É fato conhecido entre fãs de Madoka que o mahou shoujo de Gen Urobochi foi inspirado em Fausto. A homenagem é frequentemente comentada em resenhas do anime, como nessa ou nessa.

Não que a produção da SHAFT tenha feito muitos esforços para esconder o tributo. Frases em alemão tiradas diretamente da peça estão literalmente espalhadas pelas cenas do anime:

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O que talvez seja menos evidente é quão inspirada a série realmente é. Não se trata apenas de trechos tirados de um dicionário de citações ou da página da wikipedia. Há Goethe suficiente dentro de Madoka para chamá-la de releitura – quando não mesmo de adaptação.

Para apreciá-la, não é preciso ir longe. Basta começar pelo começo:

Um pacto diabólico

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Sou parte da Energia

Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.

– Mefistófeles

 

Madoka quebrou os paradigmas de seu gênero ao apresentar garotas mágicas não como heroínas, mas como vítimas de pacto maldito.

Em vez de um familiar fofinho para acompanhá-las, suas guerreiras do bem encontram Kyubey, uma inteligência alienígena que deseja usá-las como fonte de energia para evitar a morte térmica do universo.

Não é preciso ter lido Goethe para perceber que Kyubey é uma figura diabólica. Porém, sua maior semelhança com Mefistófeles não está em seu objetivo, mas na personalidade.

No anime de Urobochi, o Incubator, como é conhecido, não é exatamente um vilão. Ele não age por maldade e não tem pretensões de dominar o mundo. Nem teria como: sua espécie é incapaz de sentir emoção.

Para ele (e seus superiores), nada do que fazem é pessoal. Garotas serão condenadas a servir de baterias-vivas, mas o universo será preservado. É uma boa barganha. Por que os humanos não conseguem ver as vantagens?

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Por quê?

Não é exatamente a postura que esperamos do Senhor de Todo o Mal. Mas é, curiosamente, a forma como Goethe nos introduz a Mefistófeles.

Ao contrário dos demônios em outras histórias, Mefisto não é exatamente cruel. Tal como Kyubey, ele é um diabo corporativo, que faz “apenas o seu trabalho” Tão “correto” ele é, na verdade, que pede autorização a Deus antes de tentar Fausto com sua proposta.

A produção da SHAFT não se esqueceu da cena. Pelo contrário, até a homenageou em um pequeno easter egg.

Madoka abre seu primeiro episódio com uma citação em código (já decifrado pelos fãs). Ela diz Prolog im Himmel, ou “Prólogo do Céu”, título da cena de abertura de Fausto, em que nosso burocrático demônio pede o consenso do Criador.

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A homenagem, claro, vai muito além do easter egg.

A maldição da felicidade

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Se vier um dia em que ao momento

Disser: Oh, para! És tão formoso!

Então algema-me a contento,

Então pereço venturoso!

 – Fausto

Na antiga lenda alemã, Fausto é um acadêmico amargurado com uma vida insossa. Ao fazer o pacto com o demônio, ele vê a oportunidade de experimentar aquilo que nunca teve: poder, prazer, conhecimento infinito.

Uma dos principais twists do Fausto de Goethe – e um dos motivos pelo qual sua versão é tão celebrada – é que ele vira essas motivações de ponta-cabeça. Na sua história, Fausto não está apenas amargurado.  Ele acredita que não há nada no mundo que possa agradá-lo.

Nem ouro, nem poder, nem luxúria, nem conhecimento. Para Fausto, a vida perdeu o brilho. Nas suas palavras:

Maldita seja a presunção,

Em que o critério se emaranha!

Maldita o encanto da visão

Que no íntimo sensual se entranha!

Maldito o que em vão sonho enleia,

Da fama e glória o falso brilho!

(…)

Do amor, maldita a suma aliança!

Maldita da uva a rubra essência!

Maldita fé, crença e esperança!

E mais maldita ainda, a paciência.”

Se a linguagem pomposa parece distante de Madoka, pense de novo. A quote (ou uma parte dela) aparece ao lado de Mami,  no labirinto de uma das primeiras bruxas derrotadas pelas garotas.

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Fausto está tão certo de que jamais encontrará um desejo que lhe agrade que resolve fazer uma aposta com Mefistófeles. Se um dia ele realmente ficar satisfeito, completamente satisfeito, ele abrirá mão da sua vida.

A “maldição da felicidade”, como ficou conhecida, é umas artimanhas mais sombrias da tragédia. Sem saber (ou, talvez, sem entender o peso da sua escolha), Fausto condena a si mesmo a um sofrimento insuportável e angústia infinita.

Era apenas óbvio, tratando-se de Urobochi, que esse terror psicológico fosse encontrar algum lugar em Madoka. Nem precisamos esperar muito. Ele aparece já nos primeiros episódios.

Embora pareça uma garota bonita, alegre e capaz, Mami Tomoe conta às suas novas amigas que o trabalho de mahou shoujo cobra um preço alto. Esqueçam namorados, amigas ou uma rotina comum. Para quem arrisca a pele lutando contra bruxas, a vida será sempre solitária.

Tudo isso muda quando Madoka entra em cena. Mami, que já tinha se resignado a morrer sozinha, descobre que terá uma companheira para dividir o fardo. No labirinto da bruxa, ela conta à amiga que nunca se sentiu tão feliz.

O resto, como dizem, é história.

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Mami sofre a maldição às últimas consequências, mas fica claro, na série, que nenhuma mahou shoujo está destinada a ser feliz. Tal como Mefistófeles, Kyubey só está interessado em suas almas… e no que acontecerá com elas depois que morrerem.

Kyoko leva o pai à loucura e ao assassinato. Sayaka troca a alma pelo coração de um garoto, que perde para a amiga popular. Homura tenta salvar Madoka, mas se envolve em uma espiral de fracasso e decepção que a transformaria, cedo ou tarde, em uma bruxa.

Não havia como ser diferente. Pois, se alguma coisa merece o adjetivo “fáustico”, ser ludibriado a um destino terrível com certeza é ela.

Afinal…

A esperança e desespero andam juntos

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Não devo; para mim a esperança está morta.

Por que fugir? se estão mesmo a espreitar-me.

 – Gretchen

Usagi é a protagonista de Sailor Moon. Cardcaptor Sakura é a história de Sakura Kinomoto. Seria óbvio, em um anime chamado Puella Magi Madoka Magica, que acompanhássemos a jornada pelos olhos de Madoka Kaname.

Seria, se Urobochi e companhia não nos tivessem presenteado com um dos twists mais celebrados de memória recente. O que de início parecia a jornada de Madoka para se tornar uma garota mágica se prova, na verdade, a saga de Homura.

Aterrorizada ao descobrir o verdadeiro plano de Kyubey, ela troca sua alma pelo poder de voltar no tempo. Para salvar a vida de Madoka no futuro, ela retorna ao passado para evitar que faça o pacto que custará sua vida.

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Seja o que for preciso

Não que esse fosse um plano que ela pudesse realizar. Num paradoxo conhecido de ficções sobre viagem no tempo, Homura não consegue evitar que o inevitável aconteça. Pior ainda, ela só agrava as coisas.

Como o próprio Kyubey reconhece, cada vez que volta ao passado o potencial de Madoka aumenta. Quanto mais forte ela for como garota mágica, mais terrível ela será quando finalmente se transformar em uma bruxa. E maior a destruição que espalhará pelo globo.

É um twist genial, mas que não deve passar batido para quem está de olho nas referências a Fausto. Afinal, também o personagem de Goethe termina sua tragédia em uma corrida desesperada para salvar a mulher que ama.

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Quem duvidava?

Em Fausto, o protagonista usa o poder de Mefistófeles para conquistar uma jovem chamada Gretchen. O feitiço é um sucesso, e a garota se rende aos seus encantos. No entanto, o que era para ser um sonho logo se transforma em um pesadelo.

Para conseguir se encontrar com Fausto, Gretchen dá à mãe um sonífero. Sem ela saber, o que havia no frasco era veneno, e sua mãe morre ao bebê-lo.

Ela engravida e se torna o escândalo da cidade. Seu irmão, Valentim, desafia Fausto para um duelo, mas acaba sendo morto em combate. Gretchen dá à luz e, num momento de desespero, mata o próprio filho afogado. As autoridades a prendem e a condenam à morte.

Antes uma garota feliz de 15 anos, Gretchen testemunha a vida acabar em um dominó de catástrofes.

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Fausto, infelizmente, não estava lá para ajudá-la. Foragido após o assassinato de Valentim, ele cede à proteção de Mefisto. O diabo o leva à Walpurgisnacht, ou Noite de Valpúrgis, uma festa orgiástica em que bruxas se entregam para demônios.

Quando finalmente ele se dá por si, já é tarde demais. Ao retornar à cidade, ele descobre que seu mundo estava fadado à destruição.

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Que Madoka seja a Gretchen de Homura é, novamente, algo que a SHAFT não fez nenhum esforço para esconder. Seu nome como bruxa, revelado no episódio 10, é nada menos que Kriemhild Gretchen.

À primeira vista, se há uma diferença gritante entre Fausto Madoka, ela está justamente na resolução. Madoka possui um final feliz, se bem que agridoce.

Fausto, por outro lado, é tradicionalmente uma tragédia de danação. Na maioria de suas versões, o estudioso que vende a alma ao demônio tem o final que merece: é arrastado ao inferno.

Apenas à primeira vista.

O perdão é para todos

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Inclina, inclina,

Ó Mãe Divina,

À luz que me ilumina,

O dom do teu perdão infindo!

 – Una Poenitentium

Ao contrário do que muitos imaginam, a lenda alemã de Fausto é só metade da tragédiaGoethe não se contentou apenas em contar sua versão do conto. Ele escreveu uma segunda parte, centrada naquilo que lhe acontece depois – em seu caminho para a redenção.

Se você nunca ouviu falar de Fausto II (como a peça é conhecida) não se desanime. A obra é incrivelmente longa (três vezes maior do que sua parte I), raramente encenada e considerada uma das obras mais difíceis da história da literatura.

Nela, após a morte de Gretchen, Fausto acorda em um mundo fantástico, onde embarca em uma jornada pela mitologia. Tudo vai bem a princípio, até que, num momento de fraqueza, ele admite ter tudo o que deseja.

A “maldição da felicidade” o arrebata de imediato, e Mefistófeles, feliz por ter ganho a aposta, surge para tomar sua alma. Para sua surpresa, os próprios céus descem para proteger Fausto.

Acontece que, tal como Madoka, Gretchen também tem um desejo a realizar. Ela renasce como uma figura celestial chamada Una Poenitentium, perdoa os pecados de Fausto e o leva consigo para o paraíso.

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Se parece inacreditável que Madoka tenha ido tão longe atrás de um plot, basta lembrar que não é a primeira vez que isso acontece. Fausto não é novidade na cultura pop japonesa. Pelo contrário, ninguém menos que Osamu Tezuka, o pai do mangá, já havia feito sua própria adaptação nos anos 1950.

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E não qualquer adaptação. Ao contrário de Miyazaki, que se baseou em um dicionário de mitologia para criar Nausicaa, Tezuka era um leitor ávido de Goethe, que devorou várias vezes as duas partes de Fausto. 

E não só de Goethe. Crime e Castigo, de Dostoievski, recebeu o mesmo tratamento.

É estranho, para quem vê de fora, pensar que uma mídia famosa como entretenimento para adolescentes possa ter essa profundidade. No entanto, esta é a mesma mídia em que mesmo desenhos abertamente juvenis colocam sinfonias do Mahler em cenas de beijo.

O que dizer? Anime também é cultura.

NOTA: A versão em português citada nesse texto é a tradução de Jenny Klabin Segall, publicada pela Editora 34