Tudo isso que eu já vi na guerra, (…) tanta falta de sentido, violência… me fez pensar sobre falta de comunicação. Quer dizer, essa não é a raiz de tudo isso? Conflitos, guerras… no final das contas, não é tudo questão de linguagem? As palavras que ouvimos e que dizemos e que não são sempre as mesmas. E eu pensei: e se houvesse uma só língua – uma língua universal?
A sacada é do xerife Hank Larsson, personagem da série Fargo. É uma ideia atraente, em que todos nós, em algum momento, já devemos ter pensado.
E se tudo o que houvesse de errado na terra fossem apenas problemas de comunicação?
E se pudéssemos encontrar uma linguagem objetiva, universal, que nos permitisse entender a todos – e a tudo?
Quem acompanha o Oscar 2017 sabe que o exercício já foi colocado em prática. É, afinal, o enredo de A Chegada, ficção científica com Amy Adams que coleciona indicações.
O que alguns talvez não saibam é que A Chegada é baseado em um conto de um dos maiores talentos da ficção científica contemporânea. E que, para nossa sorte, já foi lançado no Brasil.
História da Sua Vida
Ted Chiang pode não ser tão conhecido como Arthur C. Clarke ou Philip K. Dick, mas não há dúvidas de que é um dos novos talentos do gênero. Com apenas quinze textos publicados, já ganhou mais de uma dúzia de prêmios, incluindo vários Nebula, Hugo e Locus Awards.
Sua popularidade fala por si só: depois do lançamento de A Chegada, História da Sua Vida, o conto que o inspirou, se tornou o best-seller número 1 na categoria ficção científica da Amazon.
Chiang não é conhecido por lores vastas ou trilogias super elaboradas. Seu estilo é enxuto, e é no conto que encontrou sua melhor expressão.
Tal como Jorge Luís Borges (cuja obra ele próprio cita), várias de suas histórias giram em torno de invenções inusitadas que nos convidam a pensar na vida de outra maneira.
Em História da Sua Vida, publicado aqui pela Intrínseca, essa invenção não é exatamente um objeto, mas um idioma. No conto, naves misteriosas pousaram na terra. Não parecem reagir aos humanos. Não dizem a que vieram, nem o que esperam de nós.
Devemos atacá-los? Expulsá-los? Esperar até que façam algo?
As forças armadas convocam Louise Banks, uma linguista, para encontrar um jeito de se comunicar com os recém-chegados. Em uma trama sem qualquer drama, technobabble ou gordura de sobra, Chiang nos guia para uma obsessão intelectual – e uma viagem pelo mundo da linguagem.
O tempo é relativo
Contatos com extraterrestres são frequentes na ficção científica. Muitas vezes, estes “alienígenas” são humanos em tudo, menos no nome.
E não digo apenas em aparência. Extraterrestres, Hollywood nos conta, são compatíveis conosco em sentimentos, raciocínio, humor (e até sistemas operacionais)
História da Sua Vida é feliz ao imaginar seres tão diferentes que nos obrigam a rever nossas própria noção de “ser”, “imaginação” e “diferença”.
Na sua missão para se comunicar com os heptapódes (como os alienígenas são chamados), a protagonista descobre que sua mente não tem nada em comum com a nossa. Não só em visões de mundo, mas na própria percepção do tempo.
Nós, seres humanos, captamos os acontecimentos um após o outro. A vida, aos nossos olhos, é uma jornada linear do nascimento até a morte. Nenhum homem entra no mesmo rio duas vezes: nem o homem é o mesmo, nem o rio é o mesmo.
O problema, como físicos vêm nos dizendo há mais de um século, é que o “tempo”, na natureza, é uma coisa bem mais complicada.
Para os heptapódes, ele é simultâneo. Passado, presente e futuro são apreendidos juntos. Suas mentes viajam da infância à velhice, dos traumas aos momentos de alegria, como se fossem quartos diferentes de uma casa.
Louise descobre que seu idioma é incompreensível justamente porque depende desse entendimento. E qual é a sua surpresa ao se tocar que, conforme o aprende, ela começa, também, a perceber o tempo como os heptapódes.
A linguista se torna onisciente, capaz de se “lembrar” do futuro com a mesma facilidade com que nos recordamos do que comemos ontem. Sua vida inteira – o casamento, o primeiro bebê, a morte da filha aos 25 anos – passa diante de seus olhos.
O conceito é baseado em uma ideia que existe de verdade na linguística. Trata-se da hipótese de Sapir-Whorf, que sugere que forma como nos comunicamos influencia nosso jeito de pensar.
Claro, linguista nenhum já sugeriu que é possível prever o futuro aprendendo uma nova língua. Mas isto é o de menos. História da Sua Vida não é um conto sobre a clarividência, mas sobre suas consequências.
Como Louise Banks descobre, por sintetizar passado, presente e futuro; aquilo que existe com aquilo que não existe, a língua dos heptapódes é perfeitamente objetiva. Como ela mesma diz a um colega:
— Existe alguma coisa assim nos sistemas de escrita humanos?
— Equações matemáticas, partituras de música e dança. Mas são todas muito especializadas; nós não conseguiríamos registrar essa conversa usando elas. Mas eu suspeito que, se a conhecêssemos bem o suficiente, conseguiríamos registrar essa conversa na escrita heptapóde. Eu acho que é uma língua gráfica completa, feita para todos os fins.”
Consegue se imaginar escrevendo em partituras? Explicando seu gosto por comida com uma equação? Ver réus e candidatos políticos se justificando com álgebra?
Com certeza, essa língua seria “melhor” do que as que temos hoje. Mas as pessoas que a usam continuariam a ser humanas? Existe “humanidade” para além da mentira, da ambiguidade… da poesia?
Os limites de uma língua “perfeita”
Uma língua “perfeita” resolve muitos problemas. Como violinista, por exemplo, acho o máximo saber que existe um sistema que permite que eu registre qualquer som, de uma sonata do Beethoven até a buzina de um caminhão.
O problema é que, para o dia-a-dia, não existe nada parecido com isso. E algumas das características mais fundamentais da nossa cultura surgiram justamente para remediar essa falta.
Se contássemos com uma língua 100% objetiva, não precisaríamos de metáforas, hipérboles e outras figuras de linguagem. Não precisaríamos tampouco de debates ou conversas: afinal, a realidade é uma só e pode ser conhecida por todos.
Pior ainda, não existiria nem “vida”. Se já sabemos o que acontecerá a cada etapa, tudo o que nos resta é esperar o inevitável.
É o que Louise Banks eventualmente descobre, na medida em que sua mente é transformada:
O conhecimento do futuro é incompatível com o livre-arbítrio. O que torna possível para mim exercitar a liberdade de escolha também me impossibilita de saber o que está por vir. Da mesma forma, agora que eu sei o futuro, eu jamais agirei contrária ao futuro, e isto inclui dizer aos outros o que eu sei: aqueles que sabem do futuro não falam sobre ele. Quem leu o Livro das Eras nunca admite tê-lo lido.
Uma linguagem objetiva, capaz de ver o “plano geral” do universo é uma dádiva inimaginável. Infelizmente, como o Dr. Manhattan de Watchmen nos mostra, ao cruzar essa linha perdemos algo muito mais importante.
Cada um de nós vê o mundo com nossos próprios olhos. É isso que dá sentido às nossas discussões, nossas trocas – e mesmo nossa arte. Se tudo o que foi, é e será estivesse diante dos nossos olhos, cada ponto de vista seria indistinguível do outro.
Com onisciência, perdemos a multiplicidade.
A Chegada é fiel ao conto de Chiang, mas curiosamente deixa isso de lado. Em vez dos conflitos filosóficos de Louise Banks, temos um thriller geopolítico, em que líderes globais ameaçam transformar nosso primeiro contato em uma guerra planetária.
Comunicar-se com os aliens, logo descobrimos, é apenas um pretexto. A verdadeira missão da linguista é fazer com que nossos próprios líderes ponham suas diferenças de lado e aprendam a trabalhar em equipe.
Comparado com seu material de origem, é uma história muito mais upbeat. E, justamente por ser assim otimista, parece às vezes “certa demais”.
Ao assisti-la nos cinemas, não consegui parar de pensar em Solaris, a obra prima de Stanislaw Lem que se tornou outra obra-prima do cineasta Andrei Tarkovsky. Para alguns, o 2001: Uma Odisséia no Espaço da União Soviética.
Tal como em História da Sua Vida, Solaris fala da tentativa de se comunicar com uma entidade alienígena. Neste caso, um oceano inteiro que parece ter consciência própria. Tal como no conto de Chiang, os cientistas percebem que se comunicar com esta criatura é mais difícil do que parece.
Eles logo notam que “Solaris”, este planeta vivo, está em outro nível de realidade, e que sua “língua” não é um idioma, mas um chamado lovecraftiano. Mesmo que possua uma “mente” como a nossa, seu raciocínio não é algo que podemos (ou desejaremos) ouvir.
Não demora para que descubram que não são eles que estão fazendo experimentos com o alien, mas o contrário: é Solaris quem os estuda, invadindo sua mente e brincando com suas memórias, medos e pensamentos.
Solaris mostra que conhecer o “plano geral do mundo” é uma rota para a loucura. “Deus”, se ele existe, não é um velhinho de barba branca, mas um turbilhão de caos, histeria e impotência:
Quero dizer um Deus cujas deficiências não vêm da simplicidade de seus criadores, mas constituem sua característica mais essencial e imanente. Este seria um Deus limitado na sua onisciência e onipotência, que poderia errar ao prever o futuro de sua obra, que poderia se ver horrorizado pelos eventos que desencadeou. Este é um Deus… aleijado, que sempre deseja mais do que ele pode ter e nunca percebe isto. Que criou relógios, mas não o tempo que eles medem. Que criou sistemas e mecanismos que servem propósitos particulares, mas que superaram estes propósitos e o traíram. E que criou um infinito que, longe de ser a medida do poder que deveria ter, tornou-se a medida de seu fracasso sem fim.
A Chegada brinca com onisciência, mas ao contrário do conto de Chiang – e do romance de Lem – para por aí.
Seu foco é obviamente outro. O filme é um comentário típico sobre a nova era Trump, reforçando a “força na união” e a necessidade de abrir fronteiras. De certa forma, é uma versão adulta de Pacific Rim, apresentando o globalismo como panaceia.
É, no entanto, um “globalismo” bem made in America, em que todos falam inglês e compartilham os mesmos valores. Mas e se aquilo que nos tornar diverso também nos impedir de trabalhar juntos?
E se nossas línguas de fato moldarem nossas visões de mundo, nossas culturas… nossas identidades?
Neste “Admirável Mundo Novo” unificado pela língua perfeita, nós continuaríamos a ser quem somos? Ou viraríamos uma nova humanidade, modelados por um Deus aleijado?
A Chegada louva a linguagem como ferramenta de união, mas se esquece de que é igualmente eficiente como uma arma de alienação. As minorias linguísticas ao redor do globo, que viram suas culturas desaparecerem sob o jugo de potências homogeneizadoras, aprenderam isto do jeito mais difícil.
Sim, nós nem sempre nos entendemos. Às vezes batemos cabeça, somos maus com os outros, guerreamos por nada. Mas é esta teimosia que nos faz humanos.
Excelente texto.