Na semana passada, a Obsidian entregou uma das propostas mais ambiciosas de sua história: um RPG em que só podemos interpretar vilões, cujo objetivo é dominar fracos e oprimidos.

Eu mesmo escrevi sobre quão difícil era a ideia – e quais os truques que os criadores de Fallout: New Vegas poderiam usar para tornar a maldade divertida.

Quão errado eu estava.

Tyranny, lançado no último dia 10, é bastante diferente do que eu (e muitos outros, acredito) esperavam. O jogo passa longe de nos convencer a ser cruéis, ou de nos entregar vilões “com coração”.

Não porque fuja da sua proposta, mas porque a entrega bem demais. E, no caminho, faz algo que pouquíssimos jogos já foram capazes de fazer.

Tyranny é um retrato do totalitarismo, mais honesto, didático e pés-no-chão que até jogos ambientados nesses regimes, como Hearts of Iron, conseguiram oferecer.

Um RPG para entrar para a história

Antes de mais nada, as honras:

Tyranny é um RPG isométrico da Obsidian,  no estilo de clássicos como Icewind Dale Baldur’s Gate. Feito com a mesma engine de seu último sucesso, Pillars of Eternity, o jogo mesmo assim veste outra roupagem, com modelos estilizados, cores chapadas e uma identidade visual bastante característica.

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As semelhanças terminam por aqui. Enquanto que Pillars of Eternity se propunha um tributo a Baldur’s Gate, Tyranny nos desafia, do começo ao fim, com uma experiência que nunca jogamos antes.

Esqueça dragões, fetch quests, trupes de aventureiros e taverneiros sorridentes. O novo jogo da Obsidian se passa em um mundo fantástico pós-apocalíptico ambientado no fim da Era do Bronze. É um misto de Roma às sombras de Átila com os velhos pulps de ficção científica, em que hoplitas dividem espaço com entidades que manipulam as leis da física.

Quem se lembra da Black Isle em sua melhor forma sabe que o estúdio ganhou fama por sua criatividade. Planescape: Torment, sua obra-prima, chacoalhou uma geração acostumada com elfos, anões e hobbits ao apresentar NPCs inusitados, distantes dos clichês da fantasia medievalista.

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A Obsidian, que herdou muito de sua equipe após o fim do estúdio, não teve a mesma sorte. Embora tenha entregue excelentes jogos, trabalhou quase que inteiramente em franquias estabelecidas.

Star Wars: KotOR II e Fallout: New Vegas estão entre os melhores RPGs de suas gerações. Porém, pelas amarras de seu próprio cenário, são jornadas familiares.

A situação parece ter mudado. Tyranny traz o velho espírito da Black Isle com uma força inédita desde os anos 1990. Veja por exemplo Tunon, um juiz espectral sem rosto definido, com máscaras que variam de acordo com sua missão.

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Ou ainda Vozes de Nerat, uma entidade que usa um elmo com dois rostos, cada qual com uma personalidade diferente  .

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Tyranny é Obsidian na sua melhor forma. Longe das mordaças dos grandes publishers, a turma de Brian Heins finalmente conseguiu colocar as asas de fora.

Que seu cenário inovador seja apenas a ponta do iceberg é prova do seu talento – e de quanto nós, gamers, temos a ganhar com tudo isso:

O outro rosto da maldade

Tyranny se passa no mundo fantástico de Terratus, nos últimos momentos da guerra entre o bem e o mal. Kyros, o grande vilão, conquistou quase todo o globo, e os poucos rebeldes remanescentes lutam uma guerra desesperada que sabem ser impossível de vencer.

Em forma, tom e conteúdo, o jogo da Obsidian é indistinguível daquelas cronologias alternativas que nos mostram o que aconteceria caso os maus ganhassem. Estamos no território de The Man in the High Castle, Wolfenstein: The New Order e Dragon Age: Darkspawn Chronicles.

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A horde de Kyros, no entanto, é tudo menos unida. Dois exércitos rivais competem um com o outro para serem os primeiros a render o inimigo.

De um lado estão os Desfavorecidos, uma tropa de elite composta por fanáticos políticos. Unidos por uma devoção quase religiosa ao seu líder, prezam pela ordem, seguem a letra da lei e chacinam os derrotados.

Do outro lado está o Coro Escarlate, uma turba de criminosos, psicopatas e vira-casacas recrutados das fileiras inimigas. Mistura de bacantes com os assassinos do Massacre de Nanking, os soldados do Coro são imprevisíveis, sádicos e  psicopáticos.

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Como um agente independente, o protagonista de Tyranny não deve lealdade a nenhum dos dois. Porém, a maneira como soluciona os dilemas morais propostos pelo game irá cedo ou tarde jogá-lo aos braços de uma facção – em rota de colisão com a outra.

Não espere, contudo, o “relativismo moral” infantil de tantos RPGs “maduros” por aí. Em Tyranny, não existe “lado bom” nem “mal menor”. Nossa única escolha é a de decidir quais cachorros soltar sobre seus inimigos. A diligência de uma Gestapo ou de um Kempetai, ou o caos de uma turba violenta.

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Se parece angustiante, essa é justamente a intenção. Tyranny, afinal, não está interessado em uma maldade “leve” e juvenil, como a de  GTA ou Fable. Sua intenção é mostrar como funciona um dos regimes mais revoltantes já criados.

Mas o que, afinal, é o “totalitarismo”?

Hoje em dia,  “totalitarismo” se tornou uma palavra feia. Assim como tantos outros –ismos,  é o xingamento predileto em discussões sobre política com paixões demais e argumentos de menos.

Como bem dizia Millôr Fernandes, “democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim.” Nos últimos tempos, a piada nunca foi tão atual.

Embora sirva bem aos militantes de Facebook, esse relativismo é uma afronta àqueles que sofreram, de verdade, com o pior que a humanidade já pôs em prática. Acontece que “totalitarismo” é uma coisa BEM  específica.

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Hannah Arendt

Para a pensadora política Hannah Arendt, ele não está associado a nenhuma maldade específica. Nem é, tampouco, apenas um tipo mais “grave” de tirania. É um sistema político completamente novo e mais perverso.

A diferença está na fé em uma Lei da Natureza absoluta, que governa toda a nossa vida e não pode ser resistida. Ou então em uma História com H maiúsculo, que se move em uma direção específica e não pára para os que titubeiam.

Individualidade e liberdade viram obstáculos a ser emderrubados. Há o caminho Natural e aquele dos degenerados. Há o “lado certo da História” e o “lado errado”.  Em nome do serviço à Lei Suprema, não há prédio que não possa ser derrubado, ou pessoa que não possa ser executada.

Na sociedade que serve à Lei, existem apenas dois tipos de pessoa: os carrascos e a vítimas.

É algo que os rebeldes de Terratus entendem muito bem – e o que faz com que nos sintamos tal mal ao jogar Tyranny. Em todos os jogos, sempre há uma razão para tentar os mocinhos ao “lado negro”: poder, vingança, ordem. Kyros, no entanto, não deixa espaço para barganha. Seja meu escravo ou não seja mais nada.

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Como disse o autor de The Witcher Andrzej Sapkowski no livro A Torre da Andorinha:

Existem em todos os Estados fanáticos que desejam impor uma certa concepção de ordem pública. Dedicados em corpo e alma a esta ideia, eles estão dispostos a realizar qualquer coisa para defendê-la. Isto inclui cometer crimes, pois os fins, segundo eles, justificam os meios e invertem a moral. Eles não assassinam, eles preservam a ordem pública. Eles não torturam ou chantageiam: eles protegem a Razão de Estado e lutam pela paz. Para essas pessoas, a vida é uma entidade que não tem valor e não merece consideração quando se torna um obstáculo para a ordem estabelecida. Estas pessoas esquecem que a sociedade que elas servem é composta justamente por estas entidades. Elas têm uma visão “ampla”… o jeito mais seguro de ignorar as peças do quebra-cabeça.

Em Tyranny, Kyros é justamente essa “Lei”. No início do jogo, recém-chegados ao mundo de Terratus, temos até dificuldade para entender o que ele é.

Ele é chamado de “Líder Supremo”, mas poucos conhecem sua forma física. Seus subordinados são entidades sobrenaturais, menos humanos que personificações de ideais (a justiça, as sombras, o segredo).

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Seus poderes são absolutos e insensíveis, como os de Deus no Antigo Testamento. Logo na primeira missão do jogo, dois generais estão com dificuldade para tomar uma cidade rebelde. Para convencê-los a trabalhar juntos, Kyros manda um edito: se não tomarem a cidade em 8 dias, todos (generais, rebeldes e a cidade) serão apagados do mapa.

A banalidade do mal

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Kyros não é um “vilão”, no mesmo sentido de que o Nazismo não é Hitler, nem o Comunismo é Stálin. Tal como essas ideologias, ele é algo além, um princípio último inevitável, que seus defensores perseguem até o fim, pois não acreditam em alternativas.

Em vida, as ideias de Hannah Arendt lhe trouxeram uma enxurrada de críticas. Seus oponentes a atacaram por fazer pouco caso com o totalitarismo. No pior dos casos, em ser até “bondosa” com os piores criminosos que a humanidade já viu.

De fato, o vilão de Arendt não age por malícia. Ele apenas “faz o seu trabalho” da melhor forma possível, sem se importar (ou imaginar) as consequências de seus atos. O mal se torna “banal”.

É o que alguns críticos de games comentaram sobre o jogo da Obsidian. O protagonista de Tyranny seria apenas uma “engrenagem” no sistema, uma peça muito pequena dentro de uma máquina política incontrolável. Ele não é “responsável” pelo que faz porque age com a autoridade de outros. Não é ele o culpado: o mundo é que é perverso.

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O que os reviewers – e os críticos de Arendt – não conseguiram entender é que as coisas funcionam de outro jeito. Não é que regimes autoritários dependem de trabalhadores dedicados, nem que todos os seus criminosos sejam assim. Pelo contrário, tanto os ditadores da vida real quanto Kyros em Terratus não tem pudor em contratar psicopatas e facínoras.

O que acontece, segundo a autora, é que o totalitarismo cria esse tipo de pessoa.

Para atender à Lei Suprema, o indivíduo deixa de existir. Todos viram parte de um único povo, com uma única vontade e uma única mente.

O problema, obviamente, é que essa utopia é terrivelmente solitária.

Quando sentimos que nossa vida não tem sentido, que todos à nossa volta são idênticos a nós, as coisas perdem o propósito. Deixamos de ser humanos para nos tornarmos máquinas. Como disse Adolph Eichmann, o oficial nazista cujo julgamento Arendt assistiu, uma “engrenagem” no sistema.

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Adolph Eichmann

Tyranny não é um jogo fácil de absorver. De estupros a torturas de prisioneiros, nenhuma maldade fica de fora. No combate, inimigos choram e gritam ao morrer. Se a maioria dos games nos transforma em RamboTyranny é O Resgate do Soldado Ryan. O jogo é Nada de Novo no Front mais que Pearl Harbor; Até o Último Homem mais que Bastardos Inglórios.

Mesmo assim, o que mais choca não são as atrocidades. É ver as pessoas perdendo sua humanidade e transformando-se (literalmente) em máquinas.

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Barik, um dos party members, é um soldado de elite de Kyros. Atingido por uma tempestade mágica, acabou preso dentro de uma armadura de ferro. Não pode se lavar nem atender a seus desejos.  Precisa urinar e defecar dentro da couraça, e seu fedor aterroriza mais que sua aparência.

Barik não deixa isso afetá-lo. Ele é um soldado de Kyros e continuará a obedecer as ordens. A armadura é até mesmo uma “vantagem”. No campo de batalha, se tornou um verdadeiro colosso.

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Eb é uma maga da resistência. Seu marido e filhos foram mortos pelo Líder Supremo. Todo o mundo que conheceu foi destruído. Ela vive de vingança, preferindo a morte em batalha a obedecer o responsável pela sua dor.

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Em dado momento, tudo muda. Derrotada pelo protagonista, ela se curva e aceita a escravidão. Conformada – e até animada, – transforma-se no instrumento da vontade de Kyros. Da família, fala sem rancor. Eles são o passado. O presente agora é outro.

Ela, que prometia ser uma antagonista carismática, uma heroína a fazer frente ao nosso vilão, mostra que Tyranny não tem espaço para essas fantasias.

No totalitarismo não existem “heróis”. Apenas engrenagens e a sujeira entre elas. Que você, como agente de Kyros, tem o dever de limpar.

Não é uma experiência confortável, mas é isto em si é positivo. Se, ao jogar Tyranny, você se sentir angustiado consigo mesmo, leve para o bem. É sinal de que você ainda é humano.