Você voltaria ao passado para consertar algum arrependimento?

E se isso custasse abandonar a vida que tem hoje, com tudo o que trouxe de bom?

Se tivesse de escolher entre viver oportunidades que deixou passar e tudo o que tem hoje, qual seria sua escolha?

Essas são as perguntas que faz Matéria Escura, romance de Blake Crouch publicado no Brasil esse ano.

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Matéria Escura é um misto de sci fi e thriller com o passo frenético de um filme de Hollywood. É também ambientado em Chicago, um diferencial tão bom que faz até seriados medíocres do Dick Wolf parecerem toleráveis.

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Sério, visitem Chicago. É a melhor cidade do mundo

Jason Dessen é professor de física em uma faculdade de segunda categoria. Sua esposa, Daniela, é professora de artes. Ambos já foram brilhantes, mas a vida – e um filho – desfizeram suas ambições.

Tudo muda quando Jason é raptado, drogado e levado a um galpão abandonado. Quando acorda, descobre que o mundo que conhece foi virado de ponta cabeça.

Ele ainda está em Chicago, mas não a “Chicago” que conhece. Como o uncanny valley da robótica, sua cidade parece misteriosamente estranha:

Há uma teoria no campo da estética chamada Vale da Estranheza. Segundo essa teoria, algo que é quase igual a um ser humano – um manequim ou um robô humanoide – cria repulsa no observador, porque, apesar da aparência muito próxima, ainda tem imperfeição suficiente para evocar um sentimento de desconforto, de familiaridade e estranheza ao mesmo tempo.

É mais ou menos esse o efeito psicológico que me acontece enquanto caminho pelas ruas dessa Chicago que é quase a minha.

Seus amigos ainda existem, mas não são as mesmas pessoas. Sua esposa é uma artista famosa com quem nunca se casou. Ele é um cientista renomado que erigiu um império corporativo.

Jason descobre que está em uma realidade paralela em que nunca construiu família. Neste mundo, ele inventou uma “caixa” quântica que permite que viaje pelo multiverso.

É a famosa interpretação dos muitos mundos: a ideia de que todos os universos possíveis existem simultaneamente, com infinitas versões de nós mesmos.

O “Jason” dessa nova Chicago realizou seu sonho de carreira às custas da felicidade pessoal. Sentindo remorso pelas decisões passadas, decide ele mesmo utilizar a invenção e experimentar o que nunca teve: uma vida pacata ao lado da mulher que sempre amou.

O Jason “original”, contudo, não pretende deixar barato. Perseguido pela corporação de seu duplo – e por suas próprias versões alternativas – ele embarca em uma jornada pelo multiverso para recuperar sua vida do homem que a roubou.

Sob toda a roupagem sci fi, o livro é uma reflexão sobre as decisões que tomamos em nossa vida, e como o tempo é indiferente aos nossos caprichos.

Liberdade de escolha, como eu já disse em outra ocasião, implica em fechar portas. Matéria Escura aborda a questão como um soco no estômago, pelos olhos de alguém que descobre, finalmente, que não é mais tão jovem para experimentar tudo.

Na verve da ficção pós-moderna, Blake Crouch usa sua trama com premissa para questionar a própria realidade. Jason descobre que retornar a um universo específico dentre a infinidade de mundos possíveis é mais difícil do que parece.

Sua busca o leva a outras Chicagos paralelas, algumas parecidas, outras exóticas; algumas utópicas, outras pós-apocalípticas. Nessa multiplicidade de mundos, os limites do “real” começam a borrar.

– Não sei quanto a você, mas meu antigo mundo me parece cada vez mais fantasmagórico. Como um sonho, que perde a cor, a intensidade e a lógica quanto mais a gente se distancia. A conexão emocional com aquilo vai desaparecendo.

– Você acha que vai conseguir esquecer completamente? – pergunto – Seu mundo?

– Sei lá. Mas acho que pode chegar um ponto em que ele não pareça mais real. Porque não é.

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Technobabble à parte, é o mesmo conflito de tantos livros de Haruki Murakami, da Crônica do Pássaro de Corda a 1Q84. Um conflito, infelizmente, apresentado de forma infinitamente melhor em outras obras.

Gêneros, como as muitas Chicagos do multiverso de Crouch, são mundos em si: cheios de oportunidades, mas também de perigos. No pior dos casos, são armadilhas que não perdoam sequer autores renomados.

Kazuo Ishiguro foi espinafrado ao se aventurar na fantasia com O Gigante Enterrado. Ian McEwan derrapou em Serena, um suspense de espionagem aquém dos bestsellers de John le Carré. Em Matéria Escura, Blake Crouch parece ter cometido pecado similar.

No posfácio que acompanha a edição brasileira, o autor menciona que esse foi seu livro mais difícil de escrever, e o texto mostra. Toda a perseverança de Jason não é suficiente para esconder seu desconforto com as ideias que traz à tona.

Crouch diz ter sido assessorado pelo astrofísico Clifford Johnson para retratar as minúcias científicas de sua história. Infelizmente, consultoria alguma salva ideias que são, do princípio, pouco inspiradas.

Conceitos como o gato de Schroedinger e a teoria dos muitos mundos já foram exploradas ad nauseam pela ficção. Diz muito da timidez da obra que um pastiche saudoso como Stranger Things tenha abordado temas parecidos com mais inventividade.

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A ficção científica é forte quanto nos leva para outras realidades. Matéria Escura, a despeito de seu argumento, hesita em sair da “caixa”.

Seu enredo é fascinante, mas, como Jason, temos a sensação de já tê-lo visto antes, melhor, em realidades paralelas. Que sua trama seja costurada por convenções batidas (o cientista maluco, a corporação malvada, a artista chique com seus vernissages) não ajuda nem um pouco.

Os clichés seriam perdoáveis se sua prosa não fosse trivial. Crouch abusa de períodos e parágrafos curtos, decompondo, às vezes, cenas inteiras em listas (“Eu também choro. /E Charlie. /E Daniela. ”; “Desligo. /Vou até a janela. /Abro a cortina. ”)

O recurso funciona em blogs e floreiros de fim de capítulo, nem tanto em romances inteiros. No capítulo 1 é cativante; no 5, apenas cansativo. No 14, Crouch se revela um mágico de um truque só.

Meus comentários talvez passem uma imagem negativa, o que não é de todo justo. Matéria Escura não é um livro ruim. No que derrapa em criatividade e requinte, mais do que compensa como thriller.

Navegando paradoxos da ciência, a trama não perde de vista o elemento humano. Seus últimos capítulos pedem para ser lidos compulsivamente. A conclusão, quando chega, fica conosco muito depois da página final.

Crouch também é roteirista, e conduz seu romance com a agilidade e coerência de um blockbuster hollywoodiano.

Não é de se espantar que uma adaptação cinematográfica tenha sido planejada antes mesmo do livro chegar às prateleiras. A telona, formulaica e frenética, parece a mídia ideal para seu tour de force derivativo.

Matéria Escura é criativo, mas não inovador; seco, mas não minimalista. É quase um paperback de aeroporto, quase um hard sci fi cerebral, quase ficção literária, quase um roteiro à espera de um diretor.

Como as Chicagos alternativas que seu protagonista atravessa, é um romance preso no Vale da Estranheza.