez de justificar as políticas de Hirohito, ele foca no sofrimento humano: nas pessoas normais que foram pegas no fogo cruzado.
É uma mensagem poderosa, fácil de simpatizar. Para eu, que cresci ouvindo minha avó falar sobre os bombardeios aliados no sul da Itália, os testemunhos tinham um quê de pessoal.
Militantes fanáticos adoram falar no “lado certo da História”, mas a verdade é que, se a história tem mesmo um “lado”, só descobrimos qual é o nosso quando as ogivas começam a cair.
Ideologias vêm e vão, mas o sofrimento, tal como a arte, é atemporal.
O Museu da Paz, contudo, talvez tenha passado essa mensagem bem demais. De tanto insistir na excepcionalidade da bomba, ela parece quase alheia da guerra – e da época histórica – na qual foi concebida.
Hiroshima era sede de uma importante base militar japonesa. Foi isso, juntamente à geografia favorável, que a levou a ser escolhida para o bombardeio.
Sua exposição, entretanto, foca quase que exclusivamente nas crianças em idade escolar. A Segunda Guerra é narrada em cartazes, mas as imagens e artefatos são cacos (em alguns casos, melodramáticos) de infâncias perdidas.
É como se a bomba deixasse de ser uma arma de guerra para se tornar algo mais: uma metáfora das vidas tolhidas no conflito, da geração de adultos que nunca existiu, pois foram obliterados ainda no berço.
Se digo que me incomodo com isso, não é porque acredito que os responsáveis devam ser “perdoados”. Pelo contrário, é para que possamos entender a verdadeira dimensão desse horror.
Hiroshima não se tornou notável pela contagem de corpos nem pelo sofrimento imediato – nisso, os bombardeios incendiários de Tóquio, dramatizados em O Túmulo dos Vagalumes, levam a coroa.
Era um sofrimento, acima de tudo, com que o Estado estava disposto a arcar. Sob seu regime totalitário, imperava o juízo de que todas as “vidas” pertenciam ao imperador – e poderiam ser “gastas”, sem parcimônia, para o esforço de guerra.
“Cem milhões de pessoas morrerão juntas”, foi o slogan fascista em voga em 1945. Se o Japão não pudesse vencer a guerra, ele resistiria até o último suspiro de seu último cidadão. O museu Yushukan celebra esse espírito até hoje.
O Museu da Paz enfatiza a perda de vida humana, mas não explica que os anos 1940 foram um período em que o valor de uma “vida” se tornou perigosamente pequeno.
Sem essa explicação, não é possível entender como o que mundo virou de pernas para o ar em 1937-39. Nem como uma tragédia como essa pôde ser cogitada – e levada a cabo.
Contudo, é mesmo possível esperar diferente? Muito provavelmente não.
Nós historiadores somos pagos para racionalizar fenômenos, dissecá-los em padrões sistêmicos. Para aqueles como eu que usam métodos das ciências sociais, literalmente reduzir a realidade a uma equação.
Nisso, muitas vezes esquecemos que certos episódios têm uma voz própria. O Museu da Paz pode não fazer jus à complexidade causal daquele dia fatídico. Não explica como o mundo eclodiu em guerra, nem o paradoxo da “paz” que se seguiu (garantida, até os dias de hoje, pelas próprias bombas atômicas que condena).
Ele mostra, não obstante, o preço que foi pago para assegurar a calmaria que hoje damos por natural. Isto, por si só, é uma mensagem que merece ser contada.
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