Até onde você iria por uma aparência perfeita?
Hoje em dia, é provável que a resposta seja “não muito longe”. Poucas coisas são marcas mais fortes da nossa geração do que a crítica à beleza a todo custo. “Come as you are “tornou-se um lema para a forma como nos relacionamos com a moda, com a etiqueta e com nossos próprios corpos.
Se isso fosse realmente verdade, é pouco provável que Helter Skelter, mangá vencedor do prêmio Osamu Tezuka em 2004, lançado recentemente no Brasil, fizesse tanto sucesso.
Desenhado com um traço agressivo e estilizado, o quadrinho é um retrato gráfico, cínico e intratável da face mais sombria do culto às aparências. E de como, por mais que nos esforcemos, lutar contra ele será sempre uma batalha perdida.
A beleza que destrói
“Seria aquilo que você pensa ser uma máscara o seu verdadeiro rosto? Ou seria o seu verdadeiro rosto, na verdade, uma máscara?”
– Kobo Abe
O josei de Kyoko Okazaki nos apresenta Lilico, uma supermodelo para dar inveja a qualquer um. Linda, popular e desejada, ela é vista como uma mulher perfeita, cobiçada por estilistas, agências de publicidade e diretores.
Lilico, no entanto, guarda um grande segredo. Sua beleza fenomenal não foi presente da natureza, mas o resultado de plásticas. E não qualquer plástica: dos dedos dos pés até as sobrancelhas, cada centímetro do seu corpo foi remodelado por uma cirurgiã.
Se a transformação parece extrema demais (mesmo para nossa geração fissurada em plásticas) é porque de fato o é. O procedimento de Lilico é experimental e requer que ela tome um coquetel de drogas para manter a saúde da pele.
O problema é que essas drogas têm efeitos colaterais. Dores, sangramentos e escoriações viram parte de sua rotina. Um maquiador passa a acompanhá-la aonde quer que vá. Para sustentar sua beleza escultural, ela acaba destruindo o próprio corpo.
Histórias de terror envolvendo plásticas são quase tão antigas quanto as próprias cirurgias, e não parece que o conto de Okazaki tenha no realismo uma prioriade. Este, no entanto, não é sua intenção.
Por mais curioso que pareça, Helter Skelter não é um livro sobre o corpo, mas sobre fantasias – e o efeito perverso que têm sobre nossa mente.
Obcecada pela promessa de sucesso fácil, Lilico se torna dependente de uma “mãe” adotiva que a trata como um ganso dos ovos de ouro. Entre a exploração da “madrinha” e as despesas com a clínica de estética, a modelo vive em uma corda bamba entre o sucesso e a falência. Ela sabe que, no momento em que sair dos holofotes, sua vida de sonhos se desmanchará como um castelo de cartas.
Quando uma jovem modelo ameaça roubar seu espaço, é esse o futuro que prevê para si. Lilico se torna paranoica. Com medo de envelhecer e perder seu lugar ao sol, ela se volta contra tudo e contra todos – incluíndo a si mesma.
Kyoko Okazaki não nos poupa dos detalhes sórdidos, e esta é talvez a maior força de seu mangá. Na sua espiral de auto-destruição, Lilico se prostitui para celebridades ricas, tortura sexualmente sua assistente e ataca rivais com ácido sulfúrico.
É um retrato chocante, e não é à toa que alguns reviewers criticaram a obra por apelar demais com sua depravidade. É também verdade que a obra foi vítima (ou beneficiária?) da própria fama. Em um golpe mórbido de ironia, a própria autora foi desfigurada em um acidente de carro.
No entanto, basta nos lembrarmos de que coisas do tipo já aconteceram de fato para percebermos que Helter Skelter pode ter vários defeitos, mas falta de honestidade não é um deles.
A “aparência” só existe mesmo nas aparências?
“Eu não sei bem como dizer, mas eu me pergunto se uma máscara, sendo universal, melhora nossa relação com os outros mais do que nosso rosto nu”.
– Kobo Abe
Não devemos julgar as coisas pelas aparências.
Por trás desse lugar-comum, está o julgamento de que aquilo que somos e como nos mostramos ao mundo são coisas diferentes. Quando estas duas “pessoas” entram em conflito, é o momento em que sofremos.
Helter Skelter nos propõe um exercício interessante. O que aconteceria se a diferença fosse apagada? Se a máscara que escolhemos para nós devorasse nosso verdadeiro rosto?
Por mais que os horrores sofridos (e praticados) por Lilico nos assombrem, não dá para negar o apelo de sua decisão. Mascarar-se, afinal de contas, é uma coisa que todos fazemos. Para alguns, por necessidade.
Por mais satisfeitos que estejamos, ninguém tem a vida que sempre desejou. Estamos sempre um pouco aquém das nossas expectativas, seja ao nos olhar no espelho, seja ao encarar o teto e pensar em seu colega que já tem uma carreira enquanto você, perdido e formado, não sabe o que fazer da vida.
Lilico não quer apenas ser bonita. Ela usa a devassidão para se esquecer da solidão; o luxo para mascarar o desespero; a vida pública, sem direito à privacidade, para sossegar os esqueletos que tentam escapar de seu armário.
Conforme a fachada vai caindo e seu rosto postiço começa literalmente a se desprender da carne, somos apresentados a uma Lilico perturbadora, com um passado vergonhoso e tendências criminosas.
Seus sacrifícios são terríveis, mas têm um propósito. Ao se oferecer de cobaia a uma médica inescrupulosa, Lilico comprou o sonho de se tornar a sua própria fantasia – e enterrar, finalmente, a pessoa que estava condenada a ser.
Em seus pés, é difícil negar que muitos fariam o mesmo. Helter Skelter, afinal, não é apenas a sátira sobre a hubris de uma celebridade. É a cutucada em uma verdade desconfortável que escondemos há muito tempo.
Não é de se espantar, portanto, que sua história já tenha sido contada antes.
O Rosto de um Outro
O escritor japonês Kobo Abe não é conhecido como o Kafka do Japão à toa. Cotado várias vezes para o Nobel, ele foi um dos nomes mais perturbadores da literatura nipônica.
Seu romance O Rosto de um Outro soará familiar a todos que tentem digerir o mangá de Kyoko Okazaki. Trata-se da história de um homem cuja face foi desfigurada após um acidente de laboratório.
Condenado a viver literalmente como um homem sem rosto, ele é possuído por uma ideia fixa: criar uma máscara tão, mas tão realista que pudesse se passar por um rosto de verdade.
Não o seu rosto, contudo. Tal como Lilico de Helter Skelter, ele vê no acidente que sofreu uma oportunidade para se reinventar – e transformar-se naquilo que a vida nunca lhe permitiu ser.
O experimento é um sucesso. O protagonista, cientista habilidoso, desenvolve um material que imita a pele em quase tudo. Mesmo seus velhos conhecidos são enganados pelo disfarce. As consequências, porém, são bem diferentes do que ele imaginara.
Ao vestir o rosto de um “outro”, ele, também, começa a se tornar outro.
A “máscara” parece ter uma personalidade própria e o faz se comportar de uma maneira estranha. Ele fica agressivo. Tem fantasias envolvendo crimes. Compra uma arma. Em um pico de maquiavelismo, decide seduzir a própria esposa passando-se por outro homem.
Na intenção de voltar a ser uma pessoa normal, a personagem de Abe faz da própria vida o que já foi, com certeza, o sonho macabro de muitas pessoas. Ele ganha uma identidade postiça, sob a qual pode fazer o que quiser, e que pode a qualquer momento largar, para evitar responsabilidades.
Perto da crueldade de Lilico, o protagonista de O Rosto de um Outro é quase inocente. Porém, o que o livro não traz de terror gráfico ele entrega em perspicácia.
Em dado momento do romance, a personagem de Abe percebe que seu disfarce funciona não por ser perfeito, mas porque vestir o rosto de um outro é algo bem menos monstruoso – e muito mais comum – do que parece à primeira vista.
Mentiras brancas do dia a dia. Fórmulas ocas de cortesia. Modismos. Vidas duplas (ou triplas) levadas por adúlteros. Vícios que escondemos a sete chaves, mas que nos devoram secretamente por dentro. Todos nós, em maior ou menor medida, interpretamos um papel. E o rosto é nosso convite ao baile de máscaras que chamamos sociedade.
Isso, claro, apresenta um problema. E se todas as pessoas tivessem, como o protagonista do romance, o poder de trocá-las à revelia?
E se nossa identidade mais íntima, aquilo que faz de nós indivíduos, pudesse ser descartada e trocada, como fazemos com uma roupa fora de moda, uma fandom que nos desinteresse ou um partido político com o qual deixamos de nos reconhecer?
A resposta de Abe é tão horripilante quanto a loucura de Lilico:
Incapaz de suspeitar dos outros, incapaz de acreditar neles, as pessoas precisariam viver em um estado de suspensão, de falência das relações humanas, como se olhassem para um espelho que não reflete nada.
Não, talvez elas deveriam se preparar para aceitar um estado ainda mais estarrecedor. Todo o mundo começaria a trocar de máscaras uma após a outra, tentando escapar da ansiedade de não enxergar tornando-se menos vísivel que o próprio invisível. E quando se tornasse prática comum buscar constantemente novas máscaras, a palavra “estranho” se tornaria obcena, pichada em banheiros públicos, e a identificação de estranhos – como as definições de família, nação, direitos, deveres – se tornaria obscura, incompreensível sem comentários copiosos.
O Rosto de um Outro foi escrito nos anos 1960, muito antes do transplante de rosto se tornar uma realidade. Felizmente para nós – e infelizmente para sua personagem perturbada – a possibilidade de ganhar uma nova face não trouxe a distopia que Abe imaginou.
No entanto, a modernidade trouxe sim algo parecido. Se é verdade que poucos trocam, literalmente, de rostos, é verdade que usamos e abusamos de “personas” e que o anonimato nunca foi tão fácil.
Acredito que poucos negariam que as pessoas não se comportam no mundo virtual do mesmo jeito que o fariam na vida real. O que divide opiniões é a causa. Será que as máscaras estimulam pessoas a serem o que não são? Ou apenas liberam impulsos que, no contato social, preferíamos manter escondidos?
Até que ponto a liberdade escapista não se transforma em outra coisa? Quantas vezes precisamos vestir uma máscara para nos esquecermos de que ela está ali, em primeiro lugar?
Nada disso, claro, é novo – e daí a genialidade dos trabalhos de Abe e Okazaki. Da turba de linchamento às escapadas sexuais, essa é uma navalha em cujo fio andamos desde os primórdios da civilização.
É muito comum, em páginas de auto-ajuda ou “bem-estar”, nos depararmos com a história de que devemos “ignorar as aparências”. Aprender a nos amar por aquilo que somos na nossa “essência”. Fazer de nossa vida um livro aberto ao mundo.
Helter Skelter e O Rosto de um Outro, cada um à sua maneira, nos mostram que a realidade é mais complicada.
Que debaixo das nossas máscaras não existe beleza, honestidade, compaixão ou qualquer outra platitude abstrata. Existe, pura e simplesmente, um amontoado de carne, ossos e cartilagem.
E que nossas máscaras, por mais asquerosas que nos pareçam, são muitas vezes tudo o que nos separam da depravidade de nossa natureza interior.
Nossa, que texto fantástico. Eu fiquei um pouco “uhn” com as conclusões iniciais sobre o mangá, que eu ainda não li (mas pela resenha me lembrou muito A Pele que Habito, um filme que me dá arrepios, então não sei se quero ler tão cedo :P) mas o final tocou em uma ferida de algo que eu venho pensando ultimamente. É verdade, as sociabilidades estão muito diferentes hoje em dia do que eram 20 anos atrás por causa do advento de internet. Hoje tem gente que tira o sustento (pfft, quis dizer “faz fortuna”) com internet, então é inegável que a internet é um espaço de sociabilização importante, mas ao mesmo tempo dá para ter mil identidades na internet e nenhuma verdadeira. Eu sei disso, eu tinha “contas fakes” de amigas inexistentes quando eu tinha 8 anos. 😛 Mas eu não fazia ideia de como isso ia me afetar no futuro. A gente tende a não dar muita importância para esse tipo de coisa, e quando a gente vê o efeito já é imenso.
No mais, pra falar do sentido mais literal de aparência, esses tempos eu comentei no meu blog o mangá Shibou to Iu na no Fuku wo Kite, josei da Moyoco Anno (com um traço similarmente desleixado, aliás :)) que conta a história de uma jovem adulta que basicamente tem sua vida arruinada por uma colega de trabalho invejosa e medíocre, depravada e totalmente vendida ao culto às aparências, mas essa própria colega paga o preço pelo que ela faz de errado também. Não vou dar spoilers pois não sei se vocês leram, mas a parte engraçada é que Helter Skelter me pareceu pela resenha quase como um sucessor espiritual falando exatamente sobre a vida da invejosa.
Enfim, depois dessa leitura também muito boa, eu fiquei pensando sobre como não é verdade que devemos ignorar as aparências. Eu – que sou formada e pretendo trabalhar com RH – li esses dias um texto muito bom no Linkedin falando sobre isso: o quanto aparências, objetivamente, importam. A realidade do mercado de trabalho, que não é fácil para ninguém, é que quem tem “boa aparência” sai na frente. “Boa aparência”, porque a mente humana é tão limitada que tende a associar uma aparência exterior bem cuidada com uma pessoa que é bem cuidada em todo o resto da vida, como se alguém fosse perfeito assim. Eu comentei também sobre como distúrbios alimentares são uma realidade crescente e a cultura que alimenta esses distúrbios é uma que associa o distúrbio a poder. Infelizmente, essa associação só existe porque as “sociedades civilizadas” dão vazão para isso. Então, eu não acho que o discurso de “seja feliz com a sua beleza real, blabla” tem mais valor do que qualquer outro discurso para vender cosméticos. Porque se sua beleza real é igual à da capa de revista, melhor ainda, né?
Enfim, só queria postar isso aqui porque discordo que não exista mais uma ditadura da beleza. Tanto existe que cirurgias plásticas ainda não são acessíveis para a maioria dos “meros mortais”, e a gente vê os resultados catastróficos de operações em clínicas clandestinas na mídia o tempo todo, tem toda uma máquina que opera nesse sentido. Infelizmente isso fica ocultado na maior parte do tempo. Só para apontar isso mesmo. De resto, gostei do texto, pra variar! 🙂
Ótimas colocações!
Helter Skelter é BEM na linha de A Pele que Habito. Na verdade, quase citei o filme no artigo, hehe.
Em alguns pontos, ele é ainda mais gráfico que o filme do Almodóvar. Então vá preparada.